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A quem serve a disponibilidade das mulheres? : relações entre gênero, trabalho e família

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

TAÍS VIUDES DE FREITAS

A QUEM SERVE A DISPONIBILIDADE DAS MULHERES?

RELAÇÕES ENTRE GÊNERO, TRABALHO E FAMÍLIA

CAMPINAS 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 28 de março de 2016, considerou a candidata Taís Viudes de Freitas aprovada.

Prof. Dr. Michel Nicolau Netto

Profa. Dra. Cláudia Maria França Mazzei Nogueira Profa. Dra. Felícia Silva Picanço

Profa. Dra. Liliana Rolfsen Petrilli Segnini Profa. Dra. Bárbara Geraldo de Castro

A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

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A todas as mulheres que, entoando gritos nas ruas

ou, silenciosamente, em seus cotidianos,

resistem e lutam por um mundo mais justo e igualitário.

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AGRADECIMENTOS

Percorrer o doutorado tornou-se muito menos difícil por contar com a participação de pessoas especiais em minha vida. A elas gostaria de agradecer aqui:

À professora e orientadora Maria Lygia Quartim de Moraes por sempre confiar em minha capacidade e me apoiar em todo esse percurso. Esses vários anos de convivência e de diálogo me propiciaram muitos aprendizados que levarei vida afora.

À professora Selma Venco, fundamental na trajetória dessa pesquisa, por meio de suas leituras atentas, apontamentos, apoio e ensinamentos, que foram muitos. Certamente as palavras são poucas para expressar toda minha gratidão, mas espero, nessa vida, poder passar adiante um pouco de tudo o que me ensinou como professora, pesquisadora, militante e amiga.

Um agradecimento especial a duas professoras, não apenas pelas importantes contribuições que deram à pesquisa no exame de qualificação, mas por serem grandes referências para mim. À professora Helena Hirata, por toda sua generosidade, pelas reuniões e discussões sobre a pesquisa, pela inspiração e encontros. À professora Liliana Segnini, também sempre generosa e acolhedora, por seus apontamentos e indicações que me ajudam a avançar no tema.

Gostaria de agradecer à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo/FAPESP, por ter oferecido as condições financeiras para a realização desta pesquisa, por meio da concessão da bolsa de doutorado (Processo n. 2011/06611-6). À CAPES agradeço por ter concedido uma bolsa de estudo durante o primeiro ano do doutoramento.

À FAPESP agradeço ainda pela bolsa de estágio de pesquisa no exterior (BEPE Processo n. 2013/05517-1), realizado junto ao Centre de Recherches Sociologiques et Politiques de Paris (CRESPPA - equipe Genre, Travail e Mobilité). A experiência propiciada contribuiu enormemente para o aprofundamento da pesquisa e meu enriquecimento enquanto estudante, socióloga e indivíduo.

Sobre minha estadia em Paris, gostaria de fazer alguns agradecimentos especiais. Primeiramente, à Professora Sabine Fortino, por me acolher com enorme generosidade, ainda que o momento não fosse o mais propício. A ela agradeço não apenas por ter aceitado supervisionar meu estágio, como pelas indicações bibliográficas, discussões e encontros. Novamente agradeço à Professora Helena Hirata, que, sempre disposta, indicou-me caminhos para avançar na pesquisa acadêmica que eu buscava por lá. Um agradecimento muito especial às Professoras Danièle Kergoat e Danièle Linhart. Conhecê-las e poder discutir com elas

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sobre a pesquisa foi uma experiência enriquecedora e muito importante para mim. Agradeço ainda a toda a equipe e direção do CRESPPA-GTM por ter me recebido neste laboratório, referência para quem estuda o tema. Em especial, a Sandra Nicolas, por sua atenção e ajuda.

Aos amigos e amigas que fizeram o “séjour” em Paris ser ainda mais especial: Fernanda, Julián, Maíra, Maya, Carol, Brigitte, entre tantos outros. Dele, carrego amizades que seguirão comigo por onde eu for.

Durante todo o percurso do doutorado, outras pessoas foram fundamentais. Agradeço aos meus pais, por serem minha inspiração e exemplo: ao Benê, por acompanhar de perto minha trajetória, pelas leituras e conversas, por todo o tratamento dos dados estatísticos e pela paciência; à Anita, por todo o companheirismo e diálogos, tanto os acadêmicos, como todos os outros. Um agradecimento especial à Mariana e ao Leandro, também pelo companheirismo e carinho. Ao João e à Gabi, simplesmente por existirem em minha vida, fazendo-a ser muito mais divertida e feliz. Obrigada por suportarem minhas ausências e dividirem comigo tantos bons momentos.

Com carinho, agradeço ao Augusto, companheiro de vida, por seu apoio e paciência, por sempre estar presente, dividindo comigo cada um dos momentos, aqui e acolá. Você me ajuda a ser mais forte.

Às minhas amigas Tica Moreno e Táli Pires, sempre presentes e companheiras, pelo carinho, tantas vezes necessário e reconfortante. Obrigada pelas ajudas e diálogos e, à Tica, pela inspiração ao título. Às amigas da pós, Juliana Guanais e Carol Gomes, sem as quais trilhar esse caminho teria sido muito mais difícil. À Fernanda Sucupira pelas trocas e parcerias. Ao Marcílio Lucas, pela leitura e conversas. À Sempreviva Organização Feminista- SOF, pela inspiração e exemplo. Junto a estes, muitos outros amigos/as e familiares foram fundamentais durante este percurso, contribuindo direta ou indiretamente para eu seguir em frente. Não conseguiria mencionar cada um/a, mas agradeço a todos/as imensamente, de coração.

Agradeço ao IFCH e a seus funcionários pelo suporte. E ao Sintratel/SP, que sempre se mostrou aberto à pesquisa. À Sandra pela leitura atenta e rigorosa do texto.

Deixo para o fim o mais especial dos agradecimentos, dedicado a todos e todas as trabalhadoras que concederam as entrevistas, disponibilizando um pouco do seu tempo e confiando em meu trabalho. A vocês, muito obrigada!

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RESUMO

A presente pesquisa analisa o modo como a flexibilização das relações de trabalho afeta a experiência de trabalhadores e trabalhadoras na esfera produtiva, bem como seus efeitos na vida cotidiana e familiar. Para isso, foca em duas atividades profissionais: a de operadora de teleatendimento e a de caixa de super/hipermercados. A escolha de ambos os segmentos se justifica pela forte presença de mulheres na força de trabalho e pelo fato de, neles, as empresas recorrerem a constantes ajustes na organização do trabalho, regulando-a de acordo com o fluxo de clientes e de produção. Essa prática adotada pelas empresas se insere em um amplo processo de flexibilização das relações de trabalho. No Brasil, mudanças na legislação trabalhista deram às empresas maior liberdade para demitir e contratar funcionários, alterar suas atividades, tornar o salário variável de acordo com o desempenho individual e prolongar, reduzir e modificar o tempo de trabalho. Com isso, os elementos centrais do trabalho tornam-se mais imprevisíveis e variáveis. Exigem-tornam-se dos trabalhadores e das trabalhadoras maior engajamento e disponibilidade à esfera produtiva, afetando o modo como estes vivenciam o trabalho e o sentido conferido a ele. No entanto, os efeitos dessas novas dinâmicas ultrapassam a esfera produtiva, incidindo também na vida cotidiana e familiar. Homens e mulheres não vivenciam esses efeitos da mesma maneira, sendo as mulheres particularmente afetadas pela flexibilidade. Fruto da divisão sexual do trabalho, elas estão fortemente presentes em postos de trabalho mal remunerados e menos qualificados, além de serem as principais responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados nos lares. A necessidade de articular trabalho profissional e vida familiar é uma questão que segue circunscrita ao feminino. Nesta pesquisa, analisam-se as estratégias acionadas pelas mulheres para realizar essa articulação diante de um tempo de trabalho cada vez mais variável e de constantes mudanças promovidas pelas empresas em sua atividade, remuneração e jornada. A problemática da disponibilidade apareceu como elemento importante para compreender, no atual contexto, as relações entre trabalho, gênero e a articulação entre trabalho e família. Palavras-chave: Família e trabalho, Relações trabalhistas, Relações de gênero, Telemarketing, Supermercados.

