PROMESSA DE DOAÇÃO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Civil, sob a orientação do Professor Doutor Rogério Donnini.
PUC-SP
Banca Examinadora
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Agradeço ao Professor Doutor Rogério Donnini, meu orientador, pelas seguras
indicações, objetivas correções e sugestões para a elaboração desta dissertação,
SUMÁRIO
SUMÁRIO ... 4
1 DOAÇÃO ... 8
2 EVOLUÇÃO DA DOAÇÃO ... 16
2.1 NO DIREITO ROMANO ... 16
2.2 NO DIREITO INTERMÉDIO E O RETORNO AOS PRINCÍPIOS DO DIREITO ROMANO ... 28
3 A DOAÇÃO NO VIGENTE DIREITO CIVIL ... 41
3.1 QUEM PODE DOAR E QUEM PODE RECEBER DOAÇÃO ... 41
3.2 FORMA DA DOAÇÃO ... 45
3.3 O OBJETO DA DOAÇÃO ... 46
3.4 A ENTREGA DA COISA E A MORA DO DOADOR ... 48
3.5 CLASSIFICAÇÃO DAS DOAÇÕES ... 49
3.5.1 Doações inter vivos e mortis causa ... 49
3.5.2 Doações inter vivos e suas classificações ... 53
3.5.3 Modalidades de doações ... 55
3.5.3.1 Doação Pura ... 55
3.5.3.2 Doação modal ou com encargo ... 56
3.5.3.3 Doação remuneratória ... 58
3.5.3.4 Doação feita em contemplação do merecimento de alguém ... 59
3.5.3.5 Doação conjuntiva ou em comum ... 60
3.5.3.6 Doação a nascituro ... 63
3.5.3.7 Doação de ascendentes a descendentes e entre cônjuges ... 65
3.5.3.8 Doação em forma de subvenção periódica ... 67
3.5.3.9 Doação feita em contemplação de casamento futuro ... 70
3.5.3.10 Doação com cláusula de reversão ... 72
3.5.3.11 Doações proibidas ... 75
3.5.3.11.1 Doação a cúmplice de cônjuge adúltero ... 75
3.5.3.11.2 Doação de todos os bens sem reserva para subsistência ... 78
3.5.3.11.3 Doação inoficiosa ... 81
3.6 REVOGAÇÃO DA DOAÇÃO ... 85
3.6.1 Invalidação e suas causas ... 85
3.6.2 Ingratidão do donatário ... 87
3.6.2.1 Atentado contra a vida do doador ou homicídio doloso contra ele ... 88
3.6.2.2 Ofensa física contra o doador ... 89
3.6.2.3 Recusa de alimentos ao doador ... 92
3.6.3 Revogação por ingratidão só admissível nas doações puras ... 93
3.6.3.1 Revogação por inexecução do encargo ... 94
3.6.3.2 A ação para revogação da doação ... 95
3.6.3.3 A sentença da revogação ou extinção da doação e seus efeitos ... 98
3.7 FORMAÇÃO DO CONTRATO – A ACEITAÇÃO ... 101
4 PROMESSA DE DOAÇÃO – A CONTROVÉRSIA DOUTRINÁRIA ... 105
5 O PRÉ-CONTRATO E A PROMESSA DE DOAÇÃO À LUZ DO CÓDIGO CIVIL ... 114
5.1 A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS AO CÓDIGO CIVIL ... 114
5.2 OS CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS E AS CLÁUSULAS GERAIS COMO ELEMENTOS PARA INTERPRETAÇÃO DOS CONTRATOS ... 123
5.3 O PRÉ-CONTRATO NO CÓDIGO CIVIL ... 130
5.4 CONTRATO PRELIMINAR E PROMESSA DE DOAÇÃO ... 136
6 INTERPRETAÇÃO DO CONTRATO PRELIMINAR DE PROMESSA DE DOAÇÃO ... 140
7 A TUTELA JURISDICIONAL DA OBRIGAÇÃO RESULTANTE DO CONTRATO PRELIMINAR E SUA APLICAÇÃO À PROMESSA DE DOAÇÃO ... 147
8 CONCLUSÃO ... 159
RESUMO
O presente trabalho pretende estudar a promessa de doação e a sua execução específica, de sorte a ser obtido pelo promissário donatário a entrega do bem ou transferência de direito que lhe foi prometida em pré-contrato.
Para isto, inicialmente será enfocada a evolução da doação, desde o direito romano, passando pelo direito intermédio e até a fase moderna das codificações em que é aceita a natureza contratual do instituto, com mais detida análise do direito luso-brasileiro, vale dizer, do regime das Ordenações ao dos Códigos Civis de 1916 e 2002.
Estabelecida a natureza contratual da doação, as modalidades desse contrato, os requisitos e as formas para o seu aperfeiçoamento, a capacidade das partes, a questão da aceitação e da revogação, apontar-se-á a controvérsia acerca da possibilidade ou não da promessa de doação, especialmente à luz do vigente Código Civil e dos princípios que o informam no trato dos contratos e pré-contratos.
Em seguida, será feito o exame da possibilidade jurídica da execução específica da promessa, à luz do art. 466 B do Código de Processo Civil, ou seja, da obtenção de uma sentença judicial que substitua a vontade sonegada daquele que fez a promessa.
ABSTRACT
This work proposes to study the donation commitment and its specific performance, whereby the committed recipient can secure delivery of the asset or transference of the right which was pre-contractually committed to him/her.
To that end, the first section examines the evolution of donations, from Roman Law, through the intermediary period, up to the modern codification phase, in which the donation’s contractual character is accepted, with a more extensive analysis of Portuguese-Brazilian law, that is, from the ancient Portuguese civil law regime (Código Afonsino or Afonsinas, Código Manuelino or Manuelinas and Código Filipino or Philipinas) to the Brazilian Civil Codes of 1916 and 2002.
After establishing the donation’s contractual character, as well as the categories of such contract, its prerequisites and forms of enhancement, capability of the parties, and the issue of acceptance and revocation, the focus shifts to the controversy surrounding the possibility of a donation commitment, particularly in light of the Civil Code in force and of the principles that dictate its treatment of contracts and pre-contracts.
The next section examines the legal feasibility of the donation commitment’s specific performance, in light of Civil Procedure Code’s art. 466 B, i.e., securing a court order that supersedes the unfulfilled will of the committed donor.
INTRODUÇÃO
A doação é considerada contrato de direito civil por excelência na medida em
que mesmo nas modalidades remuneratória ou com encargo não se faz presente o
intuito de lucro.
Seu traço marcante é a liberalidade.
Essa liberalidade, segundo a doutrina tradicional tem de estar presente no
momento em que é manifestada a vontade pelo doador o que torna incompatível
com a natureza do contrato a promessa de doação.
Sob essa ótica, até o momento em que se faz a doação será possível o
arrependimento e nenhuma medida coercitiva pode ser tomada porque ninguém
pode ser obrigado a praticar liberalidade.
Todavia, diante da moderna concepção do contrato é possível sustentar que
1 DOAÇÃO
Estabelece o vigente Código Civil que “considera-se doação o contrato em
que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens
para o de outra” (art. 538 do Código Civil).
Dessa definição legal conclui-se que, para o direito brasileiro, a doação é
contrato, o que é aceito pela unanimidade da doutrina, seja à luz do direito anterior,
seja do vigente1.
Tanto no Código passado2, quanto no atual, a doação é disciplinada como um
contrato, unilateral e gratuito, que envolve um ato de alienação, importando na
transferência de um bem ou direito, por espírito de liberalidade (animus donandi),
1 RIZZARDO, Arnaldo.
Contratos Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 9ª edição, Forense, Rio, 2009. p. 439;
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 3º volume,
p. 95; DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo,
2003, volume 2º, p. 44. TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Maria Helena e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil Interpretado, Renovar, Rio de Janeiro, 2006, volume II, p. 214; FERREIRA DA ROCHA, Silvio Luis. Curso Avançado de Direito Civil, Contratos, RT, São Paulo, 2002, Volume 3, p.
