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Camões, Laura e a Bárbora escrava

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Academic year: 2022

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Camões, Laura e a Bárbora escrava Autor(es): Marnoto, Rita

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras URL

persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23854 Accessed : 30-Oct-2022 08:04:39

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

FACULDADE DE LETRAS

VISE 7

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MÁTHESIS 6 1997 77-103

N ;

CAMOES, LAURA E A BARBORA ESCRAVA

RITA MARNOTO

Esta intervenção tem na sua base dois princípios metodológicos cuja incidência considero estruturante.

O primeiro diz-nos que a verdadeira dimensão crítica de todo o acto de conhecimento e de transmissão de conhecimento decorre dos seus pressupostos hermenêuticos. Sujeito e objecto, o mesmo e o outro, o ontem e o hoje, articulam-se num círculo hermenêutico com implica- ções locutórias, ilocutórias e perlocutórias. É como Homens de hoje que estudamos o passado: voltamo-nos para ele, perscrutamo-lo, mas sempre ancorados no presente que nos habita. Desta feita, é o próprio percurso entre o ontem e o hoje a corroborar uma tomada de consciência da distância que intercorre entre os diversos momentos que nele se inte- gram. O círculo descrito pela linguagem analítica (que, sem deixar de ser a linguagem de hoje, é transepocal) erige-se, pois, em cerne da sua essência crítica. Ao diferenciar, a linguagem compara e criva, para lá de qualquer pseudo-objectividade imposta pela perspectiva reducionista que subjaz a certas correntes da ortodoxia estruturalista.

Nós, que lemos Camões hoje, fazêmo-Io com os olhos de um leitor do século XX - nem de outra forma o podemos fazer. O facto de trazermos na nossa bagagem a cultura do homem da última década do século e de nos esforçarmos por abarcar a cultura dos jovens que frequentam as nossas escolas em nada afecta a pertinência e o rigor crítico de leituras como a que me proponho levar a cabo. Creio, aliás, que a consciência dessa distância é pedra-angular de todo o trabalho pedagógico.

O segundo princípio metodológico que orienta a minha intervenção postula o carácter indissociável de didáctica e conhecimento científico.

Opções pedagógicas e escolhas científicas não vivem, nem podem viver, solipsamente. Se, por um lado, qualquer processo de transmissão de conhecimento é validado, além do mais, pela pertinência científica dos conteúdos em causa, por outro lado, a cadeia através da qual se efectua

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essa prática mediadora fornece um contributo essencial para a própria renovação do saber. Note-se que também este contraponto dialéctico decorre da interdependência entre acto locutório, ilocutório e perlo- cutório, sustida pelo círculo hermenêutico.

Articulei a minha exposição em três partes. Os dois primeiros pontos que me proponho desenvolver desembocam num terceiro, que tem uma dimensão prevalentemente prática. Inicialmente, começarei por me referir a questões de periodização literária, detendo-me, em particular, sobre os períodos do Renascimento e do Maneirismo, para neles integrar a figura de Luís de Camões (1.). De seguida, traçarei uma síntese evolutiva da descrição literária da figura feminina, entre os poetas do dolce stil novo, Petrarca e os poetas petrarquistas do século XVI (2.). E, finalmente, ilustrarei o lugar de transição ocupado por Camões, entre Renascimento e Maneirismo, através da análise do soneto

"andados fios d'ouro reluzente" e das trovas à "Bárbora escrava" (3.).

1.

O princípio de imitatio é a base de todo o trabalho do escritor renascentistal. A qualidade de uma obra de arte é avaliada a partir do modo como o seu autor se sabe apropriar de modelos que enformam outras obras, especialmente admiradas. A norma literária e o cânone assumem, por isso, um valor fundamental.

Recorde-se que, até ao Romantismo, a invenção espontânea não é particularmente valorizada. Todavia, nunca será demais insistir sobre o facto de que a teoria da imitatio, tal como é concebida no período do Renascimento, não postula a mera reprodução de textos ou autores sumamente apreciados pelo seu carácter exemplar. Para escrever bem, é necessário saber imitar bem, não repetindo cegamente conteúdos e formas de expressão consagrados, mas adaptando-os a novos contextos.

Os fundamentos do princípio de imitação encontram-se formulados, de modo exemplar, nos escritos daquele que a crítica designou, a justo título, como "o primeiro moderno": Francesco Petrarca (Arezzo, 1303- -Pádua, Arquà, 1374)2. Além de ter lançado as bases metodológicas da

1 Sobre o princípio de imitação, vd.: H. Bloom, The anxiety ofinfluence. Oxford University Press, 1973; G. W. Pigman III, "Versions ofimitation in tbe Renaissance":

Renaissance quaterly, 33, 1980; e T. M. Green, The light in Troy. Imitation and discovery in Renaissance poetry. New Haven, London, Yale University Press, 1982.

2 A bibliografia sobre este tema é vastíssima. Recordem-se, além dos funda- mentais estudos de G. Martellotti, Scritti petrarcheschi, a cura di M. Feo e S. Rizzo.

Padova, Antenore, 1983, de E. Garin, L'Umanesimo italiano. Bari, Laterza, 31964, e de

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filologia modema, Petrarca instituíu um modelo lírico de incidência secular. Célebres as palavras que dirige ao seu amigo Tomaso da Messina, numa epístola que tem por incipit De inventione et ingenio:

Sed illud affinno: elegantiores esse solertie, ut, apium imitatores, nostris verbis quamvis aliorum hominum sententias proferamus. Rursus nec huius stiIum aut illius, sed unum nostrum conflatum ex pluribus habeamus; felicius quidem, non apium more passim sparsa colligere, sed quorundam haud multo maiorum vermium exemplo, quorum ex visceribus sericum prodit, ex se ipso sapere potius et loqui, dummodo et sensus gravis ac verus et senno esset ornatus. 3

Segundo Séneca, o trabalho do escritor é semelhante ao das abelhas, que recolhem os melhores pólenes para depois os transformarem em matérias excelsas. Petrarca recorda, reiteradamente, esta imagem4

Todavia, na carta ao amigo Tomaso da Messina, observa que o exemplo dos bichos da seda lhe parece assumir um valor simbólico superior ao das abelhas, pois os fios são segregados a partir das próprias vísceras das larvas. Também a obra literária deve ser escrita com base no exemplo dos melhores escritores, mas a partir da pessoalização do conhecimento, e não de uma mera acumulação do saber - ex se ipso.

De entre os muitos amigos que seguiram os conselhos de Petrarca, e tomaram o seu exemplo por modelo, ganha relevo a figura de Giovanni Boccacccio (Florença?, 1313 - Certaldo, 1375)5. Nesta página da sua obra satírica intitulada Corbaccio,

Tu, se io già bene intesi, mentre vivea, e ora cosi essere iI vero apertamente conosco, mai alcuna manuale arte non imparasti e sempre l'essere mercatante avesti in odio; di che piil volte ti se' e con altrui e teco medesimo gloriato, avendo riguardo al tuo ingegno, poco atto a quelle cose nelle quali assai invecchiano d'anni, e di senno ciascuno giorno diventano piil giovani. Della qual cosa iI primo argomento ê che a loro par piil che tutti gli altri sapere, come alquanto sono loro bene disposti i guadagni, secondo gli avvisi fatti, oppure per avventura, come

M. Feo, "Petrarca ovvero l'avanguardia deI Trecento": Quaderni petrarcheschi, 1, 1983, as postilas de Petrarca a Quintiliano, publicadas por M. Accame Lanzillotta em Quaderni petrarcheschi, 5, 1988.

