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Da lusofonia como dispositivo e as políticas linguísticas

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Academic year: 2021

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DA LUSOFONIA COMO DISPOSITIVO E AS POLÍTICAS LINGUÍSTICAS

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Doutora em Linguística.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Cristine Görski Severo

Florianópolis 2019

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AGRADECIMENTOS

Escrever esta tese foi um trabalho intelectual desenvolvido de modo particular, porém não foi solitário. Por isso, para que esta tese pudesse ser construída, deixo registrado meus sinceros agradecimentos.

À minha orientadora e professora Cristine G. Severo. Desde à primeira vista, Severo no nome e no rigor metodológico, mas encantadora nos gestos e palavras. Você foi um grande acontecimento positivo em minha vida!

Ao professor Sinfree B. Makoni, quero agradecer pela atenção dispendida e diálogo teórico. Foi um prazer conhecê-lo!

Ao querido professor Atilio Butturi Júnior. Admiro sua paixão foucaultiana. Obrigada por seus apontamentos e ponderações que me ajudaram a atravessar o limbo após a qualificação!

Com muito entusiasmo, agradeço aos professores da banca de doutorado por aceitarem ler esta pesquisa e a disponibilidade de partilharem suas visões de mundo.

Aos colegas do grupo de Pesquisa em Políticas Linguísticas Críticas: agradeço os encontros, as bibliografias, as aflições e as alegrias compartilhadas. Sintam-se abraçad@s!

A UFSC foi minha segunda casa. Devo agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Linguística por todo o suporte e gentileza durante estes quatro anos.

Agradeço ao CNPq pela bolsa de pesquisa concedida durante o doutorado, inclusive o período estendido devido à minha licença maternidade, mediante aprovação de lei federal somente em dezembro de 2017. Um direito adquirido às pós-graduandas que são pesquisadoras e mães!

Agora, dirijo-me aos meus íntimos:

Parceiro, amigo e amor que topa qualquer parada não é fácil de encontrar nas esquinas da vida. Tive a sorte de encontrá-lo desde o mestrado, sempre disposto a “levar as malas pro fusca lá fora”. Obrigada a você Érico, que “me ligou naquela tarde vazia e me valeu o dia”!

À minha alegre e delicada Dominique, pelos dias e, às vezes, noites que passou brincando sozinha, pacientemente, enquanto eu te escrevia de um país distante... Pela surpresa chamada Benjamin, o embrião que apareceu ao longo da trajetória do doutorado para tornar meus dias mais viscerais e festivos.

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cedo. Agradeço pela confiança e admiração nessa empreitada turbulenta. Espero que se orgulhe com a realização desse projeto que começou de uma vontade individual e foi abraçado por minha família! E agradeço sempre à vovó Zeila pela paixão em viver e cuidar do seu grande amor, além dos cuidados afetuosos dispensados à neta e ao neto.

Não poderia deixar de agradecer à família Beneti - Claudia, César, Julia, Lucas e Sara – pelas tardes e por todos os almoços compartilhados, pelo apoio durante estas idas e vindas, pelo carinho dedicado à minha Dominique e ao meu Benjamin!

Ao querido casal Xandy e Camila (Eduardo e Mônica): agradeço pela amizade, apoio, risadas, vinhos, jantares e bolos deliciosos compartilhados ao longo dessa trajetória. Sejam felizes, e muito Axé!

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O saber não é feito para consolar: ele decepciona, inquieta, secciona, fere. (Michel Foucault, 2015b [1970])

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Esta tese objetiva analisar a lusofonia como um dispositivo gerencial da língua portuguesa. Para tanto, parte-se de uma perspectiva teórico-metodológica do dispositivo delineado por Foucault a fim de rastrear os sentidos históricos da lusofonia em relação às condições políticas de sua emergência e atualização. Assumindo-se que a gestão linguística é uma das facetas do dispositivo, primeiramente propõe-se uma discussão teórica sobre o conceito de gestão advindo do campo da política e da economia. Nesta incursão para estabelecer a relação entre língua e economia, verifica-se que a ideia de gestão está ligada ao conceito da teologia cristã da oikonomia, sendo que se faz uma reflexão sobre as práticas de governo na modernidade mobilizando-se construtos da teologia econômica e política. A tentativa é compreender de que modo o dispositivo econômico-gerencial se tornou paradigma do governo econômico, em que os dispositivos são inventados para gerir e governar os homens. Posta a discussão sobre o conceito de gestão, busca-se compreender seus efeitos nas abordagens teóricas sobre a gestão linguística no campo das Políticas Linguísticas. A análise se debruça em apresentar as condições de emergência da lusofonia como um dispositivo econômico gerencial. O corpus da análise é heterogêneo e engloba discursos produzidos sobre a lusofonia inscritos em leis, fotografias, cartas, cadernos coloniais, declarações, tratados, hinos, estatutos, monumentos, pinturas, entrevistas e mapas. Dessa forma, procura-se descrever o dispositivo a partir de diversos documentos, tomados como discursos que produzem saber. Na tentativa de traçar a emergência do dispositivo, faz-se uma análise histórico-política do projeto da nação transoceânica durante o Estado Novo português, dado que o projeto de uma comunidade transoceânica de lusofalantes estava posto em debate próximo da independência das colônias portuguesas em África. Constituem-se como objetos de problematização: o aparato jurídico-político que criou um sistema divisório para gerir e hierarquizar as populações africanas nas colônias com base na racialização política e linguística; por conseguinte, são mobilizados os construtos teóricos do lusotropicalismo de Gilberto Freyre - dos anos 1930 a 1960 - visto que tais discursos propunham uma comunidade transnacional em que a língua portuguesa aparece como pretexto. Considera-se como marco do dispositivo da lusofonia a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP -, em 1996, o que tem operado a favor de um imaginário homogêneo da língua portuguesa. Problematiza-se o papel da língua como elemento de coesão e percebe-se um movimento de

