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Vaqueiros, seleiros, carreiros e trançadores : uma etnografia com coisas, pessoas e signos

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CAMILO ANTÔNIO SILVA LOPES

Vaqueiros, seleiros, carreiros e trançadores:

uma etnografia com coisas, pessoas e

signos.

CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 01 de julho de 2016, considerou o candidato CAMILO ANTÔNIO SILVA LOPES aprovado.

Profª Dra. Maria Suely Kofes – Orientadora Profª Dra. Fabiana Bruno – Unicamp

Profª Dra. Mariana Miggiolaro Chaguri – Unicamp Profª Dra. Carmen Silvia Andriolli – UFRRJ

Profº Dr. Luzimar Paulo Pereira – UFJF

A ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno Camilo Antônio Silva Lopes.

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Dedicatória

À minha Mãe, eternamente presente, que sonhou comigo este sonho. Ao Théo, benção divina.

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Agradecimentos

Ser grato, mais que obrigação, é questão de princípio. Saber reconhecer a importância de pessoas que se fizeram especiais em nossas trajetórias cada vez mais nos tornam pessoas melhores. O reconhecimento da importância do Outro em nossas vidas é parte elementar na nossa travessia.

Nessa travessia, agradeço primeiramente a Deus por permitir-me discernir os bons e maus caminhos. E os caminhos sempre nos levam a algum lugar. Aonde chegar, depende sempre das escolhas da gente. Saber escolher é o começo das nossas liberdades.

Faço um agradecimento especial à professora Maria Suely Kofes. Elegante, sincera, discreta, prestativa e atenciosa, conduziu-me com paciência até o final desta travessia. Suas palavras acolhedoras e suas leituras sempre precisas e pontuais foram essenciais na compreensão de alguns desafios que se apresentaram ao longo do caminho. Obrigado por permitir-me sonhar.

Agradeço à professora Mariana Miggiolaro Chaguri pelas análises e contribuições durante a qualificação e, posteriormente, na banca de defesa final. Sempre atenta, suas sugestões foram cruciais para a fase final da escrita.

Aos professores Carmen Silvia Andriolli e Luzimar Paulo Pereira pela participação na defesa final. As conversas sobre bichos, gentes e sertão foram importantes para o entendimento da relação homem / bicho no sertão mineiro.

À professora Fabiana Bruno pela gentileza e disponibilidade para participar da banca.

Agradeço, também, os funcionários da secretaria do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unicamp, especialmente Reginaldo Nascimento e Beatriz Tiemi, sempre disponíveis a esclarecer todas as dúvidas.

À Gisele Soares Ferreira, companheira em todos os momentos dessa travessia. És uma quantidade extraordinária de mulheres, sem as quais sou quase nada. Agradeço a compreensão durante os momentos de angústias vividas. Mais alegrias estão por vir e as viveremos intensamente.

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Ao meu primo Gilson Carlos, sua esposa Terezinha e seu filho Gustavo Rocha que me acolheu de maneira especial em Campinas. Sem vocês, creio que se tornaria mais difícil essa caminhada. Serei eternamente grato pela demonstração de afeto e carinho.

À minha amiga Dayana Barbosa de Quadros, presença constante em minha vida. Obrigado pelo apoio de sempre. São tantos, que nem preciso mencioná-los.

À Vanessa Siqueira agradeço pela amizade e companheirismo. Sua ajuda foi essencial durante o processo de escrita do texto final.

Fernanda Raquel, presença amiga, mesmo de longe, contribuiu para que fosse efetivada essa pesquisa.

Agradeço também a Rafael Soares Ferreira pela ajuda na confecção dos croquis das comunidades rurais de Coração de Jesus e pelas conversas sobre as gentes e bichos do lugar. Outras ajudas foram constantes. Obrigado.

Um agradecimento especial faz-se necessário ao Manoel Freitas, espetacular fotógrafo que registra gentes, bichos e coisas no Norte de Minas. Gentilmente, permitiu-me utilizar algumas imagens suas para abrilhantar ainda mais este trabalho.

Agradecimentos especiais devem ser feitos às pessoas que contribuíram de forma efetiva para a realização e consolidação dessa empreitada. Sou grato aos portadores de saberes tradicionais que me permitiram compreender esse universo plural de conhecimentos e vivências. Os carreiros, seleiros, vaqueiros e trançadores aqui ouvidos são peças importantes dessa engrenagem.

Agradeço aos vaqueiros e carreiros de São Leandro, representantes de categorias profissionais imprescindíveis para a vida no campo. Jorge Fonseca, Zé de Vita, Tone Ferro, Domingos Afonso e Marcos Antônio, obrigado pela contribuição, pelas conversas estabelecidas e, também, pelas risadas inesquecíveis.

Em Poço Verde, agradeço ao senhor Ilton Santos pelas informações relevantes para o entendimento do ofício de trançador.

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Seu Zé Miranda, sertanejo acolhedor, abriu-me as portas do seu estabelecimento em Juramento para conversarmos sobre a vida e as coisas do sertão.

Ao senhor Luiz Galdino e seus filhos que me recebeu diversas vezes para conversarmos sobre as coisas do sertão. Um aprendizado constante conviver com uma pessoa tão iluminada.

Agradeço, também, aos seleiros que contribuíram com esta pesquisa. Ao senhor Paulo Oliveira, excepcional seleiro que me recebeu para falarmos sobre o ofício que aprendeu em terras baianas. Ao seu filho Paulo Allan e Aline Veloso pelas conversas sobre a arte de confeccionar selas sempre esclarecedoras.

Ao meu pai, sempre presente e contribuindo à sua maneira.

Um agradecimento especial faz-se necessário à Terezinha e Dico. O apoio e compreensão durante esse tempo de aprendizado tornou-me mais sensível às coisas da vida. A Arthurzinho, criança abençoada que alegra, agita e torna festa os dias dessa gente guerreira.

Por fim, agradeço ao CNPq pela concessão de bolsa de estudo que permitiu a realização dessa pesquisa.

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Epígrafe

Não pode me entender Quem nunca sentiu o cheiro De terra molhada

Quando a chuvarada Molha as terras do gerais Não pode entender

Quem nunca matou a fome Com raiz de macaxeira E com a fruta do ananás E a minha terra

Fica na ponta dessa estrada Uma picada vara o verde e leva lá Não chega a ser, um pontinho preto no mapa

Mas quando a gente se afasta Coração pede para voltar E pra lá chegar, você tem que atravessar

Sete cancelas, treze porteiras E uma pinguela sobre o ribeirão

Não chega a ser, um pontinho preto no mapa

Mas quando a gente se afasta Coração pede para voltar

(Ildeu Braúna e Pedro Boi – Ponte Cigana)

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Resumo

Nesta tese é apresentado o Norte de Minas Gerais como sertão. A categoria sertão e seus desdobramentos permite mostrar nesta tese uma sociedade alicerçada em atividades pastoris que se consolidaram com o passar do tempo. É analisado, também, alguns saberes e fazeres considerados tradicionais no Norte de Minas Gerais que se encontram em processo de atualização. As trajetórias sociais de carreiros, seleiros, vaqueiros e trançadores de couro são narradas a partir das falas de personagens que fazem a vida acontecer no sertão mineiro. Adquiridos ancestralmente ou a partir de necessidades cotidianas, esses saberes tradicionais traduzem as formas de vida e de pertencimento a grupos sociais distintos que articularam e ainda articulam a vida através do trabalho do e com o gado no campo. Os processos de modernização do campo norte mineiro a partir dos anos 1960 propiciaram o desmantelamento de uma estrutura social baseada no trabalho do campo. A transformação de fazendas em empresas rurais com o estabelecimento de grandes áreas de pastagens culminou com o esvaziamento do campo e, posteriormente, colocaram em risco alguns ofícios que eram praticados no meio rural norte mineiro. Os carreiros, seleiros, vaqueiros e trançadores passaram a ter seus ofícios ameaçados pela maquinaria moderna e pelos meios de transportes como caminhões e tratores que executam com rapidez os trabalhos antes feitos a partir da montaria em animais de serviços, como os cavalos. Esses saberes foram atualizados e ainda são desenvolvidos por várias pessoas na região norte mineira.

