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Academic year: 2023

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TRADUÇÃO

Elementos para uma nova reflexão sobre o habitar

1

Maïté Clavel

No momento da publicação deste artigo (1982), a autora era professora da Universidade de Nanterre, Paris X.

Nota introdutória, Jorge de La Barre

Publicados em 1982 nos Cahiers internationaux de sociologie, os

“Elementos para uma nova reflexão sobre o habitar ”, da socióloga Maïté Clavel, constituem, até hoje, uma rara ocasião, para revisitar uma noção esquecida:

o habitar. Nesse texto sugestivo, a reflexão vai se espalhando a partir da Paris dos grandes conjuntos habitacionais dos anos 1970, até a Londres “verde”

dos anos 2000 – o país “de lugar nenhum” imaginado por William Morris em 1890, cujos habitantes vão (re)descobrindo as delícias do campo –, passando pela poética da casa-refúgio da infância (atemporal?) de Gaston Bachelard.

Talvez implicitamente, a socióloga da universidade Paris X-Nanterre estivesse invertendo uma tendência inexorável dos nossos tempos, (re)passando do urbano ao rural. É justamente isto que permitiria a noção-fronteira de habitar:

uma passagem, uma circulação entre rural e urbano.

Primeiro elemento-fronteira: habitar implica uma apropriação do espaço contra a produção (ideológica) do espaço, e contra um habitat sinônimo de dominação tecnocrática. Frente à impossibilidade talvez, de habitar totalmente, não é inútil lembrar o quanto, ontem como hoje, a urbanidade não corresponde a regras, códigos, procedimentos relacionais, mas essencialmente e primeiramente “à verdade da própria relação.”2 Na experiência urbana contemporânea, a dimensão do habitar encontra-se em sintonia com as noções de agência, resistência, apropriação – talvez menos inusitadas.

1 Publicado originalmente em Cahiers internationaux de sociologie. Nouvelle Serie. Vol. 72, Habiter, Produire L’espace. (Janvier-Juin 1982), p. 17-32. Traduzido por Jorge de La Barre. Revisão de Clarissa Moreira da Costa.

2 PAQUOT, Thierry. Habitat, habitation, habiter. Informations sociales, v. 3, n. 123, p. 48-54, 2005, p. 53.

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Segundo elemento-fronteira: ampliando a crítica da vida quotidiana de Lefebvre através escritos poéticos e utopistas como vimos, Clavel nos oferece uma chave de transmissão, que vai levando a força potencial do habitar para outros terrenos interdisciplinares que poderíamos facilmente prolongar até hoje. Os filmes documentários são bons exemplos disto. Mais ou menos ficcionais, mais ou menos utópicos, diversos em todo caso, filmes sobre o surgimento da cidade contam de fato uma mesma história de fascinação: é o caso de The City (1939), de L’amour existe (1960), ou de L’an 01 (1973), para citar apenas alguns em fase grosso modo com o período considerado no artigo de Clavel. 3 Desde os começos (do cinema, da modernidade, da urbanização,…), e ao mesmo tempo que ela cresce incontrolavelmente invadindo o campo ao seu redor, a cidade vai ameaçando o equilíbrio ecológico do ser humano. Se foi perdida a plenitude do habitar, um dos objetivos desses documentários é tentar nos ensinar como ela poderia ser reencontrada, ou recriada. Pois a cidade nunca poderá ser reduzida às frias e duras paredes do habitat. Daí, a centralidade simbólica da linguagem e dos sonhos para transformar a cidade.

Assim também, talvez os “sonhadores” do artigo de Clavel (Bachelard, Lefebvre, Morris) nunca tivessem sido tão atuais como nos dias de hoje, quando se torna de fato urgente a imaginação de uma “pós-urbanidade” esperançosamente menos congestionada. Temos hoje potencialmente, uma caixa de Pandora cheia de utopias “verdes”. Interessante notar em outro artigo de Maïté Clavel sobre

“Cidade e culturas”, 4 a evocação do mesmo filme L’an 01 já citado, que encenava um possível e desejável “retour à la nature” (regresso à natureza) em plena Paris…

desde 1973, ano da primeira crise mundial do petróleo!...

Nesse regime de utopias, continuamos alternando entre a nostalgia do ninho bucólico bachelardiano e o potencial revolucionário do aqui e agora lefebvriano. Lembrando o quanto a experiência urbana demanda de fato uma

“função utópica” 5 e a sempre possível inversão dialética do quotidiano, tal

3 The City (Ralph Steiner e William Van Dyke, com comentários de Lewis Mumford, 1939); L’amour existe (Maurice Pialat, 1960); L’an 01 (Jacques Doillon, Gébé, Alain Resnais e Jean Rouch, 1973).

4 CLAVEL, Maïté. Cidade e culturas. In: JEUDY, Henri-Pierre, e BERENSTEIN-JACQUES, Paola (orgs.), Corpos e cenários urbanos. Territórios urbanos e políticas culturais. Salvador: EDUFBA, p. 67-74, 2006.

5 VIOLEAU, Jean-Louis. Jean Baudrillard, Utopie, 68 et la fonction utopique. Paris: Sens & Tonka, 2013.

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como mostrou em seu tempo a Revue de sociologie de l’urbain apropriadamente intitulada Utopie, da qual participou Lefebvre, entre outros. 6 Confrontando as utopias pós-urbanas “verdes” com outras utopias “infláveis”, interessante é lembrar o quanto a tenda nômade – referida no texto de Clavel como sendo um possível tipo ideal do habitar na sua relação cósmica holística, como “modo de estar no mundo” – dialoga de fato com as novas estruturas flexíveis, aéreas do design arquitetónico da época, em primeiro lugar a borracha, num contexto ideológico precisamente marcado pela inflação retórica do inflável! 7

Assim, pode ser que a riqueza semântica do habitar continue esquecida, e seu potencial criativo também. Mas com sua leitura motivante do habitar, Clavel nos abriu uma via. Mesmo escondida, a dinâmica do habitar foi se confirmando a partir dos anos 1980, com a tendência cada vez mais patrimonialista das cidades, num contexto de busca de qualidade de vida associada à desindustrialização e ao surgimento da nova economia de serviços.