3 Le familiari. Volume primo, edizione critica per cura di V. Rossi. Firenze, Sansoni, 1. 8.5.

4 Vd. a Fam. 22.2., ou a Fam. 23.19.; e cf. Séneca, Ad Luc. 10.84.3., e Horácio, Carmo 4. 2. 27:32.

5 Sobre a amizade intelectual que uniu Petrarca e Boccaccio, vd. G. Billanovich, Petrarca letterato. Lo scrittoio del Petrarca. Roma, Storia e Letteratura, 1947.

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suole le piil volte avvenire; là dove essi, dei tutto ignoranti, niuna cosa piil oltre sanno che quanti passi ha dai fondaco o dalla bottega alia lor casa; e par loro ogni uomo, che di cio li volesse sgannare, aver vinto e confuso, quando dicono: "Di' che mi venga ad ingannare", o dicono:

"All'uscio mi si pare"; quasi in niun'altra cosa stia iI sapere, se non in ingannare o in gudagnare.

Oli studi adunque alla sacra filosofia pertinenti, infino dalla tua puerizia, piil assai che iI tuo padre non arebbe voluto, ti piacquero; e massimamente in quella parte che a poesia appartiene; la quale per avventura tu hai con piil fervore d'animo che con altezza d'ingegno seguita.6,

Fica bem patente o confronto entre dois tipos de actividade (otium / negócio), de saber (efectivo / aparente) e de ética profissional (enganar ou ganhar / estudar a sagrada filosofia).

Corbaccio quer dizer corvo mau, corvo que dá azar. O tema desta obra é acentuadamente misógino. Boccaccio está loucamente apaixo- nado por uma viúva. Tem um sonho: deambula por lugares encantados, até que vai ter a uma selva horrível, onde eXpiam pecados os amantes que se deixaram dominar pelas magias das mulheres. Foram transfor- mados em animais. Eis que uma sombra se aproxima. É o defunto marido da viúva por quem se encontra apaixonado, que lhe faz ver toda a malícia, toda a falsidade e toda a luxúria não só daquela que fora sua esposa, em vida, como também de todas as mulheres, de uma maneira geral, e o incentiva a dedicar-se ao estudo dos auctores.

6 Opere in prosa, a cura di P. O. Ricci. MiIano, Napoli, Ricciardi, 1965, pp. 494- -95. A decodificação linguística do texto transcrito não é simples, pelo que passo a traduzir:

"Tu, se eu bem entendi, quando era vivo, e agora sei verdadeiramente que assim é, nunca aprendeste nenhuma arte manual, e sempre detestaste ser mercador; muitas vezes te gabaste disso, perante outrém e perante ti próprio, tendo em conta o teu engenho, com pouca aptidão para aquele tipo de coisas a que se dedicam muitas pessoas, as quais envelhecem anos, e de juízo ficam cada vez mais novas. O primeiro argumento que o confirma é o facto de pensarem que sabem mais do que toda a gente, se obtêm bons lucros, por terem feito projectos avisados, ou por acaso, como costuma acontecer na maior parte das vezes; quando, pelo contrário, são de todo ignorantes, não sabem nada que vá além do número de passos que fica entre o armazém ou a loja e a sua casa; e pensam que confundem e levam a melhor sobre qualquer pessoa que os queira convencer do contrário, quando dizem: 'Diz que me venham cá a enganar' , ou dizem:

'Já tinha percebido tudo'; como se em nenhuma outra coisa consista o saber, se não em enganar ou em ganhar.

Os estudos ligados à sagrada filosofia agradaram-te desde a puerícia, mais do que o teu pai queria; principalmente aquela parte relativa à poesia; a qual, por acaso, seguiste com maior fervor espiritual do que com grandeza de engenho."

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CAMÕES, LAURA E,A BÁRBORA ESCRAVA 81

Petrarca, Boccaccio e os grandes humanistas italianos do século XV trazem à luz inúmeros textos dos grandes escritores da Antiguidade que há séculos jaziam esquecidos nas bibliotecas, recuperando-os de acordo com premissas metodológicas racionais e coerentes. O Huma- nismo poderá ser concebido, pois, como método que implica uma nova concepção do saber, novos ideais pedagógicos e uma nova perspectiva do trabalho filológico? Esse método encontra-se intimamente associado ao período do Renascimento, uma época em que todo o labor literário tem na sua base o princípio de imitatio, embora de forma alguma seja possível assimilá-lo a este conceito periodológico. Desta feita, o Huma- nismo poderá ser interpretado como uma das causas do Renascimento.

Na Literatura Portuguesa do século XVI, a Ars poetica de Horácio foi o grande texto teórico em torno do qual se concentrou a atenção dos homens de Letras. O nome de António Ferreira é, justamente, o do mais destacado interlocutor de um grupo de intelectuais que privilegia a função modelar dos princípios advogados por Horácio. Na verdade, a Epístola aos Pisões contém em si uma série de preceitos formalizantes e normativos que são enunciados de uma forma muito clara, assumindo, por isso, uma dimensão acentuadamente pragmática.

Na atmosfera cultural do Portugal quinhentista, o princípio de imi- tatio desempenha um papel de primeiro plano. Daí resulta, além do mais, um substancial enriquecimento dos horizontes literários cujos parâmetros norteiam o labor criativo - entre os grandes autores da Antiguidade grega e romana, da Literatura Novilatina, do Humanismo e do Renascimento italianos, e os poetas da vizinha Espanha. A obra des- tes autores funciona como modelo, como exemplo a seguir, ou até como código literário a ser explorado de acordo com a teoria da imitação, em conformidade com os preceitos de Horácio. Ao mesmo sucede-se o mesmo.

No período do Maneirismo, o princípio de imitatio continua a desfrutar de uma importância primordial, sendo interpretado, porém, sob uma nova óptica8Os elos que ligam modelo e cópia não deixam de assumir um valor fundamental, mas esbatem-se. Sem que os esteios do

7 Cf. Luís de Sousa Rebelo, A tradição clássica na Literatura Portuguesa. Lisboa, Horizonte, 1982, pp. 69-99.

8 Sobre o conceito de Maneirismo e sobre o período maneirista, na Litera- tura Portuguesa, vd. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa. Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1971, e Aníbal Pinto de Castro, "Os códigos poéticos em Portugal do Renascimento ao Barroco. Seus fundamentos. Seus conteúdos. Sua evolução": Revista da Universidade de Coimbra, 31,1984.

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princIpIo de imitação sejam, de forma alguma, postos em causa, a obnubilação dos reflexos especulares faz emergir, da semelhança, a dissemelhança. À relação de identidade directa entre modelo e cópia sobrepõe-se um outro tipo de relação, que tem na sua base a analogia - e da imitação passa-se à transformação.

A diversidade dos princípios epistemológicos que subjazem a cada um destes períodos alia-se a concepções de mundo também elas substancialmente diferenciadas. Se a cosmovisão do homem do Renascimento tem na sua base uma atitude de confiança nas capacidades do humano, a cosmovisão maneirista anda associada à dúvida, à interrogação e ao temor.

Em termos cronológicos, o Maneirismo estende-se, nas Letras portuguesas, entre os finais do século XVI e as duas primeiras déca- das do século XVII. Temas como o desengano, a mudança, ou o lamento pelo desconcerto do mundo - típicos da Literatura deste período - , são tratados de forma sentida, melancólica e dolente. O Manei- rismo deixou marcas profundas na poesia portuguesa, o que costuma ser explicado através de dados contextuais de índole histórica. Portugal atravessava, nesse período, uma grave crise político-social.

Neste quadro periodológico, a obra lírica de Luís de Camões ocupa um lugar de transição entre Renascimento e Maneirismo. O príncipe dos poetas portugueses ora se revela um fiel imitador de modelos literá- rios consagrados (o que, de toda a maneira, não é frequente), ora os imita de forma distanciada, quando não crítica.