169; SILVA PEREIRA, Cáio Mário, Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o
Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2004, volume III, p. 245; GOMES, Orlando. Contratos,
26ª edição, Coordenador Edvaldo Brito, Revista, Atualizada e Aumentada de acordo com o Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2007, p. 254; NADER, Paulo. Curso de Direito Civil –
Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 2005, volume 3, p. 283; LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil, 3ª edição, RT, /são Paulo, 2005, volume 3, p. 369; BEVILACQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, 11ª edição, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1958, volume
IV, p. 266; ALVIM, Agostinho. Da Doação, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1972, p. 7; ESPÍNOLA,
Eduardo. Dos Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro, 2ª edição, Conquista, Rio e Janeiro,
1956, p. 154; SERPA LOPES, Miguel Maria. Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, Rio de
Janeiro, 1995, p. 142; WALD, Arnoldo, Curso de Direito Civil Brasileiro, Obrigações e Contratos, 11ª
edição, RT, São Paulo, 1994, p. 273; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi, Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 197, e anteriormente ao
Código Civil de 1916, CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no Direito Civil Brasileiro, 4ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1957, Tomo I, p. 32.
2 O artigo 538 do Código Civil de 1916 dispunha: “Considera-se doação o contrato em que uma
acarretando redução patrimonial para o doador, que assim empobrece com o
consequente enriquecimento do donatário3.
Para PONTES DE MIRANDA, é contrato unilateral, supõe a bilateralidade do
negócio jurídico, sem bilateralidade do contrato. Quem doa contrata e o donatário,
aceitando, apenas aceita o contrato que é unilateral4. Tal bilateralidade, no entanto,
segundo RIZZARDO, restringe-se à formação do ato jurídico, não alcançando as
obrigações derivadas da convenção. Neste aspecto classifica-se como contrato
unilateral, posto criar obrigações para apenas uma das partes, que é o doador5.
A doação é, pois, negócio jurídico que precisa reunir as seguintes condições:
1º) que se verifique entre vivos; 2º) que uma das partes se enriqueça na medida em
que a outra empobrece, que esta queira enriquecer a outra às suas expensas. Os
dois últimos requisitos são, respectivamente, os elementos subjetivo e objetivo da
doação6.
A doação é contrato benéfico por excelência, como afirmava AGOSTINHO
ALVIM. Ressalva o autor que há benefícios que não empobrecem o benfeitor, como
por exemplo, um serviço gratuito. Na doação há diminuição do patrimônio, como
está dito no art. 538 do Código Civil: transfere de seu patrimônio bens ou vantagens
para o de outra. Como contrato benéfico, a doação não permite interpretação
extensiva, pois, consoante o disposto no art. 114 do Código Civil, os negócios
3 CAPANEMA DE SOUZA, Sylvio.
Comentários ao Código Civil, Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, Volume VIII, p. 85.
4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi,
Rio de Janeiro, 1964, Tomo XLVI, p. 197.
5 RIZZARDO, Arnaldo.
Contratos Lei n. 10.406, de 10.01.2002, 9ª edição, Forense, Rio de Janeiro,
2009, p. 440.
6 GOMES, Orlando.
Contratos, 26ª edição, Coordenador Edvaldo Brito, Revista, Atualizada e
jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente. Na dúvida, não se
interpreta como doação e no que toca à extensão do seu objeto, admite-se o menos,
e não o mais, sendo indispensável para chegar a uma conclusão firme, sujeitar o
título de doação às regras de interpretação dos contratos. Mas esta operação, da
qual emerge a prova intrínseca, não exclui as provas extrínsecas, inclusive a
circunstancial, a fim de obter um resultado seguro sobre a verdadeira intenção das
partes7.
Ensina ainda o grande civilista que não é exato afirmar que a liberalidade
esteja presente em todas as doações. Assim como excepcionalmente pode haver
doação sem liberalidade, pode, também, haver liberalidade aceita, sem que haja
doação. A liberalidade é a intenção de bem fazer, de proteger. 8.
7 ALVIM, Agostinho.
Da Doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p. 8, com alteração da remissão legal ao
novo Código Civil.
8 ALVIM, Agostinho.
Da Doação, 2ª edição, Saraiva, 1972, p. 8 a 10. “Em regra, o doador, levado por
sentimento de amor, ou de amizade, transfere algo de seu patrimônio para o de outra pessoa, que aceita o benefício, sem nenhuma vantagem patrimonial para o primeiro, que apenas deu expansão a um daqueles sentimentos ou a um sentimento de religião ou de ética. Mas o sentido exato de liberalidade supõe maior meditação porque muitas vezes ela é apenas um rótulo. Com efeito, devemos admitir que o animus donandi, a vontade de bem-fazer, possa não existir interiormente em
certos casos; e poderá até mesmo ocorrer que nem mesmo na aparência haja esse ânimo. Assim, por exemplo, no caso de que algumas pessoas façam doação a um parente que está mal de vida. Um deles pode se aborrecer por ter que doar, não o escondendo mesmo aos estranhos. Não obstante, e como noblesse oblige, a pessoa, por não querer ser exceção, acaba contribuindo. Nessa hipótese,
não há vontade de bem-fazer, mas a doação existirá, de onde dizerem alguns que a verdadeira característica da doação é a gratuidade e não a liberalidade. Em alguns casos, os motivos íntimos que levam a doar são o temor da reprovação, a vaidade, ou mesmo a esperança de vantagens indiretas; e nada disto desnatura a liberalidade, bastando o seu aspecto objetivo, que é a gratuidade (DE RUGGIERO, Istituizioni do Diritto Civile, vol. III, § 118; VENZI, Manuale do Diritto Civile Italiano,
n. 478). O contrário seria valorizar o motivo, que o nosso direito não leva em consideração, como elemento do contrato, o que não se deve confundir com a causa, ou objeto. O objeto, em regra é diverso, para cada um dos contraentes; será a coisa, para o comprador, e o preço para o vendedor. Na doação, o donatário objetiva o aumento do seu patrimônio e o doador objetiva isso mesmo: o aumento do patrimônio do donatário, mediante ato de liberalidade. O motivo, porém que tiver levado o doador a doar, se é amor, amizade, vaidade, ou temor da censura alheia, isso não importa, porque não constitui elemento da doação, que se contenta com o rótulo da liberalidade, externado na gratuidade do ato. Pode-se dizer que o objeto é o fato teleológico de 1º grau: Por que doas? Porque quero enriquecer alguém à minha custa (causa final). O motivo íntimo que me impele a essa liberalidade será um fator teleológico de 2º grau. Não há confundir motivo com animus donandi. A
Por esses motivos, não são considerados doação: a) os atos pelos quais se
efetua a entrega de uma coisa gratuitamente, porém não com o fim de adquirir o
domínio delas, como se dá no comodato, ou deixar de interromper uma prescrição;
b) a renúncia de uma herança ou legado; c) a renúncia de uma hipoteca ou de uma
fiança, ainda que o devedor se encontre insolvente; d) a omissão voluntária com o
objetivo de produzir a extinção de uma servidão predial; e) não há doação, ainda
que remuneratória, quando o serviço prestador pelo donatário seja de tal ordem que
autorize a ação civil para exigir o pagamento9. Ou ainda o cumprimento de uma
obrigação natural porque o que a cumpre não estava juridicamente obrigado a isto10.
Sem embargo, ainda que não seja possível ser considerada doação
propriamente dita, a doutrina concebe a figura da doação indireta. Às vezes, a
renúncia equivale à doação. E isto quando não tem caráter meramente abdicativo,
como, por exemplo, a de uma herança aberta em favor de um herdeiro determinado.