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Abstract:

This thesis presents the North of Minas Gerais as backwoods. The consequences arising from the category backcountry allowed the emergence of a society based on pastoral activities that have been consolidated over time. It also analyzed some knowledge and practices considered traditional in the North of Minas Gerais that are in the updating process. Social trajectories of paths, saddlers, cowboys and leather plaitind are counted from the speeches of characters that make life happen in the mining hinterland. Ancestrally acquired or from everyday needs, these traditional skills translate forms of life and belonging to different social groups, who articulated and yet articulate life through work with cattle in the field. The northern mining field modernization processes from the 1960s led to the dismantling of a social structure based on the work of the field. The transformation of farms in rural enterprises with the establishment of large areas of pastureland led to the emptying of the countryside and later put at risk some crafts which were practiced in rural northern mining environment. The carters, saddlers, cowboys and plaitind now have their work threatened by modern machinery and transport means such as trucks and tractors which execute the work at a more rapid rate than what was done before from the mount on service animals, such as horses. This knowledge has been updated and is still being developed by several people in the mining north.

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Lista de figuras

Figura 01: Mapa do Norte de Minas Gerais ... 26

Figura 02: Localização dos municípios pesquisados ... 76

Figura 3: Municípios de Juramento, Itacambira e áreas de chapadas ... 84

Figura 4: Tiras de couro cru utilizadas no processo de trançagem ... 89

Figura 5: Seu Zé Miranda mostra um chicote em fase de construção ... 90

Figura 6: Corda de relho e laço. ... 95

Figura 7: Argolas usadas em laços e chicotes ... 96

Figura 8: Bruacas sendo reformadas ... 98

Figura 9: Ferramentas utilizadas no durante o trabalho com o couro ... 100

Figura 10: Placa anunciando a comunidade de Poço Verde ... 102

Figura 11: Croqui da comunidade rural de Poço Verde ... 103

Figura 12: : Chicote elaborado pelo senhor Ilton ... 107

Figura 13: : Vista do Morro do Frade em período de seca / agosto de 2015 ... 111

Figura 14: Vista do Morro do Frade durante o período chuvoso / janeiro 2016 . 111 Figura 15: Comunidade de Capivara vista do alto ... 113

Figura 16: Estrada de acesso à comunidade de Capivara ... 114

Figura 17: Croqui da comunidade rural de Capivara ... 116

Figura 18: Sede da Associação dos Moradores de Capivara ... 119

Figura 19: Senhor Luiz Galdino ... 124

Figura 20: Luiz Galdino mostra dois objetos feitos por ele ... 127

Figura 21: Modelo de cordas torcidas ... 128

Figura 22: O trabuco possui o cabo de madeira... 130

Figura 23: O chicote possui o cabo trançado ... 130

Figura 24: Vaqueiro tocando gado ... 138

Figura 25: Croqui da comunidade rural de São Leandro ... 139

Figura 26: Boiada sendo tocada pelas estradas do sertão mineiro ... 147

Figura 27: Ilustração de vaqueiro tocando gado ... 162

Figura 28: Carro de boi abandonado ... 188

Figura 29: : Carro de boi abandonado ... 189

Figura 30: Bois de cabeçalho bem aparelhados ... 194

Figura 31: Tenda pertencente ao senhor Domingos Afonso ... 196

Figura 32: Os bois alinhados para o trabalho. ... 198

Figura 33: Bois aguardando a partida para o trabalho ... 205

Figura 34: Carreiro carregando cana com apenas dois bois na carroça ... 206

Figura 35: Cavalgada da comunidade de São Leandro ... 217

Figura 36: Competição de team peanning ... 218

Figura 37: Entrada da Selaria Montes Claros... 220

Figura 38: : Senhor Paulo com seu filho Paulo Alan e sua nora, Aline. ... 222

Figura 39: : Modelo cutiano com cabeça ... 226

Figura 40: Modelos de cabeçadas ... 227

Figura 41: : Selas penduradas ... 229

Figura 42: Aline mostra uma sela já pronta que ajudou a confeccionar ... 232

Figura 43: Modelo de sela dos mais procurados para passeios... 234

Figura 44: Modelo luxuoso de sela ... 235

Figura 45: Espichando a sola ... 236

Figura 46: Modelo cutiano de sela ... 238

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SUMÁRIO

CAPÍTULO I ... 25

O SERTÃO NO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO ... 25

CAPÍTULO II ... 42

SURGIMENTO E CONSOLIDAÇÃO DA SOCIEDADE PASTORIL NORTE MINEIRA ... 42

SEGUNDA PARTE ... 63

CAPÍTULO III ... 64

GADO E GENTE: Couro e identidades no sertão mineiro ... 64

3.1 Vida biográfica do couro de boi ... 65

3.2 Saberes locais e as gentes do sertão ... 69

CAPÍTULO IV ... 75

TRANÇANDO A VIDA: Trajetória social e cultural de trançadores de couro na região Norte de Minas Gerais. ... 75

4.1 Conhecendo as moradas da vida ... 76

4.2 Remoendo o passado: trajetórias sociais, saberes e fazeres sertanejos ... 79

4.3 Juramento: morada da vida, encantos e desencantos ... 83

4.4 Artista-trançador: trançando a vida e a esperança em Juramento ... 87

4.5 Poço Verde de esperança: laços que unem homem e natureza ... 102

4.6 Guardando a memória: cordas, trabucos, chicotes e piratas ... 111

4.7 Tornando-se trançador ... 121

CAPÍTULO V ... 137

SEM COMITIVA, SEM BERRANTE E SEM BOIADA: A SINA DOS VAQUEIROS NORTE MINEIROS ... 137

5.1 São Leandro como lugar da vida: vaqueiros e suas trajetórias ... 138

5.2 Fechando as porteiras: será o fim dos vaqueiros? ... 147

CAPÍTULO VI ... 177

NO ENCANTO DA POEIRA: Carros, bois e carreiros ... 177

6.1 Histórico do carro de boi no Brasil ... 178

6.2 A vida carreira no sertão mineiro ... 186

6.3 Restos de um passado glorioso ... 187

6.4 Montando o terno: escolhendo os bois e formando carreiros ... 191

6.5 Pegando o estradão ... 198

CAPÍTULO VII ... 213

NA GARUPA DO DESTINO: Os seleiros do sertão mineiro... 213

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7.2 As selas como objeto de arte ... 220

7.3 A vida em Montes Claros: desafios e resistências ... 222

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 243

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INTRODUÇÃO

Apresenta-se nesta Tese o resultado da busca pelo entendimento de um sistema de conhecimento tradicional que se encontra em processo de desaparecimento ou atualização no Norte de Minas Gerais. Conhecedores dos benefícios e prejuízos oriundos da modernização do campo e das relações sociais e de trabalho, as pessoas ouvidas nesta pesquisa informam os processos sociais que passaram e que estão passando dentro de seus grupos e comunidades afetadas.

Esta Tese se divide em duas partes. A primeira parte é a ampliação de uma discussão iniciada na dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Social defendida na Universidade Estadual de Montes Claros em 2010. Algumas categorias de entendimento e conceitos foram revistos ou tiveram sua discussão estendida a fim de facilitar a compreensão da temática. A primeira parte discute a categoria sertão no pensamento social brasileiro e seus desdobramentos. Os signos e significados do sertão são postos em evidência e compreendidos a partir de vasta literatura existente sobre essa temática. Nesta parte, litoral e sertão são pensados como matrizes civilizacionais e, portanto, indispensáveis para o processo de entendimento do Brasil.

O sertão pensado e o sertão vivido são contrastados e interpretados a partir das relações sociais existentes no universo do sertão. Por sertão pensado compreendo como sendo aquele sertão visto na maioria dos ensaios e na literatura até a década de 1950, quase sempre remetido a um lugar distante de tudo e avesso aos bons modos. Foi com João Guimarães Rosa que o sertão foi universalizado, “o sertão está em toda parte” (ROSA, 1986, p.1). O reposicionamento do olhar sobre o sertão se fez necessário para aprofundar os entendimentos sobre as mais variadas características e significados a ele remetidos. Já o sertão vivido é o lugar prenhe de significados, sentidos, sentimentos e afetos, lugar onde as sensações e percepções vividas informam as relações de topofilia presente nas diversas gentes que nele habita. São gentes variadas e grupos sociais distintos que englobam a identidade genérica de

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sertanejos e vivem suas vidas de forma intensa e recheada de símbolos e significados.