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invenção de referenciais culturais, históricos e linguísticos a fim de legitimar a criação de uma comunidade que compartilha um dado passado e uma dada língua. A discursivização em torno da constituição da CPLP configura-se em uma perspectiva da analítica microfísica do poder, uma vez que se analisa o papel do brasileiro José Aparecido enquanto agente da lusofonia. No mapeamento dos discursos sobre lusofonia, a pesquisa averiguou que se trata de um projeto político posto em prática por iniciativa brasileira e portuguesa. Portanto, a escolha teórico-metodológica nesta pesquisa se dá na relação Brasil-Portugal. O aspecto gerencial do dispositivo da lusofonia, voltado à gestão da língua portuguesa na atualidade, é analisado por meio das políticas linguísticas tanto em âmbito internacional, quanto o eixo estatal conduzido por Brasil e Portugal.

Palavras-chave: Lusofonia. Gestão da língua. Dispositivo.

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This thesis aims to analyze the Lusophony as a management apparatus of the Portuguese language. For this purpose, the thesis is based on the theoretical-methodological perspective of the apparatus delineated by Foucault to trace the historical meanings of Lusophony in relation to the political conditions of its emergence and updating. Assuming that language management is one of the aspects of the apparatus, firstly, it is proposed a theoretical discussion about the concept of management coming from the field of politics and economics. In this incursion to establish the relationship between language and economics, it is verified that the idea of management is linked to the Christian theology concept of oikonomia, and a reflection on the practices of government in modernity is mobilized from the theoretical concepts from economic theology and politics. The attempt is to understand how the economic managerial apparatus became a paradigm of the economic government, in which the apparatus is invented to manage and rule men. After discussing the concept of management, it seeks to understand its effects on the theoretical approaches to language management in the field of Language Policy. The analysis focuses on presenting the emergence conditions of Lusophony as an economic managerial apparatus. The corpus of the analysis is heterogeneous, and it contains speeches produced about Lusophony enrolled in laws, photographs, letters, colonial notebooks, declarations, treatises, hymns, statutes, monuments, paintings, interviews, and maps. Therefore, the intention is to describe the apparatus from several documents, taken as speeches that produce knowledge. It is intended to analyze the emergence of the apparatus from a historical-political exam of the project of the Transocean nation during the Portuguese New State, since the project of a Transocean community of Lusophony was put into debate near the Independence of the Portuguese colonies in Africa. Fundamentally, the objects of questioning are the juridical-political apparatus that created a dividing system to manage and hierarchize African populations in the colonies based on political and language racialization. Therefore, the theoretical constructs of the lusotropicalism of Gilberto Freyre are mobilized - from the years 1930 to 1960 – since these speeches have proposed a transnational community in which the Portuguese language is a pretext. It is considered as a landmark of the Lusophony apparatus the establishment of the Community of Portuguese-Speaking Countries - CPLP - in 1996, which has operated to promote a homogeneous imaginary of the Portuguese language. The role of the language is

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problematized as a cohesion element, and it is realized that the invention of cultural, historical and linguistic references is used to legitimize the creation of a community that shares a given past and a given language. The narrative about the constitution of the CPLP is conducted in a perspective of the microphysical analytic of power, and the role of the Brazilian José Aparecido is understood as the agent of Lusophony. The research about the speech’s Lusophony point to be a political project put into practice by the Brazilian and the Portuguese initiative. Therefore, the theoretical-methodological choice in this research is based on the relationship between Brazil and Portugal. The managerial aspect of the Lusophony apparatus focused on the management of the Portuguese language nowadays, is analyzed by means of the language policies presented internationally, as well as the state-owned by Brazil and Portugal.

Keywords: Lusophony. Language Management. Apparatus.

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Figura 1 - Igreja Nossa Senhora, Sabará, Minas Gerais ... 75

Figura 2 - Túmulo de São Xavier. Igreja do Bom Jesus de Velha Goa, Índia ... 75

Figura 3 - Crucifixo dos Bakongo, Angola, s/d ... 76

Figura 4 - Vista da cidade de São Tomé, século XIX ... 76

Figura 5 - Avenida dos Coqueiros, Díli, Timor-Leste. Postal do século XIX ... 77

Figura 6 - Chissano, Cristo crucificado, 1988. Maputo, Moçambique ... 77

Figura 7 - Bandeira da povoação Tabi, no rio Ouro, Guiné-Bissau, século XVIII ... 78

Figura 8 - Planta da cidade de São Paulo. Angola, 1755 ... 78

Figura 9 - Malangatana, O canto das três rolas, 1990... 78

Figura 10 - Exploradores portugueses em Luanda. Ano 1, vol.1, n. 17 (1º set. 1878) ... 99

Figura 11 - Expedição em Angola. Ano 2, vol. 2 n. 30 (15 mar. 1879) ... 100

Figura 12 - Catarata no Alto Zambeze (atual província do Moxico, em Angola). Ano 2, vol. 2 n. 27 (1 fev. 1879) ... 101

Figura 13 - Imagem da Guiné Portuguesa ano 2, vol. 2 n. 30 (15 mar. 1879) ... 102

Figura 14 - Nota oficiosa, S. Tomé, 8 de fevereiro de 1953 ... 120

Figura 15 - Exposiçao do mundo português (1940) ... 127

Figura 16 - Reconstituição da vida nas aldeias indígenas ... 129

Figura 17 - Pavilhão das possessões insulares ... 129

Figura 18 - Índia Portuguesa ... 130

Figura 19 - Reconstituição de uma rua de Macau ... 131

Figura 20 - Tribuna da Imprensa (RJ), 6 fev. de 1961... 157

Figura 21 - Última Hora (RJ), 30 jan. de 1961 ... 159

Figura 22 - Jornal do Brasil (RJ), 3 fev. de 1961 ... 159

Figura 23 - José Aparecido e o Presidente Jânio Quadros, em Brasília ... 161

Figura 24 - José Aparecido de Oliveira em Maputo, Moçambique, com o presidente Joaquim Chissano ... 187