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ABSTRACT

The present research analyses the consequences of labour relations flexibility on workers’ experience in the productive sphere as well as its effects on daily and family life. For this purpose, this study focuses two professional activities: that of the telemarketing operator and the super/hypermarket cashier. The choice of those professions is justified by the strong presence of women in their workforce and by the fact that companies in those sectors frequently resort to continuous adjustments in working organization, setting it according to the production and clients flows. This kind of practice is part of a wider process of increasing flexibility of labour relations. Changes in Brazilian labour laws gave companies more liberty to hire and fire employees, change their activities, adopt variable wage according to the workers’ individual performance, and extend, reduce or modify their working time. Therefore, the central elements of work become more unpredictable and diverse. The result for workers is the requirement of more engagement and availability for the productive sphere, affecting how they experience work and the meaning they give to it. However, effects of these new dynamics transcend the productive sphere, also influencing daily and familiar life. Men and women do not experience those effects the same way, women being particularly affected by flexibility. As a result of the sexual division of labour, women are more likely to occupy underpaid jobs, that require less instruction, besides being mainly responsible for doing housework and care. The need for reconciling work and family life is still a women’s issue. In this research, we analyze the strategies women adopt to achieve that reconciling, in the context of a varying working time and facing continuous adjustments in their activities, wages and timetables. The availability issue appeared as an important element to comprehend the relations between work, gender and reconciling of work and family.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

1. O trabalho feminino ... 20

2. Articular as esferas produtiva e reprodutiva como questão analítica ... 26

3. As ocupações profissionais selecionadas ... 28

Capítulo 1 – Procedimentos metodológicos ... 32

1. Caracterização do grupo estudado ... 41

Capítulo 2 – Subsetores analisados: o trabalho feminino em foco ... 48

1. O setor de serviços ... 48

1.1 - A expansão do setor de serviços ... 51

1.2 - Relações de gênero e o setor de serviços ... 60

2. O ramo de comércio varejista de super/hipermercados ... 63

3. O segmento de teleatendimento ... 74

4. Divisão sexual do trabalho nas atividades ... 81

4.1 - Atividades feminizadas: “trabalho de mulher” ... 81

4.2 - Trabalhos que não são “de homens” ou “para homens” ... 86

4.3 - Relações de classe, gênero e raça ... 91

Capítulo 3 – Organização, gestão e relações de trabalho: as atividades da operadora de caixa e da teleatendente ... 98

1. Introdução de maquinarias e a inovação tecnológica ... 98

2. Organização e gestão do trabalho: o forte controle ... 102

2.1 - Controle sobre o espaço e os movimentos ... 104

2.2 - Controle sobre a atividade: padronização e regulação ... 106

2.3 - Controle do tempo: o caso exemplar do teleatendimento ... 114

3. Supervisão do trabalho ... 126

4. Relação com o cliente ... 131

4.1 - A fila dos clientes: tempo do trabalho versus tempo do cliente ... 132

4.2 - Quando a relação com o cliente é de satisfação ou de conflito... 137

Capítulo 4 – A flexibilidade das relações de trabalho no teleatendimento e no comércio varejista de super/hipermercados ... 157

1. Relações de trabalho flexibilizadas... 158

1.1 - Atividade e função ... 158

1.2 - Remuneração ... 164

(11)

2. A flexibilidade e seus desdobramentos sobre a vivência no espaço produtivo ... 200

2.1 - Penosidades, precarização e o sentido do trabalho ... 202

2.2 - Pequenas e possíveis margens de resistência e de autonomia ... 213

Capítulo 5 – A vida cotidiana e familiar das trabalhadoras no contexto da flexibilização 225 1. Efeitos da flexibilidade na vida cotidiana e familiar ... 225

1.1 - Relação entre o tempo do trabalho profissional e os demais tempos sociais ... 228

1.2 - Dia de folga e limitação do tempo livre... 232

1.3 - Convivência familiar ... 235

2. Articulação entre trabalho e família... 239

2.1 - A ausência de políticas públicas de cuidado ... 241

2.2 - Divisão sexual do trabalho no espaço reprodutivo ... 249

2.3 - Articulação entre trabalho profissional e vida familiar: desafio às mulheres ... 256

2.4 - O trabalho doméstico e de cuidados circunscrito ao feminino ... 268

2.5 - Disponibilidade permanente das mulheres à família ... 281

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 289

REFERÊNCIAS ... 301

ANEXOS ... 323

1. Anexo I – Roteiro de entrevista ... 323

2. Anexo II – Relação das entrevistas realizadas ... 324

3. Anexo III – Termo de consentimento livre e esclarecido ... 325

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INTRODUÇÃO

O mundo do trabalho tem vivenciado, nas últimas décadas, profundas transformações, ancoradas no desenvolvimento de novas tecnologias e serviços de informação. No contexto de mundialização do capital, essas transformações tiveram como base um intenso processo de flexibilização das relações de trabalho, engendrando novas formas de gestão e organização do processo produtivo e de mobilização dos trabalhadores.

A presente pesquisa tem por objetivo analisar o modo como a flexibilização incide sobre as relações de trabalho hoje e seus desdobramentos sobre a forma como o trabalho é vivenciado, bem como o modo como ela afeta a experiência dos trabalhadores e das trabalhadoras fora da esfera profissional, especialmente sua vida cotidiana e familiar. Compreender as relações de gênero nessas dinâmicas é o eixo estruturante desta análise.

Para empreender esse percurso, tomamos como ponto de partida a experiência vivida pelas trabalhadoras inseridas em dois segmentos: o teleatendimento e o comércio varejista, especificamente de super/hipermercados.

Tal problematização emergiu da pesquisa realizada no mestrado1, na qual o tempo, enquanto categoria, foi analisado como controlador e regulador do trabalho produtivo, mas também como regulador dos demais tempos sociais das trabalhadoras de teleatendimento. Entre os principais problemas vivenciados pelas entrevistadas, estavam a percepção da falta de tempo livre e a incompatibilidade entre o seu tempo de trabalho e o dos demais membros de seu convívio social, sobretudo amigos e familiares. As famílias das trabalhadoras eram diretamente afetadas pela flexibilidade da jornada de trabalho. Devido ao fato de trabalharem no período noturno, aos finais de semana e por escalas de revezamento, uma parcela das entrevistadas que tinham filhos não vivia na mesma residência que eles e os momentos de convivência eram muito limitados.

Esses resultados levaram-nos a questionar sobre o que ocorre com as famílias no contexto da flexibilização das relações de trabalho e, especificamente, com a vida das mulheres. Como sugere Claudia Mazzei Nogueira (2010), as famílias tendem a reproduzir a lógica do sistema produtivo e se adaptar a ele.

1

Trata-se da pesquisa de mestrado intitulada Entre o tempo da produção econômica e o da reprodução social: a vida das teleoperadoras, realizada na Unicamp e defendida em agosto de 2010.

(13)

Assim, o problema inicial desta pesquisa foi elaborado, procurando-se compreender o que se passa na vida social das trabalhadoras em um contexto em que o tempo de trabalho está em constante mudança e é incompatível com o tempo dos demais membros da família. O que ocorre com a organização cotidiana e familiar? Quem cuida das crianças? Há mudanças nas esferas do trabalho e da família, bem como na maneira como ambas são articuladas? Quais os desafios postos nessa articulação hoje?

A hipótese inicial foi de que haveria uma nova dinâmica em torno da articulação entre trabalho e família, marcada por maior conflito, uma vez que as relações de trabalho e os arranjos familiares estão em mudança no País.