A segunda parte desta Tese está voltada para a compreensão dos processos que envolvem alguns saberes e fazeres entendidos como tradicionais no Norte de Minas. Vários ofícios, dentre eles, os carreiros, os vaqueiros, os seleiros e os trançadores de couro são partes importantes de um grande mosaico cultural que é a região sertaneja mineira. Surgidos e reforçados a partir do e com o trabalho no campo, esses ofícios utilizam o couro de boi como matéria prima para a elaboração dos mais variados itens utilizados na vida rural brasileira, e, a saber, no Norte de Minas, e que foram constituintes e constitutivos de um modo de vida baseado no trabalho com o gado nos campos.

Os saberes e fazeres materiais do homem do campo habitante da região sertaneja mineira – especificamente o Norte de Minas – nos dias atuais encontram-se em processo de atualização e, para muitos, com o advento da modernidade, noção que precisa continuar a ser problematizada radicalmente, aliás, como já o fizeram Geertz1 e Latour2, estão fadadas ao desaparecimento. Entretanto, eles são constituintes e constitutivos de um sistema de conhecimento vinculado a uma formação sociocultural histórica agropastoril que predominou na região e moldou um tipo de sociedade que tinha como base elementar o trato com o gado. Com as transformações ocorridas no sistema de produção regional pela emergência e a hegemonia do sistema de produção e de conhecimento ocidental, os sujeitos sociais regionais, detentores de saberes e fazeres materiais passaram a reelaborá-los pela expertise construída ao longo do tempo e elevaram os bens construídos à condição simbólica de saberes e fazeres tradicionais.

Para alguns estudiosos do Norte de Minas, o rápido processo de transformação das relações sociais e de produção contribuiu para o desaparecimento de saberes e fazeres construídos coletivamente ao longo do tempo no Norte de Minas (Dayrell, 1998; Luz de Oliveira, 2005; Costa, 2005; Brito, 2006). Esses saberes são técnicas herdadas dos seus ancestrais que permitiram

1 GEERTZ, Clifford. After the fact. Two countries, four decades, One

Anthropologist. Cambridge:Harvard University Press, 1995.

2 LATOUR, Bruno. Jamais formos modernos. Ensaio de Antropologia

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a elaboração e difusão de uma cultura específica que teve na criação de gado sua base de sustentação.

A região norte mineira que até meados dos anos 1960 teve sua economia vinculada a um sistema de produção agropastoril com a produção agrícola alavancando a economia regional gerou e concentrou riquezas após a anexação dessa região à área de atuação da SUDENE3 no início da década de 1960. A partir desse momento passou a ocorrer um rápido e intenso processo de desarticulação do sistema de produção bem como uma pulverização de pessoas inseridas no campo culminando com a ida de suas famílias para as cidades que começavam a polarizar o processo de incrementação industrial gerando, dessa forma, um esvaziamento populacional na zona rural norte mineira, e, sobretudo, transformações culturais profundas.

A anexação do Norte de Minas à área de atuação da SUDENE inseriu a região no espaço compreendido como semiárido brasileiro. Por apresentar forte concentração de sua produção no mundo rural, ações políticas desencadeadas pelo Governo Federal vinculou o Norte de Minas ao contexto econômico brasileiro que necessitava de incentivos para entrar no processo de produção considerado moderno. Esta ação do Governo Federal no Norte de Minas veio modernizar o sistema de produção agropecuário regional favorecendo a criação de modernas fazendas de gado e financiando grandes projetos de fruticultura irrigada e, também, plantações de florestas exóticas de eucalipto e pinus para suprir de carvão vegetal as usinas siderúrgicas mineiras localizadas no entorno de Belo Horizonte.

Esta ação patrocinada pelo Estado brasileiro proporcionou o desmantelamento da estrutura social e material construída ao longo do tempo,

3 Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste. A área de atuação da SUDENE, ou

“Polígono das secas”, foi definida em 1936 (Lei 175/36), não incluindo o Norte de Minas. Isso só ocorreria em 1946 pelo Decreto-Lei 9857. O mesmo seria ampliado pela Lei 1.348 de 1951. “Quando a SUDENE foi criada em 1959 (Lei 3692), seu espaço de atuação foi definido como o Nordeste e a área mineira do Polígono das Secas – AMPS”, contando também com o apoio do Banco do Nordeste. Posteriormente, a área mineira da SUDENE sofreu modificações onde foi incluído os novos municípios criados por desmembramento com a Lei de 1951, bem como declarando que as áreas da margem esquerda do Rio São Francisco, dos municípios de São Francisco, Manga e Januária não pertenciam ao Polígono e à região da SUDENE. Depois estes municípios foram incorporados. A partir de 1998 (Lei 9.690) a região mineira da SUDENE passou também a incorporar mais 54 municípios do Vale do Jequitinhonha (COSTA FILHO, 2005, p. 15).

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principalmente pelas populações inseridas no campo que, em partes, são atualmente conhecidas e reconhecidas como tradicionais. Os saberes e fazeres que reelaborados marcam a tradicionalidade dessas populações começaram a ser atacados pelo processo de modernização do campo permitindo a desarticulação dos mesmos e que, hoje, mesmo com a modernidade espalhada por este sertão, ainda podem ser encontrados.

Com a implantação da industrialização no Norte de Minas, vários setores da economia regional entendidos até então como cruciais para a reprodução do homem do campo foram marginalizados ou desapareceram totalmente graças à instituição da produção fabril. No crescimento e desenvolvimento econômico que se iniciava, ofícios profissionais tradicionais como trançadores de cordas, carreiros, vaqueiros, seleiros bem como outras técnicas sertanejas iniciaram um processo de desaparecimento ao longo do tempo. Diversas técnicas de produção artesanal, individual ou coletiva, foram forçadas a entrar no modo tecnológico de produção propiciando um abandono forçado das tecnologias tradicionais de produção que eram utilizadas como garantias de sustentação familiar.

Desse modo, as várias práticas tradicionais encontradas no sertão mineiro com o tempo foram sucumbindo-se ao modelo de produção atualmente vigente. Para que os saberes e fazeres tradicionais dessa região permaneçam ativos e possam no futuro servir as novas gerações, haja vista que o Norte de Minas possui grande parte de suas terras concentradas nas mãos de poucas pessoas e de grandes empresas rurais, torna-se necessário a realização de um inventário social dos saberes e fazeres tradicionais que construíram a rica cultura do Norte de Minas e permitiram a emergência e consolidação de uma sociedade que se afirma diferente no modo de fazer e pensar suas relações sociais e econômicas (LOPES, 2010).

Com a consolidação dessas mudanças é possível considerar que esses saberes e técnicas ainda permanecem e os detentores desses conhecimentos tradicionais podem ser encontrados em diversas cidades e comunidades rurais norte mineiras. Estes estão vinculados ao sistema pastoril que se caracterizou

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como crucial no processo de afirmação da sociedade aqui fundada no século XVII.

O interesse em pesquisar e compreender os saberes e técnicas existentes no mundo rural norte mineiro e as trajetórias sociais dos seus portadores justifica-se pela violência imposta às técnicas consideradas tradicionais pelo sistema capitalista de produção vigente onde a produtividade e agilidade proporcionada pelos novos meios de produção e transportes tentam colocar à margem da sociedade os que ainda sobrevivem vinculados a sistemas de produção diferenciados e a sistemas de conhecimentos tradicionais.