Bastará recordar, a este propósito, a carta terceira, De Lisboa, a um seu amigo. Camões critica, sem rodeios, e com fina ironia, o compor- tamento de quantos seguem, obstinadamente, certos fenómenos de moda, ligados à voga petrarquista:

Ao redor de cada uma destas [donas] vereis estar uma dúzia de parvos, tão confiados que cada um jurara que é mais favorecido que todos. Uns vereis encostados sobre as espadas, os chapéus até os olhos e a parvoice até os artelhos, cabeça entre os ombros, capa curta, pernas compridas;

nunca lhes falta uma conteira dourada, que luz ao longe. Estes, quando vão pelo sol, miram-se à sombra; e, se vêm bem dispostos, dizem que teve muita rezão Narciso de se namorar de si mesmo. Estes, no andar, carregam as pernas pera fora, torcem os sapatos pera dentro, trazem sempre Boscão na manga, falam pouco, e tudo saudades, enfadonhos na conversação pelo que cumpre à gravidade de amor. Nestes fazem alcoviteiras seus ofícios, como são: palavras doces, esperanças longas, recados falsos.9

9 Obras completas. 3. Autos e cartas, com prefácio e notas de Hernâni Cidade.

Lisboa, Sá da Costa, 21956, p. 251.

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Permitam-me que insista sobre este ponto: classificar Camões, pura e simplesmente, como poeta renascentista, é extremamente limi- tativo e redutor, se não acientífico. Apesar disso, dei-me conta de que, em alguns manuais escolares, o príncipe dos poetas portugueses é li- nearmente catalogado como um autor renascentista.

Na verdade, Camões ora segue, de modo próximo, o princípio de imita tio, tal como é concebido pelos escritores do Renascimento, ora o trabalha de uma forma muito livre, podendo mesmo mostrar-se crítico em relação aos modelos que maneja. Estas duas facetas do lirismo camoniano serão ilustradas na terceira parte da minha exposição.

2.

Processando-se toda a renovação do lirismo português quinhen- tista por via italianizantelO, é fundamental que a sua interpretação assente num conhecimento directo e exacto das referências e das fontes literárias em causa. Neste sentido, é meu objectivo elaborar uma síntese evolutiva da forma como a figura feminina é concebida pelos poetas italianos, entre o final da Idade Média e o Renascimento, a saber: os cultores do dolce stU novo, Petrarca e os petrarquistas do século XVI.

Como exemplo da projecção modelar assumida pelo retrato feminino petrarquista, noutras Literaturas europeias que não a Portuguesa, apre- sentarei um soneto de Ronsard e um soneto de Shakespeare.

É sabido que o Humanismo é um fenómeno italiano, e que a pe- nínsula itálica é a zona da Europa onde o Renascimento floresceu em momento prístinoll. O modo como Petrarca, os poetas do stU novo (que o antecederam) e os poetas petrarquistas do século XVI (que vieram depois dele, obviamente) descreveram a figura feminina, é eleito modelo que foi imitado pelos autores de todas as Literaturas europeias.

Comecemos por considerar, em primeiro lugar, as características essenciais da poesia do dolce stU novo, ou, simplesmente, do stU novo, já que são utilizadas as duas designações12

A expressão dolce stU novo foi cunhada por Dante Alighieri (Flo- rença, 1265 - Ravena, 1321), nos versos da Commedia. Recorde-se que

10 Aprofundei este assunto em O petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo. Coimbra, Faculdade de Letras, 1994.

11 Cf. C. Dionisotti, Geografia e storia della letteratura italiana. Torino, Einaudi, 41984.

12 Para uma visão de conjunto da poesia stilnovista, é indispensável a leitura das sínteses de M. Marti, Storia dello stil nuovo. Lecce, Milella, 1973, e de G. Favati, Inchiesta sul dolce stil novo. Firenze, Le Monnier, 1975.

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o início da elaboração desta obra-prima da Literatura mundial remonta aos primeiros anos do século XIV, embora a sua composição se estenda até ao fim da vida do poeta florentino. A crítica dantesca de há muito recusou o título Divina commedia, que considera impreciso!3. Boccaccio, na vida de Dante, e Claudio Tolomei, no Cesareo, classificaram esta obra como divina, epíteto que foi impresso no seu frontispício, pela primeira vez, na edição preparada por Ludovico Dolce e batida pelos prelos de Gabriele Giolito de Ferrari, em Veneza, no ano de 1555. No entanto, Dante intitulou a sua obra Commedia (Comedia, de acordo com a norma linguística trecentista) por motivos claramente explicitados na carta que, em 1316, dirige a Cangrande della Scala. São duas as ordens de razões evocadas, uma relacionada com o conteúdo do poema, que começa mal e acaba bem, outra relativa ao seu estilo, a situar entre a solenidade própria do trágico e a humildade que caracteriza o estilo elegíaco.

No canto 24. do Purgatorio, são colocadas na boca do poeta Bonagiunta Orbicciani as seguintes palavras:

"O frate, issa vegg' io", diss' elli, "iI nodo che 'I Notaro e Guittone e me ritenne di qua dai dolce stiI novo ch'i' odo!"14

Bonagiunta é uma das almas que o protagonista da Commedia encontra no Além, ao longo da sua viagem pelo reino dos mortos!5.

Nestes versos, fica contida uma referência explícita a dois outros poetas, o Notaro e Guittone. O primeiro é o siciliano Jacopo da Lentini, cuja profissão era a de notário, que viveu até meados do século XIII, e que é considerado o primeiro cultor do soneto. O segundo é Guittone d' Arezzo, assim chamado por ter nascido na cidade toscana de Arezzo, onde também veio a falecer, em 1294. Na opinião de Bonagiunta Orbicciani, tanto ele próprio, como Jacopo da Lentini e Guittone d' Arezzo, ficaram aquém da nova poesia que então se fazia ouvir, detidos pelo nó (nodo, palavra que faz parte do vocabulário cinegético) que os impedira de compor rimas mais perfeitas. Essa nova forma de poetar é designada dolce stU novo.

13 Cf. E. PasquinieA. Quaglio, "Saggiointroduttivo": Dante Alighieri, Commedia, a cura di E. P. e A. Q. MiIano, Garzanti, 1987, pp. LXVllI-LXXII.

14 lh., Purgo 24. 55:57., p. 625.

15 Vd. a interpretação de todo o passo (49:63.), conforme foi levada a cabo por L.

PertiIe, "fi nodo di Bonagiunta,le penne di Dante e iI Dolce Stil Novo": Lettere italiane, 46, I, 1994.

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CAMÕES, LAURA E A BÁRBORA ESCRAVA 85

A expressão foi recuperada por um crítico italiano do século XIX, Francesco De Sanctis, para designar a produção do grupo de poetas activo entre finais do século XIII e inícios do século XIV, na área central da Itália, De entre os seus membros, contam-se Guido Guinizzelli, Guido Cavalcanti, Dante (só em parte; note-se que nem toda a obra de Dante pode ser qualificada como stilnovista), Cino da Pistoia, Lapo Gianni, Gianni Alfani, ou Dino Frescobaldi.

A poesia do stil novo tem por grande tema o sentimento amoroso.

É modulada com uma doçura inaudita, que decorre de um apurado gosto formalizante e de uma rigorosa operação de depuração lexical. Daí que Dante a designe como dolce. No plano semântico, é reservado um lugar central à mulher, que é descrita como um ser espiritualizado. O topos da mulher-anjo é um topos stilnovista e não petrarquista, note-se bem. O louvor da figura feminina tem na sua base um processo de desmaterialização que passa pela abolição de qualquer laivo de sen- sualidade. Neste sentido, os poetas do dolce stil novo distinguem-se nitidamente dos provençais, que, não raro, associam o sentimento amoroso ao desejo.

