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Psicanálise e a Arte. Noemi Moritz Kon

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Psicanálise e a Arte

Noemi Moritz Kon 01.08.2004

O vínculo complexo e delicado que liga os campos da psicanálise e da arte tem sido insistentemente examinado na atualidade [1]; e esse fato, não representa, necessariamente, uma novidade.

Freud, desde os escritos inaugurais da psicanálise, apoiou-se em produções artísticas, principalmente em imagens literárias, a fim de dar corpo e forma para as próprias criações. É desnecessário reafirmar, aqui, as presenças das obras e das figuras de Shakespeare, Cervantes, Goethe e Schelling, como disparadoras de diálogos fecundos e, até mesmo, como pilares importantes da aventura psicanalítica. Para qualquer estudioso da psicanálise, mesmo para aqueles que se iniciam nesse percurso, é, no mínimo, intrigante, a quantidade de citações e de correspondências que ligam a obra freudiana e seu criador, à criação artística e aos próprios poetas: Mann, Schnitzler, Rolland, Zweig, entre outros, foram tomados, por Freud, como interlocutores privilegiados. Não deve, também, passar desapercebido, o fato de que inúmeros comentadores tenham realçado as qualidades literárias da escrita freudiana, comparando-a à dos melhores escritores de língua alemã [2] . Nesse sentido, não se trata de mera curiosidade o fato de que o único prêmio oficial recebido, em vida, por Freud, tenha sido o Prêmio Goethe, da cidade de Frankfurt, em 1930, honraria que lhe foi concedida como escritor e cientista "em igual medida" [3] . Chama, também, a atenção dos estudiosos, o grande número de artigos escritos por Freud que, direta ou indiretamente, tomam uma obra de arte ou a vida de um artista, como tema a ser desenvolvido para que se alcance a formulação de algum conceito psicanalítico [4] . Ou seja, são muitos os fios que podem ser puxados desse tecido que liga Freud aos artistas e a suas produções.

Todos estes dados dariam, por si só, razões suficientes para que um estudo aprofundado das relações que envolvem a psicanálise, ou ao menos a figura de seu criador, com as artes, fosse empreendido. Mas, além da constatação dos inúmeros vínculos entre estas duas áreas de construção de conhecimento, um outro aspecto pede nossa atenção: a profunda ambigüidade que rege esta relação.

A atitude do psicanalista vienense frente a estas obras e autores não permanece sempre a mesma. Ao contrário, oscila da total admiração e entrega, numa cumplicidade radical com os autores e suas obras, até alcançar uma visão oposta a esta, na qual o artista é tratado como um rival arrivista vulgar, que acoberta ou trai a verdade, em causa própria, encontrando através deste procedimento sucesso e popularidade. Mas esta atitude oscilante recorrentemente adotada por Freud no decorrer de toda sua obra, na qual alterna rancor acusatório à redescoberta maravilhada de um parentesco negado ou desconhecido, pode ser depreendida, diferencialmente, quando ele constrói uma teoria geral do

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2 fazer artístico ou, quando toma por interlocutores privilegiados alguns artistas específicos e suas obras.

Em Escritores Criativos e Devaneio (1908[1907]) [5] , artigo que tem como tema central a obra literária e em que o psicanalista tece sua teoria geral sobre o fazer artístico, Freud compara o trabalho do escritor criativo ao brincar da criança. Compreende as lembranças infantis da vida do escritor como o material originário da obra, supondo que "a obra literária, como o devaneio, é uma continuação, ou substituto, do que foi o brincar infantil" [6] . Acrescenta que, tanto no brincar, como na criação literária, teríamos a criação de um mundo próprio, com o rearranjo dos elementos da realidade para que esta se conformasse ao desejo de seu criador. Aponta, ainda, que a antítese do brincar e, portanto, da obra do escritor criativo, não é o sério, mas sim, o real. Ambos - criança e artista - criam um mundo de fantasia, impulsionados por desejos insatisfeitos que buscam plena realização, mesmo que de maneira disfarçada, efetuando, para tanto, "uma correção da realidade insatisfatória". Em Um Estudo Autobiográfico (1925), ainda ancorado nesta vertente de desconfiança, Freud amplia suas considerações relativas ao trabalho do artista, comparando-o tanto à fabricação do sintoma neurótico como do sonho, que teriam por função o afastamento da realidade insatisfatória e a busca, concomitante, de amparo no mundo da imaginação. Se em O Mal-Estar na Civilização (1930[1929]), Freud apresenta uma noção adocicada do fazer artístico, equiparando a arte a uma ligeira e fugaz narcose, tornando-a apenas uma consolação fugidia contrária à prática cirúrgica psicanalítica, que trabalha a "ferro e igni" a serviço da realidade, em O Estranho (1919), esta visão ganha tonalidades ainda mais vigorosas: o psicanalista investe o artista - e sua obra - de uma função insidiosa e mistificadora, papel contrário ao do psicanalista que trabalharia, pautando-se nas forças das luzes, na busca da verdade. O contraste estabelecido, nesta vertente da relação entre psicanálise e arte, é aquele que opõe as forças das sombras mistificadoras - o poder do artista - e as forças das luzes desveladoras - próprias do trabalho psicanalítico.