A inspiração para realizar o entendimento do entendimento de um sistema de conhecimento tradicional a partir de trajetórias pessoais nasceu da leitura de Tuhami: Portrait of a Maroccan de Vincent Capranzano (2002). Ao ler o texto percebi que o autor, trabalhando com narrativas não ocidentais as compreende como “construções culturais que refletem pressupostos fundamentais sobre a natureza da realidade, incluindo a natureza da pessoa e a natureza da linguagem” (CRAPANZANO, 2002, p. 7)4. Ao transportar esta perspectiva para a realidade social do sertão mineiro vejo que é possível apreender pelas narrativas de vaqueiros, carreiros, seleiros, trançadores de cordas, dentre outros, os pressupostos fundamentais que organizam o sistema de conhecimento tradicional sertanejo norte mineiro.

A compreensão das trajetórias sociais dos detentores de saberes tradicionais é possível, também, a partir dos estudos de Claude Dubar (1998), que toma como análise os processos sociais de identificação. Para a compreensão das trajetórias sociais, segundo o autor, é necessário dividi-las em categorias distintas. Para ele há a existência de trajetórias sociais objetivas e subjetivas. Por trajetória objetiva entende-se como a sequencia de posições sociais ocupadas por um indivíduo ou sua linhagem na escala social e, por trajetória subjetiva, pode-se entender a mesma como relatos biográficos por meio de categorias inerentes

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Livre tradução de “They are cultural constructs and reflect those most fundamental assumptions about the nature of reality, including the nature of the person and the nature of language”

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remetendo a mundos sociais e condensável em formas identitárias heterogêneas5 (DUBAR, 1998, p.1). Aqui o foco será a trajetória subjetiva de vaqueiros, seleiros, trançadores, carreiros, dentre outros, que compreendo como intelectuais nativos do sertão mineiro. Intelectuais nativos são os membros de uma sociedade que por construir e conhecer suas culturas permitem ao pesquisador apreender as interpretações que são construídas sobre a vida social e os processos sociais vividos.

Desta forma, podemos perceber o quanto o estudo e entendimento de trajetórias sociais ultimamente têm ganhado destaque na teoria social. Se antes apenas os historiadores se preocupavam em construir ou reconstruir trajetórias sociais e, posteriormente os biógrafos, há a abordagem de cientistas sociais que tomaram para si a responsabilidade de desvendar os significados de trajetórias individuais ocultadas em sujeitos sociais e de direito no interior de sociedades ou comunidades.

Neste caso, considero os portadores da arte tradicional, rústica, e que são vistas por algumas pessoas como atrasadas e primitivas, como intelectuais nativos, produtores de um conhecimento singular e crucial para sua sobrevivência e que propicia apreender o sistema de conhecimento tradicional agropastoril que predominou no Norte de Minas.

Quando escreveu sobre o saber local Clifford Geertz (2001) sugeriu aos pesquisadores que ao tentar descortinar uma realidade social devemos realizar um entendimento do entendimento de um sistema de conhecimento. No caso do sertão norte mineiro, o sistema de conhecimento tradicional encontra-se em constante processo de atualização. Para apreendê-lo, recorri a sujeitos tradicionais locais com quem trabalhei diretamente e com autores locais e não locais para decompor os significados desse processo do saber e do fazer sertanejo que se organizam como parte de um complexo sistema de conhecimento. Compartilhando a perspectiva de Geertz (1989), considero que é possível apreender, por meio do eidos e do ethos informados e vividos pelos sujeitos da pesquisa a cultura regional norte mineira, mas o foco aqui é o sistema

5 Por formas identitárias heterogêneas Dubar (1998, p. 9) entendo-as como sendo tipos ideais

construídos pelo pesquisador para dar conta da configuração dos esquemas de discurso (identidade de empresa, identidade de rede, etc).

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de conhecimento tradicional que, pela resistência, processa-se em constante atualização.

Faço aqui um exercício de compreensão da arte de trançar cordas de couro, moldar selas de couro para se montar a cavalo, o uso do carro de boi como meio de transporte de cargas bem como sua importância para a vida regional com seus carreiros, homens encarregados do transporte das mais variadas cargas. Nos tempos atuais, parece difícil entender esse processo, haja vistas as dores provocadas pela marginalização desses saberes que modelaram modos de vidas e construíram caminhos para se viver a vida no interior do Brasil.

Não muito diferente, mas talvez a mais atingida das técnicas seja a do ofício de vaqueiro. Como o Norte de Minas teve seu processo de ocupação e territorialização vinculado à criação de gado, os vaqueiros sempre desenvolveram um importante papel na consolidação e afirmação da diferença no Norte de Minas. Com a chegada dos novos meios de transportes como os caminhões gaiolas ou jamantas e o empresariamento das fazendas houve um forte impacto no trabalho desses profissionais. Houve uma diminuição significativa na quantidade de vaqueiros no sertão mineiro. E como o sertão, o boi e o vaqueiro / boiadeiro se imbricam, o desaparecimento do vaqueiro tende a enfraquecer um sistema de conhecimento que resistiu ao tempo e que, agora, está quase se sucumbindo à modernização do campo. Esta temática será desenvolvida no decorrer do texto onde será possível elencar as causas e os efeitos dessa modernização do campo no Norte de Minas.

A região Norte de Minas Gerais foi tomada por Costa (2003, 2005,2007, 2008) como objeto de estudo e esse autor lembra que, com o tempo, em todo o mundo, diante da perversidade das relações vividas sob a égide da modernidade e o não cumprimento das promessas de que todos seriam modernos e viveriam no paraíso do consumismo, as pessoas em seus grupos começaram a demonstrar cada vez com mais força que se é globalizado, mas a vida é vivida aqui no pé da serra não sei das quantas, entre as famílias tais e quais e que a nossa cultura envolve outras dinâmicas que não a da mercantilização das relações.

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Mas, como é sabido, as culturas são dinâmicas e as alterações que surgem com o passar do tempo propiciam à sociedade aceitar ou não as mudanças imbricadas nessas novas dinâmicas culturais. Dessa forma, compreendo as dinâmicas culturais como eixos de ações que propiciam aos indivíduos viverem seus processos sociais e, dentre as novas dinâmicas do sertão mineiro, destaco o imbricamento do urbanismo – como modo de vida – com o rural.

Aqui no Norte de Minas nossas coisas afirmam os vínculos de pertencimento a uma região pastoril e essas são expressas tanto na produção de uma corda de couro quanto no artesanato de barro das beiradas do rio São Francisco ou do Jequitinhonha, ou mesmo no modo de aboiar o gado pelo sertão. São características que afirmam a existência de uma diferença sem que seja necessário acionar a identidade norte mineira.

O meu interesse por esta temática nasceu do desejo de compreender os processos sociais que estão levando ao desaparecimento dos ofícios aqui mencionados. Afirmo, também, que sou nativo do sertão mineiro e vivi minha infância e adolescência no campo onde fui iniciado nos ofícios de vaqueiro e carreiro. Trata-se de um passado inesquecível e esta experiência tornou-se fundamental para compreender os desdobramentos desse passado no trabalho com o gado. Agora, tento compreendê-lo à luz do pensamento social e, para que essa compreensão seja eficiente e eficaz, requer que eu faça um exercício de profundo estranhamento, sem, entretanto, obliterar o conhecimento que constituiu a minha experiência.

Desde que ingressei na academia me interessei pela temática do sertão e, como afirmou Guimarães Rosa “o sertão é dentro da gente”, a cada novo passo tive que me submeter ao método para de uma forma objetiva e distanciada poder entender aquilo que está impregnado em minha trajetória pessoal de vida. Como sertanejo vivi os processos aqui descritos, como tocar boiadas, ser guieiro e também carreiro. Meu avô era carreiro e vaqueiro e meu pai também o foi. Eles quiseram que eu aprendesse tais ofícios e que desse prosseguimento a esse saber que era tão importante para a reprodução material e social do homem do sertão mineiro. Mas a vida me proporcionou outros

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caminhos e decidi caminhar nesses outros caminhos. Mas o sertão não sai de mim e decidi retornar ao que me foi tão familiar para entender as novas dinâmicas que são vividas no sertão mineiro. E como as coisas mudaram. A vida agora é mais rápida, mais agitada, requer agilidade para desenvolver determinadas funções que antes não requeriam muita rapidez, como as viagens com os carros de boi e a marcha das boiadas.

