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Revista Brasileira de Direito Civil

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Academic year: 2021

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ISSN 2358-6974

VOLUME 5

JUL

/SET 2015

Doutrina Nacional

/

Ana Carla Harmatiuk Matos

/

Débora Simões

da Silva

/

Ivana Pedreira Coelho

/ Judith Martins-Costa

/Paula Moura

Francesconi de Lemos Pereira

Doutrina Estrangeira

/

António Pinto Monteiro

Pareceres

/Ana Carolina Brochado Teixeira /Anna Cristina de Carvalho

Rettore

Atualidades

/ Paula Greco Bandeira

Vídeos e Áudios

/ Paulo Lôbo

Revista

Brasileira

de Direito

Civil

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APRESENTAÇÃO

A Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil tem por objetivo fomentar o diálogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas no âmbito do direito civil e de áreas afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e à experiência comparada, que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.

A RBDCivil é composta das seguintes seções:

 Editorial;

 Doutrina:

(i) doutrina nacional; (ii) doutrina estrangeira; (iii) pareceres;

 Atualidades;

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EXPEDIENTE

Diretor Gustavo Tepedino

Conselho Editorial Francisco Infante Ruiz

Gustavo Tepedino Luiz Edson Fachin

Paulo Lôbo Pietro Perlingieri

Coordenador Editorial Aline de Miranda Valverde Terra

Carlos Nelson de Paula Konder

Conselho Assessor Eduardo Nunes de Souza Fabiano Pinto de Magalhães

Louise Vago Matieli Paula Greco Bandeira Tatiana Quintela Bastos

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SUMÁRIO

Editorial

Diálogo entre fontes normativas na complexidade do ordenamento – Gustavo Tepedino

5 Doutrina nacional

Licença-parental e o enfrentamento da desigualdade de gênero no mercado de trabalho e âmbito familiar – Ana Carla Harmatiuk Matos e Débora Simões da Silva

Cessão da posição contratual: estrutura e função – Ivana Pedreira Coelho Como harmonizar os modelos jurídicos abertos com a segurança jurídica dos contratos? (Notas para uma palestra) – Judith Martins-Costa

Controvérsias sobre o âmbito de aplicação da lei do inquilinato nos contratos “built to suit” – Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira

9

Doutrina estrangeira

A indemnização por danos não patrimoniais em debate: também na responsabilidade contratual? Também a favor das pessoas jurídicas? – António Pinto Monteiro

123

Pareceres

Divergências doutrinárias e jurisprudenciais no Direito Sucessório: a sucessão do cônjuge no regime da separação convencional de bens e a sua concorrência com descendentes nos casos de filiação híbrida – Ana Carolina Brochado Teixeira e Anna Cristina de Carvalho Rettore

145

Atualidades

Ode às liberdades – Paula Greco Bandeira 161 Vídeos e áudios

A Posse no Direito Brasileiro – Palestra proferida pelo Professor Paulo Lôbo no II Congresso do IBDCivil

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Submissão de artigos

Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil

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EDITORIAL

Diálogos entre fontes normativas na complexidade do ordenamento.

Em recente evento na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), retomou-se o instigante debate acerca dos diálogos de fontes normativas.1 Em particular, o debate enfrentou as relações entre o Código

Civil, Código de Defesa do Consumidor e Tratados Internacionais (a Convenção de Montreal, por exemplo, com cláusulas limitativas de responsabilidade). Buscou-se perquirir o sentido hermenêutico da expressão Diálogos de fontes normativas, atribuída ao Prof. Erick James, para além de simples adorno retórico (como uma

árvore de Natal, lembrou o Ministro Herman Benjamim, em crítica à utilização

por vezes meramente decorativa, da expressão). O Ministro Ricardo Lorenzetti, Presidente da Corte Constitucional Argentina, trouxe atualíssima reflexão sobre o novo Código Civil Argentino, enquanto o Ministro Gilmar Mendes, do STF, relatou formidável casuística, a ser julgada pela Corte Suprema Brasileira, com repercussão geral já admitida, atinente à incidência de direitos fundamentais nas relações privadas.

Do ponto de vista da teoria da interpretação, mostra-se imprescindível que a pluralidade de fontes normativas não acarrete a ruptura do sistema, disperso em lógicas setoriais, em detrimento da unidade essencial ao próprio conceito de ordenamento. Nessa perspectiva, há de se criticar a preferência linguística pela expressão microssistema para designar núcleos normativos que, a despeito de suas características estatutárias e multidisciplinares, não podem ser interpretados de maneira autônoma, apartado dos valores comuns ao sistema jurídico, o qual, embora aberto e plural, mostra-se necessariamente unitário, no âmbito do qual a

1 O evento realizou-se nos dias 12 a 14 de novembro de 2015, no âmbito das atividades do Programa

de Pós Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a liderança da Profa. Claudia Lima Marques. Os trabalhos compreenderam os Encontros da Associação Luso-Alemã de Juristas – Tagung der Deutsch-Lusitanischen Juristenvereinigung – e da Rede Alemanha-Brasil de Direito do Consumidor no Brasil.

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Constituição da República se situa em posição hierárquica superior e prevalente. Em outros termos, para que se construa dogmática consentânea com a noção de sistema, revela-se imprescindível a utilização de teoria da interpretação única e não formalista, em que cada norma infraconstitucional seja aplicada conjuntamente com os princípios constitucionais. A reunificação do sistema só pode ser compreendida com a atribuição de papel proeminente e central à Constituição.

O desafio do jurista de hoje encontra-se em lidar com a complexidade dos núcleos normativos que caracterizam o sistema, composto pela Constituição, leis gerais, especiais, tratados internacionais, promulgados em experiências culturais e momentos históricos diferenciados. Diálogo de fontes, portanto – e jamais monólogo, em que se privilegiasse arbitrariamente o Código Civil ou as leis especiais. O Código Civil deve contribuir para tal esforço hermenêutico, não devendo o intérprete deixar-se levar por eventual sedução de nele imaginar microclima de conceitos e liberdades patrimoniais descomprometidas com a legalidade constitucional. Nessa esteira, a solução para as controvérsias do caso concreto nunca dependerá de regra isoladamente considerada, devendo-se, ao revés, ter em conta o ordenamento jurídico como um todo, com seus valores e princípios fundamentais. Do mesmo modo, o Código de Defesa do Consumidor há de ser compreendido como expressão de tutela da pessoa humana no mercado de consumo, a partir dos fundamentos e objetivos fundamentais da República (C.R., arts. 1º e 3º). Os princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade social e da igualdade substancial informam, nessa direção, a proteção do consumidor (C.R., arts. 5º, inciso XXXII; 170, V), como expressão da tutela da pessoa humana em situação de particular vulnerabilidade. Pela mesma ordem de fundamentos, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor não podem ser considerados diplomas contrastantes, senão complementares, no âmbito da complexidade do ordenamento, instrumentos para a promoção da solidariedade e do personalismo constitucionais.

O princípio da vulnerabilidade surge, então, como critério de demarcação da incidência de ambos os diplomas, autorizando-se interpretação funcional do conceito jurídico de consumidor. Torna-se, assim, possível proteger, ao lado das pessoas físicas, pequenos agricultores ou empreendedores individuais, por

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situam comprovadamente em situação de vulnerabilidade. Esta tem sido, de resto, a linha seguida, com argúcia, pelo Superior Tribunal de Justiça, que promove a unidade do ordenamento, de modo a “garantir a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas hipóteses em que a parte, pessoa física ou jurídica, apesar de não ser tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade” (STJ, AgRg no AREsp 601.234/DF, 3ª T., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julg. 12.5.2015. No mesmo sentido: STJ, AgRg no AREsp 415.244/SC, 4ª T., Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julg. 7.5.2015).

