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Ditirambos de criança: a potência e a tragédia das novas e mesmas formações

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Academic year: 2021

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LAURA GRASIELA OLIVEIRA

DITIRAMBOS DE CRIANÇA – A POTÊNCIA E A TRAGÉDIA DAS NOVAS E MESMAS FORMAÇÕES.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal de Santa Catarina, para obtenção do título de Mestra em Educação.

Orientadora: Profª. Lúcia Schneider Hardt, Drª

Florianópolis-SC 2017

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Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Oliveira, Laura Grasiela

Ditirambos de criança: A potência e a tragédia das novas e mesmas formações / Laura Grasiela Oliveira; orientadora, Lúcia Schneider Hardt, 2017.

125 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação,

Florianópolis, 2017. Inclui referências.

1. Educação. 2. Criança. 3. Devir. 4. Tragédia. 5. Formação. I. Hardt, Lúcia Schneider . II.

Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Educação. III. Título.

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LAURA GRASIELA OLIVEIRA

DITIRAMBOS DE CRIANÇA – A POTÊNCIA E A TRAGÉDIA DAS NOVAS E MESMAS FORMAÇÕES.

Esta dissertação foi julgada adequada para obtenção do Título de Mestra em Educação e aprovada em sua forma final pelo Programa de

Pós-Graduação em Educação

Florianópolis, de 22 de Novembro de 2017. _____________________________

Prof. Dr. Elison Antonio Paim Coordenador do Curso

Banca Examinadora

____________________________ Orientadora: Prof.ª Dra. Lúcia Schneider Hardt Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

____________________________ Profa. Dra. Rosana Silva de Moura Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

____________________________ Prof. Dra. Franciele Petry

Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC ____________________________

Prof. Dr. José Fernandes Weber Universidade Estadual de Londrina - UEL

____________________________ Prof.ª Dr. João Paulo Polli Universidade Federal do Paraná - UFSC

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Este trabalho é da Alice e pela Alice. Pela menina que se faz presença em cada pedacinho de minha vida, e parece que já existia antes de nascer, com suas cores e jeitos próprios, obrigada por existir e por me fazer existir em decorrência disso como mãe e como educadora...

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AGRADECIMENTOS

Agradeço infinitamente à professora Lúcia pelo apoio e confiança neste trabalho. Pela sabedoria que me transformou e ainda me transforma.

Ao Rodrigo por ser companheiro e pai, pelas conversas e pelas discussões intermináveis, pelo suporte.

Ao Paulo, por estar sempre, todo dia, toda hora ali me mostrando que família é amor e nunca é como a gente acha que tem que ser...

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O Gato apenas sorriu ao ver Alice. Parecia afável, pensou ela: mas como tinha garras muito longas e tantos dentes, sentiu que deveria tratá-lo com respeito. “Gatinho de Cheshire”, começou, muito timidamente, por não saber se ele gostaria desse tratamento: ele, porém, apenas alargou um pouco mais o sorriso. “Ótimo, até aqui está contente”, pensou Alice. E prosseguiu: “Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?” “Depende muito de onde você quer chegar”, disse o Gato. “Não me importa muito onde...” foi dizendo Alice. “Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá”, disse o Gato. “...desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice, explicando. Lewis Carroll.

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RESUMO

O estudo se inicia com a análise da crítica nietzschiana ao racionalismo socrático, articulada ao que irá se revelar como as bases do modelo iluminista de aprendizagem, defendido aqui como insuficiente da perspectiva que reflete sobre o desenvolvimento formativo constituinte do humano. Para tal adágio, será desenvolvida um breve estudo sobre o culto grego ao mito, contraposto ao modelo formativo moderno. A figura simbólica de Dionísio, elogiada por Nietzsche enquanto formadora do ethos grego, é pareada então com a potência própria da criança e a argumentação visa demonstrar que tais aspectos não são calculados pelo modo puramente racionalista de construção de mundo, apesar de constitutivos do ser. O estudo se desenvolve analisando o conceito de devir, a brincadeira enquanto ingrediente próprio da capacidade humana em criar regras e invoca a finitude enquanto modalidade não apenas da presença e sim do próprio mundo. Interligando a ideia de maturidade com o desenvolvimento da Razão e o de natureza humana ao que é próprio de cada um, ou seja, o prosseguir do nascimento até a vida adulta e a figura da criança enquanto devir, o debate aqui fomentado indica que a potência inventiva e criativa seria natural ao humano, enquanto que o pensamento racionalista, colocado como maturidade, acabaria por colocar o humano no fim da própria história: despotencializado do que lhe é próprio, voltado a uma faceta de seu ser, este humano, colocado desta forma, não poderia então, sob tais condições, transvalorar à sua condição - servil, antinatural - eis uma anti-tragédia da formação moderna, justamente porque não finda. O estudo se encaminha então para a afirmação de que a rigidez das instituições educacionais não é o que solidifica a tradição, o que o faz é justamente a potência inventiva, seu oposto. Longe de querer prescrever uma nova forma de pedagogia, o presente trabalho, ao elogiar a obra nietzschiana, convida a potência de cada um a criar as próprias conclusões sobre como tornar-se quem se é, mas nunca quem se deve ser.

Palavras-chave – Criança; Devir; Tragédia; Apolíneo-Dionisíaco; Transvaloração; Formação.

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ABSTRACT

The study begins with the analysis of the Nietzschean critique of Socratic rationalism, articulated to what will be revealed as the basis of the Enlightenment learning model, defended here as insufficient of the perspective that reflects on the constitutive formative development of the human. For this adage, a brief study on the Greek cult of myth will be developed, as opposed to the modern formative model. The symbolic figure of Dionysius, praised by Nietzsche as the forerunner of the Greek ethos, is then paired with the child's own potency, and argumentation seeks to demonstrate that such aspects are not calculated by the purely rationalist mode of world-building, though constituting the being. The study is developed analyzing the concept of becoming, play as a proper ingredient of human capacity to create rules and invokes finitude as a modality not only of presence but of the world itself. Connecting the idea of maturity with the development of reason and the idea of human nature to what is proper to each one, that is, to proceed from birth to adulthood and the figure of the child as becoming, the debate here fomented indicates that the power inventive and creativity would be natural to the human, while rationalist thought, placed as maturity, would placing the human as the end of his own history: unpowered of his own resources, focused on a single facet of his being, this human, under such conditions, cannot transvaluate to their condition - servile, unnatural - this is an anti-tragedy of modern formation, precisely because it does not ends. The study is directed to the assertion that the rigidity of educational institutions is not what solidifies tradition, what it does is precisely the inventive power, its opposite. Far from wanting to prescribe a new form of pedagogy, the present work, praising Nietzsche's work, invites the power of each one to create his own conclusions on how to become who everyone is, but never who everyone should be.

Keywords - Child; Becoming; Tragedy; Apollonian-Dionysian; Revaluation; Formation.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 15 CAPÍTULO 1 – QUANTA VERDADE SUPORTA TUA PRESENÇA? ... 21 1.1 A TERRITORIALIZAÇÃO E MORTE DE KONTON. ... 21 1.2 A QUATERNIDADE E O PARADOXO ENTRE A REALIDADE OBJETIVA E A CRIAÇÃO SUBJETIVA – CONSTRUINDO UM CENÁRIO E TRABALHANDO DUALIDADES – ENTRE DEUSES, HUMANOS, CÉUS E TERRA. ... 29 CAPÍTULO 2 – DOS LUGARES QUE OCUPAMOS NO MUNDO ... 45 2.1 DIÓGENES SEGUE COM SUA LANTERNA NA ACRÓPOLE, O LOUCO SEGUE COM SUA LANTERNA NO MERCADO E NÓS SEGUIMOS COM A LANTERNA ACESA NA ESCOLA ... 45 2.2 A TRAGÉDIA DA MODERNIDADE – O TEMPO DEVERIA LEVAR TUDO, MAS NÓS NÃO DEIXAMOS. ... 58 CAPÍTULO 3 – A DANÇA DO TEMPO E DO MUNDO NO RÍTMO UNÍSSONO DO CORO DE DEVIR ... 65 3.1 QUANTO ÉS CAPAZ DE SUBIR AO DEIXAR PARA TRÁS TODO ESSE PESO? ... 65 3.2 A CRIANÇA ENQUANTO DEVIR – O ETERNO RETORNO DOS DEUSES ... 71 3.3 “E AGORA EU ERA UM LOUCO A PERGUNTAR O QUE É QUE A VIDA VAI FAZER DE MIM”... ... 81