Mas uma alternativa diferente é adotada por Freud frente a essa relação quando se trata de suas análises sobre obras e autores específicos. Tal é o caso, por exemplo, de Delírios e Sonhos de Gradiva de Jensen (1907[1906]) [7] e de seu encontro com Leonardo da Vinci e Michelangelo [8] . Nestes momentos, o artista é colocado no papel de cúmplice antecipador do psicanalista, ao exercer a função de desvelamento e desmistificação, seguindo em seu desejo pelo conhecimento, em seu elogio à criação, à paixão, e a todas atitudes selvagens que não poderiam passar pela porta estreita do saber.

Tudo se passa, assim, como se não fosse possível uma via de comunicação direta entre as diferentes versões da reflexão estética efetivada por Freud, ou seja, entre suas posições globais sobre a essência da arte e do imaginário e seus encontros singulares, quando trava uma cumplicidade furtiva. A perspectiva geral freudiana sobre a arte e o artista e seus encontros particulares com estes refletem, nesse sentido, proposições inconciliáveis.

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3 Ora, parece, então, importante determo-nos na densa ambigüidade presente nas teorias estéticas freudianas, e que se traduz na construção de proposições tão contrastadas, a fim de entender, mais claramente, as questões implícitas em tal conduta.

Monique Schneider, em "Freud, La Réalité et la Résistance à l'imaginaire" [9] , permite que se compreenda tal postura ambivalente de Freud, marcada pela presença concomitante de atração e de repulsa com relação à produção artística, como efeito de um deslocamento de uma posição oscilante frente ao estatuto da fantasia e do imaginário em sua própria disciplina. Ou seja, o confronto de Freud com a figura do artista reflete, deste ponto de vista, uma questão muito mais ampla e que se refere a uma problemática interna à metapsicologia psicanalítica: "E por um estranho efeito de espelho", escreve Schneider, "Freud não pôde se interessar pelo efeito produzido pelo artista sem apresentar, da mesma maneira, uma das dimensões do trabalho psicanalítico; como se a reflexão sobre o imaginário estético servisse a Freud como um álibi, que lhe permitiria projetar sobre a pessoa do artista um dos poderes detidos pelo psicanalista, poder que se acha, de alguma forma, desconhecido, ou considerado como puramente instrumental. A decisão tomada repetidamente, por Freud, de estudar a obra de arte como uma produção fantasmática comparável a todas as outras, se daria, então, como uma defesa contra um dos poderes da arte: reenviar ao psicanalista uma visão recusada dele mesmo. Ao olhar a obra de arte como um material psicanalítico privilegiado, como um objeto, ele se protegeria deste olhar. Mas a caminhada de Freud é, freqüentemente, contrária a uma aplicação rígida de uma decisão prévia e assistimos neste seu percurso, quando [por exemplo] da análise sobre Leonardo da Vinci, a uma inversão no sentido do olhar: após proposições guerreiras que anunciam a decisão de deitar a obra sobre a mesa de operação e de dirigir sobre ela o projetor analítico, é à iluminação da obra por ela mesma à qual Freud se deixa finalmente conduzir, e é numa posição de contemplação, fascinado por um olhar que recusa "fechar os olhos", que Freud descobre, em espelho, esta força do imaginário que lhe restitui uma das dimensões - dimensão insistente e renegada - de si mesmo" [10] .