Em outras palavras, sem prejuízo da afirmação da doutrina finalista, que preserva o conceito jurídico de consumidor, em princípio, para pessoas físicas não profissionais, o finalismo funcional haverá de permitir expandir ou reduzir o espectro de incidência do CDC, de acordo com a identificação de situações concretas de vulnerabilidade, como ocorre, com frequência, com o pequeno agricultor ou pescador que comercializa produtos ou serviços para a sua subsistência. O mesmo critério funcional deve ser adotado para a solução de matérias reguladas no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, como a revisão contratual (arts 317 e 478, CC; art. 5º, VI, CDC); a desconsideração da personalidade jurídica (art. 50, CC; art. 28, CDC); o contrato de transporte (art. 732, CC); e assim por diante. Mostra-se eloquente, nesse particular, a disciplina atinente aos vícios ocultos. O art. 445 do Código Civil limita as ações redibitórias ao prazo decadencial, que se inicia com o surgimento do vício embora limitado no tempo (até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis). Já o Código de Defesa do Consumidor assegura a proteção do adquirente do produto e serviço a partir do “momento em que ficar evidenciado o defeito” (CDC, art. 26, § 3º). Inicialmente, a jurisprudência limitava a proteção do consumidor aos prazos contratuais de garantia, sem critério bem definido para tal restrição. Posteriormente, contudo, a doutrina – cf. Leonardo Roscoe Bessa, Vícios dos produtos: um paralelo entre o CDC e o Código Civil, São Paulo: RT, 2005 (tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da UERJ) – e a jurisprudência passaram a desenvolver o conceito de vida útil dos produtos, dentro da qual tem-se a legítima expectativa de proteção contra vícios de qualquer natureza, independentemente do prazo de garantia. Nessa direção, o entendimento do STJ: “o Código de Defesa do Consumidor, no § 3º do art. 26, no que concerne à

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garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual. Com efeito, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se ter-sempre em vista o critério da vida útil do bem” (REsp 984.106/SC, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 4.10.2012).

Em última análise, o diálogo de fontes normativas, nacionais e transnacionais, deve representar técnica hermenêutica destinada à harmonização do sistema, não à sua fragmentação. A partir dos valores constitucionais e da dogmática construída pelo direito civil ao longo de sua história, o Código de Defesa do Consumidor encontra justificativa axiológica voltada para a busca da diminuição das desigualdades e das assimetrias informativas. Trata-se de esforço hermenêutico em favor da pessoa humana e de suas relações existenciais, ponto de partida e de chegada da legalidade constitucional.

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SEÇÃO DE DOUTRINA:

Doutrina Nacional

LICENÇA-PARENTAL E O ENFRENTAMENTO DA DESIGUALDADE DE GÊNERO NO MERCADO DE TRABALHO E ÂMBITO FAMILIAR

Ana Carla Harmatiuk Matos Doutora pela Universidade Federal do Paraná (2003). Mestra em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1999) e mestra em Derecho Humano pela Universidad Internacional de Andalucía (1997). Tuttora Diritto na Universidade di Pisa- Italia (2002). Professora na graduação, mestrado e doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná . Vice-Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Professora de Direito Civil, de Direitos Humanos e de Novos Direitos. Advogada. Diretora da Região Sul do IBDFAM. Vice-Presidente do IBDCivil. Autora de artigos e livros jurídicos.

Débora Simões da Silva Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal do Paraná.

RESUMO: O presente artigo tem o escopo de apresentar a licença-parental como

alternativa à licença- maternidade, no intuito de abordar criticamente a paternidade colaborativa, buscar a igualdade no seio familiar e contribuir à superação da desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Para tanto, aborda fundamentos empíricos e teóricos. Conclui-se, ao fim, que embora a licença-parental não esteja prevista legislativamente, é possível aplicá-la por analogia às experiências de homoparentalidade.

PALAVRAS-CHAVE:Desigualdade de gênero; licença homoparental; licença-parental;

paternidades colaborativas.

ABSTRACT: The following article aims to present the parental leave as an alternative

to the maternal leave, with a view to advocating collaborative paternity, as well as equality within the family, contributing to the overcome of gender inequality in the

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labour market. With this purpose, it uses empirical and theoretical analysis. It concludes that, even though parental leave is not the law, it is possible to apply it in analogy to homoparenthood experiences.

KEYWORDS: Gender inequality; homoparental leave; parental leave; collaborative

paternity.

SUMÁRIO: Introdução – 1. A divisão sexual do trabalho doméstico, reprodutivo e

produtivo – 2. Breves notas sobre a Licença-Maternidade – 3. Análise acerca da Licença- Parental – 4. As possibilidades da Licença Homoparental – 5. Conclusão.

Introdução

A sociedade brasileira encontra-se em um período de transição entre o arcaísmo social exacerbado no que concerne às temáticas de gênero, e a prospectiva de igualdade material, pela gradual desestabilização desse posicionamento majoritário. Se, antigamente, contentava-se com a igualdade formal, em privilégio de minorias, denegando-se direitos fundamentais basilares ao restante da sociedade, busca-se, por ora, concretizar a abstração dos comandos normativos, o que exige transformações substanciais tendentes ao atendimento dos vulneráveis.

Dessa maneira, a igualdade que se almeja é a igualdade plena, que enseja a inclusão de minorias de forma “desigual” para o pleno alcance da igualdade fática.2

Contemporaneamente, tenta-se cumprir esses preceitos através da inserção plena da mulher no mercado de trabalho. Este movimento, ainda inacabado, tem o potencial de confrontar paradigmas impostos social e culturalmente, sustentados pelo acesso pouco democrático aos espaços públicos e privados em razão de aspectos como sexo e gênero.

Por força de construções históricas, à mulher eram imputados deveres considerados femininos, em sua égide, abarcando as tarefas domésticas e a criação

2 PIMENTA, José Roberto Freire. Aspectos processuais da luta contra a discriminação na esfera

trabalhista. A tutela antecipatória como mecanismo igualizador dos litigantes trabalhistas. In:

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da prole. Toda atividade que detivesse esse caráter seria, indubitavelmente, excetuada do âmbito de atuação masculino.

A partir das lutas do movimento feminista, foi possível dinamizar essa construção social, e promover um embrionário rompimento do modelo patriarcal e tradicional de família. Dessa forma, as responsabilidades familiares encontram-se em momento de reinvenção, haja vista que dentro da seara familiar pode-se perceber, gradativamente, a corrosão dessa divisão, e, da mesma maneira, atesta-se a abertura da esfera pública.

Em que pesem os avanços significativos referentes à questão de gênero, ainda predominam ideais ultrapassados. O principal exemplo é a participação feminina no mercado de trabalho, por conta da falta de condições dignas de trabalho para as mulheres, que detêm da rotina de dupla e de tripla jornada de trabalho, e aos papéis engessados por formulações de gênero.