CONCLUSÃO TRANSVALORAR DIONÍSIO

EX-MACHINA ... 97 4.1 HÁ SEMPRE UM LADO QUE PESA E OUTRO LADO QUE FLUTUA, A TUA PELE É CRUA! ... 97 4.2 EVOÉ DIONÍSIO – A FINITUDE DO ÚLTIMO HOMEM NÃO PODE SER MASCARADA PARA SEMPRE! QUE HAJA A TRAGÉDIA... ... 105 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 109

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ANEXO - PEQUENO ENSAIO SOBRE A PRESENÇA QUE INSISTE ... 115

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INTRODUÇÃO

Agora a essência da natureza deve expressar-se por via simbólica; um novo mundo de símbolos se faz necessário, todo o simbolismo corporal, não apenas o simbolismo dos lábios, dos semblantes, das palavras, mas o conjunto inteiro, todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos. (NIETZSCHE, 2007, p. 32)

Embora não seja o principal eixo deste trabalho, é primordial que iniciemos tratando a ideia nietzschiana de transvaloração. A citação que preludia o texto é uma ode ao novo, ao porvir! Novos símbolos se fazem necessários, símbolos da carne, que ultrapassam as linhas do teorizar, que dançam. O corpo dança! Transvalorar, na obra nietzschiana e em suas diversas nuances não é um conceito fácil. Diz de uma valoração feita de outro modo, contudo não há como prever como será reconfigurado um valor recolocado; embora fique extremamente claro em sua obra o que se deva superar1. É muito problemático querer definir como outros corpos

devam se portar, sentir, se afetar ou seguir, nivelados por uma ideia que afeta à forma como nos entendemos no mundo. Eu, com minhas vivências, sentimentos e afetos poderia preencher todas essas linhas cruzando diferentes saberes, ontologias e físicas, cosmologias e conceitos, obras e relatos para dizer da fermentação que a experiência de minha própria vida fez ao vislumbrar da ideia do transvalorar e seguir: “façam assim! Sigam por aqui! Amarrando Nietzsche, talvez com Goethe, Freire, Foucault e uma pitadinha dos frankfurtianos certamente conseguiríamos!” – eis um novo projeto de além do homem! Mas não deixa de afetar também uma centelha em meu interior que diz que a minha vida é minha, me diz respeito – tão cara a mim – mulher, mãe, educadora, portadora de espírito e voz a tão pouco tempo histórico e ainda sofrendo pelas feridas não cicatrizadas desses golpes no meu vir a ser enquanto mulher. Sentir o que é o silenciamento na experiência de vida,

1 “A Moral antinatural, ou seja, quase toda moral até hoje ensinada, venerada e pregada, volta-se, pelo contrário, justamente contra os instintos da vida – é uma condenação, ora secreta, ora ruidosa e insolente, desses instintos. Quando diz que “Deus vê nos corações”, ela diz Não aos mais baixos e mais elevados desejos da vida, e toma Deus como inimigo da vida... O santo no qual Deus se compraz é o castrado ideal... A vida acaba onde o “Reino de Deus” começa.” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Transcrevo o trecho de forma ilustrativa e como um pequeno exemplo.

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principalmente a acadêmica, e ter voz, não me empurra para o lugar daqueles que falaram por mim, pelo contrário, me recorda que absolutamente todos têm algo a dizer, por mais heterogêneo e contrastante que as vozes sejam. Então, escrevo essa introdução já anunciando que aqui não estará contido uma ideia do “para onde” transvalorar. Agir assim é como escrever uma bula. E algo que me afeta diretamente pelo contato com as reflexões nietzschianas coloca o problema com as bulas na constatação de que elas pretendem receitar a forma precisa de como deveríamos nos curar. Esse problema das bulas pode ser simbiogizado com a ideia do transvalorar: não se pode dizer qual humanidade devemos superar porque nem todos, ou mesmo ninguém partilha dos mesmos inícios, aspirações, ideias, juízos, etc., mas mesmo assim acreditamos que podemos criar receitas que nivelem o bem-estar geral, que minimizem os danos do viver em sociedade, que capacite os seres humanos a se relacionarem uns com os outros, mas de forma artificial. Deixe-me explicar melhor: o ser humano, animal vivente nesse planeta Gaia, nasce! A obviedade da constatação camufla, de certa forma, uma questão filosófica que fica sempre latente, numa quase ebulição e que diz: nasce o animal humano, pequeno, frágil e, do lugar onde me encontro enquanto “madura”, posso dizer: vazio – de símbolos, significados, significantes, códigos, medidas, juízos, etc. e que definem exatamente o ponto onde me encontro para dizer dele. Este pequeno ser precisará de cuidados e educação. Cuidados, pois, incapaz de manter vivo a si mesmo, precisará de proteção e zelo de cuidadores já “formados”. Educação para poder adentrar e compartilhar o mundo criado e mantido por esses formados. Um mundo complexo de símbolos, significados, códigos e caminhos específicos, de imagens que na maioria das vezes dizem mais do que a imediatez do vislumbre do olhar, de sons que carregam inúmeros sentidos, de palavras, metáforas, subjetividades, cultura.

Por esse pequeno ser ter nascido em um mundo construído e estabelecido por “humanos”, tornou-se historicamente necessário que seja educado sob normas e prescrições criadas e que sirvam a todos, em igual medida, quando se está entre iguais. Contratos. Utilidades. Formas que definem o que é o “ser humano”, sua maturidade, seu acabamento e principalmente até que ponto esse pequeno ser deva crescer para ser visto como um igual. Assim, afastando-nos da necessidade ou não do estabelecimento de um contrato para que vivamos bem e em paz socialmente, da necessidade ou não de leis que regem a todos, atentemo-nos por um instante nesse detalhe: a esse ser que nasce é dado um mundo já estabelecido e compactuado, do qual ele deva aprender a compartilhar, seja pelos progenitores, pelos cuidadores ou educadores, mas sobretudo

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existe um devir nesse ser que afirma: sou potência! Esse pequeno ser, impenetrável a nós de corpos adultos, vai necessariamente, em condições regulares da espécie humana, aprender a falar, a se relacionar, a mostrar o que quer e o que tem. E somente depois de ser capaz de fazer a ponte entre o mundo circundante e seu mundo interior, irá falar sobre o como deve ser, contratualmente, a vida em sociedade, ou a formação dos menores. Não sejamos ingênuos de acreditar que a forma como o mundo se apresenta a ele não exerça influência em seu construir mundo. Por mais que existam estudos sobre a determinância genética na formação, o ambiente circundante, marcado também por aspectos subjetivos e simbólicos, exerce influência no desenvolvimento ontogenético da criança2.

Dito de outra forma, é necessário o formado para que se estabeleçam contratos, estudos, investigações que vão servir como determinantes e que sejam de comum acordo estabelecidas e passem a vigorar como regra, ou seja – nesse caso, tratando da criança, adultos que forjam artificialmente um mundo que se estabelecerá como natural devido ao fato de a criança ter de aprender como se deve ser humano. E voltamos à questão: a criança, independente do meio artificial (que figura então, como uma convenção que se estabelece como verdade de mundo) onde nasceu, já possui a potência de transformar esse caos, chamado há algumas linhas acima de “vazio”, em forma. Essa dissertação busca recriar o caminho de reencontro à essa criança, afirmando que a forma não esgota o caos, muito pelo contrário, pode ser impulso para o mergulho em um território desconhecido. Mas, além desse elogio ao inominável, busca elucidar que a formação artificial, por mais bem intencionada e eficaz que seja, mesmo ao pensar em escalas maiores3 e universalizantes,

2 Para maiores elucidações: capítulo 2 de Psicologia e Pedagogia da criança, Maurice Merleau-Ponty – Estrutura e conflitos da consciência infantil – Noção de desenvolvimento. Martins Fontes, 2006.