Nesse caso, sob a forma de uma renúncia translatícia, há doação indireta
porque o bem, que já entrara no patrimônio do renunciante desde a abertura da
sucessão, se transfere para o herdeiro favorecido11. Na chamada doação indireta,
Español, vol. IV, pág. 163), não entram em conta os motivi determinanti – acentua TITO PREDA (in
Dizionario Pratico do Diritto Privato de SCIALOJA, vol. II, vocábulo donazione). Não será errôneo, porém, dizer que a doação supõe liberalidade; e isto porque geralmente se fala do que de ordinário sucede; e, normalmente, é isto que acontece. Segundo o testemunho de POTHIER, ob. e loc. cits., a jurisprudência francesa não considerava doação a que era feita por quem estava à morte, visto não haver liberalidade por quem doa aquilo “que la mort va lui enlever”. O mesmo com referência a quem
ingresse na vida religiosa. Tais excessos não merecem amparo. “Liberalidade é gratuidade, dispensada a sondagem íntima” 8.
9 SERPA LOPES, Miguel Maria.
Curso de Direito Civil, 4ª edição, Freitas Bastos, 1995, p. 346.
10 D’Abranches Ferrão, citado por Maria Helena Diniz e Agostinho Alvim, in, respectivamente Tratado
Teórico e Prático dos Contratos, cit., p. 45 e Da Doação, cit., p. 12.
11 SILVA PEREIRA, Caio Mário,
Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o
afirma SILVIO DE SALVO VENOSA, “o doador vale-se do conteúdo volitivo de
liberalidade para praticá-la. Esse fenômeno conceitua-se por exclusão. São
consideradas doações indiretas todos os atos de liberalidade que não podem ser
qualificados como doação direta, e em que se observa o empobrecimento de um
sujeito e o correspondente enriquecimento de outro. Na doação indireta, o doador
pratica a liberalidade recorrendo a diverso meio jurídico, para obter o reflexo de
gratuidade (Trabucchi, 1992:849). Exemplos típicos são a remissão de dívida, o
pagamento de débito alheio, o contrato em favor de terceiro, entre outros” 12.
Não há em doutrina conceito unitário de doação indireta, pois em sua
compreensão inserem-se várias formas de transmissão de direitos a título de
liberalidade. A fixação da natureza jurídica apresenta importância para o exame da
validade, eficácia e interpretação do negócio jurídico. Não se confunde, entretanto, a
doação indireta com a doação simulada. Nesta, o negócio jurídico é oneroso,
mascarado por uma doação13. Pode ser ainda dissimulada, quando sob a forma
aparente de contrato oneroso, oculta a liberalidade que efetivamente se realiza, mas
que se procura evitar aos olhos de terceiros. Subordinam-se às regras sobre a
simulação dos atos jurídicos14.
Merece menção, também, a possibilidade de divisar na doação um negócio
misto, ou seja, considerá-lo apenas em parte gratuito. Chama-se contrato de doação
mista o contrato segundo o qual a prestação do doador é até certo ponto
correspondida pela contraprestação do outorgado. A diferença gratuitamente
12 VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil – Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, 3º volume, p. 99. 13 VENOSA, Silvio de Salvo.
Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, 3º volume, p.99.
14 ESPÍNOLA, Eduardo.
Dos Contratos Nominados no Direito Civil Brasileiro, 2ª edição, Conquista,
prestada é elemento essencial para se pensar em doação mista. Supõe-se que se
doe o excesso e os figurantes acordem na gratuidade. É o caso apontado em
doutrina, de uma compra e venda em que o bem vale 200 e o comprador paga 250.
Esses 50 reger-se-ão pela doação, e os 200 pela compra e venda15.
Para que exista doação é necessário o elemento subjetivo, o animus donandi,
que consiste na vontade do doador de despojar-se de um bem, o que o empobrece,
para transferi-lo, sem qualquer retribuição, para o patrimônio do donatário, que, ao
contrário, enriquece16.
Se o bem é indivisível não há pensar-se em pluralidade de contratos, o
contrato é um só e misto; se o bem é divisível, há dualidade, ou mesmo outra
pluralidade de contratos (exemplo: doação e compra e venda e doação e troca). O
contrato é negócio jurídico unitário e incidem as regras jurídicas concernentes à
doação e aquelas atinentes ao outro contrato, conforme o que se refere a eles e não
se choquem com o contrato unitário. Na doação mista, o direito à devolução só se
refere à quota do valor que corresponde à doação. No tocante aos vícios do objeto,
há a indenização dos danos segundo os princípios que regem os contratos
comutativos, mas apenas no que se liga à quota que corresponde à
contraprestação. No tocante à quota a título gratuito, as regras jurídicas da doação é
que incidem17.
15 DINIZ, Maria Helena.
Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição, Saraiva, São Paulo, 2003,
volume 2º, p. 45, e nota 4 com citação da lição de Tullio Ascarelli, contrato misto, negócio indireto, “negotium mixtum cum donatione”, Lisboa, 1954, p. 23, que por seu turno se reporta a Trabucchi e a Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil, v. 3.p.305.
16 CAPANEMA DE SOUZA, Sylvio.
Comentários ao Código Civil, Coordenação Sálvio de Figueiredo
Teixeira, Forense, Rio de Janeiro, 2004, Volume VIII, p. 88.
17 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Borsoi,
Assim, a doação, na lição de CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, contrato que
é por definição legal e conceituação doutrinária, exibe desde logo seus caracteres
jurídicos:
A – Contrato gratuito, porque gera benefício ou vantagem apenas para o
donatário. Caracteriza-o especialmente, imprimindo-lhe sentido fundamental
diferenciador, o animus donandi, que repousa na liberalidade, e que sobrevive
mesmo quando tem o doador em vista contemplar o merecimento do donatário, ou
grava o benefício de um encargo imposto ao favorecido.
B – Contrato unilateral, porque cria obrigações para uma só das partes, o
doador, já que a existência de encargo eventualmente determinado constitui simples
modus, inconfundível com a obrigação. Se o encargo assume o caráter de
contraprestação, desfigura-se o contrato, que passará a constituir outra espécie,
sem embargo de usarem as partes, o nomen juris doação.
C – Contrato formal, porque tem de obedecer à forma prescrita em lei. É
comum encontrar-se, nos nossos melhores escritores (M. I. Carvalho de Mendonça,
Orlando Gomes) a sua classificação entre os contratos consensuais. À vista, porém,
do art. 541, que reproduziu o art. 1.168 do Código Civil de 1916, que estabelece a
forma escrita, e por exceção a verbal, subordinada, entretanto, a dois requisitos
específicos (tratar-se de bens móveis de pequeno valor e se lhe siga incontinenti a
tradição – dons manuais, presentes que se fazem por ocasião das bodas ou de
aniversários, ou como prova de estima ou homenagem, e que na ausência de
critério estimativo, a fixação de seu valor decorrerá das circunstâncias ou das
posses do doador). 18 19
18 SILVA PEREIRA, Cáio Mário,
Instituições de Direito Civil, Contratos, 11ª edição de acordo com o
Código Civil de 2002, Forense, Rio de Janeiro, 2004, volume III, p. 246, 247 e 252 No mesmo sentido o entender de Silvio de Salvo Venosa, ao afirmar que da definição legal deflui que se trata de negócio gratuito, unilateral e formal, in Direito Civil Contratos em Espécie, 8ª edição, Atlas, São Paulo, 3º
volume, p. 96. Idem Maria Helena Diniz, in Tratado Teórico e Prático dos Contratos, 5ª edição,
Saraiva, São Paulo, 2003, volume 2º, p. 44.
19 Anota-se a posição de Paulo Nader, para quem o contrato é unilateral, gratuito, consensual e
formal, afirmando ser consensual porque basta o consentimento das partes para que se aperfeiçoe e o faz com fundamento na interpretação do artigo 538 do Código Civil, para opor a classificação a contrato real, tendo em vista a transferência do bem doado, in Curso de Direito Civil – Contratos,
2 EVOLUÇÃO DA DOAÇÃO
2.1 No Direito Romano
A história da doação, como observado por BIONDO BIONDI, concebida não
como exposição inerte e erudita do ordenamento passado, verdadeira curiosidade
histórica, mas como representação ideal de uma estratificação secular de conceitos
e princípios, que superados porém não sem deixar traços significativos ou
deformações, desembocam nas codificações modernas, pode ser particularmente
vantajosa para o conhecimento do instituto moderno; ao menos poderá suscitar e
apurar das razões das dificuldades com que se debate a doutrina moderna e se
apresentam ao legislador toda a vez que se empreende uma revisão legislativa.
