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Melancolia: o empobrecimento do eu

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Academic year: 2021

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DIULIA DE MELO SZTORMOWESKI

MELANCOLIA:

O EMPOBRECIMENTO DO EU

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DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCACAO CURSO DE PSICOLOGIA

MELANCOLIA:

O EMPOBRECIMENTO DO EU

DIULIA DE MELO SZTORMOWESKI ORIENTADORA: ANA MARIA DE SOUZA DIAS

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para conclusão do curso de formação em Psicólogo.

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Meu agradecimento primeiramente a Deus, por ter me proporcionado saúde, força e fé para superar as dificuldades encontradas no decorrer do caminho.

Aos queridos(as) amigos(as) que conheci nessa trajetória, com os quais pude compartilhar vários momentos especiais de alegrias e experiências, momentos esses, que jamais serão esquecidos.

A minha querida orientadora, pelo suporte no tempo que lhe coube, suas correções e orientações.

Aos meus amados pais, pelo amor, carinho e dedicação, torcendo junto comigo para que tudo desse certo sempre. Obrigada Pai e Mãe pelo apoio incondicional.

A minha irmã pelo carinho, e a minha linda sobrinha que faz meus dias mais felizes.

Agradeço também a todos os meus familiares que vibraram e torceram por mim nessa conquista.

E meus singelos agradecimentos a todos que direta ou indiretamente fizeram parte da minha formação.

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paciente, quando os mesmos apresentavam sintomas de tristeza e desorganização no humor. Na psicanálise Freud conseguiu, através de seus vários estudos, desvendar o que de fato ocorria no Eu do sujeito melancólico, para explicar o sofrimento dos pacientes. Assim, essa monografia disserta sobre questões relativas ao luto e a melancolia, e tem como finalidade fomentar as reflexões acerca do que se trata na melancolia e quais reações psíquicas se produzem no sujeito. Também estarão colocadas as relações dessa patologia com o luto. Inicialmente será exposta a visão da medicina, em seguida, o texto abordará os estudos da psicanálise.

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1 FRAGMENTOS HISTÓRICOS DA MEDICINA SOBRE A MELANCOLIA ... 7

2 A MELANCOLIA NA LEITURA PSICANALÍTICA ... 24

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 35

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INTRODUÇÃO

Essa monografia tem como tema principal o estudo da melancolia, trabalhado por diversos autores dentro da medicina e psicanálise. Nesta direção, a pesquisa aborda a maneira como os sintomas melancólicos ocorriam e como eram feitos os diagnósticos pelos médicos. Para a psicanálise iremos constatar que não há nada de orgânico em relação a essa doença, e sim causas psíquicas degradantes do Eu do sujeito.

Esse trabalho de escrita, em seus desdobramentos, busca analisar a partir de Freud, a relação entre a melancolia e o processo do luto. Assim, inclui as questões de como, e por quê, o sujeito melancólico sofre a grande perda em seu próprio Eu. No luto sabemos que o Eu tem consciência de sua perda, na melancolia não.

Através das teorias psicanalíticas conseguiremos entender melhor os sintomas, o sofrimento do Eu no melancólico e também as causas que levam muitos sujeitos enlutados a compartilharem em algum momento de sua vida o estado de melancolia.

Essa pesquisa tem o objetivo de mostrar um pouco do que é essa patologia que foi estudada por importantes autores, e que ganhou muitos conceitos e definições durante longos anos de estudos, por apresentar diferentes sintomas. É muito importante para o trabalho clínico dos psicólogos analisarmos o conceito de melancolia e de como ela realmente se apresenta, para podermos distinguir do que hoje em dia, muito frequentemente, se chama de depressão.

A monografia está dividida em dois capítulos, sendo realizada através de pesquisas bibliográficas. O embasamento para esse estudo está apoiado na teoria psicanalítica, também buscando o aprofundamento em autores que trabalham com esse enfoque na medicina. A pesquisa primeiramente busca levantar a bibliografia já publicada, e obter fontes de referências, para em seguida efetuar as leituras, análises e interpretações desses materiais.

O primeiro capítulo traz fundamentos históricos sobre o delineamento do quadro da melancolia, quando começaram a se desvelar os sintomas da doença. O primeiro capítulo, então, fará essa explanação histórica do que é, e o que foi a melancolia para a medicina.

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O segundo capítulo busca compreender o adoecimento do Eu, quais efeitos essa patologia acarreta na vida do sujeito, e também analisar a articulação dos conceitos de Luto e Melancolia. Quais assuntos a teoria psicanalítica abordará para compreendermos tais questões referentes a esses sentimentos de perda e vazio? É o que pretendemos acompanhar nessa pesquisa para que possamos ter um melhor entendimento sobre o assunto.

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1 FRAGMENTOS HISTÓRICOS DA MEDICINA SOBRE A MELANCOLIA

Quando se fala em Melancolia, automaticamente a palavra nos remete à tristeza ou à depressão. Isso nos leva a questionar “O que é a melancolia?”. Baseando-se na história da medicina, da psiquiatria e da psicanálise, poderemos encontrar muitas concepções acerca da melancolia. O termo melancolia, segundo Chemama (1995), tem afecção profunda do desejo que Sigmund Freud considera a psiconeurose por excelência, caracterizada por uma perda subjetiva específica, a do próprio eu.

Tratando-se da melancolia como um grave sofrimento psíquico, ainda parece-nos mais fácil caracterizá-la como tristeza e depressão, o que parece difícil é distinguir a diversidade de seus estados. Em busca de encontrar algumas respostas para toda dor psíquica gerada no sujeito, sabemos que existem vastos campos de sentimentos e sensações experimentadas pelo mesmo, até que se consiga chegar a um diagnóstico clínico. Esses desprazeres que se encontram no sujeito seriam as angústias, as fobias, mal-estares difusos, e inibições, vindas dentro de um discurso onde nada, ninguém, nem mesmo o paciente será capaz de encontrar a felicidade.

Diante desse contexto, cabe pensarmos na tristeza, na melancolia e na depressão, dentro de um todo, que é o causador do adoecimento psíquico do sujeito, esse sofrimento, transborda para fora do corpo e se mostra através do sintoma. Com isso, acorremos em busca de soluções que devolvam a paz, isto é, nas drogas, placebos e qualquer medicamento que tampone a dor. Isso nos interessa e nos convoca a querer saber sobre o debate que existe entre a psicanálise e psiquiatria que são dois campos que diferem, mas se ocupam desses conceitos.

A psicanálise sempre teve o papel de escutar o que se impõe de sintomático em uma determinada época. Agora é tarefa escutar o discurso daquele que sofre de depressão, melancolia, tristeza, suas diferenças, para que haja efeitos naquele que fala e naquele que escuta. Na clínica essas patologias nos levam a pensar sobre a dor, os vícios, a culpa, o suicídio, uma direção que leve a cura através da sublimação, à qual acreditamos que tem tanto a dizer.

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O texto “Fora de si, fora do mundo” aponta o afastamento do sujeito do mundo exterior por conta do sofrimento psíquico, fenômenos frequentes na melancolia, nos estados depressivos e no luto (BRASIL, 2001).

Nossos humores nos surpreendem e frequentemente nos atrapalham em nossas boas intenções. Assistimos impotentes, a suas mudanças, na maioria das vezes desconhecendo suas causas. Uma banalidade, sem dúvida; todavia, na medida em que eles têm a qualidade de ser contagiosos, isto é, de se transmitirem, facilitam, dificultam ou até impedem o laço social entre os humanos, ou mesmo suas realizações. É nesse sentido que as patologias do humor, bem como as depressões e a melancolia, interessam-nos.

Tanto no consultório, com pacientes, como na vida cotidiana, surpreendemo-nos com os sofrimentos provocados por pequesurpreendemo-nos detalhes, factoides, elevados à categoria de injúria grave ou mesmo de catástrofe que arrasa nosso dia.

