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A sociedade de consumidores e o processo "devorador do mundo": uma inserção no pensamento político de Hannah Arendt

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Academic year: 2021

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A sociedade de consumidores e o processo "devorador do mundo": uma inserção no pensamento político de Hannah Arendt

Anyele Giacomelli Lamas1

Eixo temático: Pesquisa, Artes, Mídias e Educação.

Com o intuito de discutir acerca do surgimento e da expansão da sociedade de consumidores na contemporaneidade e do sentido da educação num tal contexto, mobilizamos alguns conceitos trazidos à tona por Hannah Arendt, quando ela nos instiga a pensar sobre algumas características do "mundo moderno". Cabe, primeiramente, ressaltar que o que a autora entende a respeito do "mundo moderno" não coincide com o que ela entende por "era moderna" ou por modernidade. Para ela, "cientificamente, a era moderna que começou no século XVII, terminou no limiar do século XX; politicamente, o mundo moderno em que vivemos hoje nasceu com as primeiras explosões atômicas" (ARENDT, 2011, p. 7).

Ainda que Arendt tenha escrito acerca do mundo moderno a partir de meados dos anos 50, num contexto político e social distinto do nosso, consideramos que seus escritos

ainda dizem muito respeito à forma como nos relacionamos com o mundo com a cultura2 e

podem, com isso, nos ajudar na tentativa de compreender este modo de relacionamento. Cabe mencionar que o "mundo", tal qual Arendt o concebe, não é o mesmo que a Terra, que condiciona a vida da espécie humana em termos orgânicos e naturais. Se a natureza e a Terra constituem a condição da vida da espécie humana, é apenas por meio da construção e da manutenção de um mundo humano, com as coisas que o constituem e com os negócios realizados entre os que o habitam em comum, que a vida humana tem condições de estar em casa na Terra.

Ao tratarmos do tema do surgimento e da expansão da sociedade de consumidores no mundo moderno, e do predomínio da lógica do consumo para grande parte das atividades realizadas pelos homens, propomos, inicialmente, uma breve análise das principais atividades que constituem a condição humana, de acordo com Arendt. Para ela, tais atividades são o trabalho, a obra e a ação e elas fazem parte da condição humana,

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Aluna do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).

E-mail: anyele.lamas@usp.br 2

É importante mencionar que a referência de cultura para Arendt é o conceito estrito de origem romana que diz respeito a tornar a natureza num lugar habitável para as pessoas e também se refere ao cuidado com os monumentos do passado (ARENDT, 2011). De modo que não se trata de uma definição de matriz conceitual antropológica.

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porque condicionam nossa existência no mundo, uma vez que, este, além de ser uma espécie de palco onde elas podem acontecer, é constituído dos produtos advindos de tais atividades.

De modo geral, o trabalho diz respeito ao metabolismo do homem enquanto ser vivente com a natureza, no sentido de preservação da própria vida. O trabalho destina-se, de tal forma, a suprir às principais necessidades de sobrevivência e reprodução dos homens e os produtos resultantes dessa atividade destinam-se ao consumo. Do ponto de vista do mundo, as coisas advindas do trabalho são as menos mundanas e mais naturais, são apenas funções para garantir e manter a vida. À medida que vão sendo produzidas, são consumidas e retornam ao sempre-recorrente movimento cíclico da natureza. Trabalho e consumo constituem-se, desse modo, como dois estágios do mesmo processo de manutenção e reprodução da vida e, para tanto, destroem e devoram toda matéria da natureza ou a própria durabilidade do mundo.

Além de garantir a sobrevivência da espécie humana por meio do trabalho e do posterior consumo de seus produtos, os homens são dotados da capacidade de fabricar objetos que perduram mais que o tempo de vida de seus criadores. Nesse sentido, a obra corresponde à criação de um mundo humano artificial, uma morada duradoura na Terra que abriga diversas gerações de homens e que transcende à existência de cada vida individual. Como os frutos da obra ajudam a compor o mundo, sua condição é a "mundanidade" e eles não são destinados ao consumo, mas ao uso. Por tal motivo, estes produtos podem se desgastar, mas não tendem a desaparecer do mundo assim como os bens de consumo.