Nessa vertente, examina-se que as únicas esferas em que as mulheres computam melhores indicadores, na realidade brasileira residem na área da educação (76,1%) e dos serviços domésticos (93%). No entanto, ainda que detenham mais anos de estudos, apresentam menores taxas de participação no mercado de trabalho, menores salários, condições trabalhistas precárias e estão sujeitas à segregação e assédio moral dentro do ambiente profissional.3

Corroborando essa afirmação, averigua-se que a média nacional de remuneração masculina com ensino superior completo é de R$ 5.416,66, em 2010, enquanto que a feminina, nas mesmas condições escolares, em R$ 3.207,28, no mesmo ano.4

Ademais, verificou-se que, em que a pese essa diferença salarial, as mulheres, no ensino superior, em 2012, representavam 57,2% dos matriculados e 61,2% dos concluintes de cursos de graduação. No ensino profissional, por seu turno, a população feminina detinha da maioria entre os inscritos (53,8%) e também entre os concluintes (54,5%) dos cursos profissionalizantes.5

3 BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Relatório

Anual do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero 2010/2011. 1ª Impressão. Brasília:

Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2011. 4 Idem.

5 BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Relatório Anual

Socioeconômico da Mulher. 1ª Impressão. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, março

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Destarte, há marginalização feminina no mercado de trabalho por força do perpetuamento de uma cultura machista e segregacional, em cujo modelo de família ainda reside a divisão de papéis familiares instituídos por força do gênero atribuído de seus integrantes.

De maneira análoga a essa temática, pontua-se questão referente às diversas formas familiares - monoparentais e homoparentais. Nessa seara, analisa-se que já se aceita o fato de que o único integrante da família, no caso de monoparentalidade, aproveite-se do prazo referente à dita “licença-maternidade” para cuidar dos filhos. Por sua vez, nas famílias homoparentais, tem se consolidado a concessão de um prazo de licença análogo à licença-maternidade para um cônjuge ou para ambos.

Diante de tal complexidade, desenvolve-se, no presente trabalho, que a experiência de democratização do convívio, entre os pais homoafetivos, com o novo integrante no núcleo familiar pode inspirar práticas emancipatórias no núcleo familiar heterossexual, possibilitando a reflexão acerca do enfrentamento de estereótipos de gênero nos âmbitos laboral e doméstico.

1. A divisão sexual do trabalho doméstico, reprodutivo e produtivo

Atualmente, há ampla presença feminina na esfera trabalhista. Todavia, as estruturas políticas, jurídicas e sociais ainda não enfrentaram algumas barreiras formatadas por estereótipos de gênero. O motivo parece claro: o ordenamento jurídico e as políticas públicas têm sido construídos sob um alicerce amparado pela família tradicional, formato no qual há evidente separação dos papéis do homem e da mulher.

Destarte, conforme se depreende de dados e estatísticas, ainda há insuficiente participação masculina em tarefas domésticas e parentais, o que dificulta o ingresso da mulher no mercado de trabalho, haja vista a carga excessiva

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de responsabilidades familiares destinadas a elas. Analisa-se que nessa seara o trabalho doméstico masculino é visto prioritariamente como mera “ajuda”.6

Em média, os homens despendem cerca de 10,5 horas semanais realizando afazeres domésticos, incluído o exercício da paternidade, enquanto as mulheres, 26,6 horas semanais. E, ainda, a proporção masculina que realmente realiza essas tarefas se resume a 33,7%, em disparidade à taxa feminina, de 66,3%.7

Em suma, o culto a estruturas familiares tradicionais constitui barreiras para o pleno gozo de direitos referentes à figura da mulher, bem como para a verdadeira transformação da mentalidade social. Visando à promoção de maior igualdade, há necessidade de intervenção estatal à criação de mecanismos que alterem essas estruturas reprodutoras de desigualdade.

Por sua vez, o instituto da licença-maternidade, que delimita período de atendimento à prole que deve ser usufruído somente pela mãe, reforça a dedicação prioritária aos trabalhos familiares não-remunerados. Dessa maneira, a atividade masculina se limita a encargos puramente laborais, visto que ao homem é cominada a função de chefe de família e de provedor do sustento da casa, enquanto que a atividade laboral feminina segue considerada subsidiária e opcional. Em outras palavras, reforça-se a dicotomia entre público e privado, reservando-se, às mulheres, a segunda esfera, pois tal condição não só a aproxima do ambiente doméstico como afasta a sua recepção, quando em idade fértil, em determinadas vagas de trabalho.

Percebe-se a necessidade inerente de criar alternativas e políticas legislativas que revertam ou ao menos amenizem esse quadro. Assim, podem-se por em reflexão os institutos da licença-maternidade e paternidade, substituindo-os, após a fase obrigatória de repouso da gestante, pela licença-parental. Através desse novo formato, entende-se que pode haver garantias à figura materna, nomeadamente à sua sustentação no mercado de trabalho, da mesma maneira que adviria incentivo para a paternidade participativa e responsável, bem como para a divisão do trabalho doméstico.

Dessa forma, assevera Bucher-Maluschke:

6 BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Relatório

Anual do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero 2010/2011. 1ª Impressão. Brasília:

Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2011. 7 Idem.

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Chamamos, portanto, de paternidade participativa aquela que subentende o cuidado e o envolvimento constante no cotidiano dos filhos – nos domínios da alimentação, higiene, lazer e educação. Como tais cuidados com os filhos podem variar muito de homem para homem, conforme o grau de disponibilidade pessoal e de tempo, escolhemos utilizar como critério, para a definição dos pais sujeitos da pesquisa, a própria autopercepção desses homens como pais cuidadores.8

Almeja-se, portanto, equidade maior no âmbito familiar e no mercado de trabalho entre homens e mulheres. Em vista de destacar o efeito contrário da licença-maternidade, passa-se, assim, a contextualizá-la.

2. Breves notas sobre a licença-maternidade

A licença-maternidade entrou em voga como um direito social a partir da Constituição Federal de 1988, momento no qual todas as trabalhadoras urbanas e rurais passaram a poder desfrutar de 120 dias de ausência do trabalho, sem prejuízo de cargo ou ocupação, no pós-parto. Isso já havia sido instituído na esfera internacional a partir das recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por força da Convenção 103.

Dessa forma, garantem-se diversos direitos às mães, dentre eles: a) licença-maternidade de 120 dias, extensível por mais 60 dias, por conta da empresa; b) estabilidade para a gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto; c) salário família; d) intervalo para amamentação; e) existência de creche custeada pela empresa ou o pagamento de auxílio-creche.9 Assim, em face de cada

vez mais garantias trabalhistas destinadas às mulheres, foi instituída a licença-maternidade, que possui o viés de possibilitar o trabalho feminino em casos de gravidez, evitando possíveis arbitrariedades.

No que concerne aos direitos garantidos ao pai, verifica-se a existência da licença-paternidade, a qual afiança um período de cinco dias após o nascimento do

8 BUCHER-MALUSCHKE, Júlia S. N. F. Pais que cuidam dos filhos: a vivência masculina na

paternidade participativa. Revista Psico, v. 39, n. 1, p.74-82. Porto Alegre: ediPUCRS, 2008, p. 75.

9 PINHEIRO, Luana; GALIZA, Marcelo; FONTOURA, Natália. New family arrangements, old

gender social conventions: parental leave as public policy to deal with these tensions. Rev. Estud.

Fem., Florianópolis , v. 17, n. 3, p. 851-859, Dec. 2009 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2009000300013&lng=en& nrm=iso>. Acesso em: 22 de junho de 2015.

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filho. Desde logo, nota-se que a legislação subjaz o fato de que a figura paterna detém coprotagonismo na seara familiar.