A composição e a estrutura das famílias brasileiras têm se diversificado ao longo do tempo. Jordi Girona (2008) indica que há novas ou renovadas formas de convivência e de relações que se delineiam na atualidade, como as famílias monoparentais, reconstruídas, de fim de semana, entre outras. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) confirmam essas mudanças: a taxa de fecundidade se reduz2, as pessoas se casam em idade mais avançada, a presença de famílias monoparentais femininas é significativa, há uma diversidade de arranjos familiares (como as famílias reconstituídas, homoafetivas etc.), o número de familiares dividindo o mesmo domicílio diminui, entre outros (IBGE, 2013). As mudanças nas práticas femininas, inclusive sua maior participação no mercado de trabalho, contribuíram fortemente para esses rearranjos familiares.

Se, de um lado, o número de famílias extensas vivendo em mesmo domicílio se reduz e, de outro, o número de famílias monoparentais femininas é expressivo, podemos supor que haveria novas dinâmicas e desafios em torno da articulação entre trabalho e família realizada pelas mulheres. Essa situação seria agravada pelo fato de o tempo de trabalho hoje ser cada vez mais diverso e variável. A flexibilidade contribuiria para ampliar as tensões que envolvem os usos do tempo – econômico e da reprodução social – pelas mulheres (DEDECCA, 2004). Cristina Carrasco e Maribel Mayordomo (2003) apontam que as empresas, cada vez mais, pressionam por maior flexibilidade, adequada a seus interesses, a qual naturalmente

2

Em 1940, a taxa de fecundidade no Brasil era de 6,2 filhos por mulher e, em 1980, era de 4,4 (Disponível em: <http://teen.ibge.gov.br/biblioteca/274-teen/mao-na-roda/1726-fecundidade-natalidade-e-mortalidade.html>. Acesso em: 11 jan. 2016). Em 2014, a taxa de fecundidade era de 1,74 filhos por mulher. São, sobretudo, as mulheres com maior escolaridade que apresentam um menor número de filhos. Há ainda variações regionais no País: as menores taxas de fecundidade são verificadas nas regiões Sul e Sudeste (1,60 e 1,62 respectivamente, em 2014), enquanto as maiores estão na região Norte e Nordeste (2,16 e 1,85, respectivamente) (IBGE, 2015b).

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pode implicar mudanças na vida pessoal e familiar dos trabalhadores, principalmente das mulheres. As autoras chamam a atenção para o fato de ainda serem escassos estudos e informações sobre a reorganização dos tempos das pessoas que realizam trabalhos mais flexíveis, sobre a interação entre família e mercado e sobre os efeitos em relação à qualidade e às formas de vida desses trabalhadores.

Conhecer, por exemplo, como se resolve o conflito de organização do tempo de trabalho entre as exigências da empresa e as preferências do trabalhador ou trabalhadora (discutindo as diferenças por sexo), permitiria aproximar-se mais da realidade das pessoas e vislumbrar algumas tendências futuras3 (CARRASCO & MAYORDOMO, 2003, p. 153).

A presente pesquisa procura percorrer esse caminho, buscando analisar as atuais tendências de flexibilização das relações de trabalho4, seus efeitos sobre a vida de homens e mulheres e os desafios que se colocam na articulação das esferas profissional e familiar. Para isso, cabe analisar como a vida dentro e fora do trabalho se organiza e se transforma (LALLEMENT, 2003b), bem como as dinâmicas que se estabelecem em e entre ambas as esferas.

Consideramos que realizar esta análise é de grande importância, na medida em que “a compreensão dos problemas que se colocam na relação entre o trabalho das mulheres, o trabalho doméstico e as relações familiares é fundamental para a construção de igualdade5 entre mulheres e homens” (FREIRE, 2007, p. 11). É com esse objetivo

que gostaríamos de contribuir.

Deste modo, a presente análise se volta para a compreensão das relações entre gênero, trabalho e família no atual contexto de flexibilização das relações de trabalho.

Compreende-se esse contexto como parte do processo de reestruturação produtiva vivido pelos países centrais, a partir dos anos 1970, caracterizado pela reorganização e reconfiguração do sistema produtivo. Emergida diante de um quadro de crise – a crise da sociedade salarial, tal como apresentada por Robert Castel (1998) –,

3

Tradução livre e própria, como todas as citações de textos publicados em outros idiomas ao longo deste trabalho.

4

Esta pesquisa estava, inicialmente, focada na flexibilização do tempo do trabalho. No entanto, no curso da pesquisa de campo, ficou evidente a necessidade de ampliar essa análise, englobando a flexibilidade que recai sobre outros elementos, como a atividade e a remuneração, os quais também sofrem alterações constantes e afetam diretamente a vida fora do trabalho.

5

Cabe aqui ressaltar a importância de se pensar em uma igualdade real, que difere da igualdade apenas formal. Nesse sentido, é interessante o apontamento de István Meszáros (2002) quanto à igualdade substantiva.

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essa reestruturação aparecia como condição necessária ao capital ante um quadro de esgotamento dos modelos de organização de trabalho predominantes até então, caso do taylorismo e do fordismo (ANTUNES, 2007).

O taylorismo, desenvolvido, sobretudo, a partir do início do século XX, estabeleceu a separação das tarefas de concepção e execução, a fragmentação e a individualização das tarefas, além da regulação sobre a atividade e seu ritmo, definindo o “melhor jeito de trabalhar” (the best way)6

como forma de otimizar a produção. O fordismo foi responsável por implementar, dentre outros, a mecanização do processo produtivo, o trabalho em série e também a imposição de um ritmo e cadência de trabalho. A organização do trabalho baseada nesses dois modelos possibilitou atingir elevados níveis de acumulação de capital. No entanto, nas últimas décadas do século XX, esses modelos passaram a evidenciar sinais de esgotamento, indicando a necessidade de o capital recriar suas formas de organização, a fim de recuperar os níveis de acumulação anteriormente alcançados7.

Os novos modelos de organização do processo produtivo que foram surgindo procuravam superar a rigidez dos anteriores, visando possibilitar maior regulação da produção conforme a demanda e a oscilação do mercado8. Para isso, eles se apoiavam na flexibilidade dos processos e da organização do trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos, sendo denominados por David Harvey (1993) de “acumulação flexível”.

A flexibilização passou, então, a estar na ordem do dia, marcando a nova fase do capitalismo (BOULIN, LALLEMENT & VOLKOFF, 2006; LIMA, 2004). Cabe apontar que flexibilização e flexibilidade são entendidas aqui tomando-se por base

6

Frederick Taylor, que introduziu a gerência científica sobre o trabalho, fazia um estudo minucioso sobre os movimentos e o tempo dos trabalhadores a fim de planejar e determinar a melhor maneira de realizar certa tarefa, otimizando a produtividade. Seu método foi publicado no livro Princípios de administração científica.

7

Como mostrou Karl Marx, em O capital, a necessidade de constantemente criar e recriar as formas de exploração da força de trabalho, de transformar e aprimorar os mecanismos, a gestão e organização do processo produtivo é condição intrínseca ao capitalismo, na busca por obter sempre mais sobretrabalho (mais mais-valia).

8

Dentre as novas formas de organização do processo de trabalho, destaca-se o toyotismo ou modelo japonês, desenvolvido por Eiji Toyoda e Taiichi Ohno e difundido no Ocidente principalmente após os anos 1970. Esse modelo se baseava no princípio do just-in-time, com o melhor aproveitamento do tempo de produção, e na produção individualizada e fortemente vinculada à demanda; no trabalho em equipe e na polivalência dos trabalhadores; em um processo de produção flexível; no sistema kanban, com a adoção de placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoque, mantendo este último o mais reduzido possível; na estrutura horizontalizada e na externalização de parte da produção; nos Círculos de Controle de Qualidade, com a formação de grupos de trabalhadores convocados a pensar melhorias para o trabalho e a produção; além da instauração do “emprego vitalício” para uma parcela dos trabalhadores (ANTUNES, 2007).