Surge paradoxalmente uma ambição desmedida das cidades, uma consciência aguda do seu poder simbólico em representar tudo, inclusive aquilo que elas não são: a natureza... De 1982 a 2006 pelo menos (datas dos dois artigos de Clavel acima referidos), o habitar permanece central paradoxalmente, precisamente porque ele continua esquecido, marginal. Mas entretanto é Paris, a própria cidade, que muda de cara. A esse período corresponde também a emergência das ciclovias, das “coulées vertes” (corredores verdes ), e outras “Paris-plage”

(Paris-praia) hoje tão banalizadas, naturalizadas. Repetindo então a provocação de Clavel (2006, p. 67), “A cidade seria um vasto jardim público.”…

6 BUCKLEY, Craig, e VIOLEAU, Jean-Louis (eds.). Utopie. Texts and Projects, 1967-1978. Los Angeles, CA: Semiotext(e), 2011.

7 TENRET, Yves. Le gonflable comme expression du négatif. Catalogue Air-Air, Monaco, 2000. Disponível em: <http://www.derives.tv/Le-gonflable-comme-expression-du>. Acesso em: 5 jul. 2015.

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Resumo

Habitar, não é só ocupar um local específico. É inscrever-se num espaço de entornos maiores, feitos de paisagens, mas sobretudo de relações, práticas, sonhos, projetos. G. Bachelard, H. Lefebvre, W. Morris propuseram reflexões e análises do habitar que não constituem partituras diferenciadas de uma melodia única, e que também não são complementares. A sua diversidade, no entanto, está de acordo com a riqueza sugestiva do habitar, em comparação com a rigidez do habitat.

Résumé

Habiter, ce n’est pas seulement occuper un lieu spécifique. C’est s’inscrire dans un espace, centre d’entours plus vastes, faits de paysages, mais surtout de relations, de pratiques, de rêves, de projets. G. Bachelard, H. Lefebvre, W. Morris ont proposé des réflexions et des analyses de l’habiter qui ne constituent pas des partitions différenciées d’une mélodie unique, et ne sont pas complémentaires non plus.

Leur diversité, toutefois, s’accorde à la richesse suggestive de l’habiter, comparée à la sécheresse de l’habitat.

Summary

“Inhabiting” does not merely imply occupying a specific place. It also means inscribing oneself in a space – the focus of a larger environment composed not only of landscapes but especially of relationships, practices, dreams and projects.

G. Bachelard, H. Lefebvre and W. Morris propose observations on and analyses of the concept of “inhabiting” neither of which are complementary nor differentiated parts of a single melody. Their diverse points of view reflect the numerous associations evoquedby the concept “inhabiting” – a much richer term than that of “habitat”, which is sterile by comparison.

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“Da mesma forma que cada experiência sólida e extensa inclui o conhecimento do seu contrário, a arte perfeita do flâneur inclui o saber habitar.

O arquétipo do habitat é a matriz ou a concha, portanto a marca legível de quem justamente vive lá. Se lembrarmos agora de que não são só os homens e os animais que habitam, mas também as mentes e sobretudo as imagens, temos diretamente sob os olhos aquilo que preocupa o flâneur e aquilo que ele procura, precisamente as imagens, seja onde for que elas residem.”

“… a marca da nossa época de transição é que o tempo deste habitat no sentido antigo do termo, que foi abrigo acima de tudo, acabou. Giedion, Mendelssohn, Le Corbusier fazem da estadia dos homens antes de tudo um corredor onde circulam tudo o que você pode imaginar de sopros e de ondas de ar e de luz. O que vem, tem o sinal da transparência: não apenas a transparência dos espaços mas também das semanas, se acreditamos nos Russos, agora planejando a abolição do domingo para favorecer a mobilidade dos feriados.” 8

Não faltam termos que se referem à noção de ocupação do espaço, inclusive nas designações mais gerais. Lugar privilegiado do desenvolvimento de uma espécie, o habitat, noção ecológica, abrange um significado muito mais amplo do que aquele limitado ao habitat humano. 9 Mas não é desta redução que partimos quando opomos habitat e habitar.

O que gostaríamos de sugerir é a oposição de riqueza semântica e imaginativa do habitar, em comparação com a rigidez funcional do habitat.

Habitar é tanto inventar, criar o seu espaço quotidiano e ser inserido num amplo círculo de relações, de paisagens familiares e no entanto sempre a descobrir.

Talvez esclareceríamos as noções e sua oposição agrupando os substantivos de acordo com sua polarização? Assim, a casa, a morada, acompanham o habitar, enquanto o “logis” de Le Corbusier, a moradia, o domicílio, a residência, a habitação, apesar de definirem, ao mesmo nível de

8 Trecho traduzido de Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, vol. III, p. 194-199, reproduzido em URBI, III, março de 1980.

9 Dicionário Littré, Habitat: “Um lugar especialmente habitado por uma espécie vegetal, também se aplica aos animais e ao homem considerados de acordo com as diferentes raças.”

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generalidade que o habitar ou o habitat, um modo histórico de ocupação do espaço, referem-se ao segundo.

Como podemos interpretar essa diferença? Se os dois termos são opostos, em que consiste essa oposição?