Susceptibilidade, desconfiança, orgulho, ciúmes, rigidez, formalismo, se interpõem, produzindo amargura e desejo de afastamento. Nada mais humano! Tais traços não nos classificariam em qualquer entidade patológica, pois, nossos humores dependem de nossa relação com os nossos semelhantes e, principalmente, da nossa relação com o grande Outro e nossa dívida com ele (BRASIL, 2001).

Lambotte (1997 apud BRASIL, 2001) faz em seu livro uma exaustiva análise das características das falas desses pacientes, relaciona os sintomas relativos à atividade, como apatia, prostração e a inibição generalizada, com uma fala desvitalizada, proferida em tom monocórdio, resignado, que relata um sofrimento para o qual os pacientes não veem, e parecem não querer ver saída.

Para aprofundarmos mais nossa leitura acerca do que se trata na melancolia, e o que significava esse termo em outros tempos, podemos encontrar explicações em várias histórias. Segundo Silva (2008), os estudos clássicos de Starobinski (1960, apud SILVA, 2008) e de Klibansky, Panofsky e Saxl (1964, apud SILVA, 2008) e as mais recentes teses testemunham que a melancolia é uma enfermidade que atormenta a humanidade há muitos séculos. Constata-se também que os novos estudos sobre a melancolia, especialmente inseridos no campo da Psicopatologia Fundamental, levam sua longa história em consideração (PERES, 1996) ou, pelo menos, utilizam descrições históricas da paixão da tristeza como mais uma referência para compreender a melancolia.

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Silva (2008) refere que a literatura de psicopatologia já abordou discursos da cultura luso-brasileira sobre a melancolia e a tristeza e já discutiu casos desse quadro relatados por médicos. Neste artigo, podemos analisar os problemas da definição da melancolia e investigarmos, em particular, a sua relação com a tristeza e, sobretudo, a produção de fantasias, delírios e sonhos nos melancólicos, conforme a medicina da alma dos séculos XVI e XVII.

Na primeira modernidade, parece ter havido um uso fluido e abrangente do termo melancolia, inclusive, no meio médico. A palavra melancolia podia designar uma patologia, o humor bile negra que é um dos quatro líquidos corporais, junto ao sangue, fleuma e bile amarela, segundo o médico francês André Du Laurens (1597, apud, SILVA, 2008). Ele se refere ao temperamento melancólico conforme o antigo sistema hipocrático-galênico dos quatro temperamentos que identificam nas qualidades psicossomáticas as determinações do comportamento. Em resumo, os chamados fleumáticos, de qualidade fria e úmida, seriam naturalmente preguiçosos e insensíveis; os sanguíneos, de corpo quente e úmido, serenos e tranquilos; os coléricos, quentes e secos, destemidos e irascíveis; já os melancólicos, frios e secos, apresentariam um comportamento marcado pela tristeza e temor.

O médico grego Hipócrates (460-377 a.C, apud SILVA, 2008) afirma, que quando o temor e a tristeza persistem um longo tempo, trata-se do estado melancólico. O que foi retomado por Cláudio Galeno (129-199 a.C, apud SILVA, 2008) e pelos principais médicos de sua escola. Segundo essa corrente médica, os diferentes temperamentos produziriam as diferentes paixões, por exemplo, a ira decorreria do temperamento colérico e a tristeza adviria do temperamento melancólico. Mesmo não podendo identificar precisamente a causa, Galeno (129-199 a.C, apud SILVA, 2008) afirma que as alterações afetivas e cognitivas são expressões da situação dos humores: Após numerosas pesquisas, não se descobriu porque quando a bile amarela se acumula no cérebro, somos acometidos de delírio, nem, no caso da bile negra, sofremos de melancolia, nem ainda porque a fleuma e as substâncias refrigerantes em geral provocam a letargia que desencadeia a perda da memória e da inteligência (GALENO 1995, apud SILVA, 2008).

Por outro lado, Galeno (1995 apud SILVA, 2008) também admite que as experiências afetivas seriam igualmente capazes de alterar a crase humoral, quando ele comenta que há alguns homens para os quais a essência da melancolia é o medo da morte. Em geral, os médicos ingleses, franceses, italianos e espanhóis dos

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séculos XVI e XVII baseavam-se nessa tradição para pensar a melancolia, mas não sem dificuldades. Timothy Bright (1550-1615 apud SILVA, 2008), logo no primeiro capítulo de seu influente Treatise of Melancholie, adverte que o nome melancolia estava sendo usado de maneira muito diversificada. Segundo ele, a noção mais recorrente, porém, estabelece que há na melancolia uma disposição amedrontada de uma mente com a razão alterada ou um humor do corpo responsável por arruinar a razão. Para o médico inglês, a melancolia arrasta o enfermo para dentro das paixões da tristeza e do medo, com uma distração de sua capacidade racional.

O médico Ercole Sassonia (1620 apud SILVA, 2008) descreve vários tipos de melancolia. Ele problematiza a noção comum de que a melancolia seria um delírio com temor e tristeza, e alega que conhecera melancólicos que não apresentavam delírio ou medo ou tristeza. Afirma a existência de melancólicos que têm imaginações e opiniões desordenadas sem nenhum temor ou tristeza: a essa classe pertencem os que sustentam serem reis, príncipes, ou o anticristo. Sassonia (1620 apud SILVA, 2008) relata ter conhecido em Veneza, onde clinicou durante muitos anos, um professor que se dizia o anticristo; um empregado que passava todo dia, uma hora fechado em um cômodo com imagens pintadas de vários príncipes aos quais ele, do alto de uma tribuna, dava a bênção como se fosse o Sumo Pontífice, e ainda um nobre veneziano que afirmava ser constantemente procurado por todas as belas mulheres da nobreza. Esse último, por sinal, era contente e nada temeroso. Sassonia (1620 apud SILVA, 2008) menciona melancólicos, tristes e imaginativos que não apresentam temor, como aqueles que se creem mortos ou feitos de barro: O temor consiste em uma perturbação por um mal futuro, a tristeza consiste em uma perturbação que deriva da ideia de um mau presente; aqueles que se encontram no pior de todos os males não têm nenhum temor porque não esperam nada de pior: por isso os melancólicos que creem estarem já mortos ou serem feitos de barro não possuem ulteriores temores. Sassonia (1620 apud SILVA, 2008) afirma ter tratado muitas pessoas desse gênero, que não temiam algo específico ou que não se entristeciam por algum motivo claro, mas diziam que tudo causava suas aflições. Essa, sim, seria a verdadeira melancolia: “[...] esses mais do que todos eu chamo de melancólicos”, escreve o médico. Sassonia (1620 apud SILVA, 2008) identifica várias causas para a melancolia. De modo geral, elas seriam de três diferentes gêneros: o pensamento fixo, um desequilíbrio nas condições naturais do corpo ou uma causa externa, como um encantamento ou envenenamento.

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André Du Laurens (1558-1609 apud SILVA, 2008) também aponta múltiplas melancolias: aquela propriamente causada pelo humor seco e frio, outras advindas de misturas ou transformações de outros humores, um sintoma ou acidente da imaginação ou razão arruinada, aquela que tem sua sede no próprio cérebro, entre outras. Conforme a extensão da predominância da bile negra, ou humor melancólico, há três categorias diagnósticas sob a denominação genérica de melancolia: a melancolia essencial, a melancolia global e a melancolia hipocondríaca. A primeira se caracteriza pelo excesso ou corrupção da bile negra na cabeça. A segunda pela presença no corpo todo da bile negra, encéfalo incluso. E a terceira pelo mau funcionamento dos órgãos localizados na parte superior do abdômen, conhecida como hipocôndrio, em particular do estômago, com a consequente produção excessiva de bile negra e exalação de vapores escuros que perturbam as funções cerebrais.