Figura 25 - Capa do Jornal A Bola ... 191

Figura 26 - Revista Lusofonia ... 192

Figura 27 - Países da CPLP ... 213

Figura 28 - União dos Exportadores ... 216

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Figura 30 - Países africanos selecionados pelo PEC-G (2000-2017) ... 263

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INTRODUÇÃO ... 17

1 OIKONOMIA E POLÍTICA NA CONDIÇÃO HUMANA ... 23

1.1 GOVERNO ECONÔMICO E O PARADIGMA GERENCIAL .. 38

1.2 GOVERNO DA LÍNGUA: IMPLICAÇÕES PARA O CAMPO DA POLÍTICA LINGUÍSTICA ... 49

2 SOBRE A INVENÇÃO DA LUSOFONIA ... 67

2.1 DAS CONDIÇÕES DE EMERGÊNCIA E CIRCULAÇÃO DA LUSOFONIA ... 71

2.1.1 Língua e cultura ... 72

2.1.2 Língua e territorialidade ... 82

2.1.1 Língua e sujeito ... 84

2.1.3 Contradiscursos e lusofonia ... 89

2.1.4 Relação entre luzitanização e lusofonia ... 92

3 SOBRE A IMAGINADA NAÇÃO PORTUGUESA TRANSOCEÂNICA ... 97

3.1 O PAPEL DA PROPAGANDA NO REGIME TOTALITÁRIO 125 3.2 APROPRIAÇÃO DOS CONSTRUTOS DE GILBERTO FREYRE PARA ADOCICAR O RACISMO PORTUGUÊS ... 136

4 SOBRE A COMUNIDADE IMAGINADA PELO BRASIL .... 153

4.1 O DILEMA DO COLONIALISMO PORTUGUÊS NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA ... 154

4.2 RETOMADA DO PROJETO DA COMUNIDADE DOS SETE 182 5 COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA: COOPERAÇÃO, MULTILATERALISMO E GLOBALIZAÇÃO ... 205 5.1 MECANISMOS DE GESTÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA..218

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5.1.2 A(Des)interesses na aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 229

5.1.3 Rumos para internacionalização da língua portuguesa...239

6 POLÍTICA EXTERNA E LÍNGUA: ESTRATÉGIAS DA DIPLOMACIA CULTURAL... 245

6.1 BRASIL ... 248

6.2 PORTUGAL ... 269

6.1.1 O dispositivo da lusofonia e Macau: atualização da memória colonial ... 276

6.3 RETOMADA DO DISPOSTIVO DA LUSOFONIA... 284

CONSIDERAÇÕES (IN)FINAIS ... 287

REFERÊNCIAS ... 293

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INTRODUÇÃO

Explanar sobre a abrangência da Política Linguística não é uma tarefa simples. Tratando-se de um campo interdisciplinar que envolve as ciências sociais e humanas, a discussão quanto à área de vinculação da política linguística é bastante heterogênea. A esse respeito, Rajagopalan (2013) propõe que a política linguística pertence ao ramo da política, por isso deveria compreender a área da ciência política. No entanto, o que mais se evidencia no Brasil é que se trata de uma questão a ser investigada nos estudos da linguagem, ora situada no âmbito da Linguística Aplicada, ora nas pesquisas da Sociolinguística, da Etnolinguística, da Antropologia Linguística, ou nas pesquisas que abordam o fenômeno da linguagem pelo viés discursivo (SAVEDRA; LAGARES, 2012).

A presente tese, circunscrita à linha de pesquisa em Política Linguística, move-se entre categorias políticas, linguísticas, filosóficas e discursivas. As políticas linguísticas de oficialização1 da língua portuguesa no período pós-colonial se constituíram como objeto inicial desta investigação. Percebo que atualmente a discursivização sobre políticas de promoção e difusão da língua portuguesa está em pauta por parte de diversas instâncias. O crescimento do número de falantes da língua portuguesa é um dos principais argumentos usados pelos discursos oficiais a fim de projetar o português no ranking das línguas mais faladas do mundo (GONÇALVEZ, 2012). Além disso, em 1996 a criação de uma comunidade internacional que agrupa os países de língua portuguesa – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – tem operado na construção de um imaginário lusófono e homogêneo da língua portuguesa. O acordo político-diplomático está atualmente firmando entre nove países em que a língua portuguesa é oficial, são eles: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e, mais recentemente em 2014, Guiné Equatorial (CPLP, 2018).

A lusofonia é um tema amplamente discutido tanto nos estudos linguísticos, como nos estudos de crítica pós-colonial, nos estudos culturais, na literatura, na sociologia, na política e na história. Dado que o entendimento do assunto é bastante heterogêneo, verifiquei que os

1 Oficialidade é entendida nesta tese como uma escolha política em adotar uma

dada língua como oficial. Atrelada a essa escolha está a criação de um aparato jurídico a fim de legitimar decisões sobre a língua em várias esferas, como a educacional, a administrativa, a jurídica.