Uma pesquisa sobre o modo de inserção dos indivíduos no espaço não é um exercício desprovido de objetivos práticos. Destacar o carácter destrutor (que corta, aleija), do habitat e insistir sobre a dimensão de sonho realizável, de projeto, que deveria conter qualquer habitação para os seus ocupantes, é também uma forma de crítica.

A recusa argumentada ilumina então eventualmente outras propostas.

Além desta perspectiva aleatória de inscrição num devir, este tipo de análise nos parece ser preliminar a qualquer reflexão política ou fundamental sobre o espaço habitado. A não ser que reduzamos cinicamente a habitação humana ao envelope que permite a reprodução da força de trabalho, qualquer estudo sobre moradia não deveria perguntar-se sobre o significado daquilo que tem sido chamado de “função” de habitar? O que ela implica para o habitante, o que ela exige dos fabricantes? Este texto coloca-se deliberadamente fora das restrições econômico-políticas, embora seja parte de uma produção de escrita sociológica (?) datada. Embora situada na história, a crítica pretende tomar distâncias. Uma das condições para tal exercício é efetivamente essa operação que praticavam Voltaire e seu Huron, mas também os utopistas.

Numa tentativa de identificar a noção de habitar, escolhemos os escritos de três autores, todos poetas, G. Bachelard, H. Lefebvre, W. Morris, os dois primeiros, filósofos, e os dois últimos escritores políticos, quer dizer que refletem sobre as formas e o funcionamento da sua sociedade, buscando soluções, perspectivas, ao que lhes parece criticável, ou inaceitável.

Não incluímos escritos que poderiam, à primeira vista, parecer mais capazes de responder à nossa pergunta: o que é habitar? Os escritos dos “especialistas do espaço”: arquitetos, planejadores, ou designers. 10 Mas esses que concebem espaços não se perguntam sobre o significado dos espaços habitados para seus habitantes, mas sim em relação ao sistema social no qual eles são construídos.

10 Em inglês no texto (NDT).

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Eles trabalham sobre um “dado”, o qual obviamente não sofre questionamentos. 11 Não são, portanto, as reflexões sobre o habitat, o que ele deve ser, ou como melhorá-lo, que nos preocupam, mas aquelas que tentam entender o que está se organizando e se desorganizando, de acordo com que modalidades, que ritmos, com que consequências, para o indivíduo e o grupo social, quando um homem ou uma mulher, isolado ou em família, se muda, mesmo temporariamente, para uma habitação? O que que ele projeta nela, a partir dele mesmo e de suas aspirações? Como ele vive isso, nesse lugar que é também, ao mesmo tempo, lugar de frustrações e lugar de prazeres associados à ocupação do espaço?

Como essa habitação se liga, à sua mente e ao seu corpo – suas atitudes, suas práticas – ao mundo ao redor, seu bairro, sua cidade? A essas perguntas, os autores considerados não fornecem respostas, mas eles nos oferecem elementos de reflexão.

É a partir da procura por imagens da intimidade que Gaston Bachelard, abordando “a poética da casa” se pergunta sobre o habitar. As imagens da casa são para ele aquelas do “espaço feliz”: “Nossas investigações… procuram determinar o valor humano dos espaços de posse, dos espaços defendidos contra forças adversas, dos espaços amados.” 12

Para o autor, esses lugares habitados e que nos habitam não são apenas objetos: “Não é uma questão de descrever casas, detalhar os seus aspectos pitorescos e analisar as razões do seu conforto. Devemos, pelo contrário, superar os problemas da descrição – que esta descrição seja objetiva ou subjetiva, ou seja, que ela diga fatos ou impressões – para alcançar as virtudes primárias, aquelas em que se revela uma adesão, de alguma forma, nativa, à função primeira de habitar.” 13 Espaço amado, espaço primeiro, a casa abriga antes de tudo, valores de “intimidade protegida”: “Através das memórias de todas as casas onde encontramos abrigo, além de todas as casas que sonhámos habitar, podemos identificar uma essência íntima e concreta que seja uma justificação

11 Estamos escrevendo, em paralelo, um texto sobre o habitat.

12 La poétique de l’espace, PUF, 1967, p. 17. [NDT: A edição original é de 1957].

13 Ibid., p. 23.

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do valor singular de todas nossas imagens de intimidade protegida?” 14 Para G. Bachelard, filósofo, leitor de poetas, o habitar é um modo de estar no mundo, onde as memórias, as ações, os sentimentos estão situados, alojados; assim ele propõe, como auxiliar da psicanálise, “a topo-análise: o estudo psicológico sistemático dos locais da nossa vida íntima.” 15 Pois, com efeito: “Mais urgente do que a determinação das datas é, para o conhecimento da intimidade, a localização nos espaços de nossa intimidade.” 16

Isso mostra a importância que o autor confere ao espaço habitado, a casa condensando todas as características: “Qualquer espaço realmente habitado carrega a essência da noção de casa.” 17 É ao mesmo tempo nosso “primeiro universo” 18 e o berço de um passado, vivido ou imaginado. Na casa – casa onírica, casa natal – o sonhador inventa ou redescobre as imagens do abrigo, da intimidade, imagens distintas do ambiente social que interfere só para limitar a sensação de segurança, de “sûreté”, de calor, que a casa proporciona.

Portanto, de acordo com Bachelard, habita-se numa casa e não num edifício:

“Em caixas sobrepostas vivem as pessoas da cidade grande… O número da rua, o número do andar definem a localização do nosso “buraco convencional”, mas nossa morada não tem espaço em torno dela nem verticalidade nela. No terreno, as casas são fixadas com o asfalto para não afundar na terra. A casa não tem raiz.

Algo inimaginável para um sonhador de casa: os arranha-céus não têm porão.