Ademais, como já apontado, a licença-maternidade ocasiona, muitas vezes, preconceito em relação à mulher no âmbito trabalhista. O motivo para isso se encontra na gênese da separação entre as atividades reputadas “femininas” e “masculinas” que naturalizam o trabalho reprodutivo como responsabilidade da mulher. Isso acarreta valorização díspar do trabalho, à medida que o produtivo, estimado por força da lógica capitalista, é atribuído ao homem, enquanto o reprodutivo, menos valorizados, às mulheres.10

Nessa seara, Maria Betânia Ávila afirma:

A forma de desenvolvimento capitalista produziu historicamente uma vida cotidiana em que o tempo social que conta, ou seja, o uso do tempo que tem valor, é aquele empregado na produção de mercadoria, gerador de mais-valia, porque a noção de valor está diretamente vinculada ao valor de troca que caracteriza a mercadoria. O tempo do trabalho doméstico do cuidado com a reprodução da vida das pessoas não é considerado como um tempo útil, como um tempo de trabalho com valor social.11

Assim, muitos empregadores optam pela contratação masculina, haja vista que não haveria a necessidade de destinar parcela de seu tempo para a família, ocasionando possíveis “despesas” para a empresa.12 E, além disso, há o reforço do

conceito de que cabe exclusivamente ou majoritariamente à mulher a educação dos filhos, o que acarreta naturalizada divisão sexual do trabalho.13

Por força desses problemas, é imperiosa, a nosso ver, a criação de ações afirmativas ao propósito de diminuir a desigualdade de oportunidades e condições em razão de gênero. Em conformidade a isso, é discutida a licença-parental,

10 BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Relatório

Anual do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero 2010/2011. 1ª Impressão. Brasília:

Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2011, p. 20.

11 ÁVILA, Maria Betânia. Divisões e tensões em torno do tempo do trabalho doméstico cotidiano. In: Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Revista do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Brasília, dez/2010, p. 70.

12 Neste sentido: “(...) os empregadores não têm como saber quais famílias praticam a repartição igualitária das tarefas familiares e, na dúvida, vão supor que será a mulher a maior encarregada. E esta suposição motivará a preferência pelo trabalhador homem na carreira” (LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Direito do trabalho da mulher: da proteção à promoção. Cadernos Pagu Unicamp. Campinas, SP, n. 26, jan./jun. 2006, p. 428).

13 SOUZA, Eline Teixeira de Lima Martins de. Licença-parental: da inserção da mulher no

mercado de trabalho à consequente reorganização dos papéis no ambiente familiar. 2013.

Monografia (graduação) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Curso de Graduação em Direito, p. 31.

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visando a amenizar os impactos da dupla jornada de trabalho feminina, com o viés de criar uma responsabilidade parental compartilhada entre homens e mulheres.

Acompanha este ambiente de oxigenação do exercício da parentalidade a reestruturação jurídica e social exigida pelas novas famílias:

Romperam-se os paradigmas em que a família era identificada pelo casamento. A evolução dos costumes, a emancipação da mulher, o surgimento dos métodos contraceptivos, a própria globalização levou à reformulação da estrutura da família. De um reduto da conjugalidade, a família se transformou em um espaço da afetividade que alberga todas as modalidades vivenciais, gerando sequelas que devem ser inseridas no âmbito do Direito de Família.14

Diante da recepção dessas novas modalidades, revistam-se determinados institutos. Assim, a reflexão se abre a partir da experiência homoparental de licença do trabalho para o adequado exercício parental destas personagens, sendo tal referência necessária ao desejado repensar dos papéis assumidos por casais heterossexuais quando passam a exercer os lugares de pai e mãe.

3. Análise acerca da licença-parental

Conforme aventado, há, com o atual modelo, o reforço de conceitos arcaicos e a manutenção do juízo de que o cuidado da prole está destinado à mulher, cabendo ao homem contribuir minimamente. Aduz-se, portanto, que há uma contribuição do aparato legal para a reprodução e manutenção dessa realidade desigual.15

Como consequência, observam-se dificuldades no momento da reinserção da mulher no mercado de trabalho, o que leva uma parcela a se demitir de seus trabalhos para se concentrarem no cuidado dos filhos. Destarte, as mulheres são escanteadas do mercado, uma vez que a maioria não reingressa.

14 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 15 PINHEIRO, Luana; GALIZA, Marcelo; FONTOURA, Natália. New family arrangements, old

gender social conventions: parental leave as public policy to deal with these tensions. Rev. Estud.

Fem., Florianópolis, v. 17, n. 3, p. 851-859, Dec. 2009 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2009000300013&lng=en& nrm=iso>. Acesso em: 22 de junho de 2015.

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Ilustrando tal apontamento, tem-se que, de acordo com pesquisa realizada pela Robert Half, a maioria das profissionais brasileiras não retorna ao mercado de trabalho após o período da licença-maternidade. No Brasil, 85% das empresas afirmaram que menos de 50% de suas funcionárias exerceram novamente a vida profissional após o nascimento dos filhos, em contrapartida a 52% das companhias de todo o mundo. No que concerne às mulheres ocupantes de cargos de gestão, esta taxa é mais alta, haja vista que somente 37% das empresas brasileiras responderam a essa mesma informação, enquanto que 63% relataram um índice de retorno superior à metade.

Assim, uma alternativa para a alteração dessa realidade é a licença-parental. Ressalta-se que, em respeito aos corolários da alteridade, a intenção dessa política não se encontra na concessão indistinta de garantias a homens e mulheres, vez que existem questões relativas à amamentação e repouso da gestante, quando se trata de filiação biológica.

É possível, todavia, constituir essa licença-parental após o período exclusivo de licença-maternidade, decisão que ficaria a cargo da preferência de cada família. Destarte, ressalvado determinado período após o parto, ocorreria a deliberação acerca da configuração a ser empregada para a disposição da licença-parental. Assim, surgem alternativas como o usufruto conjunto pelos pais e a utilização de períodos alternados ou de maneira igualitária, mas separadamente.

No entanto, problematize-se que caso houvesse essa alternativa do usufruto alternado da licença-parental, tal medida provavelmente não bastaria para que o contexto de desigualdade de gênero nas relações familiares fosse alterado, haja vista a mentalidade de que cabe somente ou prioritariamente à mãe o cuidado dos filhos. Dessa maneira, entende-se que mais apropriada seria a inclusão de um afastamento paterno, por um período mais longo, obrigatório.

Isso acarretaria maior democratização de papéis e funções justamente pela forçosa distribuição igualitária dos encargos familiares, não os destinando apenas à população feminina. Sobre esse tema, Thereza Cristina Gosdal dispõe:

O que se pode discutir é acerca da concessão de licença-parental, ao invés de licença-gestante, que poderia ser usufruída em parte pelo pai, para cuidar da criança. Isso porque os empresários ainda continuam considerando mais elevados os custos com a contratação de mulheres. Na hipótese de gravidez da empregada, o empregador não arca com o salário maternidade, mas continua recolhendo a contribuição previdenciária da empregada que se encontra em licença e também com os custos de sua

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substituição, além de estar sujeito a maior absenteísmo da empregada nos primeiros anos de vida da criança.16

Gosdal também defende a possibilidade de extensão da estabilidade provisória ao pai para a proteção da paternidade responsável.17 É o mesmo

objetivo a que visa a licença-parental. Dessa forma, poderia ser promovida uma proteção à paternidade, que contribuiria para a redução desse abismo de deveres impostos à figura feminina, e melhor atenderia à necessidade afetiva da criança.

Sobre estes aspectos, diversas incoerências são encontradas quando da análise da legislação, principalmente no que se refere à questão da licença-maternidade. Pode ser dito que a garantia não visa apenas à recuperação física da gestante, mas também à proteção da criança, tal qual afirma Pedro Paulo Teixeira Manus.18 Portanto, nada mais coerente do que possibilitar a presença tanto do pai

quanto da mãe no momento do estabelecimento do vínculo com os filhos.