Mais que a dogmática abstrata, que prescinde de limite de tempo e espaço e
da comparação jurídica que pode orientar o legislador em face das exigências da
vida contemporânea, em tema de doação é útil a história, entendida do seguinte
modo: toda época traz sua contribuição de idéias e preceitos para não dizer também
de preconceitos e erros, recomendados por razões de oportunidade com o fim de
determinar um resultado, que se poderá conhecer melhor quando analisados na sua
gênese histórica e nos fatores que a determinaram. Neste processo de estratificação
preponderante se encontra o direito romano, onde o instituto moderno encontra as
raízes mais profundas. Dificilmente é possível apreender o valor e o significado de
tais princípios e ordenamentos modernos sem remontar às fontes romanas20.
20 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio
Observam ALEXANDRE CORREIA e GAETANO SCIACIA que as Institutas
de Gaio não tratam das doações; nem se pode dizer que tenha, este instituto
jurídico, definitiva configuração nos sistemas modernos. A doação pode ser
encarada quer como causa dos atos jurídicos (SAVIGNY), quer como liberalidade
entre vivos, e às vezes mortis causa, semelhante aos legados (sistema francês);
quer como contrato unilateral, isto é, ato jurídico bilateral com efeitos obrigatórios
para uma só das partes (sistema brasileiro). Na verdade, aduzem que o instituto faz
parte do setor dos direitos patrimoniais, pois importa no enriquecimento de um
sujeito (donatário) e no empobrecimento de outro (doador) e apontam a existência
de duas espécies de doações: doação entre vivos e a doação mortis causa,
deixando a doação entre cônjuges e entre noivos para o direito de família21.
Assim, o instituto da doação não tem recebido dos tratadistas o mesmo
tratamento. Os pandectistas, como DERNBURG e WINDSCHEID, no ver de
VANDICK LONDRES DA NÓBREGA, consideram a doação como um contrato ou
pacto, classificando-a entre os pactos legítimos, ao passo que, segundo outros,
VANGEROV e BRINZ, ela é colocada na parte geral. No entanto, romanistas mais
recentes como RABEL, SIBER, MITTEIS, SOHN tratam da doação na parte dos atos
jurídicos; KARLOWA, CZYHLARZ, KUNKEL preferem colocá-la entre as
obrigações22.
Os romanistas brasileiros MOREIRA ALVES, ALEXANDRE CORREIA,
EBERT CHAMOUN, SYLVIO MEIRA, tratam da matéria no direito das obrigações,
21 CORREIA, Alexandre e SCIACIA, Gaetano. Manual de Direito Romano, CD Liv, s.d., p. 219. 22 NOBREGA, Vandick Londres da. Compendio de Direito Romano II, 8ª edição, Freitas Bastos, Rio
destacando VANDICK LONDRES DA NÓBREGA que preferiu seguir a doutrina dos
pandectistas que consideram a doação como um pacto legítimo porque, em última
análise, trata-se de uma convenção, cujos efeitos mereceram a proteção do direito23.
MOREIRA ALVES, para justificar a sua posição, se questiona acerca da
colocação da donatio no sistema jurídico romano, bem como, sendo as doações
atos de liberalidade, mas abrangendo estes atos outros que não apenas as doações,
como distinguir-se a doação dos demais atos de liberalidade? Quanto à primeira
questão, anota ser grande a divergência entre os autores, tendo em vista,
principalmente, que as fontes não nos proporcionam orientação sistemática digna de
ser seguida e que alguns romanistas antigos – no que foram seguidos pelos
pandectistas alemães – a enquadravam entre os contratos. SAVIGNY, porém,
combateu essa colocação, salientando que a doação não era, no direito romano,
negócio jurídico típico, mas simplesmente causa de qualquer negócio jurídico
patrimonial. 24
Também no século atual não estão os romanistas de acordo a respeito do
enquadramento da doação na sistemática de suas obras; alguns a colocam no
capítulo referente aos atos jurídicos em geral, ou do negócio jurídico em particular;
outros a analisam no direito das obrigações; outros, ainda, a analisam no direito das
coisas; e há os que a examinam à parte. Prefere o ilustre jurista – tendo em vista
que, pelo menos no direito justinianeu, se encontra a doação obrigatória como pacto
23 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995,
capítulo XLII; CORREIA, Alexandre e SCIACIA, Gaetano. Manual de Direito Romano, CD Liv, Capítulo III; CHAMOUN, Ebert, Instituições de Direito Romano, 6ª edição, Editora Rio, Rio de Janeiro, 1977, p.391; NOBREGA, Vandick Londres da. Compendio de Direito Romano II, 8ª edição, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1975, volume II, p. 336.
24 24 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995,
legítimo – estudá-la no direito das obrigações, logo após a análise dos pactos. Com
referência ao segundo problema e invocando a lição de BIONDI, afirma que a
doação se restringe à esfera patrimonial (excluindo a manumissão de um escravo
que embora possa implicar liberalidade não é doação); a doação atribui ao donatário
um direito (esse é o motivo pelo qual a constituição do precarium a alguém não é
doação: pelo precário não se concede ao precarista qualquer direito e a doação é a
causa, que ocorre com relação a atos abstratos e não a atos típicos; por isso, o
comodato e o testamento, embora impliquem liberalidade, não são doação: são atos
típicos). 25
BIONDI divide a história da doação em três fases: a) das origens à Lex
Cincia; b) da Lex Cincia à lei de Constantino, vale dizer por toda a época clássica e:
c) da lei de Constantino até os nossos dias. Das origens e por toda a época
clássica, até Constantino, a doação é concebida não como negócio jurídico típico,
mas como causa de numerosos e variados atos jurídicos de caráter patrimonial, até
não negociais.
Tanto na jurisprudência clássica como nas leis imperiais e nos próprios atos
jurídicos se fala de agere, gerere, permittere, dare, mancipare, tradere, promittere,
acceptum ferrem iuberem remittere, excolere donationis causa. A hipótese mais
frequente e mais importante é a doação traslativa de propriedade, que ata mediante
o cumprimento dos modos em geral de transferência de domínio, como a
mancipatio, in iure cessio e traditio; mas Pompônio adverte que potest et citra
corporis donationem valere donatio (pode e sem figura de doação valer como
25 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995,
doação). São documentados e conhecidos numerosos outros atos que se realizam
donationis causa e que se enumera apenas a título exemplificativo: stipulatio e
remissão de débito; pacto de não reclamar pagamento ante certum tempus;
pagamento do débito de terceiro; prestação de garantia real ou fiança por débito de
terceiro; novação de pagamento; reconhecimento de débito; concessão de direito de
habitação gratuita de uma casa; construção e plantação em solo alheio; cultura
gratuita em prédio alheio; venda ou locação viliore pretio; renúncia a um direito ou
abstenção de seu exercício para que se extinga ou um terceiro o adquira26.
Até o ano 204 AC as doações são submetidas ao direito comum,
especialmente do ponto de vista das suas condições de validade. Cuidando de
transferir diretamente pela doação da propriedade de coisas corpóreas se recorria à
mancipatio ou à in iure cessio para as res mancipi e à in iure cessio ou à tradictio
para as res nec manicipi. A doação de uma servidão se fazia pela mancipatio ou in
iure cessio no caso de servidões rurais; pela in iure cessio no caso de servidão
urbana ou pessoal. Para a doação de um crédito, cedia ao donatário as ações
relativas ao crédito; se a intenção era a de fazer uma novação, pedia o credor ao
seu devedor, pela delegatio, que se obrigasse perante o donatário. Se a doação
consistia numa remissão de dívida, liberava-se o donatário por uma acceptilatio ou
por uma simples convenção liberatória, ou ainda no caso em que o donatário fosse
devedor de terceiro ou pagava o débito ou o doador se obrigava perante esse
terceiro substituindo o donatário. Se o doador não quisesse se despojar da coisa
objeto da liberalidade, era utilizada a forma da stipulatio27.