Nesta perspectiva, não resta alternativa que não a de nos deixarmos iluminar pela potência estética, acatando esse poder implícito à atividade psicanalítica, abandonando uma postura restritiva contida na visão freudiana da obra de arte - quando ele a entende como uma produção fantasmática, tal qual o sonho ou o sintoma, a serviço de um encobrimento de um conflito anterior, este sim original -, acumpliciando-nos à experiência artística, admitindo esta força do imaginário, permitindo, enfim, a ampliação de nossa compreensão sobre a própria disciplina psicanalítica. Para tanto é necessário renunciar a uma vertente tão insistentemente valorizada em nosso meio, quando se trata da busca, por parte de psicanalistas, de um entendimento da criação artística, - e afiançada, devemos frisar, por algumas aproximações empreendidas pelo próprio Freud - que é a de constituir psicopatobiografias, que teriam como intuito, ou pretensão, compreender a obra de arte como sintoma da vida do artista. Cabe a nós, inverter o sentido desse vetor, e, assim, utilizar, ainda como psicanalistas, dos conhecimentos permitidos pelo fazer

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4 artístico e pela estética, para a transformação de nosso entendimento da teoria e da prática psicanalíticas.

Quanto às indagações metapsicológicas que o mal estar frente ao fazer artístico e à estética trazem para a psicanálise, vimos que elas se referem ao estatuto admitido, nesse campo, para a fantasia e para o imaginário. Da postura que adotarmos relativamente a esta questão, surgirão práticas psicanalíticas muitíssimo diversas. É possível então, apontarmos para o fato de que é da percepção da consistência da ambigüidade freudiana frente à produção artística que poderemos entender a existência, tanto de uma prática psicanalítica que poderíamos denominar de "arqueológica", que pretende encontrar sob as formações inconscientes uma essência anterior e latente que lhes garante o sentido, como, numa alternativa diversa, um fazer psicanalítico criador que se apóia numa atualidade absoluta, em que os sentidos e significados são gerados no próprio encontro psicanalítico, numa gênese sempre reiterada de realidades singulares.

É claro que a assunção da fantasia na disciplina freudiana é uma marca inaugural de seu percurso. É, já na passagem da teoria da sedução freudiana para a sua concepção das fantasias de sedução, ou seja, da transição da crença em um acontecimento traumático para uma fantasia desejosa, de um passado reencontrado para um pretérito-presente construído, que podemos ver um embate que não foi jamais completamente superado. Se Freud não pôde mais acreditar em sua Neurótica [11] , se não lhe era mais possível sustentar a sedução como fato, o psicanalista, em toda sua obra, só fez, por meio de suas hipóteses filogenéticas, atrasar o marco traumático, ancorando-o numa história (ou pré-história) material, - mesmo que mítica, a nossos olhos - podendo, só assim, apaziguar-se frente a suas especulações. Ou seja, persistiria, em toda a construção da teoria freudiana, a necessidade de um apoio numa realidade factual, como forma de minimizar a potência fantasmática criadora de realidades, fundante, também, da própria teoria psicanalítica. Escreve Viderman: "[Freud] não pôde abandonar o solo firme, a certeza dos fatos pela miragem dos fantasmas, nem reconstituir seu edifício sobre essas areias movediças" [12] . Freud permanece, assim, ancorado numa "dupla navegação" [13] , que o leva, às vezes, em direção ao imaginário e, às vezes, em direção a uma realidade incansavelmente postulada.

É essa mesma ambigüidade - a da assunção da fantasia, mas em função da possibilidade que ela guarda, como uma vivência enquistada e esquecida de um acontecimento real - e seu deslocamento, que impulsionam o dilema e o confronto de Freud com o artista e suas produções. É esse mesmo dilema que segue impulsionando, tantas vezes, os psicanalistas na atualidade: frente ao temor a essa força do imaginário, na manutenção de uma negação dessa liberdade criadora, o fazer psicanalítico deseja-se, então, arqueológico; e aí, sim, o psicanalista pode seguir tranqüilo em seu trabalho, imaginando-se como aquele que, simplesmente, desvenda, abre realidades, histórias, sintomas, sonhos e obras, como se estes apenas fossem cofres que abrigassem tesouros, estes sim originais, há muito enterrados. Numa tal perspectiva, a fantasia só é aceita na crença de que ela permite o acesso ao veio puro e límpido

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5 guardado no interior de uma realidade, esta sim, primeira e verídica. A criação fantasmática só é admitida, então, - e depois de amansada - como emblemática de uma situação original, que lhe subtende e lhe dá o sentido.