A donna angelicata é uma intermediária entre Deus e o homem, qual representante da Divindade à face da terra, que lhe concede o saluto - o que quer dizer, em italiano, a saudação e a salvação. Ao saudá-lo, concede-lhe a saúde espiritual. Graças ao saluto, o amante é guiado através de um itinerário perfectivo que o conduz até Deus. Dante chama à mulher que ama Beatrice, Beatriz, isto é, aquela que partilha da beatitude divina, e que a pode dar a quem a souber amar.

Sendo a mulher-anjo um ser espiritualizado, a descrição da sua beleza corpórea não merece primordial relevo. O seu fascínio fica con- densado na luz que dimana do olhar, na suavidade do sorriso, no encanto dos cabelos louros, na brandura do gesto. No soneto inserto no capítulo 26. da Vita nuova,

Tanto gentile e tanto onesta pare

la donna mia quand'ella altrui saluta, ch'ogne lingua deven tremando muta, e li occhi no l'ardiscon di guardare.

Ella si va, sentendosi laudare, benignamente d'umiltà vestuta;

e par che sia una cosa venuta da cielo in terra a miracol mostrare.

Mostrasi SI piacente a chi la mira,

che dà per gli occhi una dolcezza aI core, che 'ntender no la puo chi no la prova:

e par che de la sua labbia si mova

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86 RITA MARNOTO un spirito soave pien d'amore, che va dicendo a I' anima: Sospira. 16,

Beatriz é descrita quando caminha pelas ruas da cidadel1. Distingue-se pela sua figura gentile (vocábulo muito usado na poesia de corte, com o sentido de "nobre") e onesta (latinismo através do qual é qualificado um comportamento decoroso). Manifesta-se (pare) como presença celestial, que, milagrosamente, desceu à terra. O seu olhar penetra no coração do amante, proporcionando-lhe sensações de inefável doçura, que, como tal, não podem ser linguisticamente expressas, mas apenas viven- ciadas.

Posto isto, passemos agora a considerar o modo como a figura feminina é concebida nas páginas dos Rerum uulgarium fragmenta, a célebre recolha de poemas em Língua vulgar de Francesco Petrarca, geralmente designada como Canzoniere (Cancioneiro).

Sendo Petrarca o primeiro grande teorizador de inventione et ingenio - para retomar o incipit da epístola a Tomaso da Messina - , a melhor forma de interpretar a sua poesia é fazê-lo partindo das fontes que ele próprio maneja. Neste sentido, os Rerum uulgarium fragmenta são travejados por dois grandes filões, a poesia provençal e a produção stilnovista, recriados em consonância com a sensibilidade literária de um exímio conhecedor das Letras Antigas18

Que resulta deste processo de contaminatio? No Cancioneiro, a mulher é uma presença física marcante, à maneira dos trovadores, e, simultaneamente, é um ser angelicado, à maneira dos stilnovistas. Esta dualidade introduz fracturas insanáveis no seio do seu universo lírico.

Se Petrarca ama Laura enquanto essência angelicada, sente-se insa- tisfeito, ao ver-se entregue a um ser supra-sensível mais forte do que ele.

Se ama o seu corpo, a consciência pecaminosa atormenta-o. O conflito entre estes dois estados de espírito contraditórios costuma-se designar como dissídio - querer e não querer, amar e não amar, sentir frio e

16 Dante Alighieri, Vita nuova, introduzione di E. Sanguineti, note di A. Berardinelli.

Milano, Garzanti, 71991, pp. 51-52.

17 A limpidez linguística do texto desta composição é apenas aparente. Para a sua interpretação, numa perspectiva histórica, vd. G. Contini, "Esercizio di interpretazione sopra un sonetto di Dante": Varianti e altra linguistica. Una raccolta di saggi (1938- -1968). Torino, Einaudi, 1970.

18 V d. M. Santagata, La biblioteca volgare di Petrarca. Bologna, II Mulino, 1990, e id., 1frammenti dell'anima. Storia e racconto nel canzoniere di Petrarca. Bologna, II Mulino, 1992.

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CAMÕES, LAURA E A BÁRBORA ESCRAVA

sentir calor. O dissídio é o fulcro das típicas figuras de retórica petrar- quistas, baseadas em jogos antitéticos.

Chamo a atenção para o facto de, em alguns manuais escolares, se afirmar que a mulher enaltecida na poesia de Petrarca é um ser espiritualizado e desmaterializado, tal como a mulher-anjo do dolce stil novo. Tais afirmações carecem de todo o sentido. A Laura de Petrarca não é uma mulher-anjo, é espírito e corpo, é essência angelicada e presença marcante, intensa. Note-se, ademais, que a sua identificação com Laura de Noves é perfeitamente especulativa. Laura é, acima de tudo, uma criatura da palavra, em palavras.

Recordemos, a este propósito, o soneto 157.:

QueI sempre acerbo et honorato giorno mando sí al cor l'imagine sua viva

che 'ngegno o stiI non fia mai che 'I descriva, ma spesso alui co la memoria tomo.

L'atto d'ogni gentil pietate adorno, e 'I dolce amaro lamentar ch'i' udiva, facean dubbiar, se mortal donna o diva fosse che 'I eieI rasserenava intorno.

La testa or fino, et calda neve ii volto,

hebeno i eigli, et gli occhi eran due stelle, onde Amor l'arco non tendeva in fallo;

perle et rose vermiglie, ove I'accolto dolor formava ardenti voei et belle;

fiamma i sospir' , Ie Iagrime cristallo.19

O lamento que o poeta ouve é doce e amargo; a mulher que tem diante dos seus olhos parece-lhe ser, da mesma feita, um ser mortal e uma essência divina - são estes os pólos do dissídio.

Nos tercetos de "Quel sempre acerbo et honorato giomo", fica contida uma cadeia de imagens metafóricas que foi imitada por inúmeros poetas petrarquistas: o ouro dos cabelos, a neve do rosto (v. 9), o ébano das pestanas, as estrelas que são os seus olhos (v. 10), as rosas dos lábios e as pérolas dos dentes (v. 12). Trata-se de uma descrição muito elaborada, que segue com grande precisão o tropo da effictio. Conforme o prescrevem os tratados de retórica medievais, o retrato deve ser feito segundo uma ordem descendente, isto é, de cima para baixo. Em cima, está o mais perfeito, também porque mais próximo de Deus e da luz divina, os cabelos, que são louros -

or

fino - , depois o vulto ou a testa,

19 Canzoniere, testo critico e introduzione di G. Contini, annotazioni di D.

Ponchiroli. Torino, Einaudi, 1964, p. 213.

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e assim sucessivamente, em rigorosa conformidade com a norma da effictio.

Pelo que diz respeito à descrição literária de Laura, impõe-se o esclarecimento de um pormenor. Petrarca nunca declarou que os seus olhos eram verdes. Se quisermos, podemos até dizer que não tinham cor, porque a sua cor seria a que Petrarca lhes quisesse dar2°. Mas, na verdade, o poeta pinta os seus olhos de preto. Esta é uma verdade insofismável. Como sei que a ideia (errónea) de que os olhos de Laura são verdes ou azuis se encontra extremamente difundida, aduzo alguns versos dos Rerum uulgarium fragmenta onde é feita referência directa à sua cor:

Ma l'ora e '1 giomo ch'io le luci apersi nel bel nero et nel biancho

che mi scacciâr di là dove Amor corse, novella d'esta vita che m'addoglia furon radice, [ ... ]21

quando voi alcuna volta

soavemente tra '1 bel nero e '1 biancho volgete illume in cui Amor si trastulla;22

A poesia de Petrarca mereceu tão vivo apreço, nos séculos se- guintes, que se converteu em modelo supremo de toda a expressão lírica, passando a ser modelizada como código. Para cantarem os seus amores, os poetas re-utilizavam fórmulas e modos de dizer celebrizados pelo vate de Arezzo. Era hábito as senhoras trazerem sempre consigo, preso nas pregas do vestido, o Cancioneiro de Petrarca, o Petrarchino, como lhe chamavam com ternura, isto é, o Petrarcazinho, espécie de uade mecum onde os amantes encontravam o correlato literário de todos os seus estados de alma e de todos os seus anseios, numa linguagem dotada de uma elegância e de uma capacidade expressiva verdadeiramente excepcionais.