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diversos significados atribuídos à lusofonia mobilizam os seguintes construtos: conceito, projeto, signo, noção, categoria, espaço, discurso e prática. Tais sentidos são perpassados por diversas adjetivações e subjetivações, como político, linguístico, cultural, diplomático, econômico, identidade, simbólico, transdisciplinar, geolinguístico, geopolítico, multipolar, hiper-identitário, entre outros. Além disso, diversas combinações nominais mobilizam o termo lusofonia como: outridade lusófona, culturas lusófonas, mundo lusófono, literatura lusófona e países lusófonos (BASTOS, 2015; BRITO, 2015; COUTO, 2011; CRISTÓVÃO et al., 2005; CUNHA, 2015; FABRÍCIO, 2013; GONÇALVEZ, 2012; LANÇA, 2011; LOURENÇO, 2001; MADEIRA, 2003; MARTINS, 2004; MARGARIDO, 2000; PADILHA, 2005; ROSÁRIO, 2007; SEVERO, 2016; SOUZA H, 2006; SOUZA V, 2013). Muitos discursos tratam a lusofonia como uma problemática, estabelecendo-se os pontos de vista negativos e positivos. Por sua vez, alguns autores e intelectuais buscam um tratamento em tom conciliatório a fim de reconstruir abordagens futuras para lusofonia e/ou previsões para os seus rumos. Concordo com Rosário (2007, p. 1), para quem a lusofonia implica um “terreno polêmico e nada consensual”, especialmente quando a abordagem é direcionada aos países africanos em que a língua portuguesa foi oficializada.

A proposta de análise desta tese não se configura em uma pesquisa metafísica em busca da origem da lusofonia, porque não se pretende buscar uma essência ou identidade primeva do que seria lusofonia. O objetivo não é buscar uma resposta conciliadora ou pacificadora para a problemática, nem avaliar o que é lusofonia por meio das categorias aristotélicas de verdadeiro/falso. Também não se trata de uma perspectiva dialética que busca uma resposta por meio da contradição hegeliana. O pensamento que ancora esta análise é um “pensamento afirmativo cujo instrumento é a disjunção” (FOUCAULT, 2015a, p. 256), o que significa uma abordagem da diferença e da divergência ou, ainda, da multiplicidade no tratamento da problemática de pesquisa. Trata-se de pensar problematicamente, conforme proposto por Foucault (2015a, p. 257):

Qual é a resposta para a questão? O problema. Como resolver o problema? Deslocando a questão. O problema escapa à lógica do terceiro excluído, já que ele é uma multiplicidade dispersa: ele não se resolverá pela clareza de distinção da ideia cartesiana, já que ele é uma ideia

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distinta-obscura; ele desobedece seriamente ao negativo hegeliano, pois é uma afirmação múltipla; ele não está submetido à contradição ser-não ser, ele é ser. É preciso antes pensar problematicamente do que interrogar e responder dialeticamente. (FOUCAULT, 2015a, p. 257).

Uma vez que várias abordagens e conceitos são acionados para tratar o que é lusofonia, torna-se nevrálgico compreender por que todos podem ser simultaneamente discursos possíveis. Neste sentido, a noção de problematização trazida à tona por Foucault (2008) gera um tipo de análise em torno dos temas da descontinuidade e da diferença, em que a história não é abordada em um esquema linear, como postulada pela história geral. Uma análise crítica trata a pesquisa na dispersão, uma vez que problematiza a articulação da história em grandes unidades, buscando as especificidades das relações que podem se circunscrever em torno do objeto de pesquisa. Problematizar não corresponde a se debruçar sobre a representação de um dado objeto, mas sobre o “conjunto de práticas discursivas ou não discursivas que faz algo entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento” (REVEL, 2004, p. 81).

Em vista da ampla discursivização sobre a lusofonia, proponho colocar em relação os discursos que tratam da lusofonia, apresentar suas regularidades e seus efeitos. Para tanto, o percurso traçado é de uma arqueologia e de uma genealogia. A fim de pontuar as semelhanças, diferenças e ambiguidades no percurso da produção desses discursos, a perspectiva teórico-metodológica empregada por Foucault (1999, 1988, 2015) será meu norteamento para analisar a lusofonia como um dispositivo contemporâneo. Desse modo, o corpus agrega discursos inscritos em cartas, documentos, cadernos coloniais, declarações, leis, tratados, estatutos, entrevistas, mapas e fotografias. Postulo que o funcionamento do dispositivo é bastante ambíguo - a hipótese deste trabalho - dado que os documentos analisados procuram trazer à tona essa ambiguidade.

Para realizar meu intento, a pesquisa se debruça em rastrear os sentidos históricos da lusofonia em relação às condições políticas de sua emergência e atualização nos discursos brasileiros e portugueses2.

2 Em virtude da imensa produção de discursos sobre lusofonia, optei por

analisar, principalmente, o funcionamento do dispositivo a partir dos discursos portugueses e brasileiros. Essa escolha se justifica porque o projeto lusófono ganhou bastante repercussão enquanto os países africanos ainda eram colônias

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Também procuro considerar as políticas de difusão da cultura e da língua portuguesa conduzidas no âmbito estatal e institucional, como por exemplo o Instituto da Língua Portuguesa e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Antes, contudo, proponho um pacto ontológico no primeiro capítulo, por meio de uma discussão sobre o “governo da língua” e o campo da política linguística, o que direcionará a minha proposição de que a lusofonia é um dispositivo gerencial da língua. A gestão da língua portuguesa conduzida pelo dispositivo da lusofonia me fez buscar as categorias de política e economia para se pensar uma dada ontologia (ARENDT, 2005 [1958]). Neste sentido, a abordagem das línguas no que diz respeito a sua “administração” tem se configurado como aporte teórico-metodológico amplamente usado em um determinado segmento da Política Linguística, em que se destaca a proposta de gestão linguística (CALVET, 2002, 2007; SPOLSKY, 2005, 2009, 2016; NEUSTUPNÝ; NEKVAPIL, 2003). Defendo que, pautadas em uma economia política, tais abordagens teóricas sobre língua remetem a uma prática de governo em que a gestão das necessidades se tornou central (FOUCAULT, 2008, 2010). Porém, mais do que pertencente à esfera econômico-política, a ideia de gestão está intrinsicamente ligada ao conceito da teologia cristã da oikonomia (AGAMBEN, 2011).