26 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio
Azara e Ernesto Eula, 3ª edição, UTET Unione Tipográfico-Editrice Torinese, Turim, 1957, p. 225.
27 VAN WETTER, P. Pandectes contenant L’Histoire Du Droit Romain et la Legislation de Justinien,
Nessa mesma ordem de idéias e esclarecedora é a lição de BIONDO BIONDI
ao observar “que Gaio não menciona a doação por se tratar de instituto
antiquíssimo, porque não encontra onde colocá-la, e porque no sistema romano,
baseado nas actiones, não existe actio ex donatione. Sob este aspecto a doação se
coloca no mesmo plano da constituição de dote, para o qual não há ato típico e se
excluída a antiga doctis dictio tem aplicação limitada. Tudo isto foi intuído por
SAVIGNY, a quem se deve o erro não apenas de não distinguir as várias épocas,
como de apresentar uma formulação contraditória com a premissa da qual partia,
quando define a doação como “negócio jurídico quando reúna as seguintes
qualidades: ser um negócio inter vivos que deve enriquecer alguém enquanto
outrem perde alguma coisa“. A doação não é um negócio, mas a causa que está na
base de todo ato, mesmo não negocial, mas de caráter patrimonial. Em princípio, a
causa donationis não aflora no ordenamento jurídico, como não traz à tona alguma
outra causa. O ato é sempre o mesmo, sujeito ao mesmo regime, seja de forma,
seja de substância, e produz invariavelmente a mesma conseqüência jurídica
qualquer que seja a causa. Portanto, se tem regime unitário para todo o ato singular
qualquer que seja a causa, mas regime diverso segundo os diversos atos” 28.
A causa donationis passa a ser considerada e, em seguida, o instituto começa
a delinear-se como instituto autônomo quando a Lex Cincia de 204 A.C. proíbe dona
et munera excedente a uma determinada soma (modus), exceto aquelas em favor
de certos familiares expressamente indicados na lei (exceptae personae), ou que
não superasse uma determinada quantia que não é conhecida. Não se sabe com
28 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio
precisão a razão de tal proibição; talvez ligado ao espírito romano não predisposto à
liberalidade; Cícero lamenta que multi enim patrimonia effuderunt inconsulte
largiendo (por causa de liberadidades inpensadas muito patrimônio se desperdiçou)
(de off., 2, 15,54). Uma vez que a doação não era negócio jurídico, razão pela qual
era fácil declarar a nulidade, a jurisprudência foi induzida a determinar a causa
donationis para aplicar a proibição. Assim nasce a necessidade de declarar o que
seja doação. Pode-se dizer então que o ato de nascimento da doação foi de
desconhecimento e não de reconhecimento. E isto porque a lei se limitava a proibir a
doação sem declarar a nulidade do ato, e nem tecnicamente poderia fazê-lo porque
a doação não era ato típico, mas causa de variados atos e o pretor, guiado pela
sapiente jurisprudência, no intento de dar execução à proibição, terminou por
instaurar um regime, o quanto mais adequado, ainda que diferente daquele que
talvez fosse o pensamento da antiga lei. O pretor, como sempre, opera com os
meios normais inerentes à sua iurisdictio; formalmente, não se coloca em contraste
com os preceitos do ius civile, nem desconhece a pretensão que deste são
resultantes, mas, por meio do exercício de tais meios processuais, a bloqueia
tornando inativo o direito derivado do ato. É concedida ao doador uma exceptio
fundada na própria Lei Cincia, denominada por isso exceptio legis Cinciae pela qual
será compelido judicialmente para executar a doação. Portanto, se o doador fez
apenas mancipatio ou in iure cessio da coisa, sem transferir a sua posse, e o
donatário, que se tornou dominus com base no ato traslativo, reivindica a coisa que
se encontra em poder do doador.
Analogamente, se o doador fez, mediante uma stipulatio, promessa ao
cumprimento da promessa do doador, o qual, opondo a exceptio, em definitivo não
executa a promessa. A par da exceptio se esta não possa ter aplicação, o pretor
concede ao doador uma restitutio in integrum e uma condictio liberationis, conquanto
a aplicação desses dois remédios não pareça ser geral. São todos estes meios que
se amoldam ao espírito da Lei Cincia, mas determinam uma situação que vai além
do espírito da lei. Do dualismo entre eficácia iure civile do ato atributivo e
oponibilidade da exceptio legis Cinciae deriva o conceito de donatio perfecta, que
constitui o centro de toda a doutrina clássica da doação. É um conceito totalmente
particular, que não corresponde ao de anulabilidade. Nas fontes se fala mais em
revocare, e uma investigação dos fragmentos do vaticano traz à luz a rubrica quando
donator intellegatur revocasse voluntatem (o doador entendesse de revogar a
manifestação de vontade). Fala-se de revocare no sentido de possibilidade deferida
ao doador de não executar a doação ou de neutralizar-lhe os efeitos dentro dos
limites das medidas jurídicas concedidas pelo pretor ao doador. Donatio perfecta
significa não apenas a formalmente completa, mas também exaurida, definitiva,
independentemente da validade do ato. Em contraposição, donatio imperfecta é
aquela que resulta de um ato atributivo regularmente praticado e, pois, sob esse
aspecto, plenamente válido, mas contra a pretensão daí derivada o doador pode
opor a exceptio legis Cinciae e exercitar os meios judiciais revocatórios que o pretor
concede para cumprimento da Lei Cincia.
Concluindo, a doação imperfecta é revogável segundo o arbítrio do doador,
somente do doador, com a consequência de que a doação conserva toda sua
eficácia com a morte deste. Ainda que a preservação do patrimônio familiar tenha
significado todo particular, talvez estranho ao antigo legislador, de todo inoportuno,
uma vez que um instituto tão universal e difundido na vida não podia ser suprimido.
A antiga disposição na jurisprudência e na prática do pretor se entende como
garantia contra doações pródigas, de modo a evitar aquilo que lamenta Cícero, ou
seja, que pessoas dissipem o próprio patrimônio com prodigalidades irrefletidas29.
O nascimento da doação como negócio jurídico típico é assinalado pela
Constituição de Constantino de 316, segundo BIONDI30, ou de 323, segundo
MOREIRA ALVES31, motivada pelo declínio das formas clássicas de alienação
(mancipatio e in iure cessio) e o advento da traditio como modo geral de
transferência da propriedade. Com a abrogação da Lex Cincia cai o sistema de
limitações à doação, passando a exigir-se, para que ela se constitua, a observância
de formalidades que visam à publicidade, ou seja, a redação de ato escrito (com a
indicação do doador, do donatário e da coisa doada) na presença de testemunhas; a
tradição da coisa (corporalis traditio) realizada, em relação à coisa imóvel, ante os
vizinhos) e: a insinuatio apud acta, isto é a transcrição do ato escrito da doação em
arquivo público, pela autoridade – que tenha o ius acta conficiendi – do lugar do
domicílio do doador.
É certo, porém, como leciona MOREIRA ALVES, que os textos pós-clássicos
continuam a referir-se a expressões utilizadas com relação à lei Cíncia de donis et
muneribus: donatio perfecta, exceptio, exceptae personae. Mas o que, em verdade,
29 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio
Azara e Ernesto Eula, 3ª edição, UTET Unione Tipográfico-Editrice Torinese, Turim, 1957, p. 226.