Na "Galleria degli Uffizi", em Florença, encontra-se exposto um quadro de Andrea del Sarto (Florença, 1486 - 1530) intitulado Ritratto di giovane donna con un "petrarchino", no qual é rep'resentada uma

20 V d. A. Quondam, "li naso di Laura. Considerazioni sul ritratto poetico e la comunicazione lirica": Ii naso di Laura. Lingua e poesia lírica nella tradizione dei Classicismo. Ferrara, Panini, Istituto di studi rinascimentali, 1991.

21 Canzoniere, 29. 22:26., p. 41.

22 Ib., 72. 49:51., p. 100.

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jovem cortesã que tem nas mãos um desses Petrarcazinhos, cujas dimensões são reduzidas, conforme era usual. O diminutivo -ino tem um significado afectuoso, mas, além disso, é utilizado para referir um objecto que se caracteriza, materialmente, pelo seu pequeno tamanho.

No século XVI, os Rerum uulgariumfragmenta foram um autêntico best seller. O sucesso dos livros em formato diminuto (hoje, chamar- -lhes-íamos edições de bolso) não é, aliás, casual. Por motivos essencialmente práticos, qualquer livro intensamente manuseado, e que o leitor deseje trazer sempre consigo, nas mais variadas circunstâncias, deve ter pequenas dimensões. As edições dos livros de horas contam-se entre as primeiras que se adaptaram a essas funções. A todas as vantagens inerentes à impressão do Cancioneiro em formato reduzido, vinha assim acrescentar-se uma outra, visto que, nas Igrejas, o pequeno livro não se diferenciava dos livros de horas.

O sucesso da poesia de Petrarca, no período quinhentista, só pode ser cabalmente compreendido em função de dois vectores: o princípio de imitatio e o neoplatonism023Muito haveria a dizer acerca de cada um deles.

Limito-me a notar, pelo que diz respeito à questão do neoplato- nismo, que esta componente filosófica irá aplacar todos os conflitos que perturbavam o universo lírico de Petrarca. O conflito entre anseios do corpo e anseios do espírito, entre deleite e pecado, ou seja, o dissídio, deixa de ter razão de ser, conforme iremos verificar através da análise do soneto de Pietro Bembo (Veneza, 1470 - Roma, 1547) "Crin d'oro crespo e d' ambra tersa e pura".

Intelectual de vastíssima erudição, o cardeal veneziano foi também um filólogo de alto coturno. A edição dos Rerum uulgarium fragmenta que preparou para os prelos do célebre editor veneziano Aldo Manuzio, publicada em 1501, é um marco fundamental da história do petrarquismo.

Ademais, quer pela sua actividade de teorização linguístico-literária, quer pela sua produção lírica, Pietro Bembo ocupa um lugar de relevo no quadro daquele fenómeno literário que costuma ser designado como hipercodificação petrarquista, ou seja, a operação de selecção, efectuada no âmbito da poesia de Petrarca, que se consubstancia na escolha de modalidades expressivas consideradas de suma elegância.

Os pressupostos que subjazem a este objectivo depurante são expostos no tratado Prose della volgar lingua, publicado em 1525. Nas suas páginas, Petrarca é eleito como modelo supremo de todo o labor

23 Valha por todas a referência bibliográfica à "Introduzione" de C. Dionisotti a P. Bembo, Prose e rime, a cura di C. D. Torino, UTET, 1978, 2a ed., rist.

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poético, ao passo que, pelo que diz respeito à prosa, o grande exemplo que deverá ser seguido é o de Boccaccio. O ideal de construir uma Língua harmónica e perfeita, a partir de uma operação de escolha e selecção assente em critérios muito rigorosos, encontra-se estritamente relacionado com o neoplatonismo quinhentista.

O soneto "Crin d'oro crespo e d'ambra tersa e pura", além de ilustrar muito bem o processo de hipercodificação bembesco, consigna um tipo de retrato literário que será imitado por inúmeros poetas petrarquistas24:

Crin d' oro crespo e d' ambra tersa e pura, ch'a l'aura su la neve ondeggi e vole, occhi soavi e piu chiari che '1 sole, da far giomo seren la notte oscura, riso, ch'acqueta ogni aspra pena e dura, rubini e pede, ond'escono parole si dolci, ch'altro ben l'alma non vole, man d'avorio, che i cor distringe e fura, cantar, che sembra d'armonia divina,

senno maturo a la piu verde etade, leggiadria non veduta unqua fra noi, giunta a somma beltà somma onestade,

fur l' esca deI mio foco, e sono in voi grazie, ch'a poche iI ciellargo destina.25

Bembo selecciona, na poesia de Petrarca, os elementos constitu- tivos do retrato feminino que considera mais perfeitos, através da referida operação de escolha - a hipercodificação. O modo segundo o qual são apresentados segue, com perfeito rigor, a ordem prescrita pela figura da effictio: cabelos (crin, v. 1), olhos (occhi, v. 3), sorriso (riso, v. 5), lábios e dentes (rubini e perle, v. 6), mão (man, v. 8). Seguidamente, é louvada a sua voz, bem como os seus dotes espirituais.

O amor é concebido como um sentimento plenamente harmonioso, que não inspira ao amante qualquer espécie de dúvida ou de receio, em consonância com o ideário neoplatónico. A figura feminina enaltecida

24 Desenvolvi esse tema em "Laura bárbara"; O rosto feminino da expansão portuguesa. Congresso internacional realizado em Lisboa. Portugal. 21-25 de Novembro de 1994. Lisboa, Comissão para a igualdade e para os direitos das mulheres, 1995, vol.

1, pp. 306-10. Ao comparar este soneto com o soneto de Camões, "Ondados fios d' ouro reluzente", e ao analisar as trovas "à Bárbora escrava", retomo as linhas de leitura enunciadas ib., pp. 308 e 313-15.

25 Prose e rime, pp. 510-11.

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em "Crin d'oro crespo e d'ambra tersa e pura" é dotada de uma excep- cional beleza física, sendo, da mesma feita, uma essência angelical, tal como a mulher-anjo cantada pelos cultores do dolce stil novo. O verso final do soneto de Bembo, "grazie, ch'a poche iI ciellargo destina", não deixa margem para dúvidas: esta mulher é uma graça do Céu.