Tristeza e medo são afetos e não humores ou psicopatologias. No entanto, para Du Laurens (1597 apud SILVA, 2008), esses dois afetos são “acidentes inseparáveis dessa miserável paixão”. O famoso médico romano Paolo Zacchia (1584-1659 apud SILVA, 2008) afirma que o excesso de humor melancólico torna a maioria dos indivíduos, além de tristes e temerosos, amantes da solidão, chorosos, tímidos e facilmente desgostosos mesmo daquilo que antes consideravam prazeroso. Determinados hábitos e experiências afetivas eram identificados pelos médicos como desencadeadores e/ou sintomas da melancolia. Uma má educação ou uma vida sedentária e excessivamente meditativa poderiam provocar os males melancólicos, bem como o luto e a infelicidade no amor. Cabe ressaltar, entretanto, que se pensava como explica o médico oficial do Reino de Nápoles e da corte pontifícia, Luca Tozzi (1638-1717 apud SILVA, 2008), que a diferença fundamental entre um melancólico e alguém apenas triste se dá pelo fato de não haver uma causa manifesta da tristeza sofrida pelo melancólico. A dimensão temporal também era uma referência crucial para a definição do diagnóstico.

Silvatici (1575-1668 apud SILVA, 2008) exemplifica que, na melancolia, não basta haver temor e tristeza, esses afetos devem ser crônicos. O professor de medicina prática e teórica da Universidade de Pádua relata o caso de uma mulher que teria sido privada do afeto dos pais há 37 anos e, desde então, nada teria sido capaz de mudar sua condição melancólica, nem mesmo o casamento e a maternidade. As imagens da infância teriam sido impressas em profundidade e

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perturbariam sua alma constantemente ao fazer com que seu corpo procurasse afastar um objeto estranho e prejudicial, presente apenas em sua imaginação. Essa desordem no campo da imaginação com efeitos motores explicaria também porque muitos melancólicos sofreriam de sonambulismo e tantos outros teriam dificuldades de ficarem parados.

Na longa e minuciosa dissecação da melancolia realizada por Robert Burton (1577-1640 apud SILVA, 2008), destaca-se a violência de uma dor atemporal, infinita, que se prolonga e se atualiza levando à eliminação da possibilidade de sentir prazer na relação com o mundo exterior e ao ódio a si mesmo. Os melancólicos não podem ter prazer, não podem evitar a tristeza: “[...] mesmo se correm ou se descansam, acompanhados ou sozinhos, esse sofrimento continua: irresolução, inconstância, vaidade, medo, tortura, preocupação, ciúmes, suspeitas, etc. persistem e não podem ser aliviados” (BURTON, 1638 apud SILVA, 2008). Ainda, Burton (1638 apud SILVA, 2008) considera que descontentamentos, preocupações e infortúnios estão entre as principais causas e sintomas da melancolia e são, na maioria das vezes, acompanhados por angústia e dor. No entanto, a tristeza é sua companheira inseparável, tal como seriam inseparáveis os santos Cosme e Damião. É o mais comum sintoma e também pode ser a causa. Mesmo quando caem em gargalhadas, os melancólicos não podem escapar da tristeza: Logo que abrem os olhos, após terríveis e inquietantes sonhos, os seus pesados corações começam a lutar: continuam aflitos, perseguindo, duelando, sofrendo, reclamando, encontrando faltas, resmungando, mostrando rancor, chorando, recriminando a si mesmos, inquietos, com pensamentos desassossegados, descontentes consigo, com outras pessoas e com as coisas públicas que lhes concernem ou não, do passado, do presente ou do futuro (BURTON, 1638 apud SILVA, 2008)

A descrição de Burton (1638 apud SILVA, 2008) faz pensar na melancolia como um estado onírico sombrio e perturbador, ou melhor, como uma espécie de continuidade entre o pesadelo e a vida. Com efeito, são vários os médicos do período que examinam as relações entre melancolia e a chamada laesa imaginatio, ou seja, uma perturbação na capacidade de produzir imagens sobre si mesmo e o mundo circundante. Essa perturbação se caracteriza pela falta de controle da faculdade racional sobre a formação involuntária de imagens mentais. Na melancolia, como no sonho, a imaginação torna-se mais forte do que a razão. Crignon-De Oliveira (2006 apud SILVA, 2008) explica que, segundo os ingleses

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seiscentistas, tanto a melancolia quanto o entusiasmo podem implicar uma fragilidade da alma que se torna incapaz de colocar à prova suas próprias representações. O texto pseudoaristotélico, associa a capacidade criativa dos poetas à melancolia, ideia que sofreu várias interpretações no Renascimento (SCHLEINER, 1991 apud SILVA, 2008). Além dessa máxima antiga, houve quem afirmasse o contrário, isto é, que o trabalho mental poderia provocar a melancolia.

Para o humanista florentino Marsílio Ficino (1489 apud SILVA, 2008), o exercício da filosofia acarreta uma separação entre alma e corpo, o que, por sua vez, engendra o mal melancólico. Uma mente que se desprende da percepção ordinária do mundo podia sinalizar melancolia. Zacchia (1655 apud SILVA, 2008) descreve o melancólico convicto de estar morto, ter um animal vivo dentro de si, possuir parte do corpo composta de vidro, ou ter sido transformado em um animal como um lobo, urso ou pássaro. O médico e filósofo islâmico Avicena (980-1037 apud SILVA, 2008) já descrevia, entre outros tormentos da bile negra, pessoas que se diziam transformadas em leões, diabos, pássaros ou ursos.

Pesadelos com cenas aterrorizantes também fazem parte do quadro clínico da melancolia hipocondríaca, o que inclui perseguições, sufocação, afogamento, devoração por animais ferozes, sepultamento, etc. Contudo, o próprio Zacchia (1655 apud SILVA, 2008) adverte que ninguém se torna louco apenas por imaginar coisas. Somente é louco aquele que imagina coisas que não existem, e a sua razão não tem condições de discernir a fantasia da realidade, tomando como verdadeiro o que é falso e confirmando a ilusão (ZACCHIA, 1655 apud SILVA, 2008). Michael MacDonald (1981 apud SILVA, 2008) explica que na Inglaterra do século XVII ilusões extravagantes e alucinações também eram atribuídas à melancolia. A conexão lógica entre as ilusões e as emoções patológicas, identificadas como melancólicas, reside no descompasso entre os afetos experimentados e as supostas causas dos mesmos. A tristeza não seria, portanto, uma condição para o diagnóstico de melancolia, mas o afeto mais comum dessa psicopatologia cujo fundamento seria a ilusão, sobretudo aquela que faz com que alguém sinta medo ou dor quando não experimentaram um perigo ou perda significativa.

Conforme o médico espanhol Lobrera de Avila (1542 apud SILVA, 2008), deve-se tratar os melancólicos com muita cautela. É necessário usar de argumentos racionais para combater seus pensamentos, corrompidos pelos vapores que chegam ao cérebro por meio da movimentação do humor melancólico. Nesse processo,

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entretanto, não se deve contradizer o paciente. Ele dá o exemplo de um melancólico que dizia não conseguir adormecer porque tinha dentro de sua cabeça um punhal muito afiado. O procedimento correto é o médico dizer que acredita em seu paciente, e que ele pode se livrar do perigo ao se submeter ao tratamento. Esse é baseado na extração do excesso de humor melancólico com ajuda de purgantes e adequação da dieta, mas tudo isso deve ser realizado sem contradizer a imaginação do enfermo. Nesse caso, pediu-se a um barbeiro que simulasse uma cirurgia, realizando uma incisão inofensiva, a fim de extrair o punhal imaginário de sua cabeça. Du Laurens (1597 apud SILVA, 2008) explica que as enfermidades recebem o nome conforme o local que atacam, os acidentes que provocam ou as suas causas, no caso da melancolia, o nome vem do humor melancólico, pois para ele, todos os melancólicos têm a imaginação perturbada e alguns têm até a razão abalada.