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a definição de Annie Thébaud-Mony e Graça Druck (2007, p. 29), as quais apontam que o termo “flexibilização” se refere a um “processo que tem condicionantes macroeconômicos e sociais derivados de uma nova fase da mundialização do sistema capitalista”. A esse termo se associariam normalmente as situações de incerteza, instabilidade, imprevisibilidade, adaptabilidade e risco que derivariam desse processo. Já o termo “flexibilidade” se refere a uma etapa consolidada, em relação tanto ao processo e à organização do trabalho, quanto à sociedade capitalista em geral. Segundo as autoras, o processo de flexibilização da legislação trabalhista e do mercado de trabalho é difuso, aparecendo como uma estratégia patronal, apoiada pelo Estado, que atinge os mais diversos países ao redor do mundo.

Entender essa dinâmica envolve lembrar o contexto de transformação mais amplo, marcado pela crescente globalização e pelo advento do neoliberalismo. O projeto neoliberal, ascendente nesse período, promovia as políticas de livre comércio (com a redução da regulação do Estado na economia), de privatização, de desregulamentação trabalhista, entre outros, que afetaram a divisão do trabalho, nacional e internacionalmente (IBARRA, 2011)9. Ilana Kovács (2006) indica que a forte competição de mercados globais desse período exigiu das empresas a melhoria simultânea da produtividade e da qualidade dos produtos, a redução de custos da produção e da força de trabalho e, ao mesmo tempo, sua adaptação a um mercado incerto e variado. Elementos que levaram à reorganização do processo produtivo, tornando-o mais flexível.

Nesse contexto, a organização produtiva, segundo Alain Bihr (1998), passou a se basear em fábricas difusas, com a descentralização e a externalização de partes do processo produtivo; fábricas fluídas, que, a partir da adoção de novas tecnologias e de uma gestão informatizada, buscavam garantir a continuidade na produção e reduzir de maneira mais precisa o tempo morto, o que levou, por sua vez, ao estabelecimento de novas formas de organização do trabalho, como a adoção da polivalência, da multifuncionalidade e do trabalho em equipe; e fábricas flexíveis, com a introdução de meios de trabalho e de produção ajustáveis à demanda e uma organização flexível do trabalho, com trabalhadores cada vez mais capazes de se adaptar às demandas das empresas. Todos os elementos centrais das relações de trabalho se tornaram flexíveis: os

9

Ricardo Antunes (2007) faz uma análise sobre o desenvolvimento do neoliberalismo nesse período na Inglaterra e sobre seus desdobramentos no mundo do trabalho.

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trabalhadores, as formações, o mercado, o tempo de trabalho e o sistema de produção (MEULDERS, 2003).

No Brasil, esse processo ocorreu principalmente a partir dos anos 1990, período em que as formas de organizar a produção, o mercado de trabalho e as relações de trabalho foram se tornando cada vez mais flexíveis (KREIN, 2007).

Cabe salientar, portanto, que o País vivenciou um processo distinto do dos países centrais e mais desenvolvidos. Estes, como mostra Castel (1998), alcançaram, no período da sociedade industrial, a generalização do assalariamento e uma garantia consolidada de direitos sociais e trabalhistas. No entanto, a partir dos anos 1970, eles começaram a vivenciar um processo de desmoronamento das relações de trabalho existentes, emergindo questões como o desemprego, a precariedade e as novas formas de relação de trabalho (como o contrato por tempo determinado e por tempo parcial).

Já no Brasil, a sociedade salarial – como descrita pelo autor – não atingiu a todos da mesma forma e tampouco se viu estruturada do mesmo modo, não tendo havido aqui a consolidação de um Estado de Bem-Estar Social como a ocorrida em países da Europa10 ou uma ampla generalização da condição de assalariado, com direitos trabalhistas garantidos a grande parte da população. A informalidade, por exemplo, sempre esteve fortemente presente no País11. Assim, ao invés de ruir uma situação consolidada, as mudanças ocorridas na década de 1990 se somaram a problemas e desigualdades já existentes, aprofundando-os.

Aqui, essa reestruturação ocorreu em um contexto de crise econômica, de alta competitividade entre as empresas, de financeirização da economia e de introdução de novos modelos de produção, exigindo uma reformulação no sistema produtivo brasileiro.

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Há algumas divergências analíticas sobre esse ponto. Sônia Draibe e Manuel Riesco (2011), por exemplo, defendem que, no Brasil e em demais países da América Latina, houve a consolidação de um Estado de Bem-Estar Social (EBS), o qual se construiu com base em um modelo desenvolvimentista, ainda que patamares elevados de exclusão social tenham sido mantidos. Para Draibe (1997), o EBS nos países da América Latina foi, assim, construído de modo imperfeito e deformado. Já Marcio Pochmann (2004) assinala que o Brasil vivenciou, a partir dos anos 1930, avanços no campo da proteção social, sem, porém, reduzir as formas de exclusão social, o que leva o autor a apontar que o EBS não se completou no País. Ainda que haja divergências nesse ponto, parece ser consenso que o sistema de proteção social no Brasil não atingiu os mesmos patamares dos países centrais, mais desenvolvidos, prevalecendo aqui uma forte desigualdade e exclusão social.

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Segundo o IBGE (2013), em 2012, 43,1% dos trabalhadores estavam inseridos na informalidade (da qual estão excluídos os empregados com carteira de trabalho assinada, trabalhadores domésticos com carteira de trabalho assinada, militares, funcionários públicos estatutários, trabalhadores por conta própria e empregadores que contribuíam para a previdência social). Para um debate sobre a presença do trabalho informal no Brasil e uma discussão sobre suas transformações, ver: ARAÚJO & LOMBARDI (2013); LIMA & SOARES (2002).

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Cabe mencionar que o período anterior a essa reestruturação, especificamente os anos 1980, foi marcado pelo estabelecimento de uma profunda crise da dívida externa nos países da América Latina. Para tentar superá-la, as políticas aqui adotadas, de cunho conservador, promoveram ajustes, que levaram, entre outros efeitos, à estagnação tecnológica e à obsolescência da estrutura produtiva brasileira (MATTOSO & OLIVEIRA, 1990).

Tais medidas procuravam reverter um quadro de crise econômica. Porém, seus efeitos foram frutíferos no campo político. O sindicalismo se fortaleceu nesse período, ao se organizar na luta contra a recessão e a subordinação do governo federal ao Fundo Monetário Internacional (FMI), o qual procurava impor regulações aos mercados nacionais (MATTOSO & OLIVEIRA, 1990). José Dari Krein (2007) aponta uma série de conquistas trabalhistas daí decorrentes: nos setores mais estruturados e nas grandes empresas, houve avanços em relação às condições e ao ambiente de trabalho, ampliação do sistema de proteção aos trabalhadores em situação especial e melhoria dos direitos sociais.

É importante lembrar que, nesse período, vivenciava-se também o movimento das “Diretas Já”, contra o regime militar e pela democratização do País, seguido do processo de elaboração da Constituição Brasileira, promulgada em 1988. Assim, diferentemente do ocorrido nos países centrais – que vivenciaram o desmantelamento da sociedade salarial (CASTEL, 1998) –, no Brasil esse período foi marcado pelo fortalecimento do processo de redemocratização e do sindicalismo, com ampliação dos direitos e da proteção social (KREIN, SANTOS & MORETTO, 2013). Apesar desses avanços, parte dos problemas estruturais do mercado de trabalho brasileiro se manteve, como a alta rotatividade, o excedente da força de trabalho, a prática de baixos salários e as desigualdades (KREIN, 2007).

Foi nesse contexto de crise e de avanços que a organização produtiva brasileira vivenciou seu processo de reestruturação, tornando-se mais flexível. A flexibilidade cumpre dois sentidos, segundo Krein (2007): o primeiro é dar maior liberdade às empresas quanto à determinação das condições de uso, contratação e remuneração do trabalho; o segundo é possibilitar a realização de ajustes no volume e no preço da força de trabalho de modo a reduzir seus custos.

Os diferentes aspectos do processo produtivo passam, então, a ser afetados. A reestruturação incide na cadeia produtiva, com a descentralização e a externalização

(19)

de parte da produção, fazendo emergir formas de subcontratação e terceirização, de emprego temporário, de trabalho em domicílio, de atividades autônomas, de informalidade, de cooperativas de trabalho, entre outras (DRUCK, 2002).