Do pavimento ao telhado, os quartos se acumulam e a tenda de um céu sem horizontes circunda a cidade toda. Os edifícios só têm na cidade uma altura externa . Os elevadores destroem os heroísmos da escadaria. Não se tem mais mérito de habitar perto do céu. E o chez soi [em casa] já não é mais do que uma simples horizontalidade. Aos diferentes quartos de uma casa presa no andar, falta um dos princípios fundamentais para distinguir e classificar os valores de intimidade.” 19 Esta casa está localizada no campo e não na cidade. Lá é que ela

14 Ibid., p. 23.

15 Ibid., p. 27.

16 La poétique de l’espace, p. 28.

17 Ibid., p. 24.

18 Ibid., p. 24.

19 Ibid., p. 30.

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pode expressar melhor sua essência de concha, de refúgio essencial: entre os elementos em fúria, na solidão dos crepúsculos ou das noites, a casa à beira-mar, a casa isolada, torna-se a casa natal, o abrigo primeiro, o ventre.

O autor só poderá exorcizar a cidade grande imaginando, à noite, o mar rugindo ao pê dos muros do edifício, os ruídos da cidade se tornaram ressaca, a multidão se transformou em água.

A casa de Bachelard está portanto localizada num espaço que a constitui como cabana, como refúgio. Habitar a casa implica o sentimento de verticalidade caminhando entre a irracionalidade do porão e a racionalidade do sótão e o [sentimento] de centralidade conferida pela oposição ou o acordo com o seu ambiente.

O entorno da casa é cósmico e não social. Habitar para o autor, é encontrar o ninho da infância, as memórias associadas aos objetos, aos cantos, às atmosferas. São os reencontros do corpo com as primeiras emoções, as aprendizagens: os passos irregulares, os medos das obscuridades e dos mistérios do porão, as descobertas do sótão, os odores do barracão.

“E se alguém quiser ir além da história ou, mesmo ficando na história, destacar de nossa história a história sempre exageradamente contingente dos seres que a lotaram, percebemos que o calendário de nossa vida só pode estabelecer-se nas suas imagens. Para analisar o nosso ser na hierarquia de uma ontologia, para psicanalisar nosso inconsciente escondido em moradas primitivas, é necessário, à margem da psicanálise normal, dessocializar nossas grandes memórias e chegar ao plano dos devaneios que levávamos nos espaços das nossas solidões.” 20

A casa sem raíz das cidades, sem sótão, cortada em pisos, em caixas, não lhe fornece nenhuma das sensações apreciadas na casa fora da cidade. Sente- se estrangeiro, num espaço ao limite do hostil. O social o impede de se fechar sobre si mesmo dentro da casa, introduz a dispersão, a fuga para fora de si, a impossibilidade de se concentrar que permite precisamente a casa-refúgio, a cabana, que toca o céu e planta suas raízes na terra. A casa onde se habita verdadeiramente, é para Bachelard aquela que permite o retorno sobre si mesmo,

20 La poétique de l’espace, p. 28.

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e o faz comunicar com o universo: “do seu centro brilham os ventos, e as gaivotas saem das suas janelas”, 21 longe de toda a fragmentação imposta pelo mundo.

Podemos nos questionar, uma vez o feitiço quebrado, o poema lido, sobre o que que pode ser um indivíduo que conseguiria evacuar o social para se encontrar na sua própria integridade e verdade. A casa aparece como um objeto social apenas através da família mencionada pelos poetas citados pelo filósofo, uma família edipiana, reduzida a três personagens: o pai, a mãe, a criança, todo o calor protetor fechado sobre si mesmo, à distância.

No entanto, a casa foi construída num determinado momento, a sucessão de seus habitantes, suas modificações, a compõem tanto quanto as memórias do autor. Ela está localizada num quadro forjado também por homens, por uma história, Bachelard não sabe disso, não quer saber disso. Esses são espaços milagrosamente concluídos, perfeitos, que o poeta em busca de imagens felizes reencontra nas suas lembranças.

Poderíamos nos perguntar o que constitui esse espaço feliz, listar os elementos desses lugares que permaneceram tão presentes no adulto, estudar as combinações, a fim de entender melhor o que contém esse espaço para sugerir tantas impressões deliciosas ainda. 22 Esse espaço é verdadeiramente habitado, uma vez que ele mantém apesar do tempo, um grande poder evocativo para o autor, ainda habitado por essa casa no momento em que ele escreve. Talvez habitar é também ser habitado?

Outro filósofo, preocupado em analisar o espaço produzido, construído, à nossa volta, questiona a noção de habitar contrastando-a àquela de habitat:

Henri Lefebvre. Com a “Introdução” a um estudo sobre l’habitat pavillonnaire [habitação suburbana], H. Lefebvre inaugurava na França uma reflexão sobre o espaço habitado que não se limitava nem a uma relação mais ou menos extensa entre uma classe social e um tipo de habitação ou sua ocupação, e também não incluía o habitar num ambiente construído que privilegia então o “território”, as “aglomerações”, para esquecer os habitantes. Para o autor, há um nível

21 Ibid., p. 60.

22 A casa natal de Bachelard não é a “verdadeira” casa natal. O filósofo procura nas suas lembranças mas constrói também uma casa perfeita, protótipo dos valores de intimidade que ele estuda.