Aliás, "Gratie, ch'a pochi iI ciellargo destina" é o incipit da com- posição 213. dos Rerum uulgariumfragmenta:

Gratie ch'a pochi iI ciellargo destina:

rara vertú, non già d'umana gente, sotto biondi capei canuta mente, e'n humiI donna alta beltà divina;

leggiadria singulare et pellegrina, e'l cantar che ne I'anima si sente, I'andar celeste, e 'I vago spirto ardente, ch'ogni dur rompe et ogni altezza inchina;

et que' belli occhi che i cor' fanno smalti, possenti a rischiarar abisso et notti, et tôrre l' alme a' corpi, et darle altrui;

coI dir pien d' intellecti dolci et alti, coi sospiri soave-mente rotti:

da questi magi transformato fui.26

A forma como a mulher amada é concebida, num primeiro tempo, muito deve ao modelo stilnovista. Mas o poeta de Arezzo não se limita a seguir os seus ilustres predecessores. No último verso do soneto, retoma todos os dotes anteriormente exaltados (questi), de uma forma global, para os qualificar como magos (magi), introduzindo o tema pagão da fatalidade e das tentações de amor. A figura feminina acaba por se erigir, pois, num ser bivalente, visto que os seus atributos são qualificados, da mesma feita, como angelicais e encantatórios.

Se confrontarmos esta composição dos Rerum uulgariumfragmenta com "Crin d'oro crespo e d'ambra tersa e pura", logo verificamos que, no soneto de Bembo, o dissídio, estado de espírito típico das páginas de Petrarca, perde razão de ser. Conforme tivemos ocasião de verificar, o amor é concebido como um sentimento harmonioso, que contribui para a felicidade do enamorado. Todavia, essa harmonia tem um preço: a mulher enaltecida é recoberta por uma acentuada carga "literaturizante", na medida em que o seu retrato resulta de um trabalho literário de selecção e combinação extremamente apurado, que tem por referência as páginas do Cancioneiro.

26 Canzoniere, p. 274.

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A clareza e a harmonia que inspiram o retrato feminino traçado pelo vate veneziano justificam sobejamente o excepcional apreço de que foi alvo "Crin d'oro crespo e d'ambra tersa e pura". Os poetas renascen- tistas imitaram-no, obviamente, de modo próximo. Mas a fama da composição projectou-se muito para além do Renascimento, man- tendo-se viva ao longo dos períodos do Maneirismo e do Barroco, em todas as grandes Literaturas da Europa. Este percurso evolutivo será ilustrado a partir do comentário de um soneto de Ronsard e de outro de Shakespeare, bem como da remissão para uma representação icono- gráfica.

O poeta da Pléiade Pierre de Ronsard (La Possonniere, 1524-Saint- -Cosme, 1585) imitou o retrato feminino traçado por Bembo, ou alguns dos seus particulares, em múltiplos passos da sua obra poética. Recorde- se o soneto integrado em Le premier livre des amours:

CEil, qui des miens à ton vouloir disposes, comme un Soleil, le Dieu de ma clairté:

ris, qui forçant ma douce liberté, me transformas en cent metamorfoses:

larme d'argent, qui mes flammes arroses, lors que tu feins de me voir mal traité:

main, qui mon creur captives arresté, emprisonné d'une chaisne de roses:

je suis tant vostre, et tant l'affection m' a peint au sang vostre perfection, que ny le temps, ny la mort, tant soit forte, n'empescheront qu'au profond de mon sein

tousjours gravez en l'ame je ne porte un reil, un ris, une larme, une main.27

Ronsard inspira-se no soneto de Bembo, que segue de modo próximo, sem se limitar, porém, à elaboração de um mero decalque da cadeia de imagens petrarquistas nele contida. As duas composições têm em comum um processo retórico de índole enumerativa elaborado de acordo com a ordem da effictio. Três dos atributos físicos enaltecidos têm o seu equivalente em Bembo - ceil (v. 1), ris (v. 3), main (v. 7). No caso de larme (v. 5), encontramo-nos perante uma notação particular,

27 Ronsard, (Euvres completes. 1, édition établie, présentée et annotée par 1.

Céard, D. Ménager et M. Simonin. Paris, Gallimard, 1993, pp. 69-70, 90.; vd. também, na mesma recolha lírica, os sonetos "Ces liens d' or, ceste bouche vermeille" (pp. 27 -28, 6.), "Une beauté de quinze ans enfantine" (pp. 33-34, 18.), ou "(Eil dont l'esclair mes tempestes essuye" (pp. 94-95,137.).

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CAMÕES, LAURA E A BÁRBORA ESCRAVA 93 que acentua o carácter impressivo da figura feminina que é louvada.

Aliás, a imagem especular através da qual este soneto se conclui envol- ve-o numa atmosfera de sereno equilíbrio, em perfeita consonância com o ideário neoplatónico. Por este conjunto de razões, tal imitação insere- -se no quadro do período renascentista.

Diverso é o enquadramento periodológico da composição, inserta no livro de sonetos de William Shakespeare (Stratford-upon-A von, 1564- -1616), na qual é retomado o formulário metafórico celebrizado por Pietro Bembo, e imitado por tantos outros petrarquistas:

My mistress' eyes are nothing like the sun- Coral is far more red than her lip's red- If snow be white, why then her breasts are dun - If hairs be wires, blaek wires grow on her head:

I have seen roses damasked, red and white, but no sueh roses see I in her eheeks, and in some pérfumes is there more delight than in the breath that from my mistress reeks.

I love to hear her speak, yet well I know that musie hath a far more pleasing sound.

I grant I never saw a goddess go;

My mistress when she walks treads on the ground.

And yet by heav'n I think my love as rare as any she belied with false eompare.28

Na verdade, o poeta usa essa cadeia de imagens hipercodificadas para distinguir o retrato literário ditado pela voga petrarquista do da sua amada.

Os Shakespeare' s sonnets foram pela primeira vez vazados em letra de forma no ano de 1609, por iniciativa do editor londrino Thomas Thorpe. O primeiro verso da composição transcrita será bem conhecido, com certeza, dos jovens que frequentam as nossas escolas, já que inspirou ao cantor britânico Sting, ex-membro do grupo PoUce, o disco intitulado ... nothing Uke the sun29 e, em particular, a faixa Sister moon.

28 Shakespeare's sonnets, edited with analytie eommentary by S. Booth. New Haven, London, Yale University Press, 1977, p. 112,130.

29 A&M Reeords Ine., Los Angeles, 1987. São estas as palavras através das quais Sting apresenta o álbum: "I was aeeosted late one night on Highgate Hill by a staggering drunk who grabbed me by the lapels and, after tranquilizing me with his foU! breath, pointed to the moon whieh was swollen in its fullness and demanded of me threatening1y, 'How beautiful is the moon? ... How beautiful is the moon?' he repeated. Thinking quiekly and not wishing for an ear1y toxie death, I fixed him with my eye and declaimed, 'My mistress' eyes are nothing like the sun.' Shakespeare is always useful I've found

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Ao escrever o soneto "My mistress' eyes are nothing like the sun", o poeta inglês teria presente não só "Crin d'oro crespo e d'ambra tersa e pura", como também a famosa imitação que dele foi elaborada por Camillo Pellegrino di Capua (Capua, 1527 - 1603):

Occhi che di splendor vincono il sole, dal cui lume gentill'alma s'accende, perle e rubini ov' Amor l'arco tende e scocca al dolce suon de le parole;

crespe chiome e d' or fino, ond' Amor sole ordir la rete in cui m'annoda e prende, candida man che dolcemente offende e stringe '1 cor, che gioia altra non vole;

cantar che fura l'alme e al cielle 'nvia, grazia ch'ancide altrui, celeste riso che scopre primavera a mezzo '1 vemo;

onestà che piu ch'altri m'ha conquiso, son le doti che fan la donna mia

sola nel mondo e '1 mio bel foco eterno.30

o

soneto de Shakespeare insere-se num grupo de textos consagrado a uma dark-lady, que, segundo o poeta, não é fai,-3'. Não deixe de se notar que, nessa época, o louvor de uma morena constituía um desvio não só em relação à norma literária que prescrevia a cor clara dos cabelos e da pele da mulher a enaltecer, como também em relação a um código de comportamento social. A negação do qualificativo fair acarreta implicações quer de ordem física - ela não é loura, nem elegante - , quer de ordem moral - ela não é séria nem honesta.