A terceirização ganha destaque como uma das principais formas de flexibilização da contratação da força de trabalho vivenciada no Brasil a partir de então. Trata-se da externalização por uma empresa de parte de seu processo produtivo (que não sua atividade-fim) a outra empresa, possibilitando reduzir custos com a produção e com a contratação da força de trabalho. Já para esta última, ampliam-se a instabilidade e a desproteção de direitos.

Ao mesmo tempo, estabelecem-se novos tipos de gestão e organização do trabalho nos moldes da acumulação flexível – possibilitados, em parte, pela introdução de novas tecnologias baseadas na microeletrônica –, bem como uma profunda alteração nas relações de trabalho, a partir de mudanças na legislação, nos acordos e nas regulações do trabalho sob a lógica da flexibilidade (ALVES, 2000). Essas mudanças, principalmente a partir dos anos 1990, deram às empresas maior possibilidade de promover alterações nos contratos, nas funções, na jornada e na remuneração. Assim, elas passam a ter maior liberdade para demitir e contratar funcionários, modificar a atividade e a função realizada por eles, tornar o salário variável de acordo com o desempenho individual e/ou coletivo dos trabalhadores e prolongar, reduzir ou alterar a jornada de trabalho (KREIN, 2007)12. Esses ajustes obedecem à busca por redução de custos e maximização de lucros das empresas.

Tais disposições não foram algo inédito no Brasil. Ana Cláudia Cardoso (2009) indica que a legislação trabalhista, anteriormente a esse período, já permitia a adoção de uma série de medidas para flexibilizar as relações de trabalho, como o emprego de horas extras, o trabalho noturno e por turno, a redução da jornada e do salário, a compra de férias, entre outras. Porém, a partir desse período, elas se intensificam.

Segundo Adalberto Cardoso (2012), o mercado brasileiro sempre se caracterizou como flexível e precário, predominando a informalidade e a instabilidade para os trabalhadores. Assim, as mudanças na legislação e nas práticas de organização do sistema produtivo em direção a uma maior flexibilização contribuíram para reforçar

12

Em sua pesquisa, Krein apresenta uma análise detalhada das transformações na legislação e nos acordos coletivos no contexto da flexibilização. Sua obra é referência para nossa análise.

(20)

uma dinâmica já estabelecida, própria do mercado de trabalho brasileiro. Tais medidas afetam o mundo do trabalho e a classe trabalhadora.

No entanto, é preciso chamar a atenção aqui para um aspecto fundamental em relação a essas transformações: a reestruturação, nos moldes da acumulação flexível, acontece sem significar a substituição ou a superação de um modelo produtivo por outro. Na realidade, assiste-se à concatenação de práticas antigas, pautadas nos modelos precedentes do taylorismo e do fordismo, com novas formas de gerir e de organizar a produção. Essas novas práticas, assim, coexistem e se unem às antigas, contribuindo para a intensificação da exploração sobre o trabalhador.

Combinando elementos herdeiros do fordismo (vigentes em vários ramos e setores produtivos) com uma nova pragmática pautada pela acumulação flexível, pela empresa enxuta (lean production), pela implantação de programas de qualidade total e sistemas just-in-time e kanban, além da introdução de ganhos salariais vinculados à lucratividade e à produtividade (como o PLR, programa de participação nos lucros e resultados), sob uma pragmática que se adequava fortemente aos desígnios do capital financeiro e do ideário neoliberal, tudo isso acabou possibilitando uma reestruturação produtiva de grande intensidade no Brasil, que teve como consequências a ampliação da flexibilização, da informalidade e da precarização da classe trabalhadora (ANTUNES, 2014, p. 40).

A adoção desse tipo de gestão e de organização do trabalho, no marco da flexibilização, permite às empresas aumentar o controle sobre o processo de trabalho e constantemente ajustá-lo de acordo com seus interesses. Para os trabalhadores, porém, seus efeitos são adversos, dentre os quais destacamos a intensificação e a precarização do trabalho. Tais efeitos tendem a não se dar do mesmo modo entre homens e mulheres.

Assim, parte-se do pressuposto, na presente análise, de que a reorganização produtiva afeta de forma diferenciada homens e mulheres, o que nos leva a adotar uma investigação que toma as relações de gênero como eixo norteador. É nesse contexto de flexibilização que procuramos analisar o trabalho profissional feminino.

1. O trabalho feminino

À primeira vista, pode parecer desnecessário justificar as razões em se analisar especificamente o trabalho feminino, uma vez que o entendimento de que a classe trabalhadora tem dois sexos (lembrando o artigo de Helena Hirata e Danièle Kergoat, 1994 e o livro de Elisabeth Souza-Lobo, 2011) parece ser consolidado na sociologia do trabalho. As relações de gênero no trabalho se constituem, há algumas

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décadas, objeto de estudo de uma gama de pesquisas, que evidenciam as assimetrias entre homens e mulheres.

Se hoje esse tema tem relevância e reconhecimento, cabe dizer que nem sempre foi assim. A invisibilidade do trabalho feminino reinou durante muito tempo no mundo acadêmico, bem como na sociedade.

Maria Lygia Q. Moraes (1981), ao realizar um levantamento dos estudos brasileiros voltados ao tema do trabalho das mulheres, em meados da década de 1970, constatou que a maioria era fortemente baseada em uma visão masculina (e legitimadora) do saber, sendo baixa a participação feminina na produção desses estudos. Entretanto, a autora identificou já naquele período um princípio de mudanças.

Esse sinal de mudança indicava a influência que o movimento feminista passava a ter na academia. Os estudos feministas começavam, naquele período, a se infiltrar na produção acadêmica, alterando a óptica e as problemáticas tratadas. A partir de então, parte dos estudos passou a voltar sua atenção à questão das mulheres, ao trabalho feminino tanto na esfera produtiva como na reprodutiva e à articulação entre ambas as esferas (BRUSCHINI, 2006; NEVES, 2013).

O movimento feminista, reemergido na década de 1960 em países da Europa, nos Estados Unidos e na América Latina, teve um papel imprescindível quanto às transformações nas práticas culturais e sociais das mulheres, influenciando o modo como essa questão passou a ser tratada na sociedade. No Brasil, com mais força a partir dos anos 1970, as feministas passaram a travar uma longa luta no combate à opressão feminina na família e à exploração do trabalho das mulheres. Uma de suas bandeiras foi a busca por politizar o privado, desnaturalizando as práticas cotidianas e denunciando o controle sobre o corpo feminino, mostrando, assim, que a relação estabelecida entre homens e mulheres era uma relação de poder (SARTI, 1988; PULEO, 2007), que se dava na família, no lar, no trabalho, na política, na sociedade em geral.

Procurava-se, assim, evidenciar que tanto o “ser mulher” é uma construção social, como a família também o é, como evidenciou Juliet Mitchell (1967). A família patriarcal era apontada como uma das primeiras esferas onde se estabelece a relação de opressão do homem sobre a mulher13. A maternidade e o papel de cuidadora se

13

Sobre essa discussão, ver: ENGELS (2002); GUILLAUMIN (2005). Cecília Toledo (2008) também faz uma discussão sobre a origem da opressão feminina. Heleieth Saffiotti (2015) discute o conceito de patriarcado.

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constituíram, historicamente, como o destino natural das mulheres, contribuindo para a constituição de práticas sociais distintas e hierárquicas entre homens e mulheres.

Os movimentos de mulheres, principalmente o feminista, foram responsáveis, portanto, por denunciar a desigualdade entre os sexos como um problema estrutural na sociedade, que precisava ser visibilizado e enfrentado. Para aprofundar o debate sobre essa relação hierarquizada entre os sexos, o conceito de gênero foi elaborado e difundido, após os anos 1960, tanto nos estudos acadêmicos, como entre os movimentos de mulheres. Joan Scott (1995), uma das autoras consideradas conceituadoras do termo, afirma que ele foi utilizado pelas feministas como forma de denunciar que as diferenças entre homens e mulheres constituíam-se não como aspecto biológico, mas como construções sociais. Procurava-se, assim, desnaturalizar a relação de opressão entre os sexos e enfatizar o modo como essa era elaborada e reiterada histórica e socialmente14.