Para a felicidade dos defensores da alta tecnologia e maquinaria, no campo foram inseridos equipamentos e máquinas que inicialmente favoreceram apenas os detentores de recursos suficientes para comprá-los. E para a desgraça do trabalhador desprovido de muitos recursos restou apenas o que um dia já foi tido como essencial para a sobrevivência sua e de sua família, apenas seu saber e fazer tradicional.

Forçados pela modernização à marginalização, profissionais como vaqueiros, seleiros, carreiros, trançadores de cordas evidenciam a desarticulação do sistema de produção do modelo tradicional existente. As expressões desses conhecimentos estão restringidas a poucas pessoas, pois como será informado mais adiante, “não há com quem deixar esses saberes” haja vista que, nos tempos atuais, não há interesse dos jovens em adquirir os saberes de seus pais e avós para garantir a sobrevivência de um saber fazer que foi constituinte e constitutivo da sociedade regional.

O método utilizado para coleta e apreensão dos dados nesta pesquisa recai sobre o trabalho de campo. Durante os anos de 2014 e 2015 percorri as comunidades rurais de Poço Verde e São Leandro, no município de Coração de Jesus, e Capivara, no município de Montes Claros. Foram visitas repetidas e diálogos extremamente proveitosos além de um aprendizado intenso com essas pessoas. Esse intenso aprendizado com os vaqueiros, carreiros e trançadores dessas comunidades me fez voltar a minha infância. Tempo de alegrias, carreanças e montarias a cavalo para campear nos pastos. Minhas idas à cidade de Juramento foi ao local de trabalho do senhor José Miranda, simpático trançador, pois este reside no centro da cidade. Em Montes Claros, minhas idas à selaria Montes Claras foram várias. Conversei com o senhor Paulo Oliveira, o

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baiano que se tornou norte mineiro e seu filho Paulo Allan com sua esposa Aline, todos trabalhadores do couro.

Os processos de sistematização dos dados e a escrita do texto foram feitos a partir do ano de 2015. Neste tempo dediquei-me a segunda parte da tese que abriga os saberes e fazeres tradicionais elencados aqui. Foram feitas consultas ao material bibliográfico bem como a transcrição de entrevistas e separação de material fotográfico. Foram feitos, também, os croquis e mapas que envolvem tantos as comunidades rurais pesquisadas quanto a região Norte de Minas Gerais que é objeto de estudo. Os croquis foram construídos a partir da percepção dos moradores sobre o espaço e ambiente que ocupam e onde ocorrem os diversos tipos de relações estabelecidas e reforçadas ao longo do tempo. Foram levadas em consideração as áreas de uso de cada família apontada no croqui bem como os recursos de uso comum, como as chapadas para extrativismo, os córregos e os rios.

Por fim, as transformações ocorridas nas vidas das pessoas bem como das comunidades as quais pertencem são mostradas aqui com a finalidade de direcionar o leitor para o universo rural norte mineiro. Mudanças significativas apontam para novos tempos vividos no campo a partir da chegada da modernidade. Tradição e modernidade dialogam sistematicamente no Norte de Minas e fazem do lugar um importante mosaico cultural onde é possível ler as continuidades e descontinuidades geradas pelo processo de modernização das relações sociais e de trabalho no campo.

Violências, rompimentos e desmantelamentos de estruturas sociais já estabelecidas são constantes entre as gentes do sertão mineiro. Temerosos quanto ao futuro dos ofícios aprendidos no passado, os portadores de saberes e fazeres tradicionais ouvidos nesta pesquisa tentam articular internamente nos grupos aos quais pertencem a permanência desses saberes ancestralmente adquiridos. A resistência à modernização pode ser entendida como um dos marcadores sociais dessa gente que faz da vida um balaio de lutas constantes pela manutenção de um sistema cultural secular e que se encontra ameaçado de extinção pela modernidade.

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CAPÍTULO I

O SERTÃO NO PENSAMENTO

SOCIAL BRASILEIRO

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1.1 Conhecendo o sertão mineiro

Figura 01: Mapa do Norte de Minas Gerais

01 Águas Vermelhas 31. Itacambira 61. Patis

02. Berizal 32. Itacarambi 62. Pedras de Maria da Cruz 03. Bocaiúva 33. Jaíba 63. Pintópolis

04. Bonito de Minas 34. Janaúba 64. Pirapora 05. Botumirim 35. Januária 65. Ponto Chique 06. Brasília de Minas 36. Japonvar 66. Porteirinha 07. Buritizeiro 37. Jequitaí 67. Riachinho

08. Campo Azul 38. Josenópolis 68. Riacho dos Machados 09. Capitão Enéias 39. Juramento 69. Rio Pardo de Minas 10. Catuti 40. Juvenília 70. Rubelita

11. Chapada Gaúcha 41. Lagoa dos Patos

71. Salinas

12. Claro dos Poções 42. Lassance 72. Santa Cruz de Salinas 13. Cônego Marinho 43. Lontra 73. Santa Fé de Minas 14. Coração de Jesus 44. Luislândia 74. Santo Antônio do Retiro 15. Cristália 45. Mamonas 75. São Francisco

16. Curral de Dentro 46. Manga 76. São João da Lagoa 17. Divisa Alegre 47. Matias Cardoso 77. São João da Ponte 18. Engenheiro

Navarro

48. Mato Verde 78. São João das Missões 19. Espinosa 49. Mirabela 79. São João do Pacuí 20. Francisco Dumont 50. Miravânia 80. São João do Paraíso 21. Francisco Sá 51. Montalvânia 81. São Romão

22. Fruta de Leite 52. Monte Azul 82. Serranópolis de Minas. 23. Gameleiras 53. Montes Claros 83. Taiobeiras

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25. Grão-Mogol 55. Ninheira 85. Urucuia. 26. Guaraciama 56. Nova

Porteirinha

86. Vargem Grande do Rio Pardo

27. Ibiaí 57. Novorizonte 87. Várzea da Palma 28. Ibiracatu 58. Olhos-d'Água 88. Varzelândia 29. Icaraí de Minas 59. Padre Carvalho 89. Verdelândia 30. Indaiabira 60. Pai Pedro

Figura 01: Mapa do Norte de Minas Gerais

Fonte: IBGE, 1990. Org.: SILVA, F. G. Julho, 2014.

Apresento aqui a região norte mineira como sertão. Para isso, recorro ao pensamento social brasileiro para compreendermos a noção de sertão e seus desdobramentos com o passar dos anos no Brasil. Inicialmente, tomo o sertão como categoria social e sociológica e um lugar passível de ser apreendido e compreendido na sua especificidade regional e no âmago das suas diferenças. Limito apenas ao espaço compreendido como sertão mineiro, e não o sertão entendido em sua totalidade nacional. Para isso, trago como modelo de análise a perspectiva antropológica interpretativa na qual “os fenômenos sociais são textos para serem interpretados e não enigmas, como definidos na perspectiva estruturalista” (PEIRANO, 1992, p.150).

A abordagem desta temática busca compreender o espaço situado no estado de Minas Gerais e compreendido como sertão mineiro, espaço de transição ecogeográfica, social, cultural, econômica e simbólica que compreende nas suas interfaces a articulação de vários biomas que são constitutivos da paisagem norte mineira, como a caatinga, o cerrado, faixas de Mata Atlântica, Mata Seca, Veredas e Chapadas que abrigam e diferenciam várias culturas e processos civilizatórios (COSTA, 2005). Assim, desenvolvo uma análise sistemática dos processos sociais que ocorreram nesta região. Processos que consolidaram tantos encontros diversos como também rupturas violentas por parte dos membros da sociedade regional que criaram e ocuparam essa parte do país. Aqui, trato o sertão como um fenômeno social, pois o mesmo é um espaço construído socialmente e um lugar onde sua população criou regras e códigos culturais que estruturaram a vivência social local.