Face ao exposto, aduz-se que uma medida que possibilitaria mais plena justiça e igualdade na seara familiar seria a licença-parental. Ela abarca os deveres de ambos os genitores na questão da criação dos filhos e, possivelmente, geraria uma gradativa divisão das tarefas domésticas.

Essa licença, incontestavelmente, assinalaria grande avanço legislativo, na esfera global, procurando acolher ao princípio constitucional da igualdade. E, ainda, proporcionaria maior igualdade de gênero no gozo da vida profissional e familiar. Deste modo, implementaria a figura da corresponsabilidade entre pais e mães no que diz respeito à criação dos filhos e realização das tarefas domésticas.

Atualmente, diversos países concedem ou regulamentam o instituto da licença-parental, que varia entre períodos de três meses a três anos. O pioneiro na temática da licença-parental, que permitiu que ambos os genitores participassem do processo de criação do filho, foi a Suécia, em 1974.19

A França, por exemplo, adota não apenas as licenças maternidade e paternidade, mas também a licença conjunta ou parental. Dessa forma, o contrato de trabalho tanto do pai quanto da mãe pode ser suspenso. No entanto, a empresa

16 GOSDAL, Thereza Cristina. Discriminação da mulher no emprego: relações de gênero no

direito do trabalho. Curitiba: Gênesis, 2003, p. 2019.

17 Idem

18 MANUS, Pedro Paulo Teixeira. Direito do trabalho. 4 ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 214.

19 AXELSSON, T; ÖREBRO UNIVERSITET, Ih. Mens parental leave in Sweden: policies,

(20)

não mais pagará nenhum salário ao empregado nesse período.20 No final, há a

possibilidade de retornar ao cargo com o mesmo salário prévio, sendo vedada a demissão nesse período.1 Além disso, a família recebe ajuda financeira do governo,

podendo ser utilizada até os três anos da criança. Ainda, há a alternativa pelo trabalho parcial, situação em que o empregado receberia salário e férias de forma proporcional ao tempo exercido efetivamente.

No caso da Alemanha, o instituto da licença-parental foi reformulado em 2006, passando a ser chamada Elterngeld. Por meio dela, os pais podem financiar uma licença remunerada pelo prazo de 14 meses. No entanto, os primeiros 12 meses são reservados apenas para um deles, enquanto que os dois restantes serão destinados àquele que não tirou a licença inicialmente.21

Na Espanha, em que pese à diminuta taxa de mão de obra feminina no mercado de trabalho, principalmente no que concerne às mães com filhos pequenos, prevê-se, também, a licença-parental. Dentre as garantias asseguradas aos pais encontram-se: o pagamento do salário no período da licença; o retorno ao mesmo trabalho, com iguais condições de salário; além da continuidade da contribuição para o sistema de previdência.22

Nessa situação, a figura materna possui o direito de sair de licença por um período de 16 semanas, dentre os quais seis, necessariamente, devem ser retirados no momento imediatamente anterior ao nascimento. O restante pode ser usufruído posteriormente ou compartilhado da maneira que desejar com o cônjuge. E, ainda, os pais dispõem de um período de 15 dias de licença-paternidade, caso seja empregado, ou 13 dias, caso autônomo.

Essa combinação confere à Espanha uma configuração distinta da maioria dos países da Europa. E, ressalta-se, isso é alegado pelo fato de que em 1996 foram instituídos pela União Europeia requisitos mínimos para o devido funcionamento da licença-parental.

Por fim, no caso da América do Sul, em 2011, o Chile instituiu recentemente a licença-parental. Antigamente, o regime da licença-paternidade era semelhante

20 FAGNANI, J; MATH, A. Recent reforms in French and German family policies. 2010. 21 Idem.

22 LAPUERTA, I. Employment, motherhood and parental leaves in Spain. 2012. - Universitat

(21)

ao caso brasileiro, qual seja, a existência da garantia de apenas 5 dias destinados à figura paterna. No entanto, com a alteração, é agora possível a divisão da licença, a partir da sétima semana de licença-maternidade.23

Com tais experiências ilustrativas em mente, conclui-se que compõe a noção de licença-parental a descentralização gradual da figura materna no cuidado com os filhos, o que não só aproxima o homem da responsabilização parental como impacta positivamente na inserção e na reinserção da mulher no mercado de trabalho.

Conforme se percebe, portanto, o instituto da licença-parental socorre discriminações de gênero, ou seja, tem o potencial de interferir na imposição fixada social e culturalmente de determinados comportamentos em razão do sexo.

Em casais do mesmo sexo, porém, as fronteiras são menos evidentes, porque não há, a priori, um(a) responsável pelo aspecto econômico e outro(a) pelo aspecto afetivo. Não por menos, as parentalidades gays e lésbicas têm o potencial para a reinvenção do instituto da licença-maternidade. Por isso, podem as experiências heterossexuais tomá-las como base para a superação de alguns estigmas há muito enraizados.

4. As possibilidades da licença homoparental

Contemporaneamente, aceita-se de maneira gradual a mudança do conceito arcaico de família heterossexual, abrangendo também outras realidades afetivas, inclusive a homoparental. Ao adotar esse novo conceito, outros direitos desta compreensão devem daí decorrer, tal qual o casamento civil e o direito de adoção aos casais homoafetivos. Esta conclusão proporciona dialético movimento de diálogo com as experiências heterossexuais, mediante o constante cuidado de não se recair em meros assimilacionismos.

Portanto, a conexão menos óbvia entre sexo e gênero nos casais homossexuais pode propiciar relevantes reinvenções de institutos engessados e

23 CASAS, L; HERRERA, T. Maternity protection vs. maternity rights for working women in

(22)

incorporados pelos casais heterossexuais. Nesse âmbito é que se trata da “licença homoparental”.

O instituto da licença homoparental ainda não é completamente referenciado no Brasil, haja vista que se inspira nos moldes das licenças maternidade e paternidade. Dessa forma, a construção dessa possibilidade foi se fortificando nos pedidos de licença no âmbito judicial ou administrativo nos casos de adoção ou fertilização in vitro de casais homossexuais em parcerias masculinas ou femininas.

Ilustrativamente, menciona-se a experiência homoparental de Rogério Koscheck e de Weykman Padinho. Conforme divulgado na mídia, após adotarem quatro irmãos, eles decidiram dedicar tempo substancial de suas rotinas aos cuidados com as crianças. Ao passo que este último, como autônomo, pôde flexibilizar seus horários, aquele, por sua vez, garantiu, pela via judicial, o direito de se ausentar do trabalho por 90 dias, prorrogados por mais 60.24

Nessa mesma linha, acerca da estabilidade provisória, igualmente paradigmática é a experiência extraída da homoparentalidade. Confira-se acórdão da 17ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, a propósito de direitos a um trabalhador homem que ser tornou pai por reprodução humana assistida, em projeto parental desenvolvido em conjunto com seu parceiro homoafetivo, cuja gestação foi levada a termo por terceira pessoa:

Nesse contexto, interpretação restritiva do texto constitucional, no sentido de que a licença-maternidade e a garantia provisória de emprego são direitos conferidos unicamente à gestante, acarretaria situações nas quais a discriminação é evidente (...).Diante da extensão da concessão da licença-maternidade e da garantia provisória de emprego aos outros casos acima mencionados, é evidente que a omissão com relação ao caso do autor decorreu de uma involuntária inércia do legislador, tratando-se, portanto, de lacuna normativa. Logo, por qualquer ângulo de análise, o reclamante faz jus à garantia provisória de emprego (a licença-maternidade não é objeto do recurso).25

Destarte, reconheceu-se o direito de um homem à estabilidade de emprego por cinco meses – a mesma concedida a gestantes, após o nascimento de seus

24 BAISCH, Silvia. Casal gay adota 4 irmãos e obtém licença-adoção: "amamentamos com

carinho". Disponível em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/09/15/casal-gay-adota-4-irmaos-e-obtem-licenca-adocao-amamentamos-com-carinho.htm. Acesso em 10 de setembro de 2014.