Kergoat (2002) evidenciou que as relações sociais estabelecidas entre homens e mulheres, como todas as relações sociais, são marcadas por conflitos, tensões, oposições e assimetrias. Segundo a autora, as relações sociais produzem e reproduzem, por meio das disputas (isto é, aquilo que está em jogo)15, as práticas sociais, as quais, por sua vez, agem sobre as tensões que são as relações sociais. Nas relações sociais de sexo, homens e mulheres são grupos que se constroem por meio de tensões e conflitos, em torno de uma disputa, que é o trabalho16. Para a autora, a divisão sexual do trabalho está no centro das relações de poder dos homens sobre as mulheres e é, principalmente, a partir da análise dessa divisão que é possível demonstrar a existência dessa relação social específica entre os sexos (KERGOAT, 1996; 2002; 2003).

A divisão sexual do trabalho, como conceituada pela autora, tem como base dois princípios: o da separação, isto é, há trabalhos de homens e há trabalhos de mulheres; e o da hierarquização, sendo os trabalhos masculinos mais valorizados socialmente. Segundo ela, em todas as sociedades se verificam esses dois princípios. No

14

Posteriormente, o desenvolvimento da Teoria Queer, da qual Judith Butler é apontada como uma das mais importantes referências, contribuiu indicando que não apenas as identidades de gênero são construídas socialmente, como também as identidades sexuais e corporais, rompendo ainda com os binarismos, tais como homem e mulher, feminino e masculino.

15

O termo em francês é “enjeux”, que, numa tradução aproximada, significa “o que está em jogo”. No artigo de 2002 de Kergoat, o termo foi traduzido como “desafio”; no de 1996, como “disputa”. Optamos aqui pelo segundo.

16

Esse não se restringe à esfera produtiva, mas abarca o trabalho doméstico e de cuidados. Do mesmo modo, a autora aponta que considera trabalho como produção de si, sendo, portanto, indissociável da análise da subjetividade (KERGOAT, 2002).

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entanto, essa divisão não é imutável, a-histórica e estanque, uma vez que suas modalidades variam no tempo e no espaço, sendo as disputas e as possibilidades de transformação colocadas em função da relação de forças.

Uma característica da divisão sexual do trabalho é a atribuição primordial da esfera reprodutiva, destinada às mulheres e mantida sem qualquer reconhecimento social, enquanto as atividades de maior valorização social, como as pertencentes à política e à esfera pública, foram destinadas aos homens. Portanto, estabeleceu-se uma relação hierárquica entre esfera produtiva e reprodutiva, e entre trabalho de homens e de mulheres. Hirata & Kergoat (2003) revelam que o “valor” – empregado pelas autoras no sentido antropológico e ético, e não no econômico – é o que distingue o trabalho masculino do feminino. Assim, “valor e princípio de hierarquia, sob aparências múltiplas, permanecem imutáveis: o trabalho de um homem pesa mais do que o trabalho de uma mulher” (HIRATA & KERGOAT, 2003, p. 113).

O feminismo denunciava que as mulheres realizavam uma grande carga de trabalho, de forma gratuita, no âmbito doméstico, a qual era justificada como sendo realizada em nome do amor e da família (HIRATA, 2002).

Esse posicionamento levou à alteração do conceito de trabalho, o qual, na economia clássica, considerava apenas o trabalho assalariado e tomava o homem como seu sujeito universal. Segundo Helena Hirata e Philippe Zarifian (2009), nos anos 1970, a incorporação da dimensão sexuada do trabalho, com a introdução do debate em torno da divisão sexual do trabalho, propiciou uma reformulação nesse conceito, que passou a abarcar o trabalho doméstico, o trabalho não assalariado, não mercantil e informal, bem como evidenciou a indissociabilidade entre as análises das relações de trabalho e as de gênero. O tema do trabalho apareceu como uma questão privilegiada para que os estudos sobre gênero fossem adentrando o mundo acadêmico (BRUSCHINI, 1994b)17.

Apesar dessas mudanças nas práticas sociais femininas e na visibilidade da problemática de gênero na sociedade, uma série de desigualdades entre homens e mulheres permanece no mercado de trabalho e na família.

17

Diversas autoras destacam a importância que a realização do seminário “A Mulher na Força de Trabalho na América Latina”, organizado no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) por Neuma Aguiar, em 1978, teve na visibilidade do tema (BRUSCHINI, 1994; SCAVONE, 2011). Desse seminário, nesse mesmo ano, originou-se o grupo de trabalho Mulher e Trabalho na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), ao lado dos grupos Mulher e Política e Família e Sociedade (SCAVONE, 2011). As acadêmicas e feministas questionavam e pressionavam não apenas o mundo da academia para a incorporação das questões das mulheres nos estudos, como também as abordagens dos institutos de pesquisa brasileiros, como o IBGE, influenciando futuras mudanças nos conceitos adotados por eles.

(24)

As mulheres, ao longo do século XX, tiveram sua participação aumentada na esfera produtiva, processo que se tornou ainda mais intenso no Brasil a partir dos anos 1970 e, sobretudo, dos anos 1980. Alguns autores indicam a ocorrência de um processo de feminização do mercado de trabalho vivenciado nesse período (NOGUEIRA, 2004; ARAÚJO, 2007). Em 1976, a participação feminina na população economicamente ativa (PEA) era de 29%18. Nos anos 1993, essa participação era de 39,6%, chegando a 43,5% em 2005 (BRUSCHINI, 2007). Em agosto de 2015, as mulheres representavam 46,5% da PEA19.

O trabalho profissional foi ganhando, assim, uma posição central na vida das mulheres (ARAÚJO & SCALON, 2005), associando-se tanto ao desejo como à necessidade de inserção no mercado de trabalho. Não apenas a participação feminina no mercado de trabalho se ampliou fortemente, como se diversificou o perfil das mulheres e as atividades realizadas por elas. Esse movimento se deu ante as transformações vividas na sociedade nesse período:

A intensa queda da fecundidade reduziu o número de filhos por mulher, sobretudo nas cidades e nas regiões mais desenvolvidas do país, liberando-a para o trabalho. A expansão da escolaridade e o acesso às universidades viabilizaram o acesso das mulheres a novas oportunidades de trabalho. Por fim, transformações nos padrões culturais e nos valores relativos ao papel social da mulher, intensificadas pelo impacto dos movimentos feministas desde os anos setenta e pela presença cada vez mais atuante das mulheres nos espaços públicos, alteraram a constituição da identidade feminina, cada vez mais voltada para o trabalho produtivo. A consolidação de tantas mudanças é um dos fatores que explicariam não apenas o crescimento da atividade feminina, mas também as transformações no perfil da força de trabalho desse sexo (BRUSCHINI, 1998, p.3).

A responsabilidade quase exclusiva das mulheres pelo trabalho doméstico e familiar, que persiste ao longo do tempo, foi decisiva para o modo como se estabeleceu a inserção das mulheres no mercado de trabalho e para a situação em que elas se encontram ainda hoje. Elas têm jornadas remuneradas menores, encontram mais dificuldades de progressão na carreira e apresentam trajetórias laborais mais descontinuadas ao longo da vida produtiva (GUEDES & ARAUJO, 2011).

18

Dados da Fundação Carlos Chagas. Mulheres no mercado de trabalho: grandes números. Disponível em: <http://www.fcc.org.br/bdmulheres/serie1.php?area=series>. Acesso em: 12 jan. 2016.

19

Fonte IBGE. Dados da Pesquisa Mensal de Emprego, referentes às pessoas com 10 anos ou mais de idade, economicamente ativas na semana de referência da pesquisa, por regiões metropolitanas. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/ pme_nova/defaulttab_hist.shtm>. Acesso em: 12 jan. 2016.