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específico da ocupação do espaço, o habitar, ou mais precisamente que seria o habitar, se ele não tivesse sido substituído pelo habitat. “Metodicamente ”, ele escreve, “foram definidos uma função e um objetivo do ser humano em sua vida social: hospedar-se, ou seja, ter um certo espaço para organizar sua vida

“privada”, individual e familiar. Criamos um neologismo para descrever esse conjunto de fatos: o habitat.” 23

Nesta introdução, H. Lefebvre cita Bachelard e especialmente Martin Heidegger, que “fez a pergunta radical: “O que é habitar?” Para este autor, habitar, na sua essência, é poético: o homem habita como poeta”, disse ele, comentando Hölderlin.24 Mas, observa H. Lefebvre, da mesma forma como a casa de Bachelard desaparece, a habitação, “construída de acordo com as necessidades econômicas ou tecnológicas, se afasta do habitar...” E ainda, pergunta ele, não podemos evitar a trivialidade: “a descrição do que o olhar constata e que confirma a constatação, que encerra o pensamento na constatação denominada “ciência”? 25

Podemos evitar a escolha entre a trivialidade operatória e o isolamento estéril da pesquisa? Esta preocupação, que está ligada para H. Lefebvre à questão da “relação entre as novas ciências da sociedade e a antiga tradição filosófica”, o incentiva a tentar identificar as hipóteses sobre o habitar.

1. “O habitar é um fato antropológico”; isto não significa que não existe uma história do habitar e da habitação. H. Lefebvre quer evitar, na reflexão so- bre o habitar, tanto o sociologismo como a ontologia. Tal reflexão, apesar de reconhecer o habitar como dimensão humana, não deve, no entanto, definir suas normas, por exemplo. As mudanças sociais transformam as relações, “tais como a proximidade e a distância (social, dentro dos gru- pos), a intimidade e o afastamento, a vizinhança e a separação, relações que entram numa prática social, isto é, no habitar...” 26 Por isso, a pesqui-

23 Introdução de L’habitat pavillonnaire, de N. Haumont, M. G. Raymond, H. Raymond, Éditions du CRU [Centre de Recherche d’Urbanisme], 1967, p. 159. Introdução reproduzida em Du rural à l’urbain, H.

Lefebvre, Anthropos, 1970.

24 Martin Heidegger, Essais et conférences, Gallimard, 1958 e 1979.

25 Du rural à l’urbain, p. 161.

26 Du rural à l’urbain, p. 164.

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sa sobre o habitar não deveria se concentrar sobre as formas, as normas, uma vez que essas, em movimento, em constante evolução, deveriam, em vez disso, se adaptar à mudança, às diferenças nas práticas sociais.

Pois habitar constitui uma dimensão humana, é como tal que ela varia em diferentes sociedades e ao longo da sua história. Isto se manifesta, em particular, nos objetos do habitar, que cumprem uma função utilitária, e, ao mesmo tempo, expressam valores simbólicos próprios a uma determinada sociedade. “O habitar é primeiramente constituído por objetos, produtos da atividade prática: os bens móveis e imóveis ”, e estes “envolvem e dão significado às relações sociais.” 27

2. O habitar, para H. Lefebvre, tem relações com a linguagem. “O jeito de habitar, o modo ou as modalidades de habitar, têm expressão na linguagem”, e não apenas, como vimos, pelas práticas e pelos objetos funcionais e simbólicos. A proposta leva o autor a esclarecer que “a vida quotidiana requer uma perpétua tradução na linguagem comum, desses sistemas de signos que são os objetos utilizados para o habitar, as roupas, a comida.” Sistemas parciais que são os de um homem social: “São os indivíduos membros de uma sociedade, inseridos na práxis, presos numa globalidade, que comem, bebem, jogam, habitam.” 28 Isto coloca problemas para o conhecimento do habitar, os sistemas parciais se misturam, e a análise deve, em primeiro lugar, ordenar os elementos que dizem respeito às práticas, signos e objetos do habitar, mas em seguida, e sobretudo, não fugir do exame das relações sociais essenciais: as relações de produção, a divisão do trabalho. Essas relações, que

“dominam a língua sem passar inteiramente pelas palavras”, permanecem, de acordo com o autor, “inconscientes ou supraconscientes, como a própria totalidade da sociedade, da cultura, da civilização.” 29

Outra consequência tirada da análise das relações entre linguagem e habitar é o destaque “de um duplo sistema, sensível e verbal, objetal e semântico”, “textos sociais distintos” que não mudam de acordo com as

27 Ibid., p. 164.

28 Ibid., p. 165.

29 Du rural à l’urbain, p. 166.

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mesmas leis. O discurso sobre o habitar não corresponde automaticamente aos objetos práticos e simbólicos do habitar, por isso eles devem ser estudados separadamente, identificando ao mesmo tempo as correspondências.

Os textos subsequentes de H. Lefebvre relativos ao habitar não retomaram tão precisamente o problema da linguagem. Tratava-se então de uma pesquisa que levantava a questão da relação entre os espaços funcionais e simbólicos, as práticas desses espaços, e o discurso relatando supostamente o assunto – o questionamento era óbvio. Este último vai logo ganhar uma outra forma, quando o autor fala do “silêncio dos usuários”, sem reivindicações, ou quando ele questiona o “desvio” de espaços, praticado pelos “habitantes-paisagistas”.

O problema, no entanto, da diferença entre discursos e práticas, discursos e objetos do habitar, permanece. Ele possibilita, em primeiro lugar, a medida – sem buscar a medida exata – da distância entre o vivido sonhado e o vivido real, entre a pobreza dos objetos propostos ao habitante e a riqueza, a variedade daquilo que ele projeta neles e, por outro, constatar o quanto as separações, as clivagens que cortam o quotidiano dos habitantes, ocultam ao mesmo tempo a lógica unitária que é responsável por isso. O habitante gostaria de fazer de sua habitação um abrigo contra tudo o que ocupa essencialmente a sua vida: o trabalho (o tempo vendido a outros, as relações de subordinação, a concorrência, a monotonia), ele vive-o como um espaço separado. De modo que na imaginação do habitante, a habitação aparece realmente como a única compensação quotidiana possível à vida de trabalho. No entanto, este quadro de vida é imposto precisamente pelo que impõe uma vida dominada pelas exigências do trabalho. O discurso do habitante é um discurso do habitar ou do habitat? É através da linguagem falada que podemos surpreender o habitar?