25TRT, 17ª Turma, Recurso Ordinário 0002715-88.2011.5.02.0053, Rel. Desª Maria de Lourdes

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filhos, gerados por outra pessoa fruto das técnicas de reprodução. A decisão colegiada defendeu que a interpretação restritiva do texto constitucional, no sentido de que a licença-maternidade e a garantia provisória de emprego são direitos conferidos unicamente à gestante, acarretaria discriminação evidente, especialmente em casos nos quais o nascituro não seria criado pela mãe biológica.

Ademais, já se possibilitou, em hipótese análoga, a licença pela via administrativa. Em 2014, a um funcionário público da Prefeitura de Recife que se tornou pai junto a seu companheiro através da fertilização in vitro concedeu-se afastamento de seis meses para o atendimento adequado da recém-nascida. Não houve, neste caso, sequer a necessidade de acionar o Judiciário.26

Em tais casos os direitos são concedidos independentemente do sexo, destacando que a essência de proteção deve ser a inserção de um novo membro na convivência familiar, para além das questões puramente biológicas.

No âmbito normativo destacam-se os seguintes trechos da Lei nº 12.873/13:

Art. 392-A. À empregada que adotar ou obtiver guarda judicial

para fins de adoção de criança será concedida licença-maternidade nos termos do art. 392.

(...)

§ 5o A adoção ou guarda judicial conjunta ensejará a concessão de

licença-maternidade a apenas um dos adotantes ou guardiães empregado ou empregada.

Art. 392-B. Em caso de morte da genitora, é assegurado ao

cônjuge ou companheiro empregado o gozo de licença por todo o período da licença-maternidade ou pelo tempo restante a que teria direito a mãe, exceto no caso de falecimento do filho ou de seu abandono.

Art. 392-C. Aplica-se, no que couber, o disposto no art. 392-A e

392-B ao empregado que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção.

Dessa forma, em que pese à norma afirmar que a concessão da licença ocorrerá a apenas um dos cônjuges, oportuniza-se as famílias formadas por pessoas do mesmo sexo a decisão sobre quem irá exercer esse direito. Destarte, a escolha sobre a quem cabe a preferência pelo mais substancial afastamento do âmbito laboral representa, por si só, um passo além do paradigma sustentado pela licença-maternidade.

26 TERRA. Recife: homossexual conquista licença paternidade de 6 meses. Disponível em:

http://noticias.terra.com.br/brasil/recife-homossexual-conquista-licenca-paternidade-de-6-meses,9aa57a4dfb276410VgnVCM3000009af154d0RCRD.html. Acesso em 10 de setembro de 2015.

(24)

A atribuição de funções naturalizadas a estes casais, assim, torna-se mais dificultosa, o que conduz ao minucioso diálogo acerca dos papéis que ocupam no exercício da parentalidade. A construção conjunta permite, assim, melhor aproximação de um projeto de democracia em família.

Sustenta-se, com isso, a relevância do diálogo construtivo entre as vivências afetivas hetero e homossexuais. Não deve se resumir, a reflexão, à análise daquelas realidades em face dos direitos destas, através de lentes reducionistas e desatentas dos corolários da alteridade.

Entende-se, sim, que a superação de critérios atribuídos de acordo com o sexo dá espaço à pouco discutida questão sobre “até que ponto a entrada de lésbicas, gays e transgêneros nesse quadro de direitos não alterará esse mesmo quadro, ‘contaminando’ os estilos de vida heterossexuais – e, consequentemente, os padrões de masculinidade”.27 Neste diapasão, fez-se constar a licença-parental

como interessante ponto impulsionado pelas homoparentalidades e que segue parcamente desenvolvido nas vivências heterossexuais.

Conclusão

Contemporaneamente, o que se constata é que resiste a tendência de revisão do papel masculino na seara familiar e da percepção de que a mulher não é a única ou maior responsável pela criação dos filhos e deveres domésticos.

Por conseguinte, as concepções arcaicas que instituem como destino exclusivo da mulher a criação da prole e a realização de trabalhos considerados subalternos, como serviços caseiros, que não se revertem em amplas possibilidades de independência financeira, estão gradativamente sendo ultrapassadas. Mesmo assim, é indispensável que o Estado se preste ao socorro das maciças realidades que seguem reproduzindo tais estereótipos.

Verificam-se, de maneira empírica, mudanças ocasionadas por políticas públicas instituídas em múltiplos países. E, mais especificamente, a garantia da licença-parental se apresenta como alternativa a interessantes benefícios. A partir

27 GATTI, José. Notas sobre masculinidades. In: Masculinidades: teoria, crítica e artes. Org.:

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disso, não mais se legitimaria notável discriminação de gênero à ocasião do nascimento ou da adoção de uma criança.

Dessa maneira, haja vista que contemporaneamente a mulher visa à conquista não só de mais, mas de melhor espaço no mercado de trabalho, as medidas legislativas devem acompanhar essa jornada e instituir métodos e propostas que visem a facilitar esse caminho. Portanto, a adoção da licença-parental poderia institucionalizar mais um passo no que se refere à diminuição da desigualdade de gênero.

Nessa seara, ainda que muito se argumente de maneira contrária à licença-parental, observa-se que já é aceita a concessão de condições mais flexíveis do que a proposta pela licença-maternidade aos casais homoafetivos. Com o intuito de romper com o paradigma prevalente é que se propôs a utilização, por analogia, do instituto da licença homoparental, como forma de corroborar a licença heteroparental como uma possibilidade para ambos os gêneros.

A reflexão é válida em especial se considerado o contexto legislativo atual que ainda reproduz acriticamente a função de cuidadora da criança centrada numa pessoa (que, via de regra, é a mulher), sem espaço para as decisões democráticas dentro da ambiência familiar. Portanto, deve-se exigir, dos juristas, ainda mais comprometido esforço hermenêutico em prol da superação do heteropatriarcado.

Recebido em 22/09/2015 1º parecer em 17/10/2015 2º parecer em 23/10/2015

(26)

CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL: ESTRUTURA E FUNÇÃO28

The assignment of contractual position: structure and function

Ivana Pedreira Coelho

Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia. Professora da pós-graduação lato sensu em Direito do Consumidor da Universidade Católica do Salvador. Advogada.

RESUMO: Este artigo busca analisar os elementos estruturais e funcionais do

negócio de cessão da posição contratual. A partir da concepção do sujeito como titular eventual da relação jurídica obrigacional, permitiu-se admitir a sucessão convencional na relação jurídica. Identificou-se que o negócio de cessão da posição contratual pode ser formado por meio de declarações expressas ou tácitas, estas últimas inferidas por meio de comportamentos concludentes. O objeto mediato do negócio corresponde à titularidade do centro de interesses. A transmissão da posição contratual é unitária, composta por créditos, débitos, situações potestativas, sujeições, deveres anexos, exceções, expectativas e ônus. A causa da cessão da posição contratual é a transmissão da titularidade da situação jurídica do cedente no estágio em que se encontre, com liberação do cedente, resultando na interferência da órbita jurídica do cedido, do que resulta a necessária trilateralidade do negócio de cessão, visto que a anuência do cedido é essencial à formação do contrato de cessão.