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Dentre as desigualdades na esfera produtiva, destacamos que as mulheres são minoria no conjunto de ocupados (42,7%) e maioria entre os desocupados20. Quando inseridas no mercado de trabalho, elas se encontram em maior proporção que os homens nos postos menos qualificados e mais mal remunerados: 29,8% das mulheres e 21,1% dos homens recebem até 1 salário mínimo (IBGE, 2014a).

Ademais, mesmo tendo maior escolaridade que os homens, as mulheres seguem recebendo salários inferiores (em média, elas recebem 73,7% do salário masculino21). Segundo Laís Abramo (2007), as mulheres em países da América Latina necessitam trabalhar, em média, quatro anos a mais para receber a mesma remuneração que um homem. Além disso, Anne-Marie Daune-Richard (2003) indica que, mesmo tendo diplomas iguais, os homens ascendem a níveis hierárquicos mais elevados e trabalham em empresas com melhores remunerações, o que revelaria a existência de um “teto de vidro” nas empresas que barra a ascensão na carreira feminina22

.

Essa desigualdade entre os sexos está fortemente vinculada à divisão sexual do trabalho, que mantém a responsabilidade feminina pelo trabalho doméstico e de cuidados. No entanto, persiste, no segmento empresarial, a percepção de que são as mulheres que privilegiam a esfera doméstica, sendo vistas como aquelas que se dedicam menos integralmente ao trabalho e à carreira profissional (ABRAMO, 2007).

Ao longo do tempo, as mulheres passaram a cada vez mais se dedicar à esfera produtiva e a valorizar o trabalho profissional como forma de ter autonomia, como indicam as pesquisas que analisam as práticas e percepções de homens e mulheres (ARAÚJO & SCALON, 2005). Além disso, a renda familiar feminina passou a ganhar maior importância nos lares brasileiros, à medida que se alteraram as práticas sociais assumidas por elas na sociedade e na família. De 2004 a 2014, a proporção de arranjos familiares formados por casal com filhos que tinham a mulher como pessoa de

20

Em 2013, a taxa de desocupação feminina era de 8,3%, enquanto a masculina era de 4,9% (IBGE, 2014b).

21

IBGE, 2014a.

22

Algumas mudanças têm sido verificadas por alguns estudos que apontam a incorporação de parte das mulheres em segmentos predominantemente masculinos e mais qualificados, bem como em postos mais elevados na hierarquia das empresas (ARAÚJO, 2007; BRUSCHINI, 2007; GUIMARÃES, 2004). Entretanto, esse processo é lento e tende a ocorrer entre uma parcela minoritária das mulheres. Os estudos apontam que estaria em curso um processo de bipolarização do trabalho feminino: uma parcela minoritária das mulheres ascende a trabalhos que exige alta qualificação e postos de comando nas empresas, enquanto grande parte das mulheres segue inserida em trabalhos pouco qualificados e menos valorizados socialmente (HAKIM, 1996; BRUSCHINI & LOMBARDI, 2000; HIRATA, 2003).

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referência23 passou de 3,6% a 15,1% (IBGE, 2015b), assim como aumentou o número de arranjos formados por casal sem filhos residentes que tinham a mulher como pessoa de referência (de 3,4% em 2004 para 10,9% em 2014).

Apesar disso, a manutenção da responsabilidade das mulheres pelo trabalho doméstico e de cuidados condiciona o modo como elas se encontram no mercado de trabalho hoje e reforça as desigualdades de gênero. Retomar esse quadro nos ajuda a evidenciar a importância de se empreender uma análise das relações de trabalho de forma mais ampla, abordando não apenas a esfera produtiva, mas também a reprodutiva, bem como as relações de gênero em ambas.

2. Articular as esferas produtiva e reprodutiva como questão analítica

A presente pesquisa toma como eixo analítico a imbricação entre as esferas produtiva e reprodutiva. Consideramos que compreender as relações de gênero no trabalho e na família envolve articular, constantemente, essas duas esferas, analisando como uma influencia a outra e como ambas se retroalimentam.

Como mencionamos, o modo como as mulheres se inseriram no mercado de trabalho esteve, e ainda hoje permanece, fortemente marcado pela divisão sexual do trabalho. O papel e o trabalho realizado pelas mulheres na esfera doméstica, o qual permite a reprodução da força de trabalho e garante o viver das pessoas – ou a sustentabilidade da vida humana, segundo Cristina Carrasco (2003a) –, servem à lógica capitalista. No entanto, o trabalho empreendido pelas mulheres na esfera produtiva e, particularmente, o realizado na esfera doméstica foram dotados de baixo reconhecimento e valorização social.

O trabalho doméstico feminino permaneceu socialmente invisível. Na óptica capitalista, apenas aquilo que era considerado produtivo24 foi valorizado, relegando ao “esquecimento” ou à subalternidade todas as demais atividades. Assim, a sociedade capitalista funcionava como se fosse sustentada em uma “mão invisível” (CARRASCO, 2003a), omitindo a importância de uma série de atividades, como o cuidado e o trabalho

23

Até os anos 1990, o IBGE utilizava em suas pesquisas o termo “chefe de família” ou “chefe do domicílio”, o qual carregava historicamente uma conotação de gênero, ao remeter à ideia de autoridade e daquele que detinha a maior renda. Mudanças na sociedade, inclusive nas práticas sociais das mulheres e nos arranjos familiares, e sob influência do movimento feminista e das acadêmicas, levaram à necessidade de substituição do termo. Após os anos 1990, as pesquisas domiciliares passaram a adotar o termo “pessoa de referência” e, desde os anos 2000, é utilizado o termo “pessoa responsável”. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/censo/questionarios.shtm>. Acesso em: 12 jan. 2016.

24

A discussão em torno do caráter produtivo ou improdutivo do trabalho doméstico foi alvo de um amplo debate. Ver, entre outros: BRUSCHINI (2006) e ALBARRACÍN (1999).

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doméstico, vitais para o funcionamento do capitalismo e da sociedade. Como vimos, coube ao movimento feminista denunciar esse entrelaçamento, evidenciando como a subordinação da mulher na família tem um papel na acumulação capitalista.

A obra de Mitchell (1967) foi de grande importância para problematizar essas conexões quanto à subordinação feminina na sociedade. A autora foi uma das pioneiras em revelar que essa condição se dá a partir da relação estabelecida entre produção, reprodução, sexo e cuidado/socialização das crianças, com essas quatro estruturas funcionando de modo indissociável. Assim, o papel socialmente atribuído às mulheres na família, seu “lugar de mãe” e sua responsabilidade pela socialização e cuidado das crianças são decisivos quanto à posição social que as mulheres ocupam na sociedade.

Essa posição social de subalternidade das mulheres vai se refletir e, ao mesmo tempo, ser aprofundada pelo modo como a esfera da produção se apropria do trabalho feminino. As desigualdades de gênero no trabalho e na família persistem e se conectam25. Como aponta Souza-Lobo (2011, p. 29),

o capital não cria a subordinação das mulheres, porém a integra e reforça. Na verdade, as raízes da divisão sexual do trabalho devem ser procuradas na sociedade e na família, e para apreendê-las é necessário sair da fábrica e articular a análise das condições de trabalho com aquelas que prevalecem no mundo exterior à empresa.

Compreender as transformações no mundo do trabalho e na família passa, portanto, por considerar, a todo o momento, a articulação entre as duas esferas. Como afirma Nogueira (2009, p. 57), “sempre que existir uma ação qualquer em um desses polos, haverá repercussão de um sobre o outro, dada a articulação viva existente entre as esferas do trabalho e da reprodução”.

Essa pesquisa visa, assim, analisar não só o processo de flexibilização das relações de trabalho, procurando compreender seus efeitos sobre o modo como a esfera produtiva é vivenciada, mas também seus desdobramentos sobre a esfera reprodutiva, particularmente sobre a vida das mulheres.