O texto é construído a partir da habitual sucessão de metáforas: eyes - sun (v. 1), coral- lip (v. 2), wires - hairs (v. 4), roses - cheeks (vv. 5-- 6). Todavia, e logo no primeiro verso, a pertinência da canónica comparação dos atributos da amada com elementos da natureza é posta em causa, a partir da inversão do sentido do incipit "Occhi che di

for calming down violent drunks if only because it gives them the impression that you 're crazier then they are .• A good answer ... ' he said. • A good answer' as he set off on a tack for Kentish Town like a listing Galleon." (ib.).

30 G. Ferroni, A. Quondam, La "locuzione artificiosa". Roma, Bulzoni, 1973, p.394.

31 Recorde-se, a este propósito, o soneto "ln the old age black was not counted fair"

(Shakespeare's sonnets, 127., pp. 108-9), onde o poeta confronta a naturalidade da brunette que ama com a artificialidade de certas mulheres cuja fisionomia assume um carácter modelar, e, por consequência, são consideradasfair.

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CAMÕES, LAURA E A BÁRBORA ESCRAVA 95 splendor vincono il sole", Os seus olhos não são como o sol, a cor vermelha do coral é mais viva do que a dos seus lábios, os seus cabelos são trançados, porém negros, e nas suas faces não há rosas. Mas Shakespeare retoma outras imagens celebrizadas pela poesia petrar- quista para as explorar em sentido dérisoire: existem odores mais agradáveis do que o da sua amada (vv. 7-8), a música é mais suave do que a sua voz (vv. 9-10), e, sendo uma mulher, o seu andar não é de forma alguma o de uma deusa (vv. 11-12).

Deste modo, o poeta inglês como que alveja o princípio de imitatio no seu cerne: o padrão literário instituído não se coaduna com a figura daquela a quem dedica o seu amor. Por um lado, se o cânone petrar- quista é chamado à ribalta, é porque lhe são reconhecidas uma vitali- dade e uma incidência de facto, embora a interrogar e a inquirir, enquanto tal, em consonância com os pressupostos da estética maneirista. Mas, por outro, há a assinalar pelo menos duas situações em que são os próprios fundamentos do protótipo feminino a serem contestados, numa atitude que, pelo seu carácter intrinsecamente derrogador, prenuncia o Barroco. Assim acontece quando Shakespeare, ao afirmar que nunca viu uma deusa caminhar, implicitamente, afasta a hipótese de comparar o andar da sua amada com o de uma diva, pondo em causa um famoso topos da poesia stilnovista e da poesia petrarquista, ilustrado quer pelo soneto de Dante "Tanto gentile e tanto onesta pare" e por todo o capítulo 26. da Vita nuova, quer pelos sonetos de Petrarca e de Bembo anteriormente analisados. As mesmas ilações se podem tirar do passo em que o poeta constata que a alvura da neve é inconciliável com a coloração anatómica de uma parte do corpo que não pode deixar de ser mais escura - her breasts are dun (v. 3)-, introduzindo uma ousada notação sensual.

"My mistress' eyes are nothing like the sun" funciona, pois, como anti-texto onde fica contida uma paródia do retrato feminino, tal como fora concebido pela hipercodificação petrarquista. Neste quadro, e sem deixar de ter em linha de conta o papel mediador desempenhado por

"Occhi che di splendor vincono il sole", é sintomático que Shakespeare não siga a ordem da effictio. A mulher que ama é bela não pelo que tem defair, mas de rare (magnífica, no sentido de fora do comum).

Todavia, a figura feminina descrita por Pietro Bembo não inspirou apenas imitações literárias, como também transposições iconográficas.

A sua observação, em chave didáctica, pode ser muito proveitosa, tendo em conta a facilidade com que os estudantes assimilam conhecimentos cuja leccionação seja efectuada com o auxílio de meios visuais.

As mais famosas gravuras integradas neste filão encontram-se associadas a Le berger extravagant, romance pastoril escrito em tom de

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96 RITA MARNOTO

paródia, de autoria do polígrafo francês Charles Sorel (Paris, 1600- -1674)32.

Ao desenharem um retrato feminino concebido de acordo com o cânone petrarquista, os autores destas ilustrações colocam, em lugar dos cabelos, trançados de ouro, donde pendem canas de pesca munidas da isca que o amante irá morder (I'esca dei mio foco, escreve Bembo no penúltimo verso do seu soneto). Na testa, representam Cupido, sentado sobre um trono, empunhando um arco e várias setas. Também as sobrancelhas têm a forma de arcos de flechas. Os olhos são sóis donde saem dardos e chamas, as faces são lírios e rosas, os lábios pedaços de coral e os dentes pequenas pérolas. O gosto pelo pormenor e a atracção pela fantasia que caracterizam estas representações iconográficas são próprios do período barroco.

3.

Nas Letras portuguesas do século XVI, de entre os imitadores de

"Crin d'oro crespo e d'ambra tersa e pura", conta-se o Camões de

"Ondados fios d'ouro reluzente". O poeta português segue de perto o modelo de Bembo:

Ondados fios d' ouro reluzente, que agora da mão bela recolhidos, agora sobre as rosas estendidos, fazeis que sua beleza s' acrecente;

olhos, que vos moveis tão docemente, em mil divinos raios encendidos, se de cá me levais alma e sentidos, que fora, se de vós não fora ausente?

Honesto riso, que entre a mor fineza de perlas e corais nasce e parece, se n'alma em doces ecos não o ouvisse!

S' imaginando só tanta beleza

de si, em nova glória, a alma s' esquece, que fará quando a vir? Ah! quem a visse p3

32 Reproduzidas em variadíssimas edições e em numerosas obras de crítica literária; cf. L. Forster, The icy fire. Five studies in european petrarchism. Cambdrige University Press, 1969, ilustração n° 3 e pp. XI-XII, ou a citada edição dos sonetos de Shakespeare, p. 453.

33 Rimas, texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa Pimpão, apresentação de Aníbal Pinto de Castro. Coimbra, Almedina, 1994, p.164.

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CAMÕES, LAURA E A BÁRBORA ESCRAVA 97 Camões pauta a descrição da figura feminina que enaltece por um célebre soneto do não menos célebre petrarquista italiano. Este é o Camões renascentista. Se compararmos os atributos femininos louva- dos com aqueles que são exaltados por Bembo, em "Crin d' oro crespo e d'ambra tersa e pura", verificamos que entre eles se estabelecem rela- ções de grande proximidade: crin d'oro (v. 1) -fios d'ouro (v. 1); occhi soavi (v. 3) - olhos (v. 5); riso (v. 5) - honesto riso (v. 8); rubini e perle (v. 6) -perlas e corais (v. 10); man d'avorio (v. 9) - mão bela (v. 2).

O confronto entre os dotes enaltecidos em cada um dos textos e entre as imagens metafóricas utilizadas oferece largas possibilidades de exploração didáctica, que poderão passar pela realização de diagramas ou de representações imagéticas. Desta forma, o aluno poderá verificar que o poeta português segue de perto a composição de Bembo.

Se os atributos louvados se aproximam bastante, Camões observa, da mesma forma, a figura de retórica da effictio, embora não a decalque com absoluta fidelidade. Sob esta óptica, um dos elementos do retrato traçado em "Ondados fios d' ouro reluzente" surge claramente deslo- cado: a mão, que é referida logo no segundo verso. Conforme já notei, são extremamente raros os passos da lírica camoniana nos quais o modelo em causa seja imitado com perfeita e absoluta fidelidade. Mas esse afastamento da norma da effictio de forma alguma é fortuito. A mão é associada aos cabelos, num gesto tipicamente feminino, e, diria mesmo, dotado de uma certa galhardia - a mão que recolhe os cabelos. Desta feita, Camões introduz uma nota de naturalidade num texto que tanto tem de artificioso.