As imaginações dos melancólicos seguem a disposição do corpo, isto é, as qualidades da bile negra, embora de modo individual, tal como diferentes pessoas ficam embriagadas de modo diferente com o mesmo vinho. De modo geral, ao se depositar no cérebro, o humor causaria imaginações de caráter frio e terroso. As imaginações podem também ser causadas diretamente na alma por meio do estilo de vida ou dos estudos empreendidos pelos melancólicos. As paixões pessoais imprimem sua tonalidade na imaginação melancólica. Por exemplo, os ambiciosos, ao se tornarem melancólicos, imaginam-se reis e imperadores; os amorosos correm atrás da sombra de seu amor. Há também a possibilidade de alguma influência sobrenatural nas imaginações muito estranhas. O médico francês Du Laurens (1597 apud SILVA, 2008) diz que é preciso que haja uma correspondência entre a produção dos sonhos e das imaginações melancólicas e que ambos podem ter os três tipos de causas: “[...] sonho se reporta à imaginação tão quanto à melancolia. Nós temos três tipos de sonhos: uns são naturais, outros da alma, e os últimos de algo acima dos dois primeiros”. Nem toda dor da alma é melancolia.

Timothy Bright (1586 apud SILVA, 2008) distingue a melancolia do mal de consciência. A diferença fundamental seria a causa. Aquele que se encontra atormentado pela culpa, ao fazer o exame de consciência, pode identificar as causas de seus sintomas no pecado cometido. Já o melancólico não identifica facilmente a causa de seus tormentos. Em suas palavras: “A melancolia dispõe ao medo, à dúvida, à desconfiança e ao pesar, mas tudo sem uma causa”. Há também um

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aspecto social implicado na escolha dos termos para definir as psicopatologias (BRIGHT, 1586 apud SILVA, 2008). De acordo com MacDonald (1981 apud SILVA, 2008), houve na Inglaterra seiscentista uma verdadeira moda melancólica, especialmente entre os aristocratas. Ele afirma que os nobres apreciavam serem retratados como melancólicos. Por outro lado, os termos distúrbio mental e deprimido eram menos utilizados pelos próprios aristocratas ao descrever seus estados psíquicos. Luca Tozzi (1687 apud SILVA, 2008) aponta outras referências importantes na identificação da melancolia. O médico afirma que o melancólico não apresenta déficit de memória ou febre. Ele eventualmente não verbaliza as coisas absurdas que medita e as exprime por meio de gestos e ações. Em outros casos, a língua torna-se desenfreada e titubeante, emite sons estranhos e o melancólico exprime confusamente suas ideias. Em suma, os médicos da primeira modernidade apresentam nuanças na compreensão da melancolia e discordam até mesmo sobre a necessidade da presença da tristeza.

No entanto, em geral, conforme a medicina da alma do período, a melancolia forma uma parceria infernal com a tristeza e seus acidentes incluem a lenta destruição do corpo e a ruína dos relacionamentos. O medo, o desgosto, a solidão, a inquietude eram também sinais dessa psicopatologia. O sonho era um modelo para se entender a própria melancolia: um sonho sombrio e interminável, que arrasta o sonhador para o tudo ou o nada. E, sobretudo, um sonho frio e seco: que esfria e seca o desejo. É interessante notar, por um lado, a atualidade das discussões desses médicos sobre a melancolia e, por outro, como o assunto está longe de ser encerrado. Como veremos no próximo capítulo Freud, em “Luto e melancolia” (1916) descreve um estado de ânimo profundamente doloroso e um desinteresse pelo novo. A diferença fundamental da melancolia seria a perda a mais, a perda de um objeto inconsciente, havendo, portanto, a dor de uma perda de parte de si. Por essa razão, no luto, o mundo parece empobrecido; na melancolia, é o Eu que se empobrece. Os reproches a um objeto erótico perdido retornam ao Eu devido a uma identificação com o mesmo. Com a perda do que se amava, surge o ódio a si mesmo que, de certa forma, os médicos têm observado nos melancólicos há séculos. No âmbito dos mais recentes estudos em Psicopatologia Fundamental, Malucelli (2007 apud SILVA, 2008), por meio de sua análise de um caso atual de

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Síndrome de Cotard1, mostra a permanência dos delírios de negação do corpo e

afirmação da morte, da mania de grandeza e pequenez, do mutismo, do horror, da angústia permanente, da paralisia, do pesadelo, da dor de existir e, sobretudo, da aniquilação do desejo e da violência da tristeza que acompanha a melancolia sem se confundir com ela.

Marraccini (2007 apud SILVA, 2008) fala de um eu em ruína, aprisionado entre o tudo e o nada, na experiência da perda. Magtaz (2008 apud SILVA, 2008) discute a amplitude do diagnóstico de melancolia, ao retomar a categoria freudiana de melancolia enquanto neurose narcísica, e discorre não sobre imaginação – como os médicos dos séculos XVI e XVII – nem alucinação ou delírio, mas sobre ilusão negativa. Escreve também sobre defesas perante uma tristeza que não pode ser reconhecida como tal e que se manifesta nas fantasias de devoração e de deformação corporal, também presentes na literatura médica aqui analisada. Como outros médicos de sua época, Du Laurens (1597 apud SILVA, 2008) elenca várias histórias de imaginações melancólicas, algumas dessas histórias eram muito conhecidas no meio médico europeu, como relata MacDonald (1981 apud SILVA, 2008) a propósito de um homem que acreditava ter o nariz do tamanho de uma casa, e de outro que temia inundar uma cidade inteira se urinasse. Aliás, Du Laurens (1597 apud SILVA, 2008) introduz esse capítulo afirmando que apresenta esses casos estranhos para o deleite do leitor, o que confere um colorido tragicômico a uma triste psicopatologia.

Talvez esse tenha sido o modo que ele encontrou para amenizar o peso do objeto de investigação ou mesmo a maneira de abordar, mesmo que de modo tangencial, o que há de mais desafiante no tratamento da melancolia: possibilitar ao melancólico rir de si mesmo (SILVA, 2008).

Peres (2003) traz através de seus estudos, a história da depressão e da melancolia em tempos passados e na atualidade. A autora escreve:

Se remontarmos aos mitos de origem, vamos nos defrontar com a constatação de que a depressão é tão antiga quanto à humanidade, ou melhor, que a tristeza é companheira do homem desde a sua origem. Que

1 Transtorno psicológico em que os indivíduos acreditam que estão mortos e que seus órgãos estão

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Eva tenha sido criada para afastar de Adão a sua solidão, e que o casal tenha submergido, pelas vias do pecado original, na culpa e no remorso tão presentes entre os melancólicos, é hipótese frequentemente evocada. Fato é que a depressão, podemos afirmar, faz parte da própria estrutura humana. O homem não caminha sem a sua tristeza, condição não dissociada da própria consciência da morte (PERES, 2003, p. 13).

Segundo a autora, as fontes históricas situam no canto IV da Ilíada de Homero (versos 200-203) pela descrição dos sofrimentos de seu herói Belerofonte – condenado pelo ódio dos deuses a vaguear solitário na planície de Aleão, submergido no desespero e solidão -, uma das primeiras análises desse mal-estar que atravessou os tempos e se fez tão presente na atualidade. Também é de Homero a primeira referência ao pharmakon, medicamento produzido pelo homem, mistura, de plantas e rituais, visando aliviar um sofrimento que teve sua origem na ação divina.

Na antiguidade a teoria de Hipócrates domina: quatro humores, a que correspondem a bílis negra, a amarela, o sangue e a pituíta. As doenças decorrem das variações e do equilíbrio entre essas quatro substâncias. A melancolia recebe, então, a sua denominação da bílis negra cuja alteração quantitativa ou qualitativa produz o quadro melancólico, caracterizado pelo medo e pela tristeza. Aos quatro humores podem se associar as quatro qualidades – seco, úmido, quente, frio -, as quatro estações, as quatro direções do espaço e ainda as quatro etapas da vida, formando uma verdadeira teoria cosmológica.

Contudo, é atribuído a Aristóteles, ainda que sem certeza absoluta, o primeiro tratado sobre a melancolia, que prevalecerá por toda a Antiguidade. A Problemata 30 nos fala da relação entre a genialidade e a loucura. A melancolia seria decorrente de uma predisposição natural do organismo, e o autor estabelece um paralelo entre as diferenças de caráter e o efeito provocado pela ingestão de vinho. Ciência e misticismo se reúnem, o calor – princípio regulador do organismo – e a mesotes – equilíbrio entre energias opostas – são responsáveis pelo humor. A melancolia deixa ser uma doença e se insere na própria natureza. É provável que Aristóteles tenha recebido a influência de um ensaio de Theophastus, Peri melancolias, que se extraviou. Empédocles, Sócrates, Platão, muitos poetas e homens ilustres são considerados portadores de melancolia, assim como os heróis míticos Hércules, Belerofonte, Aiace e Lisandro. A melancolia não é uma doença do filósofo, mas a sua própria natureza, seu ethos.