H. Lefebvre nota também, nessa Introdução, aquilo que se torna central nos seus trabalhos posteriores: o habitar inclui vários níveis, um deles, familiar e individual, se concretiza na casa, mas não é o único, ele é parte de um todo, fato que o habitat desconsidera; ele especifica também o conteúdo de um conceito que lhe parece fundamental para abordar o estudo do habitar: a apropriação.

“A ação dos grupos humanos sobre o ambiente material e natural tem duas modalidades, dois atributos: a dominação e a apropriação. Elas deveriam

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andar juntas, mas muitas vezes separam-se. A dominação sobre a natureza material, o resultado de operações técnicas, estraga esta natureza, permitindo que sociedades lhe substituam seus produtos. A apropriação não estraga mas transforma a natureza – o corpo e a vida biológica, o tempo e o espaço dados – em bens humanos. A apropriação é o propósito, o significado, a finalidade da vida social. Sem a apropriação, a dominação técnica sobre a natureza tende a crescer rumo ao absurdo. Sem apropriação, podemos ter crescimento económico e técnico, mas o desenvolvimento social propriamente dito permanece nulo.” 30 O segredo da apropriação, que o autor reencontra na cidade antiga ou na cidade medieval, parece-lhe perdido. O urbanismo racional domina e não permite mais a apropriação do espaço pelos habitantes das cidades de hoje.

Como entender o sentido da evolução das formas espaciais? Sua dependência contemporânea do sistema econômico e dos seus valores de racionalidade é sem esperança? H. Lefebvre, nos livros que ele dedica ao espaço, a partir desta Introdução, oferece respostas lendo a história à luz do presente, rastreando a nossa quotidianidade, para abrir outros espaços questionando outras possibilidades.

Em La révolution urbaine, 31 ele não separa o habitar do “urbano”, virtualidade contida nas transformações da cidade contemporânea, que lentamente se constituiu ao longo da história. Nesta cidade, a nossa, H. Lefebvre distingue três níveis: um nível G, global, do espaço institucional, um nível M, misto, da cidade, um nível P, do habitat.

“Chegamos ao nível P, que passa erroneamente por modesto se não insignificante. Aqui, apenas o ambiente construído é levado em conta, os edifícios (residências: grandes edifícios, pavilhões e moradias, cabanas, favelas).

Não temendo retornar a uma controvérsia já antiga, nós contrastaremos fortemente o habitar e o habitat. Este último designa um “conceito” ou melhor um pseudo-conceito caricatural. No final do século XIX, um pensamento (se assim podemos chamá-lo) urbanístico, tanto fortemente como inconscientemente redutor, colocou de lado, e literalmente entre parênteses, o

30 Du rural à l’urbain, p. 173.

31 La révolution urbaine, Gallimard, 1972.

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habitar; concebeu o habitat, função simplificada, restringindo o “ser humano”

a alguns atos elementares: comer, dormir, se reproduzir.” 32

O habitat inibe essa característica do habitar, de representar um nível específico da realidade urbana, inibe “a diversidade dos modos de vida, dos tipos urbanos, dos patterns, 33 dos modelos culturais e valores ligados a modalidades ou modulações da vida quotidiana.” 34 Para o autor, o habitar deveria respeitar e dar conta de todas as diversidades sociais, das várias diferenças manifestas a qualquer momento pelos indivíduos. Não é só o lugar de “agentes” menores, tais como a família, o grupo dos vizinhos e das relações

“primárias”. O habitar não se satisfaz com os quadros de análise sociológicos.

Ele recorta através das categorias urbanas, não se refere apenas aos ocupantes habituais, aos habituados de áreas geográficas limitadas. Habitar poderia se referir a outros relacionamentos, a outros entornos mais amplos... mas aqui falta à imaginação o apoio social. De fato, para H. Lefebvre, o habitar é reprimido na inconsciência pelo habitat. “Antes do habitat, o habitar era uma prática milenar, mal expressada, mal levada à linguagem e ao conceito, mais ou menos viva ou degradada, mas que permanecia concreta, isto é, ao mesmo tempo funcional, multifuncional, transfuncional.” 35

Este aspecto concreto, esta multiplicidade de aspectos do habitar, quadro do quotidiano, lugar de aprendizagem para a criança, que permite a privacidade e a hospitalidade, está perdido. Também está perdido aquilo que ligava o ser humano a “o possível e o imaginário”. H. Lefebvre se pergunta, na sua preocupação de pensar uma habitação que não seja o habitat, “como criar um habitar que dê forma sem empobrecer, uma concha que permita à juventude de crescer sem se fechar prematuramente... como oferecer uma morada.” 36

“Como expressar arquitetônica e urbanisticamente essa situação do “ser humano” inacabado e cheio de virtualidades contraditórias?” 37

32 La révolution urbaine, p. 110.

33 Em inglês no texto (NDT).

34 Ibid., p. 111.

35 Ibid., p. 110.

36 Ibid., p. 114.

37 Ibid., p. 116.

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As reflexões de H. Lefebvre e de G. Bachelard, apesar das referências poéticas que invocam, a valorização do habitar que eles tentam justificar, são radicalmente separadas.

Para G. Bachelard, habitar é ocupar uma casa particular, quadro das primeiras aprendizagens; é reencontrar a infância: a intimidade da atmosfera familiar e a descoberta do mundo cósmico, da natureza. Para H. Lefebvre, o habitar é certamente ligado a uma materialidade – que, no entanto, não é obrigatoriamente a casa – mas esta é principalmente um ponto de partida: o desenvolvimento da criança, um apoio do imaginário, o trampolim para os possíveis. À concha redonda e concentrada se opõe um espaço que é abertura ao mundo.