Não deixe de se recordar, porém, que, no Portugal do século XVI, a recepção dos modelos petrarquistas se processou em circunstâncias muito particulares. Lisboa era o coração de um Império que se estendia do Atlântico ao Índico e ao Pacífico. Os portugueses deram a conhecer aos povos do Oriente não só a sua religião e os seus hábitos de vida, como também a sua cultura literária.

Escreve, a este propósito, Diogo do Couto (Lisboa, 1542 - Goa, 1616):

[ ... ] e ficaram correndo em tanta amizade, que nascendo um filho ao Chinguican, foi o Caracém festejá-lo a Baroche, onde o eu visitei, por me achar então naquela cidade, e por ser muito seu amigo, por lermos o italiano, e lhe eu mostrar Dante, Petrarca, Bembo, e outros poetas, que ele folgou de ver.34

34 Década sétima. Parte segunda. Lisboa, Livraria Sam Carlos, 1974, 17° vol., p.

416.

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Também Camões elege Petrarca e Boscán como mediadores dos seus contactos com as indígenas, embora com escassos resultados, segundo escreve numa das suas cartas da Índia:

Além de serem de rala, fazei-me mercê que lhes faleis alguns amores de Petrarca ou de Boscão; respondem~vos uma linguagem meada de ervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor quentura do mundo.3s

Na verdade, o facto de os petrarquistas portugueses do século XVI se contarem de entre os primeiros poetas do ocidente europeu a lou- varem a beleza da mulher morena, ou preta, não pode ser compreen- dido à margem do papel pioneiro que coube a Portugal, nas viagens das Descobertas. O enaltecimento deste tipo fisionómico implica, pois, a inversão do modelo petrarquista, numa atitude que é típica do período literário do Maneirismo. Os padrões ditados pelo vate italiano conti- nuam a erigir-se num ponto de referência fundamental, mas a ser inter- rogado e a ser posto em questão. É esse o cerne das trovas "à Bárbora escrava".

Apesar de a etimologia da palavra bárbaro ser controversa, não há que recusar liminarmente a hipótese de acordo com a qual, para o racionalismo clássico, bárbaro seria aquele que não sabia falar Latim ou Grego, mas apenas balbuciar um bá-bá36Na Idade Média, as costas da Europa meridional foram invadidas pelos povos do norte, que se caracterizavam, fisionomicamente, pela alvura dos seus cabelos e da sua pele - os Bárbaros do norte, como eram chamados. E ainda hoje, em meios não urbanos, é comum o uso do adjectivo russo para designar uma pessoa de cabelos louros, ou um animal cuja cor é pouco carregada.

A figura feminina cantada por Petrarca tinha os cabelos dourados, tal como esses Bárbaros vindos do norte. Aliás, o mito da mulher loura tem origens ancestrais, encontrando-se profundamente enraizado no imaginário social do tempo em que vivemos.

Uma das mais famosas estrelas de Hollywood a encarnar esse mito foi, sem dúvida, Marilyn Monroe. A sua imagem exterior tem vindo a ser imitada por inúmeras estrelas do show bussiness. Uma delas, por

35 Obras completas. 3. Autos e cartas, p. 247.

36 Vd. José Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos. Génese e evolução de um con- ceito. Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1992, pp. 191-261, e U. Eco, I limiti dell'interpretazione. Milano, Bompiani, 1990, p. 44 ss.

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CAMÕES, LAURA E A BÁRBORA ESCRAVA 99

sinal, adoptou como pseudónimo artístico um vocábulo chave do léxico petrarquista, Madonna, designação através da qual os poetas italianos apostrofavam, frequentemente, a amada. É também no mito da bárbara loura que se inspira um produto da indústria de brinquedos que é um êxito em todos os grandes mercados mundiais - Barbie, a boneca. Nos países de Língua inglesa, Barbie corresponde a um diminutivo de Barbara. Recentemente, Claudia Schiffer (que é considerada pela imprensa mundana a mulher-Barbie por excelência), juntamente com outros manequins, lançaram bonecas que correspondem a miniaturas da sua própria imagem.

Neste âmbito, creio que poderá ser interessante levar os alunos a fazer uma comparação entre os mecanismos que subjazem aos propó- sitos imitativos da actualidade, e de épocas mais recuadas.

No tempo de Camões, os Bárbaros do norte, de pele clara e cabelos louros, eram diferenciados dos Bárbaros do sul, cuja fisionomia era escura. Até ao tempo das Descobertas, as etnias pretas conhecidas pelos europeus eram as dos povos que habitavam a parte meridional e oriental da Bacia do Mediterrâneo. Os portugueses, nas suas viagens marítimas, foram os primeiros povos da Europa a contactarem directamente com outros tipos étnicos.

É neste contexto que devemos interpretar as trovas à Bárbora escrava. Camões foi seduzido pelo fascínio de "uma cativa com quem andava d'amores na Índia, chamada Bárbora". A sua beleza é suprema, embora nada deva à beleza de Laura, ou, se quisermos, ao protótipo de beleza representado pelos outros Bárbaros, os Bárbaros do norte:

Rosto singular, olhos sossegados, pretos e cansados, mas não de matar.

Uma graça viva, que neles lhe mora, para ser senhora de quem é cativa.

Pretos os cabelos, onde o povo vão perde opinião

que os louros são belos.

Pretidão de Amor, tão doce a figura, que a neve lhe jura que trocara a cor.

Leda mansidão que o siso acompanha;

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100 RITA MARNOTO

bem parece estranha, mas bárbora não.37

A sua pretidão entra em confronto com o apreço merecido pelos padrões estéticos ditados por Petrarca e pelos petrarquistas. Mas o fascínio que exerce sobre o poeta é de tal ordem, que ele é levado a contestar o modelo de retrato feminino ditado pela voga italianizante, e, mais do que isso, a invertê-lo: se, por um lado, a opinião de acordo com a qual os cabelos louros são tidos por superior.es é errónea - é o que pensa o povo vão - , por outro, a cor preta da Bárbora escrava é tão bela, que faz inveja à alvura da neve, de tal maneira que a neve quer, decididamente, trocar de cor. Logo, o cânone petrarquista é chamado à ribalta para ser posto em causa. Isto pelo que diz respeito ao plano físico.

Todavia, se, do plano físico, passarmos ao plano dos atributos anímicos, logo verificamos que esta cativa é senhora de uma série de dotes que poderiam ser os da Laura de Petrarca: a brandura (estrofe 2), a graça viva (3), a Ieda mansidão (4), a presença serena (5). Disse que estes dotes poderiam ser os de Laura, porque neles se condensa o ideal daquele amor gratificante a que o seu amante tanto aspirou, mas que nunca viveu; nem poderia ter vivido, atormentado pelas hesitações entre anseios da carne e anseios do espírito, entre aspiração à beatitude e consciência do pecado - enfim, pelo sentimento do dissídio, como já tive ocasião de referir.

Note-se que a primazia e a superioridade da beleza feminina em relação à da rosa, do campo florido, ou das estrelas celestes, decorre de um outro tema de fundo neoplatónico, de implicações petrarquistas, que diz respeito à posição de centralidade ocupada pela mulher, no seio do universo:

Eu nunca vi rosa em suaves molhos, que para meus olhos fosse mais fennosa.

Nem no campo flores, nem no céu estrelas, me parecem belas como os meus amores.

[

...

] Presença serena

que a tonnenta amansa;

37 Rimas, pp. 89-90.

Referências

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