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Que a melancolia seja a condição da genialidade, do pensamento, da filosofia e da literatura é uma concepção que fascina, e muitos a defendem até nos dias de hoje. Depressão e criação ficam indissociáveis; o homem triste é também o homem profundo, a alegria é superficial.

Uma ambiguidade se estabelece, pois, no uso da palavra melancolia: por um lado, um humor natural e não necessariamente patogênico e, por outro lado, uma doença mental produzida por um excesso ou desequilíbrio dos humores.

Na Idade Média, século XII, domina a Escola de Salerno representada por Constantinus Africanus. A melancolia decorreria de um excesso de um elemento frio e seco no organismo, a bílis negra. A teoria dos humores ainda predomina, dividindo a humanidade em quatro grupos de diferentes temperamentos: o melancólico (bílis negra), o colérico (bílis amarela), o sanguíneo (sangue) e o fleumático (água). Essa concepção segue até a Renascença.

O médico e alquimista suíço Paracelso defende a teoria médica baseada na concepção alquimista das correspondências ou analogias entre as diferentes partes do corpo (microcosmo) e aquelas do universo na sua totalidade (macrocosmo). Para ele, Adão foi o representante da tristeza e Eva, da alegria. As matérias contidas em Adão se misturaram com as contidas em Eva, produzindo um equilíbrio; o mesmo acontecendo com a ira, a tirania, a violência, que se temperam com a doçura, a virtude e a modéstia.

Ainda na Idade Média, através da ciência árabe, a teoria dos humores vai se ligar à astrologia. A teoria da melancolia vinculada à doutrina das influências astrais deposita em Saturno a sua força mais fatídica: Saturno é o astro que governa o melancólico. Sua influência não se exerce em pessoas vulgares, ele escolhe os seres extraordinários. Mantém-se dessa forma a ideia, vinda da Antiguidade, da relação entre melancolia e genialidade.

No Renascimento predomina a distinção entre a melancolia sublime e a melancolia vulgar, teoria atribuída a Marsilius Facinus, médico florentino, autor de Da vita tríplice. Ficinus foi também fascinado pela astrologia; o seu tratado reúne quatro tradições de pensamento: a hipocrática (teoria dos humores), a platônica (poesia e furor), a astrológica (Saturno e melancolia) e, por fim, a aristotélica, que vincula melancolia e genialidade. Para Ficinus a melancolia é ao mesmo tempo um grande tormento, mas também a grande chance para os homens de estudo.

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O cristianismo, desde as suas origens, mantém um culto à melancolia. Se por um lado ele é vista como um pecado, por outro lado, pela via do misticismo, é considerada um caminho que conduz a Deus, via esta que intensifica na Idade Média sob a forma de acedia.

A Reforma, através de seu principal representante, Lutero, também cultiva a melancolia na medida em que retira das ações do homem a possibilidade de expiação das faltas. Apenas na fé a salvação pode ser encontrada. O barroco é herdeiro desse estado d’alma melancólico. O ensimesmamento, a autocontemplação exagerada, a culpabilização fazem parte desse universo depressivo.

Nos séculos XVI, XVII e XVIII, período que corresponde ao classicismo, produz-se uma passagem de uma causalidade sustentada pelas substâncias – ainda a teoria dos humores – para uma causalidade das qualidades. Surge a noção de uma transmissão da qualidade do corpo para a alma, do humor para as ideias, dos órgãos para o comportamento. No século XVIII, a análise da melancolia está cada vez mais dirigida para a ênfase nas qualidades – solidão, inibição, amargura e tristeza. Data desse século, o surgimento de duas concepções de etiologias distintas: nervosa e humoral. Contrações excessivas das fibras do sistema nervoso, por um grande espasmo, se fariam seguir por uma atonia, languidez, que explicaria as alternâncias de paroxismos e desfalecimentos no comportamento melancólico.

Devemos a Phillipe Pinel (apud PERES, 2003) a primeira tentativa de uma nosografia. Em fins do século XVIII o estudo das perturbações mentais começa a constituir um ramo da medicina. Pinel baseava-se, sobretudo, na observação clínica, procurando agrupar sintomas em síndromes, porém sem uma preocupação teórica maior. A melancolia é então considerada um “delírio dirigido exclusivamente sobre um objeto ou uma série particular de objetos, com abatimento, morosidade, e mais ou menos inclinando-se ao desespero”. Surge a ideia de que a melancolia decorreria de um falso julgamento do doente sobre o seu próprio corpo. Os trabalhos de Pinel foram desenvolvidos pelo seu discípulo Esquirol, que se empenhou em descrições clínicas detalhadas e mais precisas. Esquirol destacou uma nova classe, as monomanias, que agrupava por um lado a mania sem delírio de Pinel e uma parte da melancolia, e por outro, a lipemania. A melancolia é definida por ele, em 1819, como uma monomania: tristeza, abatimento ou desgosto de viver que se fazem acompanhar muito frequentemente de um delírio sobre uma ideia fixa.

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O século XIX fecha terminantemente a teoria dos humores, e nesse movimento de repúdio a designação de melancolia também perde terreno. Surge a expressão “monomania triste”, ou “lipemania”. A psiquiatria mantém uma ênfase na psicose maníaco-depressiva que recebe de Emil Kraepelin (apud PERES, 2003) a descrição mais completa do quadro clínico; uma alternância de acessos maníacos (podendo atingir uma dimensão delirante) e acessos depressivos. Formas mais leves podem apresentar uma baixa de humor e inibição psíquica. O primeiro Compêndio de psiquiatria de Kraepelin aparece em 1883 e durante todo o fim do século XIX e primeira metade do século XX sofre revisões, terminando por constituir uma obra de duas mil e quinhentas páginas.

O período que vai de fins do século XIX, ao início do XXI é muito rico, na medida em que marca definitivamente uma nova maneira de pensar a doença mental, a partir de visões complementares distintas, como é o caso da leitura da psicanálise e da psiquiatria biológica.

De alguma maneira, o surgimento dos asilos muito contribui para a “transformação de uma doença da grandeza da alma e do gênio em miséria afetiva”. Verdadeiramente, o caráter “sublime” da melancolia entra em declínio.

No final do século XIX, a neurastenia ganha a dimensão de “doença da modernidade”. O acelerado desenvolvimento industrial, a agitação dos grandes centros urbanos, as novas condições de vida disseminaram uma fadiga generalizada. O operário e a operária são símbolos do homem e da mulher extenuados. Devemos a George Beard (apud PERES, 2003) a definição da neurastenia como doença da vida moderna. Tal definição é de extrema importância, pois atribui uma nova etiologia para o adoecer mental, ou seja, já não se impõe uma relação entre uma lesão orgânica e uma síndrome apresentada. Fatores sociais de diferentes modalidades podem ser considerados fonte de adoecimento. Surge então uma nova causalidade, distante dos padrões tradicionais da medicina. Um acontecimento que gere uma reação patológica pode assumir a dimensão de um trauma e ser o fator desencadeante. A nervosidade entra no campo da medicina e da arte. Abre-se nova área de pesquisa, pois não é suficiente afirmar uma etiologia social, porém investigar o por quê desse acontecer.

Cabe a Charcot (apud PERES, 2003) nesse momento, um importante papel. Contrariando a opinião mais aceita, ele questiona a maior incidência da neurastenia nas classes trabalhadoras e eleva a noção de trauma como elemento da maior

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importância entre os fatores etiológicos, que podem acontecer a qualquer um. O diagnóstico de histeria ganha nas mãos desse eminente psiquiatra um estatuto de doença que não possuía antes. Tanto homens como mulheres podem apresentar reações histéricas, ou seja, sintomas que não apresentam um correspondente físico que os justifiquem. A histeria masculina é preferencialmente atribuída a acidentes e causas tóxicas, enquanto a feminina é sobretudo provocada por emoções. Essa leitura da histeria dá origem ao conceito moderno de neurose: uma doença mental, sem substrato orgânico, porém devida a uma causa de origem traumática. Charcot foi um grande mestre para Freud (PERES, 2003).