A oposição é irredutível? Poderíamos pensar em uma habitação que combinaria esses dois polos, um virado para a casa sonhada e seus valores de intimidade, o outro para o mundo, a ação no mundo, ou mesmo sobre o mundo?

A imagem que junta, em nossa opinião, essas duas concepções do habitar, é a tenda nômade. Abrigo primeiro porque ao mesmo tempo mínimo e irredutível: uma manta de lã ou de couro, enrolada e desenrolada durante os deslocamentos, mas também um telhado que não pode ser reduzido, senão para abandonar qualquer estrutura e referência social. Os indivíduos sem tenda, portanto fora da sociedade, excluídos, abandonados, são então condenados ao desaparecimento. A tenda dos nômades, com efeito, é, além de ser um telhado que protege a família, a inscrição necessária num grupo social, numa organização coletiva: são as decisões de deslocamento, de distribuição de bens econômicos, de partilha dos saberes quotidianamente necessários para viver num ambiente austero. Ora o habitar, neste caso, nega a importância da solidez da habitação, no sentido em que a segurança dos materiais de construção, sua impermeabilidade, sua densidade, as garantias da segurança conferida pela

“casa”, seja na forma do apartamento ou da moradia, não têm mais razão de ser. Trata-se de uma outra solidez: a montagem da tenda obedece a regras específicas, a manutenção do tecido não é improvisada, mas essas regras e essa manutenção manifestam sobretudo o pertencimento a uma sociedade que forjou formas de fazer e de ser. Além disso, este habitar não está vinculado a um

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lugar, mas a paisagens. Os percursos dos nômades são regulares e os pastejos se seguem em torno dos mesmos postos de água, mas não há nenhuma ancoragem no solo. Habitar é, portanto, utilizar, ocupar um território, compartilhado com o grupo ampliado que constitui a tribo, mas também os outros grupos amigos ou rivais. É também ser integrado na gestão coletiva desse território, a vida econômica dos indivíduos, das famílias, das tribos, depende disso. Esta situação não tem nada a ver com as práticas das nossas sociedades industriais, com múltiplas divisões dos espaços, construídos ou não, conforme as propriedades.

Essas duas formas de organização são mesmo antitéticas. Os Estados modernos estão bem cientes disto, e tentam fixar os nômades, erradicar a sobrevivência desse modo de vida, de organização coletiva e de uso do solo, incompatíveis com a fragmentação dos espaços, o desmoronamento do tempo e das atividades.

A leitura de G. Bachelard e de H. Lefebvre, refletindo sobre o espaço habitado, sugere uma reflexão alternativa: pensar um habitar que incluiria alguns progressos constitutivos do nosso modo de ser e de viver no século XX, que combinaria os valores de concentração da cabana, a sua inserção cósmica, àqueles que incitam à ação, preparam seus ocupantes para a sua inscrição no mundo.

Um autor, pouco conhecido em França, William Morris, define o habitar ainda de outra forma. Poeta, artesão, decorador, militante socialista, patrão também, W. Morris é autor de uma utopia inclassificável: Notícias de lugar nenhum . Sem resumir esta “viagem”, escrita em 1890, podemos dizer que o autor descreve Londres, seus bairros e o vale do Tâmisa, num futuro localizado além do ano 2000.

Qual é a concepção do habitar de W. Morris? O utopista, cujo herói, seu duplo, desperta 200 anos depois, não dá nenhum “modelo” de organização espacial (nem social).

Ele leva seu personagem no vale do Tâmisa cuja água limpa, com peixes, se espelha em paisagens renovadas. Assim Londres não é mais uma enorme metrópole, mas uma pequena cidade cujo centro apenas manteve uma alta densidade, ao mesmo tempo porque a arquitetura é bela, porque alguns moradores gostam da multidão e porque, como observa o sonhador: “Eu não pude deixar de sorrir, pensando em como as tradições são difíceis de morrer.

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Ali estava o espectro de Londres que continuava a se afirmar como centro...” 38 Os subúrbios desapareceram, exceto o centro preservado por razões estéticas relativas às relações tanto como as construções, “as casas são amplamente espalhadas nas campinas...” rodeando Picadilly.39

Londres não é a única cidade a ter sofrido uma metamorfose. As cidades industriais em particular: “Como eram apenas centros de produção, e que só serviam enquanto lugares de especulação, elas deixaram menos vestígios da sua existência que Londres.” 40 No entanto, as pequenas cidades foram redesenhadas: “Os subúrbios, na realidade, quando existiam, se uniram à zona rural ao redor, e foi introduzido no centro, espaço à vontade; mas as cidades existem ainda, com as suas ruas, suas praças, seus mercados...” 41

Quanto às aldeias, desertas ou destruídas no final do século XIX, foram os primeiros lugares a se transformarem com as convulsões sociais que provocaram a mudança de sociedade observada pelo sonhador de Morris. “As pessoas foram para as aldeias em multidões e se jogaram, por assim dizer, nas terras abandonadas, como animais sobre a presa; em pouco tempo as aldeias da Inglaterra tinham uma população maior do que nunca tiveram desde o século XIV e continuaram crescendo rapidamente. (...). As pessoas descobriram do que eram capazes, e desistiram de querer crescer em profissões onde só poderiam correr rumo ao fracasso. A cidade invadiu o campo; mas os invasores, como os guerreiros das antigas invasões, cederam à influência do meio ambiente e se metamorfosearam em agricultores; e por sua vez, se tornaram mais numerosos do que os citadinos, exerceram também sobre estes a sua influência; de forma que a diferença entre a cidade e o campo diminuiu cada vez mais; e é na realidade o mundo camponês vivificado pelo pensamento e pela vivacidade dos citadinos que produziu esta forma de existência, feita de felicidade, de lazer e de entusiasmo também...”42

Assim é realizada nesse país de lugar nenhum, o fim da oposição entre cidade e campo, não em termos urbanísticos, mas na prática e nas ocupações

38 Nouvelles de nulle part, Aubier, 1957, p. 147.

39 Ibid., p. 215.

40 Ibid., p. 219.

41 Ibid., p. 219.

42 Nouvelles de nulle part, p. 223.

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dos habitantes da cidade como do campo. 43 São os homens e as mulheres que acabam com o antagonismo entre os dois termos, por osmose, pela invenção de uma nova arte de viver, de um outro quotidiano, de outras relações sociais.