Ora, é, portanto, contra a noção geral de latência - que nos impele a pensar numa essência a ser desvendada - que nos propomos, quando admitimos, sem ambigüidades, a força criadora do imaginário. O fazer psicanalítico perde, então, o seu caráter de tradução de sentidos dissimulados, tornando-se, assim, um fazer criador, que não está para decifrar um código secreto de um conhecimento presente, mas esquecido, mas, sim, para criar, num encontro psicanalítico fundante, os múltiplos sentidos de realidades singulares inéditas.

A aproximação com a produção artística atual, e com a crítica que lhe segue, pode nos permitir, então, que vislumbremos, como que em câmera lenta, este gesto criador presente, mas tantas vezes temido, na própria experiência psicanalítica.

É Paul Klee - pintor suíço - quem nos permite ressaltar sinteticamente o que viemos propondo até então. Diz ele: "A arte não reproduz o visível, faz visível" [14] . A relação psicanalítica pode, ao nosso ver, se pautar nesta mesma visão, ao se comprometer com a fantasia, numa estética própria, colocando em xeque uma linhagem científica que se afiança na crença de desocultamento de leis gerais presentes, desde sempre, no mundo e a nós destinadas. O fazer psicanalítico pode ser então assumido em sua responsabilidade criadora, respondendo por seus próprios atos, retomando sua função intrínseca, que é a de dar existência a algo que não teria vida sem este seu gesto de criação.

Assim, se é possível pensar em uma psicanálise poética ou uma poética psicanalítica, pode ser relevante adentrar os caminhos que a estética atual tem procurado apontar. Nesse sentido, parece importante salientar, apenas como um apontamento inicial do que este trabalho de interface pode permitir, a contribuição pontual de dois estetas contemporâneos, Luigi Pareyson e Ernst Gombrich, que nos auxiliam a rever algumas posições psicanalíticas com relação à função da arte e do artista e que podem, no mesmo gesto, ampliar nossa visão quanto ao próprio ato psicanalítico.

O conceito de arte como formatividade [15] , formulado por Pareyson, é de grande valia para pensarmos tanto o trabalho artístico quanto o fazer psicanalítico.

A arte, na visão de Pareyson, teve, na cultura ocidental, três definições mais conhecidas: ora a arte foi concebida como fazer, ora como um conhecer, ora como um exprimir. Estas três concepções da arte contrapõem-se e se combinam de diversas maneiras na história ocidental, mas permanecem como suas principais definições. Segundo Pareyson, na Antiguidade prevalecia a concepção de obra enquanto fazer. No romantismo, a idéia da arte enquanto expressividade é que teria prevalecido, "a beleza da arte teria consistido não na adequação a um

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6 modelo ou a um cânone externo de beleza, mas na beleza da expressão" [16] . Em todo o decurso do pensamento ocidental apresenta-se, recorrentemente, a concepção da arte enquanto conhecimento, enquanto visão de realidade, quer de uma realidade sensível, quer de uma realidade metafísica superior, quer de uma realidade espiritual íntima e profunda. Esta concepção - de arte enquanto conhecimento - teve lugar privilegiado no Renascimento.

Para Pareyson, em sua concepção de arte como formatividade, a arte é também fazer, conhecer e exprimir, mas o é enquanto forma, "organismo que vive por conta própria e contém tudo que deve conter" [17] . Na arte "a realização não é somente um "facere", mas propriamente um "per-ficere", isto é, um acabar, um levar a cumprimento e inteireza, de modo que é uma invenção tão radical que dá lugar a uma obra original e irrepetível. Mas estas são as características da forma, que é, precisamente, exemplar na sua perfeição e singularíssima na sua originalidade. De modo que, pode dizer-se que a atividade artística consiste propriamente no "formar", isto é, exatamente num executar, produzir e realizar, que é, ao mesmo tempo, inventar, figurar, descobrir" [18] .