Tendo como biomas principais e dominantes os cerrados e a caatinga, vários estudos realizados por pesquisadores interessados em conhecer a

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realidade socioambiental norte mineira informam que os cerrados localizam-se nas regiões da Serra do Espinhaço que corta o território regional no sentido longitudinal englobando a denominada Serra do Cabral com suas encostas e chapadas apresentando altitudes de 600 a 1200 metros. Está presente, também, nos planaltos do São Francisco com altitudes de 550 a 1200 metros e, em ambas as áreas, o relevo variando entre forte-ondulado, montanhoso e suave-ondulado.

Para Marli Sales (2007, p. 68) o fato de situar-se na porção central do país confere ao cerrado uma característica crucial que é a interação com quase todos os outros domínios morfoclimáticos do país, constituindo áreas de transição entre estes outros domínios. A grande extensão deste domínio (o segundo maior em extensão do país, superado apenas pela Floresta Equatorial) também contribui para esse papel.

Já na superfície de aplainamento da depressão Sanfranciscana encontra-se a caatinga, caracterizada pelas grandes superfícies rebaixadas ao longo do rio São Francisco e seus afluentes que se estendem como um plano ligeiramente inclinado desde os sopés das encostas dos planaltos e das serras, até os planaltos e planícies fluviais (COSTA at all, 2008, p. 65).

No século XVII o encontro de bandeirantes paulistas que percorriam o vale do rio São Francisco em busca de índios para escravizá-los em São Paulo, com os criadores de gado baianos que subiam o São Francisco, consolidou-se como o marco fundante da região norte de Minas. A partir desses encontros deu-se a formação das primeiras famílias e também a consolidação das primeiras fazendas de gado na região.

No sertão mineiro, assim como no restante do Brasil, os grupos étnicos e culturais que aqui se encontraram foram complementares uns dos outros. A distância entre eles era demarcada hierarquicamente num sistema de relações sociais concretas que definiam as posições diferenciais dos grupos existentes. Para Costa (2008), o tipo híbrido de sociedade que aqui se formou, como em todo o Brasil, afirmava cada vez mais uma diferenciação hierárquica . Grandes fazendeiros instalados na região e os diversos quilombos formados não digladiavam entre si pela ocupação da terra que permitia a reprodução dessas sociedades porque os negros aquilombados tinham como estratégia de

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sobrevivência a invisibilização e o não estabelecimento de relações estruturais a partir de fora. As relações eram esporádicas apenas para a comercialização de produtos. O conflito pela terra só se tornou realidade em meados do século XX quando ocorreu o processo de cercamento das propriedades.

Se compreendermos sociológica e historicamente os processos que ocorreram na ocupação do sertão mineiro, este território sempre constituiu uma grande fazenda com vários donos e os mesmos deveriam cumprir várias regras para ter acesso às mesmas. Inicialmente, apesar de pertencerem ao Rei de Portugal, as terras eram livres e ninguém possuía o direito de propriedade, e sim de exploração, ou seja, todos poderiam ser considerados ocupantes, inclusive os negros aquilombados que foram os que mais sofreram com o processo de expropriação das terras.

Há que ressaltar que não foi sempre assim. Vários negros tiveram liberdade, se enriqueceram e outros foram potentados. Importante lembrar que um destes negros chegou a ser Barão, Cypriano de Medeiros Lima, conhecido regionalmente como Barão de Jequitaí, que se tornou à sua época, o homem mais rico do Norte de Minas, tendo comprado de D. Pedro II concessão para construir uma estrada de ferro na região. Só depois que a terra adquiriu valor de troca, sendo potencialmente mercantilizável, é que começou o processo de expropriação no Norte de Minas.

Considerando as relações existentes entre os abastados que aqui se instalaram, é possível compreender que apenas pessoas que mantinham uma relação mais próxima com a Coroa portuguesa eram consideradas proprietárias ou posseiras legítimas da terra. A partir desse entendimento das relações de proximidade com a Coroa portuguesa é possível perceber o motivo pelo qual os negros foram escorraçados pelos ocupantes que se consideravam fazendeiros. Posteriormente é que os negros passaram a estabelecer moradias próximas às milhares de lagoas que havia no território norte mineiro, como informa Costa (2005).

Apreender o sertão mineiro em sua totalidade exige não apenas mergulhar e decompor cada um dos significados de sua teia, mas concebê-lo antes de tudo como uma estrutura de pensamento que manifesta suas ideias e

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símbolos, assim como a imediata apreensão de sua visão de mundo e o seu ordenamento da realidade. Para realizar isto é necessário entrar na intimidade do sertão e compreendê-lo nas suas diferenças e peculiaridades. Caso contrário, considerar o sertão como um todo indistinto seria proceder como os viajantes do passado que viam o sertão como um lugar uniforme e vazio. Para esses viajantes estrangeiros o lugar da civilização era o litoral, enquanto o sertão era o lugar do atraso.

Enquanto no litoral os modos europeus ditavam o comportamento da sociedade ali fixada, a civilização do sertão não foi marcada pelo negro, como informa Bastide (1979). No sertão mineiro ocorreu a ocupação de uma ampla área que Costa (2005) denominou de território negro da Jahyba onde se destacou várias lutas quilombolas pelo território, uma vez que a criação de gado no sertão não exigia uma mão de obra abundante.

Bastide lembra que no sertão, o escravo, quando existia, era o escravo doméstico que cultivava roças ou trabalhava na cozinha dos seus donos. O índio, em compensação, foi quem demarcou com o seu sangue os espaços e costumes. Uniu-se ao branco e gerou uma raça mestiça entre vaqueiros e domadores do espaço. Mulheres silenciosas e resistentes ao trabalho e homens adaptados a uma terra ingrata, porém amada. Mulheres que se alimentavam de mandioca e carne seca e não, como as mulheres do litoral, de doces, de geleias e sobremesas açucaradas (BASTIDE, 1979 p. 71).

Desse modo, ao tentar compreender o espaço do sertão mineiro bem como as particularidades da sociedade que aqui se estruturou, coloco minha argumentação em torno deste signo. Assim, a categoria espaço pode ser compreendida como o produto da interação entre os elementos naturais e imateriais, pois o espaço é mais amplo que o território, dado que ele comporta vários meios que estruturam a existência da população dentro deste espaço.

Ao tomar o sertão como lócus de estudo é importante lembrar que a existência do sertão requer, impreterivelmente, a existência dos sertões. O lugar sertão constitui um amplo e heterogêneo espaço onde múltiplas e diversas relações sociais, culturais, econômicas e políticas se imbricam e conjugam diferentes lógicas e modos de ser, viver, sentir e pensar, que fazem do sertão o

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lugar dos sertões. Conhecendo o sertão adentro e a fundo é permitido afirmar a existência de diversos lugares fundados por gentes diferentes e que agregam as inúmeras populações sertanejas espalhadas no interior dos mesmos.

Recentemente, a categoria sertão e seus desdobramentos passou a ocupar um lugar de destaque no pensamento social brasileiro. Desde a metade do século XX ele passou a ser analisado de forma diferente. Deixou de lado o regionalismo encontrado principalmente na literatura e, também, certa discriminação por parte de alguns estudiosos que tomaram para si a responsabilidade de pensar o sertão e explicar o Brasil6. Euclides da Cunha ao

lado de outros escritores e estudiosos para explicar o Nordeste brasileiro e João Guimarães Rosa para o Norte de Minas exerceram papéis importantes para o entendimento do signo sertão.

Willi Bole (2004) ao analisar os pilares do sertão nas obras de Euclides da Cunha e Guimarães Rosa lembra que Os Sertões e Grande Sertão: Veredas são recriações da realidade na língua convidando o leitor a redescobrir com os sentidos despertos o centro do país [...] (2004, p.47). Para o autor, foi com estes autores que no século XX o sertão irrompeu com força total no cenário da historiografia e da literatura universal.

Desde a chegada dos portugueses ao Brasil o sertão é a categoria espacial mais relevante para se entender o próprio Brasil (AMADO, 1995). Além de ser um dos únicos espaços transregionais do Brasil, o sertão é onde se defronta uma diversidade de modos de vida e saberes particulares que se articulam com modelos importados de outras regiões do país ou do mundo e, onde, segundo Lambert (1971), as subculturas brasileiras se encontravam7.