25

Nogueira (2010) utiliza a expressão “divisão sociossexual do trabalho” para falar dessa divisão existente tanto na esfera produtiva como na reprodutiva, as quais se encontram articuladas.

(28)

3. As ocupações profissionais selecionadas

Para realizar esta análise, optamos por partir da experiência das trabalhadoras inseridas em dois segmentos profissionais: o teleatendimento e o comércio varejista de super/hipermercados, particularmente aquelas que realizam a atividade de operadora de caixa26.

No Brasil, estudos sobre o segmento dos comerciários e, especificamente, aqueles sobre super/hipermercados ainda são escassos. Podemos citar os de Ângelo Soares (1998; 2003), Luzimar França Junior (2008; 2009), Nilo Netto (2010), Naira Santos (2012), Waltimar Lula (2007), Nádya Guimarães e Flavia Luciane Consoni (2003), Ida Gonçalves (2009), Flávio Gilberto Araújo (2011). Já as pesquisas voltadas ao segmento de teleatendimento proliferaram nos últimos anos, dada sua rápida e forte expansão no País desde, principalmente, os anos 1990. A bibliografia sobre o tema é riquíssima e abrange as múltiplas dimensões dessa atividade. Entre as principais referências, hoje, estão os estudos de Selma Venco (2003; 2009a, 2014), Ricardo Antunes e Ruy Braga (2009), Claudia Mazzei Nogueira (2006, 2009), Ruy Braga (2006a), Cinara Rosenfield (2007a), Lailah Vilela e Ada Ávila Assunção (2004).

Nesta pesquisa, a escolha desses dois segmentos como objeto de análise se baseou na busca por avaliar duas atividades que apresentassem algumas características semelhantes. Como nos ensina a literatura relativa às comparações internacionais, reconhecendo sua diferença em relação a este estudo, um cotejamento entre dois fenômenos deve pressupor, a priori, que eles apresentem elementos em comum, semelhantes, o que dá sentido à comparação (VASSY, 2003; SPURK, 2003). Assim, procuramos aproximá-las e apreender, de uma forma mais ampla, as dinâmicas estabelecidas tanto na esfera produtiva como na reprodutiva.

Ao longo da pesquisa, procuraremos evidenciar os elementos que aproximam e aqueles que distanciam os dois segmentos, mesclando, na escrita, um tratamento que unifique os dois segmentos com ênfase nas especificidades de cada um.

Empreender esta análise comparativa se configura um desafio, porém ela se mostra importante, posto que esse tipo de estudo, particularmente entre as atividades de serviço, conta com importante lacuna científica:

26

Ao longo deste texto, a referência ao conjunto de trabalhadores e trabalhadoras dos dois segmentos será feita no feminino. Essa escolha se justifica por serem essas ocupações quase exclusivamente ocupadas por mulheres. Do mesmo modo, o grupo de entrevistados também será tratado no termo flexionado no feminino, uma vez que, apesar de composto por homens e mulheres, esse é majoritariamente feminino. Entretanto, nos momentos em que se fizer necessário, serão apontadas as diferenciações por sexo.

(29)

De fato, tal uma obra coletiva, a sociologia do trabalho dispõe de uma sucessão de estudos de caso, e, por isso mesmo, de um conhecimento aprofundado sobre as diversas atividades de serviço, mas ela sabe muito pouco, aprofundadamente, sobre os serviços enquanto tal, quer dizer, sobre o quê, para além das especificidades dos terrenos estudados, resta comum e diferente entre as atividades (TIFFON, 2013, p. 184).

É interessante assinalar que encontramos na literatura internacional alguns estudos que realizam uma análise comparativa entre esses dois segmentos (incluindo outras atividades na comparação), como os de Sara Casaca (2013), Guillaume Tiffon (2013) e Miriam Wlosko et al. (2013). No Brasil, não encontramos nenhum estudo que comparasse ambos. Desse modo, este estudo procura contribuir com os demais já existentes na sociologia do trabalho, voltados a um ou outro segmento.

Algumas evidências iniciais acerca das atividades justificaram sua escolha como objeto desta análise. A primeira delas é o fato de que ambas se inserem no movimento de expansão do setor de serviços ocorrido nas últimas décadas no Brasil, como será analisado adiante. Assim, as duas atividades vivenciaram um crescimento nesse período, configurando-se como importantes polos empregadores de mulheres.

Outras evidências que aproximam as duas atividades são o fato de se caracterizarem por trabalhos repetitivos, mecanizados e padronizados, e pelo fato de, nelas, a relação com o cliente – seja presencial ou virtual – ser um componente fundamental. Além disso, ambas envolvem baixos salários e são desvalorizadas socialmente.

A isso somam-se as práticas de flexibilidade das relações de trabalho, que permitem às empresas ajustar constantemente os elementos do trabalho, segundo o fluxo da produção. A composição da jornada de trabalho, embora diferente entre elas, foi um elemento que nos motivou a analisá-las. Nelas, há o trabalho realizado aos finais de semana, em feriados e à noite, organizado por diversas formas de escala de revezamento. Isso, por sua vez, cria variadas maneiras de vivenciar o tempo de trabalho. A flexibilidade parece, portanto, estar presente e se propagar nas duas ocupações. Casaca (2013), ao analisar os dois segmentos em Portugal, revela que há uma aproximação entre eles, o que os torna exemplares para compreender as novas formas de emprego e de organização do trabalho. Segundo a autora, eles são caracterizados pela precariedade, com a busca das empresas em reduzir os custos e flexibilizar o número de trabalhadores, suas funções e seus horários de trabalho.

(30)

Assim, esses dois segmentos são o foco de nosso estudo, no qual procuramos compreender como operam as formas de gestão e organização do trabalho, no bojo do processo de flexibilização, e seus desdobramentos sobre a vivência das trabalhadoras na esfera produtiva e na reprodutiva.

A fim de percorrer esse caminho e responder às questões colocadas nesta pesquisa, a tese foi estruturada da seguinte maneira:

O primeiro capítulo é destinado a apresentar os procedimentos metodológicos, com a descrição das etapas da pesquisa de campo realizadas, bem como do perfil do grupo entrevistado.

No capítulo 2, debruçamo-nos sobre o setor de serviços em geral e, particularmente, sobre os dois segmentos estudados, apresentando suas dinâmicas e principais características. Aqui, analisamos a divisão sexual do trabalho presente nesses segmentos. Característica do setor de serviços como um todo, bem como dos ramos de super/hipermercados e de teleatendimento, a presença feminina compõe a maioria da força de trabalho. Desse modo, procuramos compreender como se dá a inserção feminina nos serviços e nas atividades selecionadas e as desigualdades de gênero.

Em seguida, focamos na análise das características da organização do trabalho e da gestão adotada pelas empresas em ambos os segmentos.

Assim, no capítulo 3, buscamos compreender, particularmente, as estratégias e mecanismos de controle que recaem sobre os diferentes aspectos do processo de trabalho. Aqui, salientamos uma dimensão fundamental das atividades, ainda não muito aprofundada na sociologia do trabalho: a relação estabelecida com os clientes, que afeta a organização e o exercício do trabalho da operadora de caixa e de teleatendimento, como veremos.

Já o capítulo 4 é destinado à análise das práticas de flexibilização em voga hoje, particularmente as que recaem na atividade, na remuneração e na jornada de trabalho. Procuramos compreender quais são seus efeitos sobre a experiência vivida pelas trabalhadoras na esfera produtiva e como elas respondem e agem às práticas operadas pelas empresas.

No quinto e último capítulo, analisamos os efeitos dessa flexibilidade e organização do trabalho sobre a vida fora da esfera produtiva, sobretudo em relação à esfera doméstica e familiar, bem como o modo como ambas as esferas – produtiva e

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reprodutiva – articulam-se. O foco é entender quais são as continuidades e as mudanças nessas dinâmicas e os desafios colocados às mulheres hoje.

Encerramos com as considerações finais, elucidando as principais problemáticas tratadas nesta pesquisa e questionamentos que se abrem.

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