A definição de arte, oferecida por Pareyson, auxilia-nos, assim, a precisar o que entendemos pelo fazer psicanalítico: "A arte é também invenção. Ela não é execução de qualquer coisa já ideada, realização de um projeto, produção segundo regras dadas ou predispostas. Ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer. A arte é uma atividade na qual a execução e invenção procedem pari passu, simultâneas e inseparáveis, na qual o incremento da realidade é constituição de um valor original. Nela concebe-se executando, projeta-se fazendo, encontra-se a regra operando, já que a obra existe só quando é acabada, nem é pensável projetá-la antes de fazê-la e, só escrevendo, ou pintando, ou cantando é que ela é encontrada e é concebida e é inventada" [19] .

A clínica psicanalítica deve guardar em si o parentesco com a atividade artística: sendo um fazer que se dá no próprio ato de feitura, sendo invenção de valores originais, criação de uma nova realidade. Só no fazer é que a psicanálise é encontrada, concebida e inventada. Não se trata mais da descoberta de subterrâneos enterrados, mas da criação de uma multiplicidade de sentidos, da construção de novas realidades.

São concepções estéticas como esta, que nos incitam, cada vez mais, a nos aprofundar no campo limite da arte e da psicanálise. Neste sentido, é necessário deixar de lado a posição freudiana reducionista frente à criação artística, - e de muitos de seus continuadores na atualidade - que procura, simplesmente, demonstrar que o artista tem uma capacidade especial de elaboração de sua sexualidade infantil e de suas fantasias, e que sua obra é, justamente, a concretização e o veículo sublimatório desta elaboração. Nessa visão, ao psicanalista bastaria, portanto, traduzir e revelar tais fantasias, descascando-as, por assim dizer, retirando das formas de aparência o doce fruto. Nossa intenção é, como viemos sinalizando até aqui, contrária a esta, pois visamos a direção oposta, ou

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7 seja, aquela que nos leva a admitir as contribuições das artes para pensarmos as encruzilhadas do fazer psicanalítico.

Ernst Gombrich é outro pensador que nos abre uma brecha para este trabalho de interface. Em "Les théories esthétiques de Sigmund Freud" [20] , Gombrich indica uma transformação da visão sobre o trabalho artístico nas teorias estéticas que precederam às de Freud e, concomitantemente, quais teriam sido os motivos para que as teorias do psicanalista sobre a arte fossem aceitas pelos artistas.

A primeira teoria estética que se impôs ao mundo ocidental, segundo Gombrich, era inspirada nos filósofos da antiguidade, sendo baseada na metafísica platônica, em que o artista teria a faculdade de perceber, para além do universo sensível, um ideal de beleza divina, na qual suas criações se inspiravam. Com Edmund Burke, no século XVIII, a concepção mística da arte é deixada de lado, sobretudo na Inglaterra, tendo, os estetas, tomado o lado psicológico para entender a criação artística. A estética estabelece, então, suas bases na biologia, sendo o charme corporal a origem da sensação de beleza. No decorrer dos séculos XVIII e XIX, os teóricos da estética abandonam seus critérios objetivos e recorrem à subjetividade como base de julgamento. Na poesia, na música e nas artes plásticas, a experiência pessoal do criador passa a ser o principal centro de interesse. A obra de arte que não se apóia na experiência vivida será tomada por falsa, uma fabricação enganosa daquele artista que se esforça por fazer crer que ele provou uma emoção, embora ele simplesmente estivesse à procura de um efeito.

É assim que a obra de Freud suscita o interesse dos meios artísticos e críticos, que já na época tinham a tendência de considerar a obra de arte como expressão de uma consciência subjetiva que comportava uma certa afinidade com as produções oníricas e que carregava em si traços das fantasias inconscientes de seu autor [21] .

Mas, se é possível admitir uma contribuição freudiana para uma teoria estética [22] é também verdade que o estudo das obras de arte impuseram a Freud uma questão importante. Utilizo aqui as palavras de Gombrich para apontar tal interrogação: "Constataremos que, nesta obra sobre o chiste [23] , a análise de Freud desemboca num terreno que ele mesmo considera como escapando ao domínio da competência da psicanálise, aquele dos dons do artista e das técnicas de sua arte. Podemos, no entanto, entrever a razão que impedira Freud de ir mais adiante neste caminho: é que qualquer tentativa de tradução de um chiste está fadada ao fracasso. Utilizando uma terminologia tradicional, diríamos simplesmente, que o chiste interdita qualquer distinção entre a forma e o conteúdo. E é, precisamente, esta separação que Freud pesquisava em seu trabalho clínico. Ele considerava a si próprio como um tradutor capaz de interpretar (...) o conteúdo secreto de seus sonhos e de seus sintomas. Interpretá-los significaria simplesmente lhes dar uma forma verbal. Mas a teoria da arte, que Freud comparava a uma teoria do chiste, mostra precisamente a total impossibilidade de uma interpretação deste tipo: o que "diz" uma obra de arte jamais poderá ser dito por palavras" [24] .