3 Referência ao conceito de “educação Maior”, cunhado por Silvio Gallo, em analogia aos conceitos de “Literatura maior e menor” de Deleuze e Guattari, onde tanto a Literatura quanto a Educação Maiores são responsáveis por uma territorialização e homogeneização do que se entende usualmente quando se invoca tais termos: “a educação maior é aquela dos planos decenais e das políticas públicas de educação, dos parâmetros e das diretrizes...” (GALLO, 2016, p.64.). Territorializar é entendido como um pertencer, uma circunscrição que define o que é o conceito, a coisa, o símbolo, a substância, criando assim uma borda: o que está por dentro da borda é, o que está fora, não é. Como não se pode tornar estático um território, este é o tempo todo subvertido e rasgado por devires, em

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acaba por despotencializar a força criativa intrínseca à cada um e, ao mirar o nivelamento, coloca uma medida em cada humano que nasce, assim, tornando fraca outras facetas também constituintes desse ser – o transvalorar, o devir, o apreender o novo, o transformar e brincar, mantendo-o aplainado com uma ideia secularizada de maturidade, desenvolvimento, ser humano – ou seja – educa para estabelecer e consolidar o mundo retirando do ser humano o que dele é próprio – potência!

“Se fazer4 gênio e carne” (NIETZSCHE, 2008, p. 102) – eis o

porquê de o transvalorar. A filosofia nietzschiana, longe de buscar estabelecer novas bulas para curar os que padecem da doença do humanismo, afirma que não devemos nos conformar com uma ideia acabada de humano. Assim como que o porta-voz do cristo na terra, Paulo, que acenava pela imagem do cristo na cruz como uma “transvaloração de todos os valores antigos e que o Renascimento, assim como Napoleão e Frederico II, representam uma tentativa de “proporcionar [aos] valores opostos, [aos] valores nobres a vitória sobre os valores cristãos” (NIEMEYER, 2014, p. 551), se acentuava no pensamento nietzschiano a afirmativa de que todo ente é apenas interpretação e perspectiva de mundo, tentarei, nas linhas que seguem, demonstrar que a criança, posta como ente próprio do que é humano nesse mundo, é o fio estendido entre o caos dionisíaco e o sonho estético apolíneo. Mais! Que a criança é o próprio do humano e, antes uma etapa da vida, resultado de um constructo histórico, ela é a nossa própria potência em movimento, resultando assim, a assertiva de que o que entendemos como humano maduro, formado, adulto não é nada mais do que um conceito, uma metáfora definida a partir de uma ideia que não contempla a complexidade do devir do ser que pensa sobre si mesmo, assentada nas bases do racionalismo. A criança então, potência própria e forma mais inventiva para definir o que aqui podemos ser, emerge como um eterno sim presente enquanto potência característica de nosso devir e direcionada afim de que acredite que, ao alcançar a maturidade, estaria pronta; mas não! Há muito ainda o que transvalorar, contudo, onde poderíamos chegar com tal afirmativa, isso eu jamais teria a pretensão de tentar dizer. “A questão em tudo e em cada coisa” (NIETZSCHE, 2012,

um processo entrópico que busca desterritorializar, agenciar (cooptar, convencer, reinventar!) a ideia de pertencimento a este território – no caso, o da educação. 4 No original: “Tresvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema autognose da humanidade, que em mim se fez gênio e carne” (NIETZSCHE, 2008, p. 102) – mudança do original e grifo por minha conta.

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p. 205) colocada aqui é que cada busca é única, assim como a potência em cada um.

O estudo desenvolve-se seguindo uma progressão de pensamentos, primeiramente delimitando as bases a serem perscrutadas, definindo o objeto de estudo aqui apresentado como a criança enquanto potência, porém, enquanto potência daquele que é nascido e que assim se transforma em um tipo específico de humano – o humano racional. Tendo por base essa ideia de humano, desenvolver-se-á, com base na construção hölderliniana de natureza e cultura, uma dicotomização destas, considerando que ambas são potência e características do processo de desenvolvimento, tanto individual quanto do humano situado historicamente. Desta forma, o arcabouço que fundamenta a construção de maturidade como hoje é entendida pode então figurar como processo histórico, possibilitando à criança um direcionamento ou uma abertura5 e

o que se defende aqui é que, a criança enquanto abertura é despotencializada pela formação nos modelos homogeneizantes atuais e, antes de formar para o cultivo de si, forma para a perpetuação da ideia histórica construída do que é ser humano.

Esta ideia da criança enquanto potência é aproximada da ideia desenvolvida por Nietzsche de Dionisíaco. A potência dionisíaca, entendida enquanto espírito da vontade de viver, de reinventar, de deixar morrer e ressurgir o novo é desenhada como aquilo inominável, presente em cada nascimento, mas também em cada ideia, em cada reinterpretação, em cada tradução. A questão que se coloca a partir daqui: como poderíamos nós deixar fluir essa potência, chamada aqui de devir-criança e que é intranscritível se, em cada momento que tentamos afirmar o novo, o que nos é tradição e estabelecido torna-se densidade e verdade exatamente no momento em que se faz expressar?

O estudo segue tentando alcançar uma ponta que talvez emane de tal intuição e brincando com os conceitos de tempo, mundo e devir-criança, talvez seja possível se afetar com os pesos e as cargas, sem fazer deles uma assertiva maior que a própria potência inventiva. A afirmação que permeia este estudo é a que se faz a tragédia no momento em que se a vive.

5 O conceito de Abertura em Heidegger está explicitado no anexo do texto e é trabalhado enquanto uma práxis da teoria na vida. Mais que trazer a definição tradicional do conceito, o intuito deste trabalho é fazer uma ponte entre a imobilidade dos escritos e o processo de afetação por eles, como será possível compreender no decurso do texto.

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CAPÍTULO 1 – QUANTA VERDADE SUPORTA TUA PRESENÇA?

1.1 A TERRITORIALIZAÇÃO E MORTE DE KONTON.

Procuro um território. A definição de território se fará mais precisa no terceiro capítulo, contudo, está aqui compreendido enquanto lugar familiar onde consigamos olhar para nós mesmos e nos identificar como pertencentes a algo comum. Um território que não tenha a pretensão de conter Gaia, olhando-a como unidade azul que paira no éter talvez infinito. Um território onde eu me enxergue e enxergue outros que também me veem, onde exista proximidade, um sentido à minha presença e onde meu corpo use linguagem comum que crie redes de significados e significâncias capaz de afetar a outros corpos.

Segundo Deleuze, “o território é o domínio do ter6”. Meu território

é meu tempo de vida, mas é também o tempo de outras vidas que cruzaram e influenciaram a percepção que tenho do mundo que me circunda. Não é um espaço, não é simplesmente um lugar no mundo. É um pertencer, encontrar-se: habitar subjetivo. Meu território é também uma história que não se encerra em mim, mas que remete à minha própria vivência, minha formação, minha trajetória; que diz respeito à outras trajetórias, outros corpos, outros tempos, que me atravessam em uma não continuidade, que devém e como potência me colocam defronte ao meu problema e seguem... Assim, me detenho fixa por um instante a olhar tal território, que longe de existir enquanto cenário que apresenta algo a mim, me toma em primeira pessoa e, por tal razão, assim se apresentará a narrativa do presente trabalho dissertativo.

Meu território contém uma densidade: a criança. Nascemos, crescemos. Saímos de um lugar e chegamos onde estamos. Formamo-nos para visitar um mundo comum. Não se trata aqui de simplesmente conceitualizar ou definir o que é “criança”, estabelecer diferenciações entre corpos formados, adultos e corpos infantis e sim, tratar de suas

potências. A criança é um indeterminado de ganho e está para se ganhar

enquanto o que pode ser, visto que ainda não se definiu. Em contrapartida, o adulto formado é uma medida, no sentido que entendemos enquanto um

6 O abecedário de Gilles Deleuze, disponível em <http://stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuze.pdf> - acesso em 23/09/2016.