Para Custódia Selma Sena (2003), o país considerado arcaico ou a sociedade tradicionalista são caracterizados por uma estrutura social simples e hierarquizada, por ser rural e composta de pequenas comunidades isoladas apegadas a vínculos tradicionais e rotinas resistentes a mudanças. Nessas áreas

6 Vide Vidal e Souza (1997).

7 Essas sub-culturas relacionadas pelo autor, são populações que ocupavam

faixas territoriais ao longo do espaço compreendido como sertão e estabelecem modos de vida peculiares.

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predominam os grupos primários e as relações pessoais de favor, de lealdade, de proteção e patronagem8. Dessa forma, é possível entender que, primeiramente, o sertão era compreendido como o lado arcaico do país por intelectuais do pensamento social brasileiro. Euclides da Cunha em sua imersão no sertão nordestino como correspondente de guerra lembra que “sertão é tudo aquilo que está fora da escrita da história e do espaço da civilização: terra de ninguém, lugar da inversão de valores, da barbárie e da incultura” (VENTURA, 2000, p.112).

Até a publicação de Os Sertões, as únicas fontes de conhecimento até então conhecidas sobre o sertão provinham dos viajantes estrangeiros e também dos documentos oficiais elaborados durante o período colonial. O olhar de alguém “de fora” sobre uma realidade até então desconhecida deveria gerar dúvidas, mas as informações dos viajantes não eram uniformes, o que permitiu uma elaboração de diversos olhares e sentidos sobre o sertão brasileiro. Dessa forma, o olhar de alguém “de dentro” talvez pudesse ter mostrado outra imagem do sertão.

Para Willi Bole (2004), o sertão estende-se sobre uma superfície de aproximadamente 2,5 milhões de quilômetros quadrados, do Trópico de Capricórnio até perto do Equador, ou seja, desde o interior do estado de São Paulo passando por Minas Gerais, Goiás e Bahia até Pernambuco, Piauí e Ceará, e, no sentido leste-oeste, desde a faixa agreste atrás da Mata Atlântica até Mato Grosso, constituindo, assim, o “interior”, a interlândia ou miolo do território brasileiro, entre a velha zona canavieira do nordeste, as metrópoles do Sudeste e a Floresta Amazônica, o sertão inspirou escritores como Euclides da Cunha e Guimarães Rosa a construírem um retrato alegórico do país.

Dos vários viajantes que aqui estiveram Saint-Hilaire afirma em seus relatos, sob forte orientação positivista, que o sertão designava “áreas despovoadas do interior do Brasil. Quando digo despovoada, refiro-me evidentemente aos habitantes civilizados, pois de gentios e animais bravios está povoada em excesso” (SAINT-HILAIRE, 1937, citado por AMADO, 1995, p.147). Desse modo, o sertão se constituiu desde cedo, por meio do pensamento social, uma categoria de entendimento do Brasil, inicialmente na condição de colônia

8 Sena (2003) lembra que comunidades rurais, bastante homogêneas e estáveis culturalmente,

abrigavam a maioria da população do país e formavam uma simbiose com o meio onde vivem, adquirindo novas formas de reprodução.

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portuguesa e, após o século XIX, como nação, como um lugar vazio de civilização, vide a afirmação de Saint-Hilaire, há gentes não civilizadas (os gentios) e os animais.

A categoria sertão foi construída primeiramente pelos colonizadores e estava vinculada a sentidos negativos, sendo conhecido pelos lusitanos como espaços vastos, desconhecidos e pouco habitados (AMADO, 1995). Assim, uma concepção dualista dividia um Brasil civilizado, dominado pelos brancos, um espaço da cristandade, da cultura, com bons modos e uma gente polida e avançada, situada no litoral e que encontrava no ethos europeu o modelo de vida a ser seguido, priorizando a urbe, versus um sertão, lugar desconhecido, inacessível, isolado, perigoso, dominado pela natureza bruta e habitado por bárbaros e hereges infiéis, onde as benesses da religião, da civilização e da cultura ainda não haviam chegado.

Essas duas categorias, sertão e litoral, são complementares porquê, como em um jogo de espelhos, uma foi sendo construída em função da outra, refletindo a outra forma invertida, a tal ponto que sem seu principal referente (litoral), [o] sertão esvaziava-se de sentido, tornando-se ininteligível, e vice-versa (AMADO, 1995, p.149).

Ao analisar as categorias sertão e litoral no pensamento social brasileiro, Sena (2003) afirma que a questão do dualismo no Brasil após a independência de Portugal tornou-se um mal estar e tal dilaceramento passou a caracterizar a experiência intelectual brasileira. Para a autora, uma dualidade existente no pensamento social brasileiro não é nem transitória, nem resultado da imitação, mas a expressão do modo estrutural de incorporação dos países colonizados – econômica e socialmente – atrasados ao mundo moderno, como parte integrante do processo de reprodução do moderno.

Na tentativa de mostrar a localização do sertão brasileiro, Amado (1995) afirma que para os portugueses o Brasil todo era um grande sertão. Para o habitante do Rio de Janeiro no século XVI ele começaria logo além dos limites da cidade, no obscuro e desconhecido espaço dos indígenas. Para o bandeirante paulista do século XVII ou XVIII, o sertão abrangia os atuais estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, interiores perigosos, mas “dourados”, fonte de mortandade e de riquezas. O sertão representava liberdade e esperança:

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liberdade em relação a uma sociedade que os oprimia, esperança de uma vida melhor e mais feliz. Desde o início da História do Brasil o sertão foi configurado dentro de uma perspectiva dual, contendo em seu interior uma virtualidade, a da inversão. Inferno ou paraíso, tudo dependeria do lugar desde onde se estava falando.

Importante lembrar ao leitor que nesse período ninguém se assumia como sertanejo, dado que o sertão nunca era onde se estava, vide informação de Richard Burton (1977). O sertão estava sempre além, distante. Assim, não havia a possibilidade dessa leitura de fora e de dentro, a de dentro replicava a de fora.

Avançando sertão adentro descobre-se que o espaço do sertão agrega em seu interior valores resultantes dos encontros que anteriormente aqui se deram. Encontros culturais e econômicos que constituíram a região e que são elementos fundantes da sociedade que ocupa esta faixa territorial que é o sertão em sua totalidade. Modos de interação ímpares, tipos de vestimentas e também a culinária constituem fatores cruciais no processo de afirmação e pertencimento ao lugar, pois a partir desses elementos culturais regionais torna-se possível o reconhecimento da identidade sertaneja que se vincula à sociedade norte mineira. As práticas sertanejas realizadas ao longo do tempo constituíram-se em estratégias estabelecidas pelas gentes dos sertões para se organizarem e se estruturarem enquanto sociedade. As relações estabelecidas entre os membros dessa sociedade tornaram-se cruciais no processo de reprodução dos mesmos, pois os tipos aqui estabelecidos visam sempre o fortalecimento dos laços que estreitam as relações. São as relações de parentesco e também as relações vicinais como compadrio, amizades e irmandade fraterna que inicialmente constituíram e constituem essa sociedade, e que ainda hoje permanecem fortes no processo de consolidação e afirmação das gentes do sertão.

Se antes o sertão compreendia um complexo de circunstâncias descritas, hodiernamente, o sertão tornou-se um lócus privilegiado para se analisar os grupos sociais que ocupam esta vasta faixa territorial no interior do Brasil, e, também, de explicação da nação, do projeto de construção da nação brasileira.

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Com o refinamento dos estudos elaborados pelos estudiosos do passado, principalmente os de tendência evolucionista que afirmavam que o sertão deveria ser incorporado ao restante do Brasil e a difusão de métodos criados por ciências como a Antropologia e a Sociologia, novas e possíveis interpretações foram surgindo ao longo do tempo, o que possibilitou a compreensão do por que o mundo do sertão foi deixado à margem e estigmatizado no passado, e as sociedades que habitavam essa região tornaram-se invisíveis ou foram marginalizadas pela sociedade urbanizada, localizada preferencialmente no litoral no país.