Peres (2003) ainda trabalha o texto de Freud “O mal-estar na civilização”, para afirmar muito claramente que só podemos desfrutar a felicidade como um fenômeno episódico, pois somos limitados em nossa capacidade de senti-la. Entretanto, a infelicidade pode ser experimentada com muita facilidade, pois padecemos permanentemente de três grandes ameaças de sofrimento: nosso próprio corpo, que nos envia sinais de alarme através da dor e da angústia devido a seu inevitável processo de envelhecimento; o mundo externo, que pode nos lançar ataques intensos e destruidores, e, finalmente, o desgosto decorrente de vínculos com os outros seres humanos, que de todos os males é o mais ingrato. Assim a busca pela felicidade acaba por se transformar, apenas, em um esforço para evitar a infelicidade: buscar o isolamento para evitar os conflitos com os semelhantes, tentar proteger-se das intempéries da natureza, procurando agir sobre a própria natureza, e, por último, agir sobre o próprio organismo, quando ele mesmo faz parte dessa natureza.

A autora ao se referir sobre a questão da felicidade e a infelicidade, emoções essas, vivenciadas por todos os seres humanos, traça um roteiro estatístico em seu livro que trata do assunto das depressões nos dias atuais, ela se refere “A depressão – ou as depressões, melhor dito – assume hoje um caráter epidêmico e interroga: como uma doença considerada mental pode assumir essa característica?” (PERES, 2003).

Em fins do século XIX, a histeria se manifestava de uma maneira tão dominante que se transformou em alicerce de uma nova ciência, a psicanálise, que trouxe um método próprio de tratamento da doença mental hoje. Hoje, é a depressão que desafia, não apenas questionando diagnósticos, etiologias e

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tratamentos desse mal-estar, mas posso dizer, interferindo também na própria concepção de doença mental.

A depressão domina a humanidade nesse fim de século XX e início do século XXI, tornando-se inclusive um meio privilegiado de compreensão do homem contemporâneo. As diferentes abordagens propostas para dar conta desse universo mórbido apenas refletem a complexidade do ser humano e o caráter redutor de cada leitura.

As estatísticas são alarmantes: em 1970, havia cerca de cem milhões de deprimidos no mundo; trinta anos mais tarde chegam, talvez, a um bilhão. Vários relatórios de órgãos oficiais consideram a depressão como a quarta causa mundial de deficiência, com a estimativa de que, nos próximos vinte anos passará ao segundo lugar. Nos países em vias de desenvolvimento, ainda que pouco diagnosticada, ela deve ocupar o primeiro lugar. Na França, em dez anos (1980-1991) ela aumentou em 60%, um milhão a mais de diagnósticos, e sobretudo entre as mulheres. No período de 1980 a 1989, os Estados Unidos registraram entre 2,5 e 4,7 milhões de consultas e prescrições de antidepressivos. A Organização Mundial de Saúde prevê para os próximos anos que a depressão seja um dos dois grandes problemas de saúde pública, podendo mesmo ultrapassar as doenças cardiovasculares (PERES, 2003).

Peres (2003) salienta que é possível estabelecer duas grandes linhas interpretativas sobre a depressão, que se desenvolvem no início do século XX, a partir dos pensamentos de Sigmund Freud e Pierre Janet. A primeira, muito embora colocando ênfase na ideia de conflito, não deixa de apontar para o seu caráter estruturante, e a segunda, para uma noção de insuficiência, uma deficiência inata. Freud abre o caminho da intervenção psicanalítica e psicoterapêutica e Janet fortalece a visão psiquiátrica do déficit orgânico e biológico. O esforço diagnóstico e terapêutico acaba por estabelecer dois grandes grupos, um liderado pelos psicanalistas e psiquiatras de orientação psicanalítica, como são denominados, e outro agrupando os psiquiatras que, seguindo uma tradição kraepeliana, procuram enfatizar menos as causas etiológicas a mais a sintomatologia, através de modelos padronizados, descrições de síndromes e enumeração de sintomas.

Podemos perceber que desde a antiguidade até os dias atuais existiu uma grande discussão teórica entre médicos que se ocuparam em estudar a melancolia para melhor compreender o que esta doença acometia. Ainda na

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contemporaneidade continua certa discussão acerca do que realmente se trata na melancolia, uma vez que nos dias de hoje frequentemente pode ser tomada como depressão. Já estudamos, nesse primeiro capítulo, a visão da medicina e suas várias concepções, no próximo capítulo será trabalhada a questão da melancolia numa abordagem psicanalítica.

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2 A MELANCOLIA NA LEITURA PSICANALÍTICA

No cotidiano em que vivemos desde o nascimento até a idade adulta nos deparamos com perdas, situações de conflitos, seja de ordem física ou emocional. Aprendemos que temos que saber lidar de alguma forma com as mudanças que o corpo sofre nas diferentes fases da vida, que é preciso em algum momento se desfazer de coisas que já não nos cabem mais, coisas essas, que já não fazem mais parte de nossa vida, seja por uma mudança, ou uma decisão própria. Podemos perder um amor, mudar de cidade, perder um ente querido, se desfazer da chupeta, do seio materno, da casa dos pais. Coisas simples que ao decorrer do tempo, em cada etapa da vida, acabamos vivenciando para nos aprimorarmos como sujeitos.

Com tantas perdas que acabamos por vivenciar no decorrer de nossas vidas, e que muitas vezes são fontes geradoras de sofrimento, muitas pessoas parecem não ver saída e acabam submersas em suas dores. Diante desse fato podemos pensar na melancolia como uma dor profunda, geralmente diagnosticada hoje em dia, como depressão. Freud (1916) caracteriza a melancolia, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda a atividade e diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição.

Como podemos perceber, a melancolia se mostra de uma forma diferente de uma perda qualquer, há um vazio que não é preenchido, um sentimento de inferioridade que se volta para o próprio Eu do sujeito. Não é apenas um objeto perdido que está em questão na melancolia, mas sim a própria integridade do sujeito.

Destacando a melancolia do campo das psicoses, criando a categoria das neuroses narcísicas, Freud introduz uma maneira de pensar que interroga os limites entre neurose e psicose. A abordagem da melancolia e o raciocínio que se constitui em torno desta, apresentam-se como um campo privilegiado para a evolução da própria teoria psicanalítica. A fronteira entre o somático e o psíquico, o paralelo com o afeto do luto, trazendo a questão central da perda na constituição do humano, faz com que o estudo das depressões nos coloque no caminho do entendimento da constituição do eu (PERES, 2003).

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Chemama (1995) fala das concepções Freudianas, que, no início de suas reflexões, Freud dividiu as neuroses em neuroses atuais, em cuja etiologia não intervinha nenhum processo psíquico, e psiconeuroses de defesa (histeria, obsessão), cuja origem, ao contrário, era claramente psíquica. Nessa ocasião, construiu uma teoria energética, baseada na oposição entre energia sexual somática e energia sexual psíquica e na necessidade de transformação de uma em outra. Formulou então a hipótese de que a melancolia era o resultado de uma descarga inadequada de energia sexual psíquica, assim como a angústia se devia a uma falta de descarga de energia somática. Naquele momento, para ele, a melancolia constituía uma “vertente da neurose de angústia”. Para dizer a verdade, ao tentar desenvolver essa tese, ele destruiu seu fundamento, ou seja, a distinção entre os dois tipos de energia, que foram reagrupados sob o nome comum de “libido”2, mas

disse então – portanto, a partir de 1895 – ter a intuição de que a melancolia seria uma espécie de “luto provocado por uma perda dessa libido” ou, de forma mais concisa, que a melancolia corresponderia a uma “hemorragia libidinal”.