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projeto de humano e assim o é em termos estruturais, sociais e culturais. Habito este lugar como medida, seja do que sou, do que fui e do que ainda não tenho acesso, mas busco. Posso dizer que há um mundo a se delimitar, uma borda para se definir, um território comum que cada criança a ser educada precise desenhar e habitar. E se autoencerrar em. Então há também uma propulsão de forças em direção à criança. Forças tão potentes que direcionam seu devir, que é a própria potência, como veremos ao ruminar a reflexão nietzschiana sobre potência e

transvaloração e dizem diretamente à criança enquanto metáfora

criadora, pleiteando-a.

Essas forças criam bordas e essas bordas criam chão, erguem paredes, determinam gravidades, passos, etapas e caminhos para se chegar a portas; criam também linguagem, símbolos, separações, significados e significantes e a torneira por onde o devir esguicha começa a se definir como palavra “torneira”, e o próprio devir cria nome e se perde quando se acha nessa palavra.

Recordo-me de um pensador oriental, D. T. Suzuki, que narra um conto de Chuan-tze7 em uma passagem do livro Zen Budismo e Psicanálise (1970) e que narra a história de Konton, ou simplesmente o caos. Konton era amigo de muitos seres que lhe gostariam de agradecer

por numerosos préstimos concedidos: o acaso, o caos sempre tomou a vida pela surpresa, sendo assim responsável por reviravoltas, esperança e promessas. Notaram os amigos que, não sendo dotado de órgãos sensoriais – nariz, olhos, boca – acharam por bem serem esses presentes valiosos e ofertaram a Konton tais dádivas, transfigurando-o em uma personalidade sensível tal qual os que ofertavam os presentes. Tomando forma, Konton morreu. Segundo Suzuki, os amigos que presentearam com forma o caos, à Konton, são uma metáfora para o Ocidente.

O Ocidente é uma medida que se define na forma em que usa e representa o mundo. Konton, por sua vez, é um significante sem forma, “que nunca se mostra de modo que se torne reconhecível aos participantes” (SUZUKI, 1970, p. 15). O significado do caos jamais se manifesta de forma com que fique reconhecível àqueles que com ele toma contato. É como o devir! O Ocidente, ao personificar nessa metáfora os amigos que deram forma a Konton, toma a medida do modo como operacionalizamos e sistematizamos nosso mundo circundante: um território. Contudo, há aquelas intuições que rasgam territórios, o perpassam e jamais permanecem – são movimento: são como música! Nós, ávidos por pertencer e fincar moradia, conceitualizamos, trazemos

7 Filósofo e poeta taoísta chinês, século III A.C.

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para o campo da linguagem, pensamos sobre, fundamentamos e compartilhamos através de uma linguagem comum aquilo inominável e o caos, potência dionisíaca para além do que se pode traduzir por símbolos intelectíveis, então morre e morre para dar lugar à um modus operandi novo, marcado pelo pensar sobre, pelo corpo que pensa, pela razão. Retornarei à Konton adiante.

Tomemos a crítica nietzschiana à modernidade como medida. Ela habita exatamente a proporção que este direcionamento – o culto à razão – tomou no Ocidente.

Em O Nascimento da Tragédia (1872), Nietzsche apontava, ao se referir ao caráter do povo grego, à um entrelaçamento fundamental entre “a arte e o povo, o mito e o costume, a tragédia e o Estado” (NIETZSCHE, 2007, p. 135). Oposições, dualidades que, a partir da reflexão nietzschiana, não demandam um maniqueísmo mortal, onde um polo busca a extinção de outro. Lembro-me de uma sabedoria popular que me abriu a perspectiva de pensar que sem as sombras, não há visão da luz, nada se ilumina: polos aqui se complementam, se impulsionam, potencializam, fazem girar a roda do fenômeno dicotomizado, criam movimentos, contrastes, intensidades que, dessa forma, abrem espaços, territórios novos, habitares novos, em uma dança fractal que não se esgota! Assim, ao analisar o declínio da tragédia na Grécia e relacioná-la à ascensão de um novo modus operandi – a razão – Nietzsche afirma que a hipervaloração de um em detrimento de outro caracteriza, antes um engessamento das potencialidades do ser do que um acabamento deste. A Razão e sua primazia aqui são então colocadas como um estagnar, e por isso, como território morto, é possível ver suas bordas, seus contornos, limitações e sobretudo, seu tamanho. Tal trabalho genealógico é o foco da investigação do Nascimento da Tragédia juntamente com o elogio às potências dionisíaca e apolínea, seus desconformes.

Reitero: uma aparente oposição entre o trágico e o científico revelaria uma oposição à própria dicotomia inerente ao ser, que, segundo Nietzsche, ao ter se iniciado justamente no momento de decadência da cultura grega (o prólogo usado por Eurípedes, que introduzia o expectador na cena, contextualizando-o e mais – por detrás desse fato, o cientificismo socrático!), adquire, a partir de então, características de uma continuidade transmutada e intensificada desse cientificismo, que se estabeleceu no século XIX e ali se fixou enquanto parâmetro, inclusive, para a análise do trágico e, acrescento, parâmetro educacional, estando separadas conceitualmente o que se define enquanto arte e ciência.

Assim, a questão da problemática do uso exclusivo da razão adquire uma proporção elevada quando Nietzsche a extrapola para pensar

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a experiência formativa. Um ano após a publicação de O Nascimento da

Tragédia, Nietzsche, redige Sobre Verdade e Mentira num Sentido Extramoral (1874), fragmento jamais publicado em vida, mas de suma

importância para as conexões de suas reflexões, e afirma que o conhecimento é uma invenção transitória, possível em um momento humano, efêmero: uma mentira condicionada pela vida. Por sua vez, o homem é capaz de enxergar apenas o que seus olhos conseguem ver e assim, toma como “todos os olhos” do Universo o seu ponto de vista. O intelecto passa a dominar a sensibilidade e será capaz de enganar o homem em relação ao valor de tais sensações, que estão condicionadas pelo tempo. Tal ferramenta de sobrevivência do frágil animal homem, o capacita, através de seus sentidos, a conhecer e sentir, mas essa forma de percepção demasiadamente humana é trazida à luz por Nietzsche como uma arrogância enganadora sobre o valor de sua existência (do humano), pois carrega em si um juízo de valor sobre a existência do próprio

conhecer e isso o leva a um engano, um disfarce, que o faz acreditar que

suas representações são parte de uma busca que simula a busca da

verdade. Por outro lado, uma convenção sobre o que seja verdade é

fundamental para a convivência em sociedade, objetivando poupar ao humano as consequências desastrosas de viver em rebanho, por possibilitar o aporte em territórios que não se desmanchem no vazio e que camuflem a efemeridade da existência. Quem somos e como nos definimos nesse mundo está intimamente relacionado à tal construção.

As convenções acerca da verdade formam, historicamente, tendências a serem seguidas e aceitas, e, não restando ao humano que vive seu determinado tempo a liberdade necessária para criar ou reinventar, este passa então a ser um homem histórico. Também em 1874, ao escrever a segunda e terceira parte das Considerações Extemporâneas – Da

utilidade e desvantagem da história para a vida e Schopenhauer como educador, Nietzsche apontou os problemas relacionados ao saber

histórico. Afirmou categoricamente que todo fenômeno histórico, por ser já passível de análise e julgamento é, para aquele que o tem, um conhecimento morto: “A história pensada como ciência pura e tornada soberana seria uma espécie de encerramento e balanço da vida para a humanidade” (NIETZSCHE, 1999a, p. 275). Assim, a análise puramente histórica acaba por tornar o humano que a analisa, o seu fim último. Em

Schopenhauer como educador Nietzsche coroa tal máxima:

“Quem deixa que se interponham, entre si e as coisas, conceitos, opiniões, passados, livros, quem, portanto, no sentido mais amplo, nasceu para a

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história, nunca verá as coisas pela primeira vez e nunca será ele próprio uma tal coisa vista pela primeira vez (...)” (NIETZSCHE, 1999b, p. 297). A experimentação trágica, criativa, caótica é algo que inexiste no homem histórico: a ele só resta a análise de uma história acabada, onde ele é o protagonista apto a desvendá-la e qualquer tentativa de fuga à tendência aceita pela unanimidade tem grandes entraves ao se fazer ouvir, por almejar a fuga de tais convenções. Cabe citar que uma dessas convenções é a convenção da linguagem, que, para Nietzsche, tem a capacidade de se fixar como verdade pela tautologia: a palavra vazia de significado, cravada em um resultado pela repetição secular – resultando na compra de ilusões como verdades: “as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tomaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.” (NIETZSCHE, 1999c, p. 57).