Por fim, Arendt define a ação como a atividade que não é nem pautada na relação do homem com a natureza e nem na sua relação com artefatos que compõem o mundo, mas que ocorre diretamente entre os homens que o habitam. E porque cada um destes homens é um ser absolutamente diferente dos demais, singular na forma como se constitui e como aparece aos outros, a condição humana da ação é a pluralidade, correspondente ao fato de que "os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo" (ARENDT, 2011, p. 8). A ação é a atividade humana que mais tem a ver com a forma política de lidar com a pluralidade dos homens. Nesse tipo de relacionamento, os homens constituem um mundo comum em que compartilham histórias e experiências comuns, que lhes possibilita certo grau de profundidade no tocante à sua existência.

O mundo que construímos e habitamos como sendo a morada humana na Terra não depende, dessa forma, exclusivamente de nossa capacidade de fabricar objetos tangíveis e duráveis, mas também do caráter plural da condição humana. A realidade do mundo se relaciona diretamente com o que é comum aos homens, com o que pode ser visto e ouvido por todos e que pertence, desse modo, ao domínio dos assuntos públicos.

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Ao definirmos, em linhas bem gerais, o que Arendt entende por cada uma das três atividades primordiais que constituem a condição humana, não pretendemos nos aprofundar nessas conceituações, mas partir delas para conseguirmos compreender como a autora analisa o surgimento e a expansão da sociedade de consumidores no mundo moderno. Segundo ela, a sociedade moderna conseguiu levar a cabo os anseios da era moderna em relação à emancipação dos trabalhadores, por meio do progresso científico e do desenvolvimento técnico. Os homens puderam, finalmente, ver concretizado seu antigo ideal de liberação do fardo do trabalho e da sujeição à necessidade. No entanto, como a esfera

social3 constituiu-se enquanto a organização pública do processo vital, todas as

comunidades modernas transformaram-se em sociedades de trabalhadores, agrupadas em torno de atividades necessárias apenas para manter a vida individual e da espécie.

A sociedade de trabalhadores, que vê a lógica do trabalho glorificado alastrar-se para os outros âmbitos de atividades humanas, não surgiu, todavia, com a emancipação das classes trabalhadoras, mas com a emancipação da própria atividade do trabalho em relação às demais. Nela, os indivíduos "concentram-se imediatamente em torno da única atividade necessária para manter a vida" (ARENDT, 2011, p. 56): o trabalho, pois consideram tudo o que fazem como um meio de "ganhar a vida". Arendt nos aponta, então, um dos maiores paradoxos do mundo moderno, em que

É uma sociedade de trabalhadores a que está para ser liberada dos grilhões do trabalho, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais significativas em vistas das quais essa liberdade mereceria ser conquistada. [...] O que se nos depara, portanto, é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única a atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior. (ARENDT, 2011, p. 5-6).

Como o trabalho e o consumo são, de acordo com Arendt, dois estágios do mesmo processo do metabolismo do homem com a natureza para a manutenção da vida, dizer que vivemos numa sociedade de trabalhadores é o mesmo que dizer que vivemos numa sociedade de consumidores. E o que mais nos chama a atenção nessa sociedade, que lida com diversas possibilidades abertas pelo desenvolvimento da automação, é que mesmo estando quase que completamente liberada da necessidade de trabalhar e da dor e do esforço envolvidos nessa atividade, a sociedade não tenha se emancipado da necessidade

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De acordo com Arendt, na era moderna, a esfera social ou a "boa sociedade" dos séculos XVIII e XIX representa a administração e gestão do que é privado "do sombrio interior do lar para a luz da esfera pública" (ARENDT, 2011, p. 46). Não apenas a antiga fronteira entre os domínios público e privado ficou esgarçada, mas os dois termos tiveram seus significados alterados, tanto para o indivíduo quanto para o cidadão.

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de consumir, pois com a diminuição do esforço empenhado no trabalho, toda a "força de trabalho" passou a ser empregada no consumo. Assim,

O consumo isento de dor e de esforço não mudaria o caráter devorador da vida biológica, apenas o aumentaria até que uma humanidade completamente "liberada" dos grilhões da dor e do esforço estivesse livre para "consumir" o mundo inteiro e reproduzir diariamente todas as coisas que desejasse consumir. (ARENDT, 2011, p. 163).