30 BIONDI, Biondo. Donazione (Diritto Romano) in Novíssimo Digesto Italiano Diretto da Antonio
Azara e Ernesto Eula, 3ª edição, UTET Unione Tipográfico-Editrice Torinese, Turim, 1957, p. 229.
31 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995,
ocorre é que os jurisconsultos pós-clássicos, com termos advindos do direito
clássico, exprimem idéias diversas. Com efeito, abolido o sistema de restrições
sobre o qual se construíra o conceito clássico de doação, as exigências se
concentram na forma; daí, por exemplo, ao passo que no direito clássico, donatio
perfecta é a doação de que o doador não pode se eximir de executar, ou se
executada, desfazer, no direito pós-clássico donatio perfecta é aquela feita com a
observância das formalidades legais. Com Justiniano, quando a doação não excede
o valor de 500 sólidos, não se exigem as formalidades requeridas por Constantino; e
mesmo nas que são superiores a esse valor (com exceção de alguns casos como,
por exemplo, as doações feitas pelo imperador ou pela imperatriz e as destinadas a
finalidades pias, em que se dispensam as formalidades), só há necessidade de se
observarem os requisitos da redação do ato escrito e da insinuatio, para que a
doação não seja nula no que exceder a 500 sólidos. Por outro lado, estabelece
ainda Justiniano que: a) o doador pode revogar a doação perfecta (no sentido que
esta expressão adquire no direito pós-clássico: a doação realizada com a
observância das formalidades legais), se ocorrer a ingratidão do donatário (seja
liberto ou ingênuo) para com o doador; e, b) a simples convenção entre o doador e o
donatário é pacto legítimo, e, portanto, obrigatório para o doador32.
A partir do século V da era cristã afirma VAN WETER que uma reação se
opera contra o sistema. Os imperadores Teodósio II e Valentiniano III suprimem o
requisito da redação por escrito para a validade das doações; Zenon suprime a da
presença dos vizinhos e de outras testemunhas quando da tradição da coisa doada
e, Justiniano, o da tradição real. Restava a insinuação da doação; Justiniano a
32 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995,
restringe às doações excedentes a 500 sólidos. O mesmo imperador decide que,
salvo a formalidade da insinuação, a doação é perfeita pelo simples consentimento
das partes, sem que seja necessário empregar a forma da stipulatio. Desta maneira,
a doação assume seu lugar dentre os pactos legítimos33.
Quanto às modalidades de doação, estas poderiam ser inter vivos e mortis
causa sendo esta última subordinada à condição de o doador morrer antes do
donatário. O instituto tinha aplicação prática no caso de o doador dever enfrentar um
perigo (guerra, longa viagem etc.), pois a doação mortis causa fica sujeita à
condição resolutória da volta do doador. Mas há outros casos de aplicação.
A doação mortis causa difere da inter vivos porque caducará no caso de o
doador morrer depois do donatário e poderá ser revogada pelo doador ad nutum, ou
seja, quando este quiser. Substancialmente é como um legado, o que não escapou
aos jurisconsultos e à legislação imperial, tanto que, com o decurso do tempo, veio a
ser submetida ao mesmo regime dos legados, no tocante à capacidade de receber
do sujeito e quanto às reduções legais34.
Dentre as doações inter vivos, além daquelas puras, merece menção a
doação universal – que tem por objeto todo o patrimônio do doador ou parte dele. No
direito clássico, para que a doação fosse eficaz, era necessário que se transferisse
do doador para o donatário a propriedade de coisa por coisa, bem como se
cedessem regularmente os créditos e as ações. No direito justinianeu admite-se que
a doação universal possa realizar-se por ato único. Por essa doação não ocorria
33 VAN WETTER, P. Pandectes contenant L’Histoire Du Droit Romain et la Legislation de Justinien,
Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1910, Tomo Quatro, p. 56.
sucessão universal, e, assim, o donatário não respondia perante terceiros pelos
débitos do doador; se, porém, se obrigasse com este a responder por seus débitos,
a menos que houvesse delegatio – quando a responsabilidade seria direta do
donatário para com o terceiro – os credores se iam contra o doador e este, por sua
vez se voltava contra o donatário. Note-se ainda que se o doador não cumprisse a
obrigação, e, por isso, fosse acionado pelo donatário, seria condenado a entregar
apenas o ativo de seu patrimônio (sendo, portanto, deduzidos os débitos – aere
alieno deducta).
A doação remuneratória é aquela que o doador realiza para recompensar
alguém que o tenha beneficiado, não se confundindo com o negócio bilateral
oneroso porque não encerra uma contraprestação, tendo em vista que se trata de
compensação a um benefício não avaliável em dinheiro, ou de remuneração que,
socialmente, não se reputa como contraprestação. Como exemplo, é apontada a
feita pelo doador a quem lhe salvou a vida, e que, no direito justinianeu, é
irrevogável.
A doação modal, ou sub modo, é aquela em que o doador, em seu favor ou no
de terceiro, impõe ao donatário um ônus (modo ou encargo). Para a realização da
doação sub modo, utiliza-se em geral – caso contrário o doador não dispunha de um
modo eficaz para compelir o donatário a cumprir o encargo –, de um pactum fiduciae
inserto na mancipatio, ou de uma stipulatio em separado, pelos quais o donatário
prometia, para a hipótese de não cumprimento do ônus, restituir a coisa doada, ou
pagar uma pena. No direito justinianeu, a doação sub modo, quando efetuada pelo
dispondo o doador, portanto, das ações que sancionavam as obrigações deles
decorrentes. Por outro lado, quando o encargo é estabelecido em favor de terceiro,
este, para obter sua execução contra o donatário, tem uma actio utilis, sendo
discutível se isso já ocorria no direito clássico ou no justinianeu35.
No que respeita à promessa de doação, Justiniano pretende (de modo
semelhante à compra e venda) uma fusão das soluções clássica e pós-clássica e vê
de novo na doação uma causa de aquisição e separa-a da transmissão. Como
simples promessa torna-se de novo vinculativa e desligada da forma, agora escrita
da stipulatio; cfr. C. 8, 53, 35, 5 b/c; Ins, 2, 7, 2. Assim, a promessa de doação
torna-se um contractus fundado no consenso e obrigatório por si só (pactum legitimum).
Além disso, Justiniano adota a obrigação do registro introduzido por Constantino e
estende-a à promessa de doação36.
2.2 No Direito Intermédio e o retorno aos princípios do Direito
Romano
Nos primeiros anos do século V, a invasão dos bárbaros, quando o Império
Romano já estava dividido em duas partes, do Ocidente e do Oriente, traz consigo
as instituições de seu direito costumeiro que vai ser amoldado paulatinamente pelo
Direito Romano.
35 MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II, 5ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1995,
p.244/244 e nota 1434 apontando que para Biondi essa actio utilis surgiu no direito clássico e para Bonfante, no direito justinianeu.
36 KASER, Max. Direito Privado Romano, trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle, Fundação
Não foi o Direito Romano clássico, e sim o Direito Romano justinianeu, contido
no Corpus Juris Civilis, com as anotações e comentários dos glosadores e
pós-glosadores.
A recepção do Direito Romano foi rápida e profunda em alguns Estados e
mais demorada em outros, e não foi simultânea. Na Itália, Portugal, Espanha e sul
da França, regiões mais romanizadas, nas quais havia vigorado por longo tempo as
denominadas leis “bárbaras” (Lex Romana Visigothorum, Burgindionum e Édito de
Teodorico), a recepção do Direito Romano se deu de forma incontestada e rápida,
suprindo facilmente as lacunas do direito local vigente. Mesmo com as alterações
ocorridas com a Idade Média, a influência não havia desaparecido de todo na região.
Nos países que integravam o Sacro Império Romano-Germânico, a recepção
do Direito Romano também não encontrou obstáculos devido à obra de Irnério, que
havia descoberto um volume do Digesto na Biblioteca de Pisa e que fundara a
Escola dos Glosadores; era consultor do imperador do Sacro Império e, com a
autoridade de seu cargo, lançou a idéia de que os imperadores do Sacro Império
eram os sucessores dos imperadores romanos. Assim sendo, o Direito Romano
deveria, também, ser o direito a reger os destinos desse Império, sucessor das
glórias do primeiro.