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8 A argumentação de Gombrich é certeira: aponta para a vertente conteudística de Freud, sua procura de uma verdade, de sua tentativa de promover um resgate de um sentido fundado em um conflito pulsional presente por detrás da forma, desconsiderando-a, restringindo seu papel a de um mero veículo do conteúdo já existente anteriormente. Mas o fazer psicanalítico não pode ser confundido com um ato de tradução: as formações do inconsciente, conforme sua própria designação, têm sua vida pela forma de sua construção. Nesse sentido, a visão freudiana sobre a criação artística é claramente restritiva: ao procurar uma essência no conteúdo, em um conflito anterior, por detrás da forma de presença, a interpretação freudiana retira desta última seu valor, limitando-a, dando a ela o estatuto de mero suporte da significação que, nesta perspectiva, a corporificou. Mas, como bem diz Frayze-Pereira, "a forma não tem um significado, ela é um significado" [25] .

A crítica de Gombrich leva-nos, portanto, a repensar o lugar do psicanalista, que não pode mais se permitir habitar aquele antigo espaço do exegeta, que pretende tudo explicar, e que, através de suas interpretações, descobre o sentido oculto contido, desde sempre, na palavra, na fala, na obra. Algo permanece enquanto forma e é nela mesma que reside sua verdade; o sentido não pode ser reduzido ao conteúdo. Não somente o que "diz" a obra de arte jamais poderá ser expresso por palavras, mas também o que é "dito" em sonhos, em sintomas, não poderá ser falado. A obra não se dá por inteira... infinitas formações de sentido a criam e, concomitantemente, derivam dela, a perpassam. Se existe a necessidade de uma determinada forma, não é porque nela está guardado o conhecimento, mas sim porque foi nela, nesta específica forma, que este saber foi engendrado. E é numa relação transformadora com a obra, e também com nossos sonhos, sintomas e fantasias, que se instaura essa multiplicidade de sentidos. O que hoje nos aparece enquanto sentido dado, não estava lá sem nossa presença, ou talvez estivesse enquanto virtualidade, uma possibilidade dentre tantas outras. O a posteriori freudiano ganha assim sua potência mais radical, marcando um deslizamento da noção de tempo, de causalidade e, portanto, promovendo a instauração de uma nova forma de inteligibilidade. A própria noção de inconsciente é transformada: ele não é sentido ocultado, é, antes, uma forma de criação de sentidos. O sentido, ou melhor, os sentidos, não estão presentes enquanto essência desejante, a-histórica e imutável da obra, do sintoma, do sonho... mas se permitem presentes, se apresentam, são criados, construídos, numa relação pautada em uma gênese sempre continuada.

Nosso objetivo aqui, portanto, ao apontar a reiteração e a ambigüidade que regem o vínculo de Freud, e de muitos de seus continuadores, com a arte e com os artistas, como resultado de um deslocamento de seu dilema frente ao estatuto da fantasia e do imaginário em sua própria obra, provém de um desejo de ressaltar a potência criadora presente e instauradora do fazer psicanalítico. Voltarmo-nos para o fazer artístico e para as formulações estéticas, mantendo-nos ainda como psicanalistas que guardam sua especificidade, pode nos permitir aberturas inéditas ao nosso olhar e, por conseguinte, ao nosso fazer. É à clínica psicanalítica que se dirige, em última instância, esse nosso pensamento, quando nos

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9 propomos a ela, trazendo, como marca de sua potência, o ato de coragem, que o próprio Freud protagonizou, mas não sustentou, ou seja, a admissão da fantasia, na forma de sua presença, como constitutiva de nossa existência e de nossa realidade. É, assim, em parceria e cumplicidade com aqueles que vêem ao nosso encontro, que poderemos gerar, se tivermos sorte e sucesso, vidas que não teriam existência sem este nosso gesto de criação.