De acordo com Arendt, o tempo livre que sobra da atividade de trabalhar não será, entretanto, destinado à realização de outras atividades enquanto os homens ainda estiverem sob o jugo da necessidade, não mais para prover seu próprio sustento, mas porque precisam consumir para restaurar sua capacidade produtiva e se divertir. Isso acarreta o problema social do lazer, de como propiciar às massas um período suficiente para manter inabalada sua capacidade de consumir. Além de resultar no problema, do nosso ponto de vista ainda mais grave, de como proporcionar às massas objetos que sirvam ao consumo e que se prestem ao lazer. Para tal demanda, a indústria de entretenimentos instaura e "busca saciar", os apetites mais vorazes de uma sociedade de massas ávida por diversão, tornando até mesmo os objetos duráveis fabricados por mãos humanas em bens de consumo4.

O paradoxo não acidental dessa lógica é que estes apetites instaurados pela indústria de entretenimentos são da ordem do “insaciável” e, nesse contexto, passamos a nos relacionar com os objetos de uso que constituem nosso mundo comum como se fizessem parte do processo vital. E esse "devorar o mundo" torna-se ainda mais evidente quando se dá em relação àqueles objetos fabricados por mãos humanas, mas que não têm nenhuma funcionalidade ou utilidade: as obras de arte5. Para a autora, as obras de arte podem ser consideradas "objetos culturais máximos" (ARENDT, 1972, p. 252), pois podem perdurar no mundo a despeito do ir e vir das gerações, sem perder, com isso, sua qualidade mais elementar, "a de apoderar-se do leitor ou espectador, comovendo-o durante os séculos" (ARENDT, 1972, p. 255).

As obras de arte são talvez os objetos mais mundanos dentre todas as coisas tangíveis, porque o critério mais adequado para julgar uma obra de arte não é nunca, de

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Pensemos, por exemplo, na rapidez com que substituímos um objeto de uso cotidiano por outro mais novo sem que o primeiro esteja completa ou parcialmente desgastado, num ciclo de produção, consumo e descarte que torna o desperdício imprescindível para todo o processo de produção em massa.

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Para efeito da discussão travada no presente trabalho, levaremos em consideração a concepção de obra de arte extraída dos escritos de Arendt, e que se relaciona com as questões propostas quando pensamos que uma obra de arte, para a autora, é um objeto estritamente mundano.

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acordo com Arendt, sua utilidade ou seu ineditismo, mas sua beleza e sua eventual imortalidade.

É como se a estabilidade mundana se tornasse transparente na permanência da arte, de sorte que certo pressentimento de imortalidade – não a imortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal alcançado por mãos mortais – tornou-se tangivelmente presente para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, falar e ser lido. (ARENDT, 2011, p. 210).

Pelas mesmas mãos capazes de construir uma morada na Terra, os homens conseguem reificar e transformar seu pensamento6 em realidade tangível e durável, para além do tempo de duração de suas próprias vidas. Por meio dos objetos que fabricam, podem chegar a comover homens de gerações vindouras, deixando-lhes como herança um testemunho de seu pensamento e de seu próprio tempo. Nesse sentido, a relação que se tem com os objetos culturais não deveria ser nem a que temos com os objetos de uso, nem com os bens de consumo. Uma vez que "a cultura é ameaçada quando todos os objetos e coisas seculares, produzidos pelo presente ou pelo passado, são tratados como meras funções para o processo vital da sociedade, como se aí estivessem somente para satisfazer a alguma necessidade" (ARENDT, 1972, p. 261).