Neste sentido, Deleuze e Guatari (1997), ao analisar os espaços e suas relações lembram que existem os espaços lisos e os espaços estriados que proporcionam aos humanos organizarem-se e situarem-se na arena de disputa instituída. Para estes autores, nunca nada se acaba. A maneira pela qual um espaço se deixa estriar, mas também a maneira pela qual um espaço estriado restitui o liso com valores, alcances e signos eventualmente muito diferentes. Talvez seja preciso dizer que todo progresso se faz por e no espaço estriado, mas é no espaço liso que se produz todo devir. Desta forma, é possível compreender que o espaço liso, que seria a percepção do espaço como matriz de movimento, espaço, portanto, ocupado por acontecimentos, constituído de afetos; e o espaço estriado, organizador de matérias, ordenador de medidas e propriedades. Espaço intensivo em oposição ao extensivo.

Já Froehlich e Monteiro (s/d)9 lembram que o espaço liso é direcional, apenas trajeto, deriva, enquanto o espaço estriado é dimensional, métrico, passagem, movimento de um ponto a outro. Como consequência desta distinção, o espaço liso é ocupado por acontecimentos – é háptico, relacionado com os gestos e a continuidade do movimento, espaço de afetos (intenso), enquanto o espaço estriado está formado por propriedades, é ótico (distante), mensurável, extenso.

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FROEHLICH. José Marcos; MONTEIRO, Rosa Cristina. Reconstrução social do espaço rural no contexto de transição para a sustentabilidade. (sd).

http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro1/gt/dimensoes_socio_politicas/Rosa%20Cristin a%20Monteiro.pdf Acessado em 23/11/2009

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Para Albuquerque Junior (2007), os espaços são construções humanas e os recortes espaciais são feitos pelos homens e estes são produtos não apenas das diferentes formas dos homens se organizarem econômica e politicamente, são resultados não apenas das relações econômicas e de poder que dividem os homens e com eles os territórios, os lugares, os espaços, mas também são frutos da imaginação humana e estão impregnados de seus valores, costumes, formas de e dizer o mundo, as coisas e as pessoas.

Ao afirma que a identidade norte mineira é derivada da agregação de diversos modos, valores, comportamentos e ações, Costa (2003) propicia aos norte mineiros uma melhor compreensão de sua condição e importância que os mesmos tiveram e têm na formação do estado de Minas Gerais. Para este autor, enquanto na região das minas a exploração do ouro e a ampliação do escopo administrativo colonial propiciou o estabelecimento de uma sociedade complexa, com diversificação das funções urbanas e a gênese de uma estratificação social, no norte sertanejo, o isolamento do sertão sanfranciscano tornou propícia a consolidação de uma sociedade distintamente hierarquizada, possibilitando a instauração de dinâmicas sociais específicas pela ausência da administração colonial que aí se faz presente apenas em momentos de tensões sociais.

Os signos identificatórios iniciais tornam explícitos os diferenciais de poder que cada região passa a deter em suas trajetórias históricas. Enquanto na região das minas os seus moradores tornam-se os mineiros, na região sanfranciscana seus habitantes retrocedem à condição de sertanejos. Nomes que enunciam, por um lado, o sentimento de status superior para um grupo, vinculando-o ao seu carisma grupal, e implicações de inferioridade e desonra para o outro grupo. Nesse rebaixamento de criadores de gado a sertanejos, os norte mineiros foram lançados numa condição de inferioridade que para Elias e Scotson (2000) gera a desonra para o grupo estabelecido (p. 296).

O contraste entre mineiros e norte mineiros transparece não apenas em ideais regionalistas, mas também em práticas políticas, sociais e culturais. Para as gentes do sertão, a terra, a cultura regional, um modo próprio de vida constitui-se em uma estratégia de sobrevivência e reprodução social e material garantindo uma particularidade social que é composta pelas gentes dos sertões,

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constituindo, desta forma, um dos elementos identificadores da gente sertaneja norte mineira.

Ao realizar um estudo comparativo entre as minas e os gerais, Costa (2003), ao discutir em suas pesquisas a ideia de paisagem mental10, sugere que se perguntarmos a um brasileiro o que vem à sua mente quando se fala em Minas Gerais ele lembrará as montanhas, as cidades históricas da região aurífera e também o barroco mineiro. Nesse sentido de paisagem mental, se perguntarmos a um mineiro habitante da capital ou da região das minas o que ele pensa sobre o espaço compreendido como o sertão mineiro o mesmo afirmará que o sertão é um lugar de atraso, de fome, de seca e de miséria, afirmando distância da região e do povo que nela habita.

A dualidade de visões da região compreendida como sertão remete ao que foi afirmado anteriormente. O significado do signo sertão depende sempre de onde o enunciante está localizado. Neste sentido, há aqui uma visível dualidade sugerida que, para a gente do lugar, o sertão é o paraíso, e, para os “de fora”, o sertão é o inferno aqui na terra11.

Dessa forma, o sentimento de pertencimento que a sociedade sertaneja afirma torna-se instrumento de luta, não apenas política, mas também de resgate da importância renegada a essa gente que contribuiu para a afirmação do estado de Minas Gerais. O signo identitário vinculado às gentes do lugar constitui-se em importante dispositivo discursivo que permite às mesmas expressarem os ideais e angústias de uma sociedade vista e afirmada pelos de fora como periférica, marginalizada.

Costa (2008) lembra que o sentimento de pertencimento é construído a partir de relações vividas em espaços e por processos que nasceram da atuação de indivíduos que marcaram a vida de uma localidade. Os fluxos relacionais vinculam parentes a outros parentes distanciados no território regional, fiéis aos

10 Ver também Simon Schama (1990)

11 Mas a imponência mineira frente aos norte mineiros é desconstruída atualmente de várias

formas. Uma das variantes que tentam alavancar o imaginário norte mineiro diante da importância que a região demonstrou na consolidação do estado de Minas Gerais é o Movimento Catrumano, idealizado e organizado por intelectuais e representantes políticos da região que busca constituir poder simbólico para a região e que, posteriormente, poderá ser transformado em investimentos.

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santos protetores nos centros de peregrinação, ouvintes e cantores nas rodas de cantigas e nas serestas. É vivendo que os norte mineiros sabem que compartilham um modus vivendi próprio que é refletido na maneira de se comunicarem, na linguagem, pela diferença de sotaques e por expressões regionais, nos simbolismos tirados de sua conduta solidária e cordial oposta à conduta polida, contida e individualista do homem que lhe é seu contraponto, o mineiro.

Portanto, procuro fazer uma análise dos diversos significados do signo sertão. O sertão pensado e o sertão vivido. O sertão pensado, enquanto categoria social é compreendido como aquele lugar divulgado na literatura existente sobre o tema, assim como nas pesquisas realizadas por estudiosos que o veem tanto como um lugar atrasado quanto um lugar promissor, onde a intervenção humana condicionará melhores alternativas de sobrevivência para a gente da região. O sertão vivido, enquanto categoria sociológica, ao contrário, é compreendido como as práticas aqui estabelecidas, e os múltiplos e diferenciados encontros que aqui se deram resultaram na formação de uma sociedade impar, resistente às intempéries da natureza e a ação exploradora dos forasteiros que aqui se estabeleceram explorando os recursos naturais e humanos.

Faz-se necessário lembrar que vários autores que se debruçaram sobre o sertão e tentaram encontrar explicações sobre ele sempre destacaram os aspectos mais adversos do mesmo, como a seca, a fome e a violência. O sertão, na maioria das vezes, é lembrado pelas adversidades, como lugar inóspito, uma terra ignota, onde a esperança era centrada na fé, nos deuses e santos que figuravam na vida das pessoas sertanejas.

Como forma de preencher os imensos vazios populacionais do sertão bem como o vazio econômico, a partir dos anos 1940 o Estado brasileiro adotou política de incentivo à penetração no interior, principalmente o Oeste, onde, para muitos, estaria localizado o sertão. Desta forma, a política de ocupação do sertão, provavelmente com o intuito de incorporar as gentes sertanejas no interior da nação propiciou a entrada no interior do país dos ideais ocidentais de produção em larga escala. Com um discurso inovador, afirmando que onde não se colhia nada a partir daquele momento se colheria, e com o incentivo ao uso de insumos

Referências

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