PALAVRAS-CHAVE: Brasil; cessão; cessão da posição contratual; cessão do contrato;

contratos; estrutura; função.

ABSTRACT: This paper intends to analyze the structural and functional elements of

the contract of assignment of contractual position. From the conception of the subject as an independent element of obligatory relationship, it was allowed to conceive succession in the legal relationship. It was identified that the transfer of the contractual position can be formed by explicit or implicit declarations, the latter inferred by conclusive behavior. The mediate object of such contract is the ownership of the contractual position, which is considered unitary, as formed by credits, debits, bondages, duties, exceptions, expectations and burdens. The cause of the assignment of contractual position is the transfer of the ownership of the legal status of the transferor at the stage presented, resulting in the interference of the assigned legal orbit. Therefore, the arrangement of assignment of the contract shall be trilateral, as the approval of the assigned is essential to the formation of the contract.

KEYWORDS: Brazil; assignment; assignment of contractual position; assignment of

the contract; contract; structure; function.

28 O artigo é baseado em capítulo da dissertação de mestrado em Direito Civil defendida pela

autora junto ao Programa de Pós-Graduação stricto sensu em direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 17.2.2014, intitulada “A cessão da posição contratual e seus efeitos”.

(27)

SUMÁRIO: 1. Contornos da cessão da posição contratual: estrutura e função – 2.

Aspectos estruturais do negócio de cessão da posição contratual – 2.1. A sucessão na relação jurídica contratual – 2.2. A cessão da posição contratual como acordo plurilateral: as declarações formativas do cedente, do cessionário e do cedido – 2.3. A forma do negócio de cessão da posição contratual – 2.4. O objeto mediato da sucessão negocial na posição contratual – 2.4.1. A teoria atomística, analítica ou da decomposição do negócio – 2.4.2. A teoria unitária ou monística da cessão da posição contratual – 2.4.3. Pressupostos estruturais e temporais do objeto da cessão da posição contratual – 3. Aspectos funcionais da cessão da posição contratual e sua causa – 4. Conclusão

1. Contornos da cessão da posição contratual: estrutura e função

A transferência da posição de contratante não é prática negocial recente no cenário econômico brasileiro. Antes da vigência do Código de 1916, já se praticava amplamente a cessão de clientela,29 que ultrapassava a simples transmissão do

estabelecimento comercial e aviamento, ou mesmo era operacionalizada sem qualquer vinculação ao chamado trespasse.

A previsão normativa do instituto nos sistemas da família romano-germânica foi precursoramente adotada pelo Código Civil italiano, em resposta à necessidade de conferir balizas às operações econômicas em tecido social que já demandava opção legislativa disciplinadora dos negócios comumente praticados na vida de relação. João de Matos Antunes Varela registra que somente após a evolução das demais economias foi descoberta a complexidade dos vínculos compreendidos na transmissão em bloco das situações jurídicas obrigacionais.30

Pode-se afirmar que, em Portugal, Inocêncio Galvão Teles, foi um dos responsáveis pela positivação do instituto pelo atual Código Civil lusitano, por ter

29 BARBOSA, Rui. As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de

estabelecimentos comerciais e industriais. In Obras completas de Rui Barbosa, v. XL, t. 1. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948.

30 Anota o autor: “A permissão da transferência de todos os direitos e obrigações nascidas do contrato bilateral, nos termos gerais em que aquele diploma legislativo a sancionou [o código civil italiano de 1942], corresponde a necessidades próprias de economias bastante evoluídas, e só foi verdadeiramente compreendida, em todo o seu alcance, a partir da época em que a moderna doutrina das obrigações pôs a descoberto a complexidade da teia de vínculos compreendidos no seio da relação creditória” (VARELA, Antunes. Das obrigações em geral, v. II. Coimbra: Almedina, 2012, p. 388).

(28)

elaborado relatório sobre o panorama da cessão da posição contratual na Europa, publicado em 1950, tendo a codificação civil portuguesa sido publicada em 1966.31

No Código Civil português, a cessão da posição contratual encontra-se disciplinada no título das obrigações em geral e, no Código Civil italiano, no título destinado aos contratos em geral.

Ambos os sistemas jurídicos previram a cessão da posição contratual em texto normativo, consideradas a insuficiência e eventuais incompatibilidades da tutela da cessão de créditos, da assunção de dívidas e da novação para regular todas as situações que envolvem a transmissão da titularidade da posição de contratante.

Embora não sistematizada no Código Civil brasileiro, a cessão da posição contratual é prevista em inúmeros dispositivos da legislação especial, tais como na legislação afeta aos contratos de financiamento habitacional e de locação.32 Não há

consenso, entretanto, quanto à terminologia do instituto.

O Código Civil português e doutrina lusitana majoritária referem-se ao instituto por cessão da posição contratual,33 enquanto o Código Civil e doutrina

italianos optam, em sua maioria, pela terminologia cessão do contrato.34 Emílio

Betti refere-se ao instituto como aquisição translativa, ou negócio translativo, enquanto Karl Larenz utiliza a terminologia assunção de contrato.

31 GALVÃO TELES, Inocêncio. Cessão do contrato. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1950.

32 A lei n.º 8.004/1990 dispõe sobre a transmissão do financiamento no âmbito do Sistema

Financeiro de Habitação, enquanto a Lei n.º 8.245/1991 (Lei de locações) expressamente regula a cessão da posição do contrato de locação, entre outras previsões legais que serão vistas neste trabalho.

33 Nesse sentido: PINTO, Carlos Alberto da Mota. Cessão da posição contratual. Coimbra:

Almedina, 2003; VARELA, Antunes. Das obrigações em geral, cit.; COSTA, Mario Julio de Almeida. Direito das obrigações. Coimbra: Almedina, (9a). Em sentido contrário, Inocêncio Galvão Teles utilizava a terminologia cessão do contrato (Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. VI, 1949).

34 À exceção de Pietro Perlingieri, que faz referência ao instituto como il transferimento delle

posizioni contrattuali (La circolazione del credito e delle posizioni contrattuali. In Il diritto delle obbligazioni e dei contratti: verso una riforma? Le prospettive di una novellazione del Libro IV del

Codice Civile nel momento storico attuale. CEDAM, 2006, p. 99-120), os autores italianos, em geral, preferem a nomenclatura cessione del contratto para o instituto. Neste sentido: ALBANESE, Antonio. Cessione del contratto. Bologna: Zanichelli, 2008; BETTI, Emilio. Teoria generale delle obbligazioni, v. III, 2 - IV. Milão: Giuffré, 1955; BIANCA, C. Massimo. Diritto civile. t. III. Milão: Giuffrè, 1984; CICALA, Raffaele. Il negozio di cessione del contratto. Napoli: Casa editrice Dott. Eugenio Jovene, 1962; ROPPO, Vincenzo. Il Contratto. Milão: Giuffrè, 2011.

(29)

A opção terminológica italiana é, contudo, imprópria, porque o que se transmite não é o negócio jurídico-base, mas tão somente a titularidade de uma das posições jurídicas que compõem a relação obrigacional.

Na legislação especial, utiliza-se o vocábulo trespasse para designar a transmissão da posição no contrato de compra e venda de imóveis,35 embora o

trespasse tradicionalmente refira-se à transmissão do estabelecimento comercial e

aviamentos, na seara do Direito Comercial.

No Brasil, é comum a alusão ao instituto utilizando-se a terminologia

transferência do contrato – conforme previsão pontual do artigo 785 do Código

Civil.36 A doutrina, em sua maioria, influenciada pela legislação e doutrina

portuguesas, tende a utilizar a denominação cessão da posição contratual,37 que

condiz com a concepção técnica mais apropriada à dinâmica, estrutura e função do instituto.38

Isso porque se trata de negócio em que ocorre a substituição do titular da

posição jurídica cedida, considerando a concepção estrutural da relação jurídica

obrigacional como relação entre situações jurídicas, correspondentes a centros de interesse com titularidade fungível.

O vocábulo cessão, a sua vez, designa, de modo genérico, a transmissibilidade, a título gratuito ou oneroso, de bens e direitos e, no sentido estrito, a “transferência negocial de um direito, de uma ação, ou de um complexo de direitos e de bens com conteúdo predominantemente obrigatório”.39

35 Lei n.º 6.766/1979, art. 31: “O contrato particular pode ser transferido por simples trespasse,

lançado no verso das vias em poder das partes, ou por instrumento em separado, declarando-se o número do registro do loteamento, o valor da cessão e a qualificação do cessionário, para o devido registro”.

36 CC, art. 785: “Salvo disposição em contrário, admite-se a transferência do contrato a terceiro

com a alienação ou cessão do interesse segurado”.

37 BDINE JR., Hamid Charad. Cessão da Posição Contratual – Col. Prof. Agostinho Alvim. São

Paulo: Saraiva, 2008; CABRAL, Antônio da Silva. Cessão da posição contratual. In Revista de

direito civil, n.o 48. A terminologia trespasse também é utilizada pelos comercialistas para designar a transmissão do ponto comercial ou aviamento.

38 Alguns autores, a exemplo de como Caio Mario da Silva Pereira, Orlando Gomes e Paulo Lôbo,

preferem a designação cessão do contrato, por possível influência das obras de autores clássicos conhecedores das codificações italiana e francesa.

39 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito civil, v. 2: obrigações em geral. Rio de

(30)

A cessão é dotada de duas acepções: ora o negócio jurídico por meio do qual se opera a transferência ou alienação de bens ou direitos, ora o efeito da transmissão.4041

Como já visto, a sucessão negocial no contrato não foi sistematizada no Código Civil atual, tampouco no Código de 1916, a despeito de ocorrer, com frequência, na vida de relação. Com efeito, posições contratuais em contratos de locação, promessas de compra e venda, financiamentos imobiliários, contratos de consumo de serviços e interesses segurados são, há muito, cedidas no Brasil.

A ausência de sistematização do instituto, de modo a regular seus requisitos e efeitos e a auxiliar o intérprete na identificação da situação jurídica merecedora de tutela nos casos concretos, tem conduzido os Tribunais à adoção de decisões antagônicas sobre os requisitos para a formação do negócio e os efeitos da cessão da posição contratual.42

A lacuna da lei não impossibilita, entretanto, a prática negocial no Brasil. A doutrina nacional atribui à autonomia contratual para a celebração de contratos atípicos43 a possibilidade de implementação do negócio destinado à transmissão da

titularidade da posição contratual, ao tempo em que, contraditoriamente, sustenta que a cessão da posição contratual pode ser levada a efeito por meio de contratos de compra e venda, permuta ou doação, negócios incompatíveis com a natureza do instituto por diversidade de causas.44

40 GOMES, Orlando. Sucessões. Mario Roberto Carvalho de Faria (atualizador). Rio de Janeiro:

Forense, 2007, p. 267.

41 Nesse sentido, afirma Vincenzo Roppo: “La cessione del contrato può intendersi in due sensi:

come atto e come effetto. La cessione come atto è il contratto con cui il cedente, parte di un altro

contratto già in corso com altro soggetto (ceduto), transferisce la relativa posizione contrattuale (nelle sue componenti attive e passive) al cessionario, il quale gli subentra nel rapporto col ceduto

[...] La cessione como effetto é il transferimento della posizione contrattuale di un contraente a un altro soggetto, che gli subentra nel rapporto con contraparte” (Il contratto, cit., p. 553).

42 Cita-se, como exemplo, a adoção de entendimentos antagônicos pelo Superior Tribunal de

Justiça no que diz respeito à cessão do mútuo habitacional – os chamados “contratos de gaveta”. As decisões daquela Corte têm orientado para a modulação dos requisitos da cessão da posição contratual no tempo.

43 CC, art. 425: “É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas

neste Código”.

44 No Brasil, entre os autores que sustentam a admissibilidade da cessão da posição contratual em

razão da autorização do artigo 425 do Código Civil para a celebração de contratos atípicos, destaca-se Hamid Charad Bdine Jr. (Cessão da posição contratual, cit., p. 38). O autor, contudo, considera desnecessária a previsão normativa da disciplina genérica da cessão da posição contratual.

(31)

Se é certo que a ausência de capítulo específico do Código Civil de 2002 pode conduzir a aparente lacuna no ordenamento, é certo, também, que o intérprete dispõe de dispositivos funcionalmente compatíveis colhidos da legislação especial e de outros títulos da codificação, por meio dos quais, com uso da analogia, poderá integrar a indesejável incompletude do ordenamento, mediante análise da pertinência funcional com o caso concreto.

Com efeito, os modos de transmissão das obrigações previstos no título II do Código Civil correspondem a importante, mas incompleta, diretriz para o delineamento da cessão da posição contratual no Brasil, que não corresponde a mera combinação de cessão de créditos e assunção de dívidas.

Em Portugal, antes da previsão expressa do instituto no Código Civil, Inocêncio Galvão Teles sustentava, quanto à utilidade de eventual previsão normativa por vir, que “a lei futura não só deve regular a cessão de contrato, até aqui desprezada por completo, como tem de a facilitar, porque ela corresponde a uma real existência do comércio”.45

Pode-se dizer, assim, que, ainda que, em contexto histórico social diverso,46

o sistema jurídico brasileiro demanda sistematização das regras a respeito da cessão da posição contratual, não apenas com o objetivo de facilitar e promover, mas, também, de legitimar tais negócios de modo sistemático e coerente.

45 Inocêncio Galvão Teles, em 1950, foi responsável pela elaboração de relatório sobre o panorama

da cessão da posição contratual em Portugal, antes da previsão expressa no Código Civil português de 1966, para a Academia Internacional de Direito Comparado de Haia, tendo sido designado relator geral do problema da cessão de contrato pela referida Academia. Em tal oportunidade, recebeu relatórios nacionais de vários países e formulou seu relatório final, publicado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (GALVÃO TELES, Inocêncio. Cessão do contrato, cit., p. 27).

46 António Manuel Hespanha esclarece que os institutos são diretamente relacionados ao contexto

histórico em que estão inseridos e as soluções jurídicas estão vinculadas ao tecido social a ela subjacente, em que estão contidos os valores e escolhas feitos pela ambiente considerado: “A história do direito realiza esta missão sublinhando que o direito existe sempre em sociedade (situado, localizado) e que, seja qual for o modelo usado para descrever as suas relações com os contextos sociais, (simbólicos, políticos, econômicos, etc.), as soluções jurídicas são sempre contingentes em relação a um dado envolvimento (ou ambiente)” (HESPANHA, António Manuel.

Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milênio. Lisboa: Publicações Europa-América, 2003, p.

15). Neste trabalho, estabeleceu-se como opção metodológica a análise da disciplina da cessão da posição contratual na Itália e em Portugal, com a preocupação de contextualização histórico-social, de modo a tentar evitar os riscos de aproveitamentos inadvertidos do direito comparado.

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