Em contraposição, esse também foi o motivo do repúdio inicial do Direito
Romano no norte da França, norte da Alemanha e na Inglaterra, países que eram
o direito dos romanos como direito comum, implicitamente estariam também
reconhecendo a soberania de seus inimigos políticos.
Esse foi o motivo pelo qual Felipe Augusto, rei de França, proibiu, em 1200, o
ensino do Direito Romano na Universidade de Paris. Felipe III, seu sucessor, em
1278, proibiu os advogados franceses de se referirem às normas do Direito Romano
em casos em que o direito consuetudinário francês estivesse em vigor.
Na Alemanha, a assimilação do Direito Romano ocorreu nos séculos XVI e
XVII e se deu mais lentamente que nos demais países europeus. O direito que vigia
em todo o seu território era o direito nacional alemão, consuetudinário e não escrito,
que resistiu um pouco mais para receber influência do “direito comum” romano. Em
1495, o Tribunal Imperial Alemão aceitou a aplicação do Corpus Juris Civilis
somente quando ele não chocasse com as leis locais. Nos países eslavos a
infiltração do Direito romano como direito supletivo foi mais lenta e difícil37.
LUIZ ANTONIO ROLIM, com apoio em GLISSEN, afirma que a Inglaterra
resistiu e não aderiu à influência do Direito romano. O direito anglo-saxão é um
direito eminentemente consuetudinário, fruto de decisões judiciais reiteradas, de
precedentes judiciais, e não de um direito escrito. “O common Law é um judge-made
Law, um direito jurisprudencial, elaborado pelos juízes reais e mantido graças à
autoridade reconhecida dos precedentes judiciários”. Salvo na época de sua
formação, a lei não desempenha qualquer papel em sua evolução. Este é um dos
motivos pelo qual o Direito Romano – um direito escrito – pouca influência exerceu
sobre o direito inglês, mesmo supletivamente38.
No que toca ao Direito da Península Ibérica, o domínio da monarquia
visigótica na Espanha, por mais de um século (584-711), não podia deixar de influir
no destino histórico de seus povos.
É sabido, ensina REYNALDO PORCHAT, em lição cuja reprodução é
imprescindível para que se tenha uma perfeita visão da evolução do direito
luso-brasileiro “que os bárbaros tinham o salutar costume de deixar que os povos
vencidos se regessem por suas próprias leis. Por isso, durante o domínio dos
visigodos, enquanto eles governavam pelo direito germânico, que os acompanhava
onde quer que estivessem, conservando sua organização militar e seus costumes
tradicionais, o povo encontrado na península continuou a reger-se pelos antigos
usos romanos, e pelas leis romanas que lhe foram oferecidas em um código
organizado pelos próprios vencedores. Este Código era uma compilação, feita em
506, por ordem de Alarico II e referendada por Aniano, tendo recebido o nome de
Lex romana visigothorum ou Corpus Legum, sendo também conhecido pela
denominação de Breviario de Alarico, ou de Aniano (Breviarium Alaricianum ou
Aniani). A matéria que o compõe é toda coligida do direito romano: um resumo de
grande número de constituições imperais do código de Teodósio e de novelas desse
imperador, de Valentiniano II, de Marciano, de Majoriano e de Severo; fragmentos
dos códigos Gregoriano e Hermogiano, e de partes de obras de alguns
jurisconsultos que foram consagrados pela lei das citações, isto é, das Institutas de
Gaio, das Sentenças de Paulo e de um trecho das respostas de Papiniano. Para
evitar a dualidade de direitos contemporaneamente vigentes no mesmo território –
porque enquanto os vencidos se regiam pelo Código de Alarico, os visigodos se
governavam por suas próprias leis germânicas – Leovigildo e Reccaredo
organizaram uma nova compilação, que foi depois, por Chindaswintho, consolidada
em um código (642), confirmado e aumentado por seu filho Receswintho. No 16º
Concílio de Toledo, reunido em 623, sob o reinado de Aegica, depois de revisto e
dividido em 12 livros, foi esse Código Visigótico promulgado com o nome de Codex
Legum ou Lex Visigothorum e imposto como lei obrigatória geral a todos os súditos
do império visigótico. Esse código, que parece ter sido calcado no de Teodósio, é
quase todo copiado da legislação romana, no que diz respeito às matérias de direito
privado. E embora se encontrem aí alguns preceitos divergentes produzidos pelos
costumes germânicos, como os referentes ao dote, à comunhão de bens no
casamento e à liberdade de dispor da terça, pode dizer-se acertadamente, com
Martins Junior, que nesse código se fez uma “notável fusão dos direitos romano e
bárbaro. Traduzido em espanhol com o nome de Fuero Juzgo ou Libro de los
Jueces, e conhecido também com a denominação de Forum Judicum, foi esse o
primeiro código de Espanha, destinado a regê-la por alguns séculos e formando,
segundo Maynz, a base do direito nacional da península ibérica” 39.
No princípio do século VIII, os árabes, vindos da África, desalojaram os godos
e o império visigótico cai em 711. O espírito de tolerâncias dos árabes fê-los
benignos para todos que não lhes opuseram resistência, resultando daí, fato
interessante para a história jurídica da Ibéria, de continuarem os vencidos a reger-se
39 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907,
por seus usos e costumes, mantendo as suas instituições e as suas leis. Graças a
isso, pode dizer-se como uma verdade, que a invasão sarracena não produziu
modificações no direito civil que os visigodos deixaram na península40.
Com a recuperação do reino de Oviedo ou de Leão, pelos ibéricos no século
VIII, e deste fazendo parte a Lusitânia, os reis vencedores conservaram, juntamente
com o sangue dos godos, os mesmos princípios de governo, as mesmas leis e os
mesmos costumes com pequenas variações, ou seja, o mesmo direito dos
visigodos, o direito de origem romana corporizado no Fuero Juzgo, que, a despeito
do domínio dos mouros, vigorava ainda quando se fez independente o reino de
Leão.
E esse era o direito dominante quando se constituiu, no século XII, a
monarquia portuguesa quando da aclamação do infante Afonso Henriques, primeiro
rei de Portugal, neto de Afonso VI.
A par da legislação dos forais vigoraram leis gerais promulgadas pelos reis da
primeira dinastia como as de D. Diniz, nos fins do século XIII, D. Afonso IV, D. Pedro
I, e D. Fernando.
40 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia. São Paulo, 1907,
Na segunda dinastia, embora iniciada a organização de um código único por
D. João I, Mestre de Aviz, em 1446, quando reinava D. Afonso V, foram
promulgadas as Ordenações Afonsinas, consideradas como o mais antigo código da
Europa moderna. O seu conteúdo é descrito por Coelho da Rocha, como
subdividido em cinco livros: “Para sua confecção, aproveitaram os compiladores: as
leis promulgadas desde D. Afonso II, as determinações e resoluções das Cortes
celebradas desde D. Afonso IV, assim como as concordatas de D. Diniz, D. Pedro e
D. João, cujo teor pela maior parte se transcrevem. A principal fonte, porém, foi o
Direito Romano e o Direito Canônico, dos quais os compiladores extraíram títulos
inteiros, além das muitas referências a um e a outro, que a cada passo se
encontram por todo o corpo dessa obra, Finalmente, algumas disposições se acham
ali tiradas das leis das Partidas de Castela, dos antigos costumes nacionais e dos
estilos particulares das cidades ou vilas, os quais por esta forma foram convertidos
em leis gerais” 41.
Estas ordenações vigoraram por setenta e cinco anos, até serem revogadas
por D. Manuel I, o Venturoso, que ascendeu ao trono em 1495, sucedendo a D. João
II.