Com a passagem da sociedade para a sociedade de consumidores, a relação que os homens estabelecem com os objetos culturais sofreu alterações que tem mudado o lugar que a arte ocupa no mundo como uma das formas privilegiadas de o compartilharmos com outros homens. A sociedade de massas de consumidores tem transformado os objetos culturais em bens de consumo e os devorado tão rapidamente como devora alimentos essenciais à vida. Essa sociedade não devota seu tempo livre à cultura, mas à diversão e, nesse contexto, a indústria de diversões e os meios de comunicação de massas, não apenas produzem bens de consumos novos e inéditos, mas se aproveitam da gama de objetos culturais do passado e alteram suas principais faculdades, transformando-os em bens de rápida degustação. De acordo com a autora, isso não significa, como poderíamos supor, que as massas passam a ter acesso à cultura a que antigamente só os mais ricos poderiam ter, mas que a cultura vai sendo destruída na medida em que nos relacionamos com seus objetos como se estivessem no mundo apenas para nos entreter. Desse modo,

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O pensamento não é entendido por nós como cognição nem como capacidade de raciocínio lógico. De acordo com Arendt, "a principal manifestação dos processos cognitivos, através dos quais adquirimos e acumulamos conhecimento, são as ciências" (ARENDT, 2011, p. 213). Já a capacidade de raciocínio lógico "se manifesta em operações tais como deduções de enunciados axiomáticos ou autoevidentes por si mesmos, na subsunção de ocorrências particulares a regras gerais, ou nas técnicas para prolongar cadeias sistemáticas de conclusões" (ARENDT, 2011, p. 214). O pensamento, não tem outro fim ou propósito além de si mesmo, nem chega a produzir resultados. "Fonte das obras de arte, o pensamento se manifesta, sem transformação ou transfiguração, em toda grande filosofia" (ARENDT, 2011, p. 213).

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Crer que tal sociedade há de se tornar mais "cultivada" com o correr do tempo e com a obra da educação constitui, penso eu, um fatal engano. O fato é que uma sociedade de consumo não pode absolutamente saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central ante todos os objetos, a atitude de consumo, condena à ruína tudo em que toca (ARENDT, 1972, p. 264).

Sem a estabilidade e solidez do artifício humano, o abrigo da criatura mortal e instável que é o homem torna-se deveras frágil, e temos de lidar com o fato de termos um mundo de coisas quase tão instável e efêmero quanto nossas próprias vidas. Estamos lidando com a perda da morada tipicamente humana na Terra. Afinal, nosso lar terreno só se torna um mundo, no sentido arendtiano, se as coisas fabricadas por mãos humanas forem organizadas de tal forma que possam resistir ao processo consumidor das pessoas e da sociedade.

É porque o mundo deve conter um espaço público capaz de relacionar e de separar os homens entre si, que ele não pode ser concebido e construído apenas para a geração dos que estão vivos, mas precisa transcender a vida destes, tanto no passado quanto no futuro. A existência de um domínio público e a transformação do mundo num "espaço-entre" os homens depende de alguma permanência, de uma potencial imortalidade que torne possível a sobrevivência do mundo a despeito da chegada e partida de diferentes gerações. Tais considerações, acerca do modo como nos relacionamos com a cultura e com seus objetos, nos instigam a pensar sobre algum sentido para a educação num mundo que perdeu a força de relacionar e de separar os homens entre si, já que estes têm se preocupado primordialmente com a manutenção da vida. Arendt não descarta a necessidade de preservação da vida das crianças que adentram o mundo pelo nascimento, afinal, "a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação" (ARENDT, 1972, p. 235). Enquanto um ser humano em formação, a criança partilha com todas as criaturas vivas ainda não concluídas o estado de vir a ser e, nesse sentido, cabe aos adultos a tarefa de proteção e cuidado de sua vida, para que nada de destrutivo lhe aconteça.

No entanto, a educação, tal qual a concebe Arendt, não se limita à preservação da vida das crianças, já que estas foram inseridas em um mundo tipicamente humano. De acordo com a autora, "a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo" (ARENDT, 1972, p. 235). Assim, os pais e educadores, de modo geral, assumem na educação não só a responsabilidade pela manutenção e cuidado da vida dos recém-chegados, como também pela proteção do mundo, para que não seja destruído pelo furor do novo, que cada nova geração carrega. Deixado à sorte daqueles que o adentram

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pelo nascimento, o mundo está em constante ameaça, pois é sempre mais velho que eles e simplesmente não lhes diz respeito. Se uma nova geração não conseguir compartilhar com as anteriores algum sentido para o artefato humano, ele tende a desaparecer; daí a relevância mundana da educação como um processo de iniciação dos novos num mundo comum.