Referências Bibliográficas

[1]-[2] Ver, a este respeito, por exemplo, Döblin, A., "Zum siebzigsten Geburtstag Sigmund Freud (No septuagésimo aniversário de Sigmund Freud, Almanach für das Jahr, 1927), Gay, P. (Sigmund Freud: um alemão e seus dissabores", in Sigmund Freud e o gabinete do doutor Lacan, Souza, P.C.(org.)), Muschg, W. ("Freud Escritor", La Psychanalyse, vol. V, reimpressão em Freud. Jugements et témoignages (R. Jaccard, ed.), PUF, 1976), Mann, T. ("Freud et l'avenir", Freud. Jugements et témoignages (R. Jaccard, ed.), PUF, 1976), Jones, T. (A Vida e a Obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1989, 3 volumes), Mahony, P. (On Defining Freud's Discourse, New Haven/London, Yale University Press, 1989), Flem, L. (O Homem Freud. O Romance do Inconsciente, Rio de Janeiro, Campus, 1993), entre outros.

[3] De Dr. Alfons Paquet, Secretário do Comitê do Prêmio Goethe em 26 de julho de 1930. Citado por Gay, P. em "Sigmund Freud: um alemão e seus dissabores", in Sigmund Freud e o gabinete do doutor Lacan, Souza, P.C.(org.), op. cit., p. 23.

[4] Não é o caso aqui de nos estendermos na relação de Freud com a arte e suas reflexões a respeito desta complexa questão. Muitos trabalhos tratam deste tema com a abrangência necessária. Mas, é necessário apontar para o fato de que podemos encontrar, recorrentemente, na obra freudiana, - desde seus inícios até seus trabalhos mais tardios - sua curiosidade e necessidade de entendimento quanto ao valor da arte e do trabalho do artista. Já em Estudos sobre a Histeria (1893-1895), Freud reconhece, em seu ofício, laços com a atividade poética. Em a Interpretação dos Sonhos (1900), o psicanalista legitima seus conceitos edípicos através de suas análises das tragédias gregas e da obra de Shakespeare. Em Os chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905), "Escritores Criativos e Devaneio" (1908[1907]) e "O Estranho" (1919), o tema da arte e o do trabalho do artista é central. Freud realiza, também, trabalhos mais específicos sobre alguns artistas, Delírios e Sonhos na 'Gradiva' de Jensen (1907), Uma lembrança Infantil de Leonardo da Vinci (1910) "Moisés de Michelangelo" (1914), "Dostoievski e o parricídio"(1928). O tema da arte é, também, retomado em textos de caráter mais geral como em O Futuro de uma ilusão (1927) e O Mal-Estar na Civilização (1930[1929]), bem como em artigos claramente vinculados à clínica psicanalítica, como "Terapia analítica", conferência XXVIII e "O caminho da formação dos sintomas", conferência XXIII, ambas pertencentes às Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (1916-1917). Outros tantos trabalhos de Freud são permeados por sua interlocução com a arte e a figura do artista; é possível encontrar, na

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10 tradução brasileira das obras de Freud, um apêndice que arrola suas obras que tratam da arte ou da estética como motivo central (vol. XXI, p. 247); só aí são vinte e dois textos. No índice de "Obras de Arte e Literatura" (vol. XXIV, p. 91-100), citados no decorrer de toda a obra do psicanalista vienense, temos pelo menos quatro centenas de menções. Enfim, basta ler a obra de Freud para se ter em mente que a arte e o artista estão insistentemente presentes em suas reflexões e que, se em muitas ocasiões estas obras e estes artistas lhe foram úteis para lhe afiançar suas próprias criações, de outro lado, estes lhe representaram também rivais, que já se assentavam em um terreno que ele supunha desbravar. Freud oscila entre a cumplicidade total até a desconfiança, passando da reverência ao desrespeito frente ao artista, a suas obras e à produção de conhecimento nelas implícitas. É importante, então, guardar que aquilo que marca a relação de Freud, e de sua psicanálise, com a produção artística e com a própria figura condensada do artista, é uma estranha familiaridade.

[5] Freud, S. - "Escritores Criativos e Devaneio" (1908[1907]), Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. IX, Rio de Janeiro, Imago, 1986.