Assim, no primeiro capítulo abordo a implementação da economia política como lógica de governo na modernidade. Na sequência, busco refletir sobre o conceito trinitário da oikonomia e o modo como ele se tornou um paradigma do governo econômico (FOUCAULT, 2008, 2010). Conforme a genealogia da economia e do governo proposta por Agamben (2011), é na esfera teológica da oikonomia que se encontram os dispositivos, que tem por objetivo gerir e governar os homens. A partir da ideia do dispositivo econômico-gerencial (AGAMBEN, 2011, 2014; BAZZICALUPO, 2013) sugiro uma relação entre língua e gestão, tal como seus efeitos na teorização da gestão linguística.

Após essa problematização teórico-política sobre a questão da governamentalidade (FOUCAULT, 2008, 2010) e do dispositivo econômico gerencial (AGAMBEN, 2011, 2014), a ideia da gestão, advinda das teorizações da economia política e da teologia, tem

portuguesas, no século XX, sendo que o Brasil já era nação soberana. Conforme será exposto, os governos de Portugal e do Brasil foram os protagonistas na constituição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, sendo de diversas ordens os motivos para que tal projeto político fosse concretizado.

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implicações para um dado campo de saber da política linguística. Em outras palavras: observo que a configuração de um campo de saber na política linguística tem sua formulação teórica na esfera econômica, ou ainda, conforme discutido por Agamben (2011), trata-se de um construto oriundo da teologia econômica.

O segundo capítulo, Sobre a invenção da lusofonia, incumbe-se de demarcar os procedimentos metodológicos e de apresentar a perspectiva genealógica usada na descrição das condições de emergência da lusofonia enquanto um dispositivo político. A fim de compreender a dinâmica da língua, recorro a uma perspectiva crítica em que a lusofonia é analisada à luz do construto de dispositivo de Foucault (2015), que compreende um conjunto composto de elementos linguísticos, culturais, identitários, políticos, econômicos e coloniais. Ressalto que o dispositivo da lusofonia será analisado principalmente a partir dos discursos produzidos por intelectuais e políticos do Brasil e de Portugal.

O projeto de uma comunidade transoceânica que reunisse os falantes da língua portuguesa estava posto em debate antes da independência das colônias portuguesas em África e Ásia. Na busca das condições de emergência do dispositivo lusofonia, o terceiro capítulo, intitulado Sobre a imaginada nação portuguesa, aborda o período do Estado Novo português. A escolha desse período se justifica pela intensa propaganda em torno de um ideal homogeneizador lusófono que fez uso, entre outros elementos, de uma retórica portuguesa para construir a ideia de unidade da nação transoceânica. Assim, são trazidos à baila três aspectos: i) o projeto político-cultural da nação transoceânica portuguesa, ii) o terror implementado nas colônias africanas por meio do aparato jurídico do Estatuto do Indigenato (1929-1961), iii) a apropriação dos construtos teóricos do lusotropicalismo de Gilberto Freyre a fim de adocicar o racismo português. Sobre esse contexto, por meio do Estatuto do Indigenato criou-se um sistema divisório para gerir e hierarquizar as populações africanas nas colônias com base na racialização política e linguística (SEVERO; MAKONI, 2015). O aparato jurídico-político determinava quem era cidadão e quem era indígena, assumindo função disciplinar e reguladora (FOUCAULT, 2010). Se no passado (não tão distante) colonial português foi instaurada uma política de segregação pautada pelo critério de proficiência em língua portuguesa nas colônias africanas, no período pós-independência, os discursos que propõem a comunidade lusófona fazem da língua portuguesa como o principal elemento aglutinador de Portugal e suas antigas colônias.

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No mapeamento dos discursos sobre lusofonia, averiguei que o projeto político da comunidade foi posto em prática, principalmente, por iniciativa do Brasil e de Portugal. No capítulo Sobre a comunidade imaginada pelo Brasil, proponho que a ação do governo brasileiro se tornou elemento chave para concretizar a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em especial, porque foi um projeto de vida posto em prática por José Aparecido de Oliveira. A trajetória deste brasileiro imbricou-se de uma maneira tão sólida na consolidação da CPLP, que sem a articulação do agente da lusofonia, o projeto não teria saído do plano da vontade. Em uma tentativa de demonstrar que as relações de poder operam microfisicamente, são mobilizados documentos dos mais diversos para construir uma narrativa do ponto de vista da criação da CPLP a partir da figura central de José Aparecido de Oliveira.

O quinto capítulo, intitulado Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: cooperação, multiculturalismo e globalização, visa compreender o funcionamento político da CPLP. Além disso, discuto os conceitos de cooperação, multilateralismo, globalização e neoliberalismo envoltos nos objetivos da CPLP. As instituições organizadas com objetivos políticos têm cada vez mais um norteamento pautado no neoliberalismo, como é o caso da criação da CPLP, uma comunidade político-diplomática que tem revisto seus objetivos a fim de se enquadrar no mundo globalizado. Uma vez que a invenção de comunidades criadas com objetivos políticos atua em uma lógica neoliberal, o modo operante regido pelo dispositivo governamental visa a manutenção político-econômica, na qual o enfoque principal é a administração/gestão, com fins de se adequar ao mercado financeiro e de fortalecer a cooperação econômica. Assim, o papel da língua portuguesa e os mecanismos de gestão da língua utilizados pela CPLP também serão alvo de reflexão.

Por fim, a gestão da língua portuguesa conduzida por Brasil e Portugal se configura como o tema do último capítulo, Política externa e língua: estratégias da diplomacia cultural. Neste contexto, a língua recebe uma dimensão político-diplomática, em que são mobilizados construtos teóricos das relações internacionais que tratam de diplomacia cultural. Paralelamente, procuro considerar as perspectivas da gestão da língua portuguesa dos outros países que agregam o construto de “mundo lusófono”. No entanto, meu enfoque é problematizar as políticas linguísticas do português conduzidas por Brasil e Portugal.

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1 OIKONOMIA E POLÍTICA NA CONDIÇÃO HUMANA

Neste capítulo proponho uma discussão entre língua, economia e política. A intenção é perceber de que modo os construtos da esfera econômica servem de aporte teórico-metodológico para a gestão linguística. Assim, inicialmente busco refletir sobre a base teórica que sustenta o conceito de gestão. Mais do que uma esfera de atuação, a economia ocupa lugar de centralidade na política da sociedade ocidental contemporânea. Definir o que é da ordem do econômico se torna uma tarefa complicada uma vez que economia e política vem se fundindo cada vez mais, como observo na categoria economia política. O entendimento moderno de economia difere bastante do que o termo significava para os gregos. De acordo com o pensamento político da antiguidade clássica, o termo “economia política” seria visto como algo bastante contraditório, dado que a esfera econômica se relacionava com a vida do indivíduo no âmbito privado, e um assunto do âmbito doméstico não se tornaria um assunto da polis e, portanto, político.

Considero importante apresentar o significado de polis e oikos no sentido aristotélico, a fim de entender como política e economia não se imbricavam na antiguidade clássica. Para isso, aciono Hannah Arendt (2005 [1958]) que apresenta, em A condição humana, um estudo minucioso a respeito da organização da polis grega. A divisão que baseava todo o pensamento político clássico era demarcada entre a esfera pública e a esfera privada. A esfera do privado contemplava a atividade do labor e do trabalho, desenvolvida no plano doméstico, sendo que as atividades econômicas necessárias à manutenção da vida e do sustento do indivíduo não eram levadas ao debate público. O chefe da família era o responsável por gerenciar a sua casa, e não o governo. Por sua vez, a esfera pública correspondia à ação exercida diretamente entre os homens, um espaço de convivência entre os diferentes. Os assuntos políticos eram do campo da ação, cuja condição vital para o debate político era a pluralidade, “o único lugar em que os homens podiam mostrar quem realmente eram” (ARENDT, 2005 [1958], p. 51). A condição que habilitava os homens para o debate público no modelo clássico excluía os escravos, os bárbaros dos impérios asiáticos, bem como as mulheres, os filhos e todos que estivessem sob domínio do chefe da casa (ARENDT, 2012), porém friso que a esfera pública jamais visaria a manutenção da vida, uma vez que as atividades econômicas eram pertinentes à esfera privada. A boa vida na polis, liberta do labore do trabalho, existia em função da boa vida no lar (ARENDT, 2005, [1958], p. 47). A compreensão desta divisão nos permite entender por

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que Aristóteles se opunha ao “governo despótico” de um só homem da organização familiar como modelo para ser aplicado à organização inteira da polis. Além disso, Aristóteles se opunha à ideia universalista de que um “conjunto de famílias economicamente organizadas poderia constituir uma única família organizada politicamente” sob o rótulo de “nação” (ARENDT, 2005, [1958], p. 38).

A natureza gerencial da oikonomia é definida por Xenofonte, em Econômico, um tratado prático sobre a economia. Tal documento não contempla os assuntos políticos da polis, antes, dedica-se a apresentar o perfil do bom chefe ou administrador do patrimônio familiar. Neste sentido, a casa é o centro da discussão, em que o “bom administrador” é aquele que administra “bem o seu patrimônio” (XENOFONTE, 1999, p. 3). O vocábulo oikonomia deriva das palavras oiko (significado casa, moradia) e nomia (que significa gerir de maneira correta, administrar). Assim, o significado atribuído por Xenofonte (1999, p. 3) é “administração de patrimônio familiar”, uma atividade de gestão vinculada às regras do funcionamento organizacional da casa. O sentido clássico de economia implicava em decisões e disposições de ordem funcional e, conforme Xenofonte (1999, p. 30), não se tratava de uma ciência no sentido epistêmico, mas de uma atividade relativa a um dado saber:

Pensamos que a economia, administração do patrimônio familiar, é o nome de um saber, e esse saber parece ser aquele pelo qual os homens são capazes de fazer crescer seus patrimônios, e patrimônio parece-nos ser o mesmo que o total de uma propriedade, e, para nós, propriedade é o que para cada um é proveitoso para a vida e dá-se como proveitoso, tudo quanto se saiba usar. (XENOFONTE, 1999, p. 30-31).

No discurso acima, chamo atenção para a relação estabelecida pelo filósofo entre saber–patrimônio–propriedade. Apresentada como uma atividade de gestão, a economia pode ser interpretada como um campo de saber em que o gestor/administrador do lar visa aumentar seu patrimônio com objetivo de tirar proveito ou benefícios de sua propriedade privada. Desse modo, na perspectiva da antiguidade clássica, a economia era tida como a gestão das necessidades da vida privada, ou seja, oikos estava ligada à necessidade, enquanto a polis indicava o espaço do exercício da liberdade e da política. A distinção feita por Aristóteles (2009) entre bios e zoé é elucidativa para a

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compreensão da esfera pública e da esfera privada, indicativas de polis e oikos, respectivamente. Para os gregos, o significado de vida estava ligado a duas dimensões, bios e zoé: enquanto o primeiro representa o modo de viver de um dado grupo ou a vida politicamente organizada do cidadão, o segundo se refere à vida biológica ou à vida natural comum a todos os humanos. A grande questão levantada por Arendt (2005, [1985]) se dá no ponto de inserção da vida biológica ou natural na ação política, ou seja, no apagamento do espaço da liberdade da polis pela entrada do oikos no espaço público e político. De fato, podemos observar a decadência do espaço público na sociedade moderna, sendo que a ordem da necessidade ou do oikos vem se configurando em preocupação central dos governos ocidentais contemporâneos, dado que a forma de governo posta na atualidade se resume à manutenção e sobrevivência da vida dos homens.

A investigação desenvolvida por Foucault (2010) pode auxiliar na compreensão de como operou a fusão entre a prática econômica e a prática de governo, mais especificamente, quando a vida se tornou objeto de governo. A perspectiva da economia como governo é tratada por Foucault (2010) em relação ao conceito de biopolítica. Em seu estudo sobre o poder da pastoral cristã, Foucault (2008a, 2010) constatou o surgimento do problema do governo, no sentido de como se tornar um melhor governante, que data do século XVI com a instauração dos Estados modernos e a expansão da contrarreforma (FOUCAULT, 2015, p. 408). Nesta análise me deterei na questão da formação dos Estados nacionais concomitante à expansão dos processos coloniais, em relação com a economia.

A arte de governar apresentada na literatura do século XVI ao XVIII é ascendente na linha do governo da família, ou seja, o governo do Estado deveria ser pautado no modelo dos pais de família que sabem como governar seus bens, patrimônios e os indivíduos (FOUCAULT, 2015). Por conseguinte, a economia entra como alicerce no exercício político, visto que o governo da família, da ordem do privado, tem como elemento central a economia, pois visa à manutenção da vida. O “bom governo” seria um governo econômico; assim, a introdução da economia no exercício político foi central, como se pode verificar na literatura de Rousseau, em Economia Política, em que a palavra economia designa “o sábio governo da casa para o bem da família” (FOUCAULT, 2015, p. 413).

A ideia de uma gestão geral do Estado significaria estabelecer a economia da ordem do privado – do âmbito familiar - para um nível macro. O modelo da economia passaria a estar extremamente vinculado

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à arte de governar, fazendo com que o sentido moderno da palavra economia não mais se dissociasse de governo. Enquanto no século XVI economia designava um tipo de governo, no século XVIII designou um “campo de intervenção do governo por meio de uma série de processos complexos” (FOUCAULT, 2015, p. 414).

Em sua genealogia sobre a arte de governar liberal, Foucault (2008b, p. 30) identifica que o tipo de racionalidade encontrada nas formas de governamentalidade moderna funciona de acordo com o regime da “verdade econômica”. Assim, o governo adotou como princípio de verdade “sua própria prática governamental” (FOUCAULT, 2008b, p. 45). Nesta proposta de governo liberal, atrelada ao surgimento do conceito de economia política, o regime de verdade passou a ser regulado pelo mercado (FOUCAULT, 2008b), ou seja, o mercado é um dos pontos de ancoragem da razão governamental do liberalismo, pois se configura em um mecanismo de averiguação das relações baseadas no valor/preço.

Outro ponto de ancoragem da razão governamental no liberalismo corresponde ao princípio de utilidade do poder público, visto que suas intervenções são medidas pela sua utilidade. O que se configura nessa razão governamental é um complexo jogo entre “interesses individuais e coletivos”, entre “utilidade social e o benefício econômico”, “entre o equilíbrio do mercado e o regime do poder público” (FOUCAULT, 2008b, p. 61). O liberalismo foi se configurando em uma “arte de governar que manipula fundamentalmente os interesses” (FOUCAULT, 2008b, p. 90), em que a ideia de gestão se torna seu eixo central, pois opera na gestão desses interesses, bem como opera na organização dos mecanismos que propiciam a “segurança” dos indivíduos ou do coletivo nesse jogo de interesses.

Na arte liberal de governar, as noções de gestão e organização se tornaram cruciais, não somente gestão das pessoas e das coisas, mas também das práticas de liberdade. Aliás, conforme ressaltado por Foucault (2008b), o liberalismo produz e consome liberdade: “o liberalismo formula simplesmente o seguinte: vou produzir o necessário para tornar você livre. Vou fazer de tal modo que você tenha a liberdade de ser livre” (FOUCAULT, 2008b, p. 87). Em nome da segurança dos interesses coletivos e individuais são produzidos mecanismos que arbitram a liberdade e segurança dos indivíduos para que não fiquem expostos aos “perigos”. Nesse jogo de prática liberal, é preciso produzir a liberdade, mas, ao mesmo tempo, são criados mecanismos de controle e limitação dessa suposta liberdade. Nisso, a ideia de gestão entra como

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prática organizadora das condições que podem tornar os indivíduos supostamente livres.

No estudo de Foucault, a mudança do funcionamento do poder na modernidade produziu duas tecnologias de biopoder que se juntaram como estratégia de governamentalidade do Estado: o poder disciplinar e o poder regulador (FOUCAULT, 2010, p. 287). O homem é, simultaneamente, um indivíduo e pertencente a uma espécie. Uma vez que a noção de população emergiu como um corpo múltiplo, a população se tornou um problema a ser gerido, fundamentando uma arte de governo relacionada à biopolítica, compreendida como uma tecnologia de poder sutil que serviria para governar a vida da população (FOUCAULT, 2010).

A implantação da biopolítica se deu via mecanismos estatísticos, de mediação global como, por exemplo, as taxas de natalidade, mortalidade, longevidade, entre outras. Desse modo, a ciência do governo tinha como objetivo o controle e gestão da população, sendo que a estatística se tornou o principal “fator técnico” para revelar as regularidades e quantificar os fenômenos próprios da população (FOUCAULT, 2015, p. 424).

Do mesmo modo que a população, a língua se tornou uma questão de governamentalidade, pois na chave de interpretação da biopolítica, um corpo era representado por uma nacionalidade e uma língua, em que vemos em ação o poder individualizante e o poder totalizante durante a formação dos estados-nacionais europeus. O corpo, enquanto corpo-espécie e corpo-nação, é de extrema importância porque é sobre ele que incide o biopoder. A partir da segunda metade do século XIX, estatísticos passaram a estabelecer debates acerca da vinculação de língua e nacionalidade e concluíram que a língua era o único aspecto da nacionalidade que podia ser contado e tabulado, fato que conduziu à inclusão da questão linguística nos diversos censos nacionais (HOBSBAWM, 1998, p. 42).

Dentre as formas de funcionamento do poder na biopolítica, está a seguinte lógica: o que pode ser quantificável passa a ser governável. No governo econômico, se a vida é objeto de gestão, a língua também pode ser. O dispositivo do censo reforça o pressuposto de que as línguas são constituídas de unidades distintas e, desse modo, poderiam ser separadas e enumeradas “em termos do número de falantes de cada língua” (MAKONI; MEINHOF, 2006, p. 204). A modalidade enumerativa usada no censo, atrelada à formação dos Estados nacionais e expansão colonial, promoveu visões “oficiais” sobre a construção de raça, etnias e línguas na África e se estenderam no período colonial.

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A questão de raça, de um prisma histórico, configurou-se em uma maneira de divisão e de organização da diversidade, pois a partir da noção de raça é possível fixar, distribuir e hierarquizar as pessoas em grupos de populações (MBEMBE, 2014). Assim, a identificação das populações em termos de raça facilitaria o processo de determinar e conduzir o espaço de circulação:

Trata-se de fazer a triagem destes grupos de populações, marcá-los individualmente como ‘espécies’, ‘séries’ e ‘tipos’, dentro de um cálculo geral do risco, do acaso e das probabilidades, de maneira a poder prevenir perigos inerentes à sua circulação e, se possível, a neutralizá-los antecipadamente, muitas vezes por paralisação, prisão ou deportação. (MBEMBE, 2014, p. 71). O processo de racialização das pessoas se justificava como medida de segurança na atuação da biopolítica (FOUCAULT, 2010), visto que as populações identificadas em termos de raça poderiam ser melhores geridas evitando-se possíveis riscos para o “bem-estar social”. Além disso, durante a expansão dos regimes coloniais, a noção de raça serviu para demarcar as populações não europeias como diferentes, “como se fossem um ser menor, o reflexo pobre do homem ideal de quem estavam separadas por um intervalo de tempo intransponível, uma diferença intransponível” (MBEMBE, 2014, p. 39). As categorias de raça e etnia também estiveram intrinsecamente ligadas à construção das línguas, cujo efeito foi a invenção de povos ou “de fazer grupos de pessoas e línguas existirem ao nomeá-los” (MAKONI; MEINHOF, 2006, p. 205). Um processo político arbitrário de nomeação, na medida em que tem por objetivo descrever a realidade, mas procede em criar realidades específicas com o propósito de governabilidade (FOUCAULT, 2010).

A proposição de que as línguas foram inventadas é defendida por Makoni e Pennycook (2007), em especial no contexto de invenção3 das

3 Entendo por invenção o processo de construção e institucionalização de um

dado saber que integra um dado projeto político. Neste sentido, assumo a perspectiva de Hobsbawm (2015) - na análise da invenção das tradições - e de Foucault (2015) para pensar que a língua se configura em um dispositivo (AGAMBEN, 2014) quando integra um projeto político, a exemplo do que proponho no dispositivo da lusofonia. O viés teórico que aborda as línguas

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línguas em África, como resultados de projetos coloniais, de processos de cristianização e de projetos nacionalistas. Neste sentido, assumo também a perspectiva de que as línguas foram inventadas. Trata-se de construtos sociais, produtos de intervenções históricas e sociais (HOBSBAWM, 2015). À luz de uma perspectiva da invenção histórica e social das línguas, os autores apontam que é preciso ir além do argumento dos critérios linguísticos, buscando identificar os aspectos políticos, sociais e semióticos envolvidos no processo de construção das línguas. Desse ponto de vista, as línguas são consideradas construções sociais, artefatos análogos a outras construções, como por exemplo, a própria noção de tempo, que é uma construção social e variável (MAKONI e PENNYCOOK, 2007; MAKONI e MEINHOF, 2006).

Assim como as concepções de língua, as metalinguagens usadas para descrever as línguas também são assumidas como invenções por Makoni e Pennycook (2007), que utilizam o termo “regime metadiscursivo” para explicar as representações da língua por uma dada abordagem da linguística. Ademais, o regime metadiscursivo trata as línguas como entidades contáveis, pressuposto reforçado por intermédio da criação de gramáticas e dicionários (MAKONI; PENNYCOOK, 2007). De acordo com Harris (1981), a proposição de língua advinda da linguística ocidental é um “mito”, visto não corresponder à realidade social. Em uma ânsia por isolar o objeto de estudo, a ciência tende a apagar o contexto em que seu objeto se encontra: “Nos estudos da linguagem, cria-se o objeto chamado ‘língua’, que é vislumbrado de forma desatrelada de seu contexto social e histórico” (RAJAGOPALAN, 2012, p. 263). Portanto, a reallinguistik (MAKONI; PENNYCOOK, 2007) do século XX também precisa ser questionada quanto aos conceitos de língua que legitimam/legitimaram uma dada abordagem de investigação e descrição linguística.

De alguma maneira, os estudos linguísticos têm operado na separação entre língua e sujeito, em que a teorização sobre a língua se dá por meio da criação de categorizações e nomenclaturas, o que produz um saber acerca da língua reforçando a cisão entre teoria e prática, entre outras cisões. Isso pode ser exemplificado por uma abordagem segregacionista que realiza uma série de distinções como: língua e contexto; conhecimento linguístico e não-linguístico; conteúdo e língua; língua e falantes; língua e ação; aprendizagem (escolarização) e vida (ELLIS, 2008); uso linguístico e aprendizagem linguística; aspectos

como invenções políticas pode ser encontrado em Severo e Makoni (2015); Rajagopalan (2013); Irvine (2008) e Phillipson (1992).

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internos e externos; sintaxe e semântica; fonologia e fonética (MAKONI, 