O que seria a palavra? Segundo Nietzsche, um estímulo nervoso transposto em sons - assim não é possível concluir que a palavra seja uma causa externa a nós mesmos, muito pelo contrário: a “coisa em si”, que a palavra aponta, é inacessível ao formador da linguagem. O formador da linguagem então, ao observar a coisa, cria uma representação mental desta e depois a associa a uma palavra. Tal processo acontece em seu intelecto e nunca diz diretamente da coisa observada, e sim da imagem que o observador (o formador da linguagem) consegue entender dela por meio de seus sentidos.

O formador da linguagem, então, vale-se da designação entre a relação homem-coisa através de “metáforas”: primeiro, por um estímulo nervoso transposto em palavras; depois, modelando a imagem em som, reproduzindo o som para que este se faça inteligível e assim, passando de esfera em esfera, de metáfora a metáfora, cada qual completamente nova, o que leva a se perder cada vez mais a metáfora primeira, restando apenas a sua casca vazia – a palavra – uma ilusão que se pretende enquanto verdade. Logo, até a forma de se pensar as coisas, que passa por um processo de entendimento por meio exclusivo da linguagem é, para Nietzsche, falsa, pois a linguagem não representa em momento nenhum a coisa em si. A palavra não é a experimentação da coisa. Tanto o viver quanto o ensinar, desta forma, dizem respeito apenas ao entendimento daquele que fala (ou do educador) e a capacidade de criar metáforas – a partir dos sons das palavras – daquele que ouve (ou do aluno) e não da coisa explanada que continua à parte de ambos.

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O humano faz erigir sobre fundamentos móveis, sobre água corrente, um domo conceitual infinitamente complicado: constrói o conceito a partir dele mesmo (o humano, a fluidez, o vazio). Isso quer dizer que o humano faz surgir densidade onde há apenas o território plano da linguagem ou do conceito, constrói-os dentro do intelecto e acredita nisso como sendo o seu “exterior”. Tal artifício é parte constituinte do processo de construção de mundo, contudo, colocar no conceito o valor imperativo de verdade é construir um ídolo e dar a ele uma vida própria, independente do próprio humano.

A verdade do humano tem um valor limitado no tempo, não chega à coisa em si e só cria valor enquanto toma como referência o próprio humano: vindo dele e a ele voltando. Abstrato é aquilo o que toca a coisa em si: o humano assim metamorfoseia o mundo em humano e busca na verdade das coisas (alheias à ele) o próprio humano. Um momento de desvelamento de uma verdade fugidia que vale por todo o tempo, que figura como acabamento. Um looping. Uma prisão resultante de um processo histórico que elevou o entendimento do humano ao grau de portador dos mistérios e da capacidade descodificante do mundo.

Reflito então no território que busco aqui ocupar. Território que diz de meu mundo circundante e daquilo que verto de volta. Considero o educar à criança. Educar enquanto cinzel daquilo que se direciona ao mundo da carne (portanto, já formado para ser) humana e que em mim tomou a medida de minha experiência com esse mesmo mundo, territorializou-se, a forma como esse fato pode determinar ganhos e perdas e como esses ganhos e perdas podem retroalimentar-se para não se esgotarem. Como poderia eu fugir desse círculo vicioso, se é próprio do humano criar imagens e acreditar nelas? Ou ainda – o tempo que essas imagens têm de duração a ponto de tornarem-se preciosas enquanto tradição. É necessário que saibamos os passos dos que vieram antes, afim de evitar erros e seguir a partir daí sem precisar começar sempre do zero. É necessário continuar de onde outros pararam, usar suas costas como degrau para poder ver mais ao longe, então, como sair do paradoxo que afirma o novo sem desprezar o que já passou?

Nos primeiros escritos de Nietzsche, mais precisamente no debate sobre as potências Apolínea e Dionisíaca no Nascimento da Tragédia (1872), o caos originário aparece como uma necessidade para as artes, música, potencialidades específicas do humano e, através dele (do humano), se organiza enquanto sonho apolíneo capaz de se fazer no mundo. Nietzsche inicia apresentando as potências no primeiro aforismo da obra:

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Teremos ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão [Anschauung] de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas reconciliações. (NIETZSCHE, 2007, p. 24)

Bárbara Stiegler (2009), em seu artigo que discorre acerca da crítica da Bildung, faz uma interessante leitura sobre tais potências, substituindo a admiração da Thaumazein8 como encontro com as luzes do

mundo das ideias platônico pelo terror do niilismo shopenhaueriano potencializado por Nietzsche: o fundamento dionisíaco da vida não é a abnegação dela e sim a sua afirmação. Partir do terror é partir do caos originário e sem forma, do elemento dionisíaco. Poderia dizer que é partir do Konton sem órgãos sensíveis. E é a partir de Nietzsche, diz Stiegler, que não há mais lugar para a admiração do esplendor da unidade, do Uno. A partir de então, a Filosofia tem a seu dispor o elemento dionisíaco como perspectiva de experiência com o caos, com o sofrimento e com as contradições. O que traz a forma não é uma negação do que Nietzsche denominou de impulso dionisíaco, mas algo próprio do humano. Formar. Retirar do caos cristais intelectíveis, tentar mantê-los entre os dedos e passa-los à outras mãos. Mãos humanas – esculpir tais cristais – pintá-los, escutá-los, ausculta-los, vibracioná-los, cuidá-los. A primeira não-forma de Konton, o caos dionisíaco nascido potente e impulsionado pelo sonho apolíneo! Nascer!

Nascer e ser cuidada, educada, formada. Não há como sobreviver a cria do humano que não recebe o mundo adulto em si. Mas limita-se o devir que perpassa essa criança na tentativa de contorná-lo usando a ideia de humano como medida e assim contornando e territorializando a sua potência intentando sua própria sobrevivência (da cria).

Criança é caos e é forma. Não é animal, não é deus. É devir. Devir próprio do humano.

8 Ou Thaumaston, seria, segundo Platão, um estado que nos acomete quando nos defrontamos com algo estranho por ser o thaumaston extraordinário, arrebatador. Tal admiração é semelhante a um phatos, um estado interior específico de quando o contato com algo nos arrebata. O filósofo, eminentemente humano, é feito de modo a viver no thaumazein, distinguindo-se dos deuses e animais.

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Devir criança dionisíaco que passa do caos ao corpo, às mãos, aos sentidos e devolve ao mundo um momento de afeto na forma apolínea do sonho que pode ser entificado. Potências que não se esgotam. Não deveriam...

Hannah Arendt, em sua reflexão sobre a crise na educação, diz do universo que a criança perde porque é nessa perda que ela se iguala e se encaixa ao território compartilhado pelos já formados. Formar poderia assim ser, na perspectiva da criança, nunca um ganho e sim uma perda. Perde-se a potência do devir enquanto criação de infinitas possibilidades pelo afeto para que surja o eu, o menino ou menina, o filho, o amigo, o aluno, o cidadão, o empregado, etc.

No entanto, pela concepção e pelo nascimento, os pais humanos, não apenas dão vida aos seus filhos como, ao mesmo tempo, os introduzem no mundo. Pela educação, os pais assumem por isso uma dupla responsabilidade – pela vida e pelo desenvolvimento da criança, mas também pela continuidade do mundo. (ARENDT, 1961, p. 6) Fazer crescer um outro ser – cuidado. Recordo-me de minha própria vivência:

_Alice, filha... Não corra tanto, querida, preste atenção onde está indo, você pode cair e se machucar. Não toque nisso, querida, é perigoso!

Alice com 3 anos.