[6] Freud, S. - "Escritores criativos e devaneio" (1908 [1907]), op. cit., p. 57.

[7] Freud, S. - Delírios e Sonhos de Gradiva de Jensen (1907[1906]), Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. IX, Rio de Janeiro, Imago, 1986, [8] Freud, S. - Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância (1910), Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XI, Rio de Janeiro, Imago, 1986 e O Moisés de Michelangelo (1913[1927]), Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII, Rio de Janeiro, Imago, 1986.

[9] Schneider, M. - "Freud, la Réalité et la Resistance à l'imaginaire", Topique, Paris, L'Épi (15), 1977.

[10] Schneider, M. - "Freud, la réalité et la résistance à l'imaginaire", op. cit., p. 122.

[11] Na famosa carta 69, datada de 21 de setembro de 1897, Freud faz uma importante confissão a Fliess: "Permita-me que te confie, sem rodeios, o grande segredo que no curso dos últimos meses me foi revelado paulatinamente: já não creio em minha Neurótica". Freud, S. - Los origenes del psicoanalisis, Madrid, Alianza Editorial, 1975, p.216. Este é um momento de virada na constituição da teoria psicanalítica, quando Freud teria abandonado sua crença em situações reais de abuso sexual sofrido, ainda na infância, por suas pacientes, passando à constatação de que estas situações seriam, em realidade, fantasias de sedução, que teriam sido produzidas imaginariamente por suas analisandas, como fruto de seus próprios desejos inconscientes.

[12] Viderman, S. - A construção do espaço analítico, São Paulo, Escuta, 1990, p. 25.

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11 [13] Expressão de M. Schneider em "Freud, la réalité et la résistance à l'imaginaire", op. cit., p.79.

[14] Klee, P. - "Schöpferische Konfession", in Tribune der Kunst und Zeit, vol. XIII, 1920. Citado por Geelhaar, C., in Paul Klee et le Bauhaus, Suíça, Editions Ides et Calendes, Neuchâtel, 1972, p.26.

[15] Pareyson, L. - Os Problemas da estética, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1989, p.32.

[16] Pareyson, L. - Os Problemas da estética, op. cit., p. 29. [17] Pareyson, L. - Os Problemas da estética. op. cit., p. 30. [18] Pareyson, L. - Os Problemas da estética. op. cit., p. 32. [19] Pareyson, L. - Os Problemas da estética. op. cit., p. 32.

[20] Gombrich, E. - "Les théories esthétiques de Sigmund Freud" in Vienne 1890-1938. L'apocalypse joyeuse, Paris, Editions du Centre Pompidou, 1986.

[21] Gombrich, E. - "Les théories esthétiques de Sigmund Freud", op. cit., p. 355-356.

[22] Mesmo nas poéticas contemporâneas é facilmente discernível a presença das idéias psicanalíticas. André Breton, em sua teorização do surrealismo, bem que tentou uma aproximação à teoria estética freudiana, na utilização de uma escrita automática, que se assemelha à livre associação, na tentativa de mimetizar a expressão inconsciente, por meio do paradigma do sonho.

[23] Gombrich refere-se aqui ao famoso ensaio de Freud intitulado "Os Chistes e sua relação com o inconsciente" (1905), Obras Completas de Sigmund Freud, vol. VIII.

[24] Gombrich, E. - "Les théories esthétiques de Sigmund Freud", op. cit., p. 363-364.

[25] Frayze-Pereira, J.A. - "Os limites da arte. Abertura para a psicologia", in Psicologia. Ciência e profissão, Brasília, Conselho Federal de Psicologia, Ano 14, n.1,2 e 3, 1994, p. 17.

Freud, S. - Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância (1910), Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XI, Rio de Janeiro, Imago, 1986 e O Moisés de Michelangelo (1913[1927]), Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIII, Rio de Janeiro, Imago, 1986.

Schneider, M. - "Freud, la Réalité et la Resistance à l'imaginaire", Topique, Paris, L'Épi (15), 1977.

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Sobre o Autor

Noemi Moritz Kon é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, e autora de Freud e seu Duplo. Reflexões entre Psicanálise e Arte, São Paulo, Edusp-Fapesp, 1996 e A Viagem: da Literatura à Psicanálise, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

Referências

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