De maneira alguma, nesse país de utopia, a oposição se resolve pelo desaparecimento do campo (ou da cidade).

O espaço não é abstrato, é a obra permanente dos habitantes. A construção não é restrita a “especialistas”. Os habitantes aprenderam, ou então estão aprendendo as diferentes profissões, constroem habitações soltas, pequenas ou grandes, decoradas ou não. A casa não é o lugar de um enraizamento, ela permite a inserção numa paisagem, o decorrer das relações entre habitantes. A casa é o espaço construído que permite a recepção, um dos lugares do fazer junto, do compartilhar.

Mas é sobretudo pela maneira de ocupá-las que essas casas aparecem como lugares utópicos. Elas acolhem os estrangeiros, os viajantes, aqueles seduzidos pela casa ou encantados pela paisagem, os amigos que querem ficar um tempo. Embora Ellen, uma das figuras femininas do país sonhado, diz que “não gosta de mudar de casa”:

“Acostuma-se tão deliciosamente a todos os detalhes da vida ao redor; tudo se enquadra tão bem e tão felizmente com a vida, que a ideia de recomeçar, mesmo em menor grau, provoca uma espécie de dor”,44 a casa não é um lugar de retiro, de intimidade. O ritmo das estações, as viagens, as atividades da comunidade, encontram nela um eco, organizam a quotidianidade dos ocupantes habituais ou passageiros. Habitar não é mais então ocupar uma casa e nem mesmo um lugar fixo, mas viver com paisagens, com vizinhos imediatos e transeuntes. O apego aos lugares e paredes é então um prazer de natureza estética.

Habitar, para W. Morris, como para os utopistas, é fazer parte de um amplo conjunto: a cidade e seu hinterland ou o território inteiro.45 Habitar é viver dentro da sociedade ao redor, fazer parte da comunidade. W. Morris relata como poeta a essência do habitar que é sem dúvida da ordem da utopia: nós habitaremos quando nossos relacionamentos, nossas relações serão outros. A sociedade comunista e não restritiva de Morris – nem institucionalmente, nem

43 Não se trata nem de subúrbios nem de “rurbanização”.

44 Nouvelles de nulle part, p. 463.

45 No primeiro caso trata-se de uma cidade-Estado como A Cidade do Sol de Campanella ou a Icaria de Cabet; no segundo caso entram a Utopia de Thomas More ou O país de lugar nenhum.

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sob a forma de um código da opinião pública – permite uma outra abordagem da noção de habitar.

A casa, o urbano ou o país de lugar nenhum permitem o habitar. Para G.

Bachelard, habitar numa casa é um ato individual ou familiar que se enquadra na afetividade, na psicologia. Habitar na cidade hoje, mas mais ainda amanhã, é para Henri Lefebvre começar a pensar um futuro diferente, prever um desenvolvimento histórico de tendências detectáveis nas relações dos habitantes entre si e nos seus espaços de vida. W. Morris constrói sua utopia assumindo a oposição cidade/campo resolvida, um mundo onde reina a harmonia entre uma natureza reencontrada e uns habitantes apaziguados. Habitar para este último autor, é viver tendo descartado socialmente todos os falsos conflitos, as falsas necessidades, os falsos antagonismos. Numa sociedade reconciliada, habitar é ser.

As abordagens dos três autores são diferentes.

O primeiro procura os valores da intimidade e examina os espaços que constroem simbolicamente esses valores para os habitantes.

O segundo analisa o habitar como nível da realidade urbana, inscreve-o num devir em formação e a forjar em conjunto.

O terceiro imagina um mundo diferente nas suas relações sociais, suas instituições, seus espaços habitados.

Para G. Bachelard como para W. Morris, a casa é o quadro privilegiado do habitar; no entanto, H. Lefebvre nunca descreve formas ou atmosferas, mas sugere as condições de um habitar possível.

Enquanto G. Bachelard limita o habitar à casa, suas paredes, H. Lefebvre e W. Morris não o concebem sem o seu ambiente social. Habitar é até inconcebível sem a cidade, para H. Lefebvre, enquanto está ligado, para W.

Morris, à reorganização social e por isso espacial como um todo. Para esses dois autores, o habitar é um nível privilegiado do estar no mundo, mas não é o único, e sobretudo não é separado dos outros modos de existência. Habitar, não é retirar-se num “privado”, como parece ser para G. Bachelard.

Esses dois autores, apesar de serem próximos na concepção do habitar, distinguem-se na forma de refletir e suscitar a reflexão. H. Lefebvre fala de aqui

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e agora, para uma ação a ser tomada imediatamente, enquanto W. Morris quer acreditar no valor estimulante das imagens.

No entanto, apesar das suas abordagens diferentes e mesmo contraditórias, esses autores aprofundam uma noção constitutiva da nossa existência nesta terra, e completamente obliterada pelos nossos criadores de espaço.

Se nossa modernidade não se limita à conquista da higiene, 46 não podemos inventar outros espaços, restaurar um significado ao habitar e uma totalidade ao habitante?

46 “... a casa de banho e o banheiro, sucessos mais inegáveis e originais desta época”... ironizava E. Bloch, em O espírito da utopia, em 1923.

Referências

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