Minha memória como medida do que é bom ou mal para ela. Minha experiência com o mundo dando a ela uma medida vazia de significado à sua própria vivência. A afirmativa – Não toque nisso – demonstra a minha experiência com o mundo que, por cuidado e zelo, tento ensina-la pelo vazio plano e sonoro do território metafórico das palavras. Como posso eu garantir que a experiência dela seja igual a minha? Como posso valorar uma não vivência dela que eu a nego de experimentar simplesmente por ter a minha como medida? Pensar assim é uma forma de exercer meu cuidado sobre ela ou libertá-la para a própria vivência? Como garanto a vida dela tendo por base a minha? Eu sei que se a adorável menininha de cabelos encaracolados e dourados, com ânsia por correr todo o mundo em uma passada só, poderia por bem tropeçar em um de seus minúsculos pezinhos e se embolar no chão, se machucar, sangrar, doer. Ou pior. Mas, se das inúmeras consequências que se pode vivenciar ao experimentar uma bela queda no chão, ela, por exemplo, apenas se arranhasse pelo atrito e sangrasse, a minha fala – Não corra

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tanto, querida, você pode se machucar – a impede de ter o machucado,

viver o machucado, sentir o machucado e o ver formar casquinha, dia após dia melhorar um pouquinho, ir diminuindo até ficar uma cicatriz que, para ela, teria um valor imensuravelmente maior que o vazio autoritário de minhas palavras que não evocam nela nenhuma vivência, só em mim. Meu medo a tira vivências, criando uma rede de possibilidades causais absolutamente racional externas a ela, mas a faz sobreviver... Como mãe,

já ouvi dizer de muitos casos de crianças que quebraram o pescoço e morreram em quedas bobas... Prefiro não pagar para ver. Prefiro por ela

também.

Ganhar em conhecimento transmitido por alguém que o já tenha vivido e o repassa enquanto ensinamento é perder a potência daquilo que se pode efetivamente viver? Parece uma reflexão simples, mas traz consigo o mundo já formado do qual se referia Hannah Arendt, o território vazio das metáforas nietzschianas e afirma: precisamos formar e isso é uma capacitação e uma desqualificação! Capacitamos os infantes ao mundo, mas desqualificamos sistematicamente suas próprias possibilidades de vivências. Mais uma dicotomia que não necessariamente opõe e aniquila um ou outro polo, mas pode potencializá-los, justamente e apenas quando um não sobrepuja o outro. Sem as experiências passadas, tanto as minhas próprias quanto as da Tradição, estaríamos ancorados no nada, no vazio, na não forma. Teríamos que, a cada vez, a cada nascimento começar tudo de novo, do zero. Estaríamos na não-forma, não seríamos mais humanos, estaríamos negando algo que nos é próprio e já sabemos o quanto isso pode ser prejudicial, em suma, habitaríamos o nada e humanamente precisamos de um lar, seja ele um lugar ou um nome.

1.2 A QUATERNIDADE E O PARADOXO ENTRE A REALIDADE OBJETIVA E A CRIAÇÃO SUBJETIVA – CONSTRUINDO UM CENÁRIO E TRABALHANDO DUALIDADES – ENTRE DEUSES, HUMANOS, CÉUS E TERRA.

Oh!, pobres daqueles que sentem isso, que também não querem falar da determinação humana, que aos poucos também vão sendo tocados pelo nada que nos governa, que compreendem tão profundamente que nascemos para o nada, amamos um nada, acreditamos em nada, nos estafamos por nada, a fim de um dia passarmos para o nada... Que culpa

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tenho se vocês desmoronam quando refletem com seriedade? Também já mergulhei por vezes nesses pensamentos e clamei “por que põe o machado em minha raiz, espírito cruel?”, e continuo aqui. (HÖLDERLIN, 2003, p. 49)

Que lugar é esse onde se habita o nada, invocado por Hölderlin? Como poderíamos, carne que somos, continuar aqui e ao mesmo tempo habitar o nada?

Se entendemos por nada o vazio, aquilo que não possui matéria, densidade, substância, num sentido puramente de sermos nós a criarmos os valores e darmos a eles forma e significância, vamos aqui, primeiramente, desenhar uma linha que defina onde se pisa: entre o nada e sua não forma num espaço hipotético, uma simples linha define o chão. Ao traçar numa folha um risco, o território que vamos fincar os pés nasce: a racionalidade socrática, entendida aqui enquanto processo de construção de um modus vivendi, que também se estabelece como parâmetro formativo e torna-se diapasão que afina o proceder, o acreditar, o legitimar e mostrou-se não somente insuficiente enquanto processo formativo, como também limitador e alienante àquele a ser formado. Veremos por quê.

Primeiramente, há que se povoar esse território, portanto, há que se falar sobre natureza.

A natureza aqui, é entendida como início, como uma possibilidade da presença ser-no-mundo. É preciso demarcar inícios para que haja noção do quanto de percurso atravessamos, pois, sem isso, corremos o risco de perdermo-nos no vácuo sem forma do espaço aberto. Então, criamos inícios para definir jornadas. Nascemos: por isso podemos dizer de crescer e maturescer.

Tal qual um fractal, tem-se o humano indivíduo e o humano enquanto processo histórico. Ambos são definidos a partir do início que damos a eles. O ser individual precisa ser concebido, parido, para que exista – esse é o seu início óbvio. O início do humano enquanto processo histórico pode ser sondado por incontáveis relatos, ontologias ou estudos que determinarão diferentes formas de se chegar onde estamos. Existem relatos de criação humana que são interpretados hoje de forma mítica, justamente por não entrarem em consonância com o discurso racionalista, tentando demarcar um começo que, no final das contas, defina o quanto caminhamos para chegar aqui. Esses começos não são interessantes para o presente estudo, visto que são vastos e entram em confronto ideológico

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uns com os outros. Já com Nietzsche há uma recusa, em determinadas ocasiões, da pesquisa da origem (ursprung), segundo Foucault:

A História ensina também a rir das solenidades da origem. A alta origem é o “exagero metafísico que reaparece na concepção de que no começo de todas as coisas se encontra o que há de mais precioso e de mais essencial”: gosta-se de acreditar que as coisas no início se encontravam em estado de perfeição; que elas sairiam brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã. A origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se canta sempre uma teogonia. (FOUCAULT, 2015, p. 59)

Qual disse Nietzsche, no aforismo 9 do livro II de Humano,

demasiado humano, a soberania humana se faz num início específico

onde o humano se posiciona nascendo da divindade. Mas há também aquele início que coloca o homem no limiar do macaco. Diferentes inícios podem definir diferentes humanos: eis a questão.

Procuro aqui estipular um território já anunciado: meu início é definido por um tipo específico de humano. Um humano racional, aterrado, que “volta-se para si mesmo” porque foi abandonado pelos deuses de que falam Foucault, Nietzsche, Hölderlin, Heidegger.... Quando nasce o tipo Socrático de que fala Nietzsche no Nascimento da

Tragédia é onde nasce meu homem histórico:

Dionísio já havia sido afugentado do palco trágico e o fora através de um poder demoníaco que falava pela boca de Eurípedes. Também Eurípedes foi, em certo sentido, apenas máscara: a divindade, que falava por sua boca, não era Dionísio, tampouco Apolo, porém um demônio de recentíssimo nascimento, chamado SÓCRATES. (NIETZSCHE, 2007, p.76)

Por outro lado, a figura representada por Dionísio tem, como aqui referido, seu valor enquanto formador do ethos a que Friedrich Nietzsche se refere na obra O Nascimento da Tragédia. Nesta obra Nietzsche faz a análise da herança do racionalismo socrático enquanto alicerce da visão racionalista e objetiva de mundo e o situa enquanto “insuficiente” para descrever a intensidade e a caoticidade do ser. O homem se faz na

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serenidade e beleza apolínea, mas também na tragédia dionisíaca e no culto ao mito:

Sem o mito toda cultura perde sua força natural sadia e criadora: só um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um movimento cultural. Todas as forças da fantasia e do sonho apolíneo são salvas de seu vaguear ao léu apenas pelo mito. As imagens do mito têm que ser os onipresentes e desapercebidos guardiões demoníacos, sob cuja custódia cresce a alma jovem e com cujos signos o homem dá a si mesmo uma interpretação de sua vida e de suas lutas: e nem sequer o Estado conhece uma lei não escrita mais poderosa do que o fundamento mítico que lhe garante a conexão com a religião, o seu crescer a partir de representações míticas. (NIETZSCHE, 2007, p. 135)

O mito, tomado aqui enquanto poder da narrativa, como evocado por Nietzsche na citação acima, representa, em consonância com o mundo circundante, uma potencialização da ek-sistência, um giro que retroalimenta momentos caóticos, de embriaguez, afeto, intuição, etc. com a forma, com a carne, com o entendimento, com a comunicação. O próprio combustível e motor do movimento da vida. Êxtase! Miguel Angel de Barrenechea (2014), ao analisar o surgimento da tragédia na Grécia, aponta ao surgimento do ritual trágico, presente em cerimônias religiosas da Grécia, tais rituais celebravam essas dicotomias presentes entre o viver e o morrer, quando ambas se potencializam:

Esse gênero teatral surgiu como um festejo, uma celebração, em que todas as potências vitais eram exaltadas; tratava-se de uma cerimônia que comemorava a alegria de existir. A conjunção de dor e alegria, floração e morte, que está no âmago da festa trágica, desafia uma interpretação unilateral da existência, pois o ritual trágico resgata a ambiguidade, a contradição e a pluralidade do mundo. (BARRENECHEA, 2014, p.28-29) Como soa estranho a nós que se possa tirar felicidade da perda, que possamos nos alegrar de um infortúnio, dançar e rir às brutalidades da vida, à morte, à finitude e à dor! Aceitar a dor da existência e a nossa incapacidade de fugir ao fim! Deslizar pela vida por um projetar de

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paupabilidades, otimismos, de dicotomizações que encerram papéis e territórios, que afirmam o novo em oposição ao velho, o bom em oposição ao mal, o belo em oposição ao feio, o vencedor em oposição ao perdedor e como bem exemplificou Barrenechea, “a plenitude (que) não se mistura, de forma alguma, com qualquer mácula da falta” (2014, p. 28) é afirmar a parte em detrimento do todo, é insistir em segurar nas mãos o imaterial, é negar nuances da existência, é se auto encerrar em um juízo moral que parte de uma ideia humana sobre o humano, tem essa ideia humana como medida para o humano e chega no humano pensado pelo próprio humano. A origem, o ponto de início de minha análise, que define o homem

moderno, inicia-se com a ideia de racionalismo socrático. Mas o que

havia antes do tipo9 Sócrates ganhar força na Grécia antiga?

Na análise nietzschiana do Nascimento da Tragédia, as potências dionisíacas e apolíneas fagulham como dualidades que, longe de se esgotarem por oposição, se retroalimentam, impulsionam, dançam! Um elogio do inominável, caótico, embriagado, extático, informe e do formal, contido, arabescado, sublime, como facetas próprias do humano, da vida!

Mas em todo excesso há um transbordamento! Esse excesso toma a forma da tragédia e, posteriormente, do prólogo que anuncia o afeto! É como dizer: prepare-se! Pense sobre o que você vai sentir logo à frente! E se intelectualiza o afeto que passa a ser símbolo, não mais gozo.

A tragédia surgiu na Grécia arcaica, datada provavelmente do século VI a.C e era carregada de uma especificidade incrível pois, ao mesmo tempo que celebrava a morte, o findar das estações e da vida, também era uma ode à alegria, a floração da nova estação, à vida. Tornou-se um gênero teatral, contudo, surge nesTornou-se contexto de celebração do existir, em suas múltiplas nuances, que podiam ser vistas tanto quanto boas ou más, ou ambas:

A tragédia, surgida na época arcaica da cultura grega, aludia à totalidade da experiência humana, a todas as nuanças do devir vital. Tratava-se de uma arte que apresentava uma compreensão ampla do mundo, não reduzia a existência a uma visão otimista. Os gregos dessa era esplendorosa

9 “(...) nunca ataco pessoas – sirvo-me da pessoa como uma forte lente de aumento com que se pode tornar visível um estado de miséria geral porém dissimulado, pouco palpável.” (NIETZSCHE, 2008, p. 30). Assim, Sócrates não é aqui invocado como persona e sim como uma tendência, a saber: o racionalismo que vinha como influxo de um transbordar de vida na Grécia. Para maiores esclarecimentos, consultar NIETZSCHE, 2006, p. 17-29.

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disseram um grande “sim” à vida; trata-se de um “sim” à vida sem restrições, celebrando a floração, a intensidade, o crescimento, mas sem negar a destruição, a dor, o esfacelamento. (BARRENECHEA, 2014, p. 28)

A tragédia, de suas várias significações ao longo do tempo, se origina como Ditirambo, como falarei posteriormente, contudo, etimologicamente significa canto do bode10: tragoedia. Remetia ao deus

Dionísio, como será elucidado no subcapítulo 2.2, à fertilidade e ao mesmo tempo à morte, como processos constituintes de um mesmo mundo, como celebração à potência da natureza que morre e renasce em cada primavera.

Era um ritual que envolvia orgias, manifestações de júbilo, libações etílicas. Barbara Freitag (1992) analisa o discurso dramático da tragédia, sistematizado por Aristóteles e como tendo três funções básicas, sendo elas a artística, onde manifestava-se o domínio linguístico do dramaturgo, expressando em seu corpo (donde a fala é parte constituinte) emoções e afetos, problemas ou conflitos morais; a educação, onde a questão encenada, vista de vários ângulos, mostrando vários pontos de vista sobre um mesmo imbróglio permitia ao público decidir qual lhe seria aceitável, de acordo com cada temperamento e finalmente a função catártica, onde, identificando-se com os conflitos individuais ou coletivos, a tragédia era capaz de reduzir a tensão pulsional do público, expurgando os sentimentos através da observação do outro. É importante salientar também que a tragédia se alimenta de um fundo mitológico e tendo o mito um valor universal, remetia à todos:

Aqui são encenados emoções e conflitos universais, vinculados inevitavelmente à condição humana, com um fim trágico (a morte) de quase todos os personagens. Os atores e suas ações assumem feições típico-ideais, quase caricaturais. (...) Mostra com toda a nitidez os dilemas e as contradições nas quais envolvem-se os seres humanos, inseridos em situações conflitantes que

10 “...a importância da figura do bode, de homens que se travestiam em sátiros embriagados, vestindo a sua pele, no ritual dionisíaco. O bode, para os gregos, era entendido como uma figura sensual, lasciva, símbolo das forças “delicadas e amáveis, forças perigosas, rudes e alegres.”(...)”. (BARRENECHEA, 2014, p. 29)

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os impelem para a ação. Agir é perigoso. Mas é preciso agir, pois a ação exprime, em sua essência, a vida”. (FREITAG, 1992, p.19)

Assim, a tragédia, que surge como afirmação da vida em suas variadas modulações, foi transformada em drama, em espetáculo, passando a ser institucionalizada e encenada em um palco. Mais! Agora, como assinala Nietzsche ao refletir sobre a ascensão do pensamento racionalista a partir do prólogo de Eurípedes, a tragédia, que se iniciou como afirmação e potencialização das dicotomias, encerra apenas uma – o raciocínio! Pensar, intelectualizar, ponderar! Achar respostas possíveis de se transformarem em uma rede de significados e significâncias! Conseguir categorizar inclusive a própria zona de velamento que ao humano chega como afeto, êxtase e dar-lhe uma forma – mundo das ideias! Abre-se espaço para um projeto de homem fundeado por seu intelecto. Um homem aterrado, que constrói símbolos densos e verdades ancoradas para além do tempo. Um intelecto que racionaliza e é elevado acima do próprio corpo. O intelecto do homem virou deus. Mas como poderiam homens criar um simbólico que está para além de seus próprios limites? Como dar conta desta dimensão que não pode ser intelectualizada? Como dar conta da morte? Eis a promessa: voltarão à mim! Promessa de um céu. De um além. De um mundo das ideias e das formas puras e perfeitas.