Vinte anos depois, tendo introduzido o conceito de narcisismo3 na teoria

analítica, Freud propôs um novo tipo de divisão entre psiconeuroses de transferência (as neuroses modernas), concebidas como negativo da perversão, resultantes dos avatares (recalcamento, introversão) das pulsões sexuais, e psiconeuroses narcisistas, devidas a uma “má sorte” das pulsões (libidinalizadas) do eu. O que é posto em jogo é importante, pois se trata de um remanejamento geral da teoria das pulsões (pulsão)4, levando em conta, graças ao narcisismo, o eu como objeto

princeps de amor, e de um possível entendimento das psicoses. De fato, essas passam a ser compreendidas como sendo o produto da retirada da libido para o eu, o que provocaria ou sua difração (parafrenias), ou seu inchamento exagerado (paranoia), ou ainda, exatamente no caso da melancolia, uma “absorção” e, depois, um esgotamento da libido com, finalmente, uma perda do eu.

2 Energia psíquica das pulsões sexuais, que se encontram em termos de desejos. Para Freud é a

presença e a manifestação do sexual na vida psíquica.

3 É uma referência ao mito de Narciso. Amor que o sujeito atribui a si mesmo. Freud acredita que o

narcisismo existe quando a libido está voltada para o próprio indivíduo.

4 Impulso inconsciente que direciona o comportamento do indivíduo. A pulsão é de origem psíquica

que acumula a sua energia no interior do ser humano, gerando uma tensão que exige ser descarregada.

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Ainda seria preciso compreender o motivo dessa retirada e esgotamento libidinais. Foi isso que Freud tentou realizar, em 1916, em seu importante artigo “Luto e Melancolia”. Nesse, ele definiu o luto tanto como um estado (normal) devido à “perda de um objeto amado” como um trabalho psíquico, cujo objetivo seria permitir que o sujeito renunciasse a esse objeto perdido. Se, em um primeiro momento, parece que o luto corresponde estreitamente à melancolia, logo se torna evidente que sua diferença não é apenas de ordem quantitativa – que a melancolia não é apenas um luto patológico, no qual não ocorreu um trabalho – mas também qualitativa. De fato, ele se refere à natureza do objeto perdido. E Freud aponta o próprio eu como sendo o objeto perdido do melancólico (CHEMAMA, 1995).

Afinal, resta ainda compreender exatamente a posição subjetiva trazida por essa perda e essa hemorragia. Seria este o último avanço de Freud sobre o assunto, feito em 1923, depois de construir a teoria da pulsão de morte (O ego e o id, 1923). Essa posição subjetiva prende-se a uma palavra: renúncia. Finalmente, a melancolia produz o mesmo trabalho do luto. Mas, enquanto o luto iria permitir que o sujeito renunciasse ao objeto perdido, dessa forma reencontrando seu próprio investimento narcisista e sua capacidade de desejar novamente, a melancolia, ao levar o sujeito a renunciar a seu eu, coloca-o em uma posição de renúncia geral, de abandono, de demissão desejante, que finalmente, explicaria o termo melancolia. (CHEMAMA, 1995).

Freud (1916) escreve que o luto exibe os mesmos traços da melancolia, com exceção de um: nele a autoestima não é afetada. De resto é o mesmo quadro. O luto profundo, a reação à perda de um ente amado, comporta o mesmo doloroso abatimento, a perda de interesse pelo mundo externo – na medida em que não lembra o falecido –, perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor – o que significaria substituir o pranteado –, o afastamento de toda atividade que não se ligue à memória do falecido.

Na melancolia é evidente que também ela pode ser reação à perda de um objeto amado; em outras ocasiões, nota-se que a perda é de natureza mais ideal. O objeto não morreu verdadeiramente, foi perdido como objeto amoroso (o caso de uma noiva abandonada, por exemplo). Em outros casos ainda, achamos que é preciso manter a hipótese de tal perda, mas não podemos discernir claramente o que se perdeu, e é lícito supor que tampouco o doente pode ver conscientemente o que perdeu. Esse caso poderia apresentar-se também quando a perda que

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ocasionou a melancolia é conhecida do doente, na medida em que ele sabe quem, mas não o que perdeu nesse alguém. Isso nos inclinaria a relacionar a melancolia, de algum modo, a uma perda de objeto subtraída a consciência; diferentemente do luto, em que nada é inconsciente na perda (FREUD,1916).

No luto, vimos a inibição e a ausência de interesse explicadas totalmente pelo trabalho do luto que absorve o Eu. Na melancolia, a perda desconhecida terá por consequência um trabalho interior semelhante, e por isso será responsável pela inibição que é própria da melancolia. Mas a inibição melancólica nos parece algo enigmático, pois não conseguimos ver o que tanto absorve o doente (FREUD, 1916). Ainda nesse contexto Freud (1916, p. 176) escreve que:

O melancólico ainda nos apresenta uma coisa que falta no luto: um extraordinário rebaixamento da autoestima, um enorme empobrecimento do Eu. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio Eu.

O doente descreve seu Eu como indigno, incapaz e desprezível; recrimina e insulta a si mesmo, espera rejeição e castigo. Degrada-se diante dos outros; tem pena de seus familiares, por serem ligados a alguém tão indigno. Não julga que lhe sucedeu uma mudança, e estende sua autocrítica ao passado; afirma que jamais foi melhor. O quadro desse delírio de pequenez – predominantemente moral – é completado com insônia, recusa de alimentação e uma psicologicamente notável superação do instinto que faz todo vivente se apegar à vida (FREUD, 1916).

O discurso do melancólico pode nos apontar direções: pensamento vazio, perda de sentido, monotonia ao falar, a impressão de um domínio da sonoridade da palavra às expensas de sua significação, como se algo faltasse para dar consistência à palavra. A melancolia nos falaria, então, de uma fragilidade, ou insuficiência constitutiva, estrutural. Os melancólicos apresentam uma espécie de anestesia psíquica, e que se na neurose de angústia o bloqueio é de energia física, no que toca a melancolia há que se pensar em uma tensão psíquica que não se satisfaz. Freud diz que, os melancólicos são frequentemente anestésicos, não apresentam desejo de coito, carecem da sensação de prazer, mas demonstram “uma grande ânsia de amor em sua forma psíquica, uma tensão erótica psíquica” (PERES, 2003).

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Lacan (1998) reforça a tese freudiana da melancolia como uma neurose narcísica, ou seja, é nos primórdios da constituição do eu – estágio teórico chamado narcisismo, pois toca na questão da relação com a própria imagem – que podemos situar esse acontecer.

Lacan (1998) oferece, através do estádio do espelho5, o ponto de ancoragem

onde algo pode falhar, não se constituir, o que comprometeria radicalmente a absorção do “sentimento de si” – sentimento que não está dissociado do sentido da vida. Tanto no discurso do melancólico como nas depressões ocasionais, a queixa da perda do sentido da vida é uma constante, assim como da desvalorização de si (PERES, 2003).

Lambotte (1997) situa as dificuldades relativas à melancolia: há uma condição, diferenciada relativa à relação que a mãe do melancólico mantém com a castração, ao olhar que ela não lhe dirige, o que intervém na sua estruturação psíquica, produzindo dificuldades na estruturação do eu, que repercutirão na diferenciação do supereu e dos ideais do eu. O que resultaria dessas identificações primárias não seria uma identificação ao falo, mas ao nada, pois a criança estaria perante um olhar que não o tomaria como objeto possível. Na constituição desse esboço de eu, a criança não parece ter a possibilidade de ser o falo, ela introjeta não os resíduos de um olhar e voz que, como traços unários, designariam um olhar de referência para ela, mas um ideal de perfeição inacessível.

Ao dirigir o olhar para um ideal que não inclui a criança, mas a transpassa, marca-se uma ausência do Outro6, para essa função ninguém se apresenta,

ninguém a sustenta, faltando assim o lugar do Outro como função essencial para que aquilo que não está no espelho venha ali a se colocar, permitindo que aceda uma imagem, suporte de identificação. A retirada prematura do Outro deixa um vazio. Na ausência de uma imagem é com esse vazio que a criança se identifica. Esta seria a peculiaridade que Lambotte salienta, marcando diferenças importantes em relação ao sofrimento nas neuroses (RAMOS, 2001).