Apesar de não ter havido movimento de reformas jurídicas no país, talvez
para marcar sua atividade de grande legislador, no meio das glórias com que se
deslumbrava o seu reinado, D. Manuel expediu carta régia em 1506, em virtude da
qual foram revistas as Ordenações por uma junta presidida por Ruy Botto e, revistas,
foram publicadas em duas edições sucessivas de 1513 e 1514.
Como apresentassem muitas falhas em razão da precipitação com que foi
realizada a revisão, o texto foi submetido a um novo exame por uma comissão de
desembargadores, e o resultado do trabalho, aprovado pelo rei, foi publicado como
lei permanente com o nome de Ordenações Manuelinas.
Nestas, o direito romano é mantido na mesma posição de subsidiário, mantido
o espírito e os princípios gerais da legislação, com alterações decorrentes de novas
providências, ou alterações ocorridas no intervalo entre a publicação das
ordenações, donde ter sido considerada como uma edição correta e aumentada da
compilação de 1446. Com a extinção da casa de Aviz (1580), Portugal cai sob o
domínio da Espanha, assumindo o trono o rei Felipe II de Espanha, com o nome de
Felipe I, a quem coube a iniciativa do movimento legislativo para a promulgação de
um novo código.
Motivos de ordem política e de reafirmação do poder real levaram o novo rei a
editar novas Ordenações que regeriam a vida do reino por mais de dois séculos e
seriam a base do direito civil brasileiro42.
42 PORCHAT, Reynaldo. Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907,
Estas Ordenações conservam ainda as bases das duas primeiras e o direito
romano, tomado como fonte e mantido expressamente, no Livro 3, Título. 64, como
direito subsidiário.
Ainda na lição de PORCHAT: “O fundo dessa legislação, observa Coelho
Sampaio, “pelo que pertence ao direito particular, é todo de equidade; nela se acha
o que o direito romano, entendido segundo a Glosa, tem de melhor.” Coelho da
Rocha, confrontando as Ordenações Filipinas com as Manuelinas, chega a dizer,
com visível exagero, que “a falta de método e economia da compilação, as máximas
e espírito das leis e as matérias são as mesmas que se achavam nas Ordenações
Manuelinas; as quais os novos redatores pela maior parte copiaram, inserindo-lhes
aqui e ali as leis posteriores, principalmente as conteúdas na coleção de Duarte
Nunes de Leão; e isto com tanta incúria, que em muitas partes deixaram
obscuridade ou palpáveis contradições”. Parece-nos mais aceitável o juízo de
Candido Mendes dizendo que a compilação de D. Filipe “não obstante os seus
defeitos e descuidos, é trabalho de merecimento superior ao Código de D. Manuel,
cujos compiladores não tinham, nem podiam dispor de tantos recursos como os do
Código Filipino”.
Ensina ainda o eminente romanista que “esse interessante movimento de
codificação do direito português, que produziu as três referidas Ordenações, corria
paralelo com o desenvolvimento da jurisprudência, em que muitos jurisconsultos se
fizeram notáveis por importantes trabalhos. E quer na esfera legislativa, quer no
campo da doutrina, onde se destacaram juristas abalizados como Valasco, Caldas,
vigoroso influxo: ali recebido, e assimilado nas leis promulgadas, aqui dominando os
espíritos, e imprimindo-lhes orientação romanista pela ação empolgante das obras
de Accursio, de Bartolo e de Cujacio. A despeito da intenção das Cortes, com a
Restauração, em 1640, D. João IV, primeiro rei da casa de Bragança, não podia
aceder aos desejos populares de revogação ou a reforma das Ordenações sem por
em risco o trono, e, para isso era necessária a manutenção da obra de Felipe, que
se fundava no direito imperial” 43.
E a lei de 29 de janeiro de 1643, proclamando mais uma vez o poder absoluto
do rei, revalidou, confirmou e promulgou as Ordenações Filipinas, determinando que
fossem cumpridas e respeitadas. Em virtude desse decreto definitivo do monarca
português, as Ordenações Filipinas regeram por mais de dois séculos a nação
portuguesa e, no Brasil, durante o Império e o início da Republica Velha, o nosso
direito civil, até a entrada em vigor do Código Civil de 1916.
As Ordenações Filipinas, como ensina PORCHAT, “além de inspiradas no
direito romano, cujas instituições foram fartamente adotadas, ainda determinaram,
por expressa disposição contida no liv. 3º, tit. 64 que esse direito fosse invocado
como subsidiário, recorrendo-se na falta dele, às opiniões dos célebres romanistas
Accursio e Bartolo” 44.
43 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907,
volume I (1ª parte), p 46/47.
44 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907,
Em razão dessa disposição legal, estavam abertas as oportunidades para a
aplicação, ainda que de maneira afoita, os preceitos do direito romano segundo a
opinião desses jurisconsultos.
Tão grande importância foi dada a esse direito e à autoridade de Accursio e
Bartolo, cujas opiniões eram respeitadas como se fossem leis, com menosprezo do
direito nacional, que uma reação se fez sentir quando o Ministro de D. José I, Conde
de Oeyras, depois Marquês de Pombal, tomou a si a direção do governo da nação
portuguesa.
Relegando o direito romano a uma fonte subsidiária de interpretação e
restringindo a aplicação das glosas, foi editada, em 1769, a Lei da Boa Razão, com
a finalidade de compatibilizar os princípios do direito romano com as regras do
direito das gentes. 45
posto que os Sagrados Cânones determinem o contrário. As quaes Leis Imperiais mandamos guardar pela voa razão em que são fundadas. I – E se o caso, de que se trata em pratica não for determinado per Lei de nossos reinos, Stilo , ou costume acima dito, ou Leis Imperiais, ou pelos Sagrados Cânones, então mandamos que se guardem as glosas de Accursio, incorporadas nas ditas leis quando per commum opinião dos doutores não forem reprovadas: e quando pelas ditas Glosas o caso não for determinado, se guarde a opinião de Bartolo, porque sua opinião communmente He mais conforme à razão, sem embargo de alguns Doutores, tivessem o contrario; salvo se a commum opinião dos Doutores, que depois delle screveram, for contraria.”
45 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia., São Paulo, 1907,
Conclui o eminente romanista: “É uma verdade incontestável o que diz o
conselheiro Ribas: “o conhecimento profundo e completo do direito pátrio é
impossível sem que se firme nas largas bases do direito romano”. E o conselheiro
Candido de Oliveira, que é um ornamento da jurisprudência, e cuja palavra se
reveste sempre de respeitável autoridade, faz a este ponto criteriosa observação
que aqui merece integralmente transcrita como remate a este capítulo: “Nem
envelhece o conselho de um dos redatores do Código (francês) recomendando ao
aspirante dos cargos de magistratura a profunda meditação sobre o imortal
monumento de sabedoria e equidade” 46.
Exemplo marcante do acerto das afirmações de PORCHAT é encontrado em
M. I. CARVALHO DE MENDONÇA que, na sua clássica obra Contratos no Direito
Civil Brasileiro, escrito antes do Código de 1916, se reporta aos textos das
Ordenações, dos Códigos modernos já vigentes, aos textos do direito romano, bem
como à Glosa e à opinião dos Doutos. Para exemplificar, basta a leitura dos trechos
relativos à aceitação da doação feita ao ausente; a crítica sobre o sistema da
insinuação, que passa, por obra do direito intermédio, de simples registro, para
verdadeira pesquisa da vontade do doador e, finalmente, a sua inutilidade ante a
adoção da transcrição para transferência da propriedade e publicidade perante
que eram invocados antigos textos já obsoletos, que a evolução da sociedade não mais admitia, e ficou mantido o elemento puro e universal do direito romano, esse que, atravessando os séculos, e adaptando-se às circunstâncias várias, foi recebido e proclamado por quase todos os códigos dos países cultos.”
46 PORCHAT, Reynaldo, Curso Elementar de Direito Romano, Duprat & Cia. São Paulo, 1907,