Friedrich Hölderlin, em suas Reflexões, tomado pelo espírito do idealismo alemão e seu retorno à Antiguidade, investiga a ideia do que poderia ser a Natureza do homem e, por conseguinte, a complexificação desta natureza, construída ao longo da vida e que estabelece um princípio de diferenciação, a partir da formação técnica e amadurecimento.

Há então, uma dicotomia entre aquilo que é “natural” ou próprio ao humano e esta natureza é colocada em contraponto àquilo que ele “constrói” – o “estranho”, o “cultural”, a techné; ou seja, a potência própria de se tornar algo, se formar para algo, se esculpir e ser esculpido para.... Assim, o início do humano carne que é parido nesse mundo situa-se no início do humano histórico – o humano racional, que está estabelecido. Nasce a carne humana e esta é formada para o humano histórico. Por mais que a criança que nasça tenha a potência de se tornar qualquer tipo de humano que seja, de diferentes começos, com diferentes aspirações, ela vai ser direcionada ao início do humano enquanto história que o fez chegar onde este está, por ser educada para esse fim pelos pais, pela escola, pelas instituições que densificam esse modus operandi em

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do projeto de modernidade iniciado com o racionalismo socrático. Mas até esse ponto, não há, segundo Hölderlin, um esgotamento da dualidade própria do ser humano: a criança ainda é plena de potência, Dionísio dança em cada construção que ela faz e Apolo o impulsiona quando o inominável toma a forma da fala, quando o afeto toma forma do sentimento:

A originalidade da concepção hölderliniana entre a antiguidade e a modernidade deriva do fato de que, para Hölderlin, o grego não difere do hespérico, como a natureza (a infância) difere da cultura (a maturidade), mas que cada um está, em si mesmo, dividido entre natureza e cultura, entre “physis” e “techne”. (DASTUR, 1994, p. 155)

Isso quer dizer que, segundo Hölderlin, a maior aproximação da Alemanha e o ideário criado pelo classicismo (que afirma o racionalismo ao possibilitar que o homem se vire para si mesmo) de uma Grécia dionisíaca (enquanto ponto máximo da afirmação da potencialização das dicotomias próprias do existir) se dá pelo fato de ambas construírem sua cultura pela delimitação e relação peculiar de suas naturezas.

Enquanto na Grécia arcaica há naturalmente o que Hölderlin chamou de phatos sagrado (trazido aqui como a afirmação nietzschiana das potências da vida, que não se encerram e sim trabalham a dualidade se potencializando), ao mesmo tempo foi necessário aos gregos construir seu caráter eminentemente terrestre - a clareza de apresentação (que culminou, seguindo Nietzsche ainda, com o transbordamento que privilegiou um aspecto em detrimento à outro – o aspecto racional); aos hespéricos tal caráter “sóbrio” e terrestre, seu princípio ocidental de limitação e diferenciação (a clareza de apresentação) já é natural, ao passo que é necessário “criar”, no sentido heideggeriano da “techné” o que lhes é estranho: justamente o elemento dionisíaco que Nietzsche interpreta como uma potência descomunal, de poder destruidor e criativo. Enquanto aos gregos era dada a possibilidade de lidar com seu elemento estranho criando o teatro trágico, a forma, a sistematização pela arte do Dionísio contido em Apolo, a nós não restaria muito de potência dionisíaca. Nascemos do homem histórico para formarmo-nos culturalmente enquanto homens históricos. A criança, que nasce plena desse inominável que é relatado enquanto potências apolínea e dionisíaca, nasce para se ensimesmar pela construção da metanarrativa onde a ideia de homem ocupa lugar de estabelecimento e acabamento.

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Trago esse debate, pareando o pensamento hölderliniano e nietzschiano porque acredito que ambos também se potencializam. Deixe-me explicar melhor: ainda segundo Francoise Dastur, ao analisar a obra hölderliniana, a semelhança entre a Grécia arcaica e o ponto máximo do Iluminismo que acontecia no período em que Hölderlin escrevia – o Idealismo Alemão – é dado pela inversão do que seria natural em uma e construído em outra: enquanto a natureza da Alemanha do século XIX seria marcada por essa Clareza de Apresentação, à luz do racionalismo e cientificismo, o natural dos gregos seria o Phatos sagrado, o “Fogo do

Céu – o elemento dionisíaco. Enquanto os gregos precisavam construir

esse princípio de diferenciação, a partir do afastamento das figuras míticas; o alemão, que já tinha como natural o racionalismo, precisaria construir o caminho de reencontro com esse mito e isso seria possível através da encenação da tragédia, mais precisamente, na contemplação dessa dualidade presente na tragédia grega, principalmente na tragédia de Sófocles. Surge aqui a noção de formação (principio de diferenciação entre natureza e cultura), na modernidade, enquanto concepção Trágica:

A grande descoberta de Hölderlin e Nietzsche consistiu em reconhecer no plano da natureza um poder criador que constrange o homem ao mundo da expressão, quer o nome que se dê seja religião, arte, filosofia, morte... Natureza e Apolíneo-Dionisíaco (e, posteriormente, Vontade de Poder) são os nomes que Hölderlin e Nietzsche, respectivamente darão a tal poder. Assim, tal princípio não opera apenas no plano particular da atividade de dar forma (homem, artista), mas, também, e principalmente, no plano da constituição do próprio ser das coisas. (WEBER, 2011, p. 53) Para Hölderlin, o tema da Tragédia, de seu herói trágico personificado na figura de Empédocles, é o próprio tempo: estaria na finitude do ser a própria realização da vida – o herói tem de morrer para prestar serviço à Natureza, já que, incapaz de lutar contra o próprio destino e natureza, acaba por ser destruído por ambas:

Quando ele declina, quando o signo se iguala a zero, a natureza apresenta-se, ela própria, como vitoriosa e na sua maior potência: “o elemento original manifesta-se precisamente. Para Hölderlin, a tragédia é um sacrifício pelo qual o ser humano ajuda a natureza a aparecer de forma

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própria, a sair de sua dissimulação original”. (DASTUR, 1994, p.160)

Para Nietzsche, a tragédia é subvertida: cria-se a afirmativa da vida mesmo quando esta é valorada negativamente. Morreremos? Somos seres findos? Então há que se tirar o máximo de afirmativas daqui! Amor Fati! A vida que regressa simplesmente como vida, como invoca o aforismo 34111 de A gaia ciência (1882).

Então, construímos com um dado que pode ser colocado como natural: iniciamos no nascer, enquanto bebês que se tornarão crianças e nos tornamos humanos porque temos uma ideia prévia do que significa

ser humano. Essa ideia está presente justamente naqueles que irão nos

educar. Ao educar, o cuidador repassa o mundo que nele já é consolidado. A cada geração, numa dança onde o humano se mantém como constância. Essa é uma potência insondável do ser humano. O ato de nascer, de ser lançado ao mundo é então um regresso ao inominável que, ano após se consolida no tipo de humano formado. Optamos pelo que temos de certo e formamos para aquilo que temos estabelecido e consolidado. É uma técnica, uma dissimulação do original de potência que cresce presente em todos e em cada um, visto que a potência em aprender nascida e latente em cada ser que desponta por essas bandas poderia formar para qualquer tradição, para qualquer projeto, mas formaria para algo que não isto que nasceu e que ainda não possui um mundo. Afirmo com isso que todas as possibilidades de humano ou de além do humano (num sentido de além das bases que alicerçam a nossa ideia prévia de humano) estão abertas para os que nascem e que irão invariavelmente aprender.

Reiterando: a Techné, como apontada por Martin Heidegger é o processo de dissimulação desse original. Ernildo Stein (2002), ao comentar a obra de Heidegger, aponta a técnica como uma espécie de objetificação da representação, uma tendência essencial da ontologia. Assim sendo, é, segundo Heidegger, a partir da técnica que acontece um planejamento total da vontade de poder, o que resulta numa objetificação da vontade, repercutindo uma incessável vontade de vontade. O momento

11 “E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “esta vida, como você está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela (...)”, (...) “você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 2012, p. 205)

Referências

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