5 Primeiro esboço do Eu na criança. Ela reconhece sua imagem no espelho como um outro que ela se

vê e se apreende. Sendo o estádio do espelho uma antecipação da identificação imaginária da forma total do corpo.

6 “É o lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que, anterior e exterior ao

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Ainda, o melancólico em sua tristeza muitas vezes expressa profundo cansaço, uma desistência. Ele se cansa de tentar inventar um pai que, por decaído que seja na modernidade, o neurótico representou psiquicamente, de início no que constituiu essa “forma de laço original com o objeto, com os pais tomados como modelos do que gostaríamos de ser” e, mais tarde, quando os abandonou e introjetou, via supereu e ideais do eu. Ao contrário do “Você deveria ser assim..., ou do Você não pode ser assim...”, o supereu, na melancolia parece dizer “Você não é”, talvez por isso, ao escutá-lo, com frequência nos fique a paradoxal impressão de que a única coisa que o melancólico verdadeiramente perde é o futuro, aquele que o ideal do eu veicula como promessa: “Não és o falo, mas podes tê-lo”. Promessa enganosa, posto que esse gozo7 será impossível, mas essencial para que a criança

aceite as interdições e confirme seu ingresso no simbólico8. Submetido a um ideal

tão distante, o melancólico perde o que nunca teve, o futuro, a esperança de encontro com o que estaria por advir. “Você não é... você nunca será...”. “Eu não sou ninguém, nunca serei” (RAMOS, 2001, grifo do autor).

A melancolia aparece de uma forma muda e cheia de vazio, o sujeito se vê enclausurado em sua dor, e se questiona subjetivamente “O que o Outro quer de mim?”. Logicamente, o melancólico não enxerga nada que possa fazer-lhe o bem, que as pessoas não o acolheriam por ele ser como é, um pobre sujeito infeliz, incapaz de amar e ser amado. Também podemos pensar no melancólico como sendo um ser abandonado, um ser que desde os primórdios da sua existência não foi olhado como um objeto de amor, jamais sequer desejado, mas sim deixado sozinho a constituir sua própria subjetividade.

A queixa que o melancólico se faz referente ao Outro, “O que quer de mim?” há uma grande questão. Por que razão o melancólico carrega consigo a culpa?

Ferrari (2005) nos explica que nas vivências melancólicas há a presença da culpabilidade, algo considerado, por muitos, como tipicamente neurótico. “Não sou doente, sou culpado”, no entanto, é uma frase usualmente pronunciada pelos sujeitos melancólicos. Existir supõe a dor de ser lançado no mundo, supõe a linguagem que não dá conta de todos os juízos. Se a linguagem dá conta do juízo de

7 Na psicanálise tem relação ao desejo, e mais precisamente ao desejo inconsciente do sujeito,

constituído pela nossa relação com as palavras.

8 “Função complexa e latente que envolve toda a atividade humana, comportando uma parte

consciente e outra inconsciente, ligadas à função da linguagem e, mais especialmente, à do significante”. (CHEMAMA, 1995, p. 156).

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atribuição, dizendo você é isso ou aquilo, ela não porta, no entanto, o juízo de existência. A existência é forcluída do Outro e viver supõe o existir já recoberto pelo Outro.

Se a culpabilidade se aplica, então, primordialmente ao gozo fálico, à neurose, há, no entanto, o Outro gozo. Fora do simbólico, do inconsciente, não sujeito ao corte, esse Outro gozo leva diretamente à culpabilidade melancólica, a uma culpa que vem do real, já que a pulsão não se inscreve no seu circuito. O motivo da “dor de existir em estado puro”, própria da melancolia, advém do fato de que estes sujeitos, diferente dos sujeitos neuróticos, não contam com o recurso de identificar, dar sentido à sua vida no desejo do Outro. O que tudo indica é que nessa carência de ser no Outro, ser sob o significante fálico, o melancólico diz de uma culpabilidade que não é relativa à insuficiência do gozo, mas ao injustificado da vida, do gozo da vida (FERRARI, 2005).

Podemos relacionar diante desse contexto, que tanto no luto, quanto na melancolia, há certa culpabilidade do sujeito frente a uma perda. O que difere, já escrevia Freud (1916), é que na melancolia o sujeito não sabe o que perdeu nesse alguém, é uma perda inconsciente; posto também que não saberá de onde vem essa culpa. No luto o sujeito sofre a perda e culpa-se por isso, mas o Eu após a consumação do trabalho do luto, fica novamente livre e desimpedido. Peres (2003, p. 40) também escreve que:

É curiosa essa relação que se estabelece entre perda, luto e desejo, à qual podemos ainda articular a falta. Falta não apenas do que faz falta mas também, enquanto culpa, pois sabemos que o sujeito padece de uma culpabilidade originária, como se fosse ele próprio o responsável pela sua perda. Freud se refere a um sentimento inconsciente de culpa.

O exame da realidade mostrou que no luto o objeto não existe mais, e então exige que toda libido seja retirada de suas conexões com esse objeto. Isso desperta uma compreensível oposição. Essa oposição pode ser tão intensa que se produz um afastamento da realidade e um apego ao objeto mediante uma psicose de desejo alucinatória. Mas a solicitação desta não pode ser atendida imediatamente. É cumprida aos poucos, com grande aplicação de tempo e energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto perdido se prolonga na psique. Cada uma das lembranças e expectativas em que a libido se achava ligada ao objeto é enfocada e

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superinvestida, e em cada uma sucede o desligamento da libido, até que o Eu fique livre novamente (FREUD, 1916).

Na melancolia o sujeito se acha realmente sem interesse, incapaz para o amor e para realizar coisas. Mas isso é secundário, é consequência do trabalho interno que consome seu Eu, trabalho que desconhecemos, comparável ao luto. O melancólico quando em exacerbada autocrítica, ele pinta a si mesmo como uma pessoa mesquinha, egoísta, insincera, sem autonomia, que sempre buscou apenas ocultar as fraquezas do seu ser, pode ocorrer, pelo que sabemos, que tenha se aproximado bastante do autoconhecimento, e perguntamo-nos apenas por que é necessário adoecer para alcançar uma verdade como essa. Deve nos chamar a atenção, que o melancólico não age exatamente como alguém compungido de remorso e autorrecriminação de maneira normal. Ele carece da vergonha diante dos outros, que seria a principal característica desse estado, ou ao menos não a exibe de forma notável. No melancólico talvez possamos destacar um traço oposto, uma insistente comunicabilidade que acha satisfação no desnudamento de si próprio (FREUD, 1916).

Freud (1916) ainda questiona até que ponto a autocrítica do melancólico coincide com o julgamento dos outros. A questão é, que ele descreve corretamente sua situação psicológica. Ele perdeu o amor-próprio e deve ter tido boas razões para isso. Mas assim nós nos vemos ante uma discrepância, que coloca um problema de difícil solução. Fazendo analogia com o luto, concluímos que ele sofreu uma perda relativa ao objeto; suas declarações indicam uma perda no próprio Eu.

A discrepância mencionada por Freud (1916) pode ser esclarecida por meio de uma observação. Ouvindo com paciência as várias autoacusações de um melancólico, não conseguimos evitar a impressão de que frequentemente as mais fortes entre elas não se adéquam muito a sua própria pessoa, e sim, com pequenas modificações, a uma outra, que o doente ama, amou, ou devia amar. Toda vez que examinamos o fato, essa suposição é confirmada. De maneira que temos a chave para o quadro clínico, ao perceber as recriminações a si mesmo como recriminações a um objeto amoroso, que deste se voltaram para o próprio Eu.

Havia uma escolha de objeto, uma ligação da libido a certa pessoa. Por influência de uma real ofensa ou decepção vinda da pessoa amada, ocorreu um abalo nessa relação de objeto. O resultado não foi o normal – a libido ser retirada desse objeto e deslocada para um novo –, e sim outro, que parece requerer várias

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