As duas responsabilidades assumidas pelos educadores, tanto em relação ao cuidado da vida quanto em relação à proteção do mundo, não necessariamente coincidem e podem entrar em conflito mútuo. Para se desenvolver plenamente e em segurança, a criança precisa ser protegida do aspecto público do mundo. Não é por acaso que o lugar tradicional da criança é a família, cujos membros criam uma barreira contra a luz do mundo público, resguardando-se no seio do domínio privado. No entanto, com a ascensão da esfera social, em que os assuntos do domínio privado passaram a ser expostos e geridos à luz do domínio público, as crianças também começaram a ser expostas ao aspecto público do mundo. De acordo com Arendt, essa exposição representa abandono e traição quando se tratam das crianças, uma vez que elas ainda não estão preparadas para lidar com o fato de verem e serem vistas, falar e serem ouvidas, tal qual os adultos capazes de agir publicamente, assumindo a responsabilidade por seus atos e palavras.

A exposição das crianças à luz do mundo público não se dá, contudo, como um elemento isolado do que Arendt considera ser a crise na educação no mundo moderno. Ao mesmo tempo em que os adultos têm se eximido de sua responsabilidade perante aos recém-chegados, abandonando-os aos seus próprios recursos, também têm se eximido de sua tarefa de preservação do mundo comum, à medida que destroem e devoram seus objetos e artefatos por meio da atitude do consumo. Se na educação, a responsabilidade do educador perante o mundo assume a forma de autoridade, ele responde às crianças como alguém que pertence ao mundo e que o representa, já que está inserido nele há mais tempo que os recém-chegados pelo nascimento. Como a autoridade vem sendo recusada pelos adultos, "isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças" (ARENDT, 1972, p. 240).

A crise da autoridade na educação revela apenas uma das facetas da crise mais geral que acomete o mundo moderno, uma vez que está diretamente relacionada com a crise da tradição, "ou seja, com a crise de nossa atitude face ao âmbito do passado" (ARENDT, 1972, p. 243). Num tal contexto, os objetos, artefatos e narrativas que compõem o mundo comum, por fazerem parte de uma tradição que os salvou da ruína natural do tempo, passam a ser devorados e consumidos, como se não dissessem mais respeito a uma tradição do qual nós próprios fazemos parte. Isso nos coloca questões importantes quando tentamos dotar a educação de algum sentido em nossos dias. De acordo com

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Arendt, "o problema da educação no mundo moderno está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição” (ARENDT, 1972, p. 246).

Apenas num mundo relativamente estável pode o novo acontecer. A renovação do mundo comum, que o salva da repetição contínua, só ocorre na medida em que a novidade de cada ser singular possa aparecer e se fazer sentir entre os homens como algo novo, em relação a algo velho. De tal modo, a renovação do mundo depende de alguma permanência e estabilidade. Caso contrário, haveria um fluxo infindável, onde nada pode ser novo nem velho: é apenas movimento.

A fim de evitar mal-entendidos: parece-me que o conservadorismo, no sentido de conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo. [...] Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição. (ARENDT, 1972, p. 242-243).

Ainda que nos sintamos sempre um pouco estranhos nesse mundo, ele é a nossa morada humana na Terra, é o lar imortal que abriga a criatura mortal que é o homem. E mesmo que queiramos que o mundo seja diferente, é apenas nele que podemos compartilhar com outros homens experiências comuns, a partir das quais conseguimos dar algum sentido à nossa existência. E é apenas preservando o que constitui nosso mundo comum, com seus artefatos e suas histórias, que o novo poderá irromper, tirando-o do automatismo.

Referências

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

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______. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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CARVALHO, José Sérgio Fonseca de. Reflexões sobre educação, formação e esfera pública. Porto Alegre: Penso, 2013.

CORREIA, Adriano. O desafio moderno: Hannah Arendt e a sociedade de consumo. In: MORAES, Eduardo Jardim de; BIGNOTTO, Newton (orgs.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. p. 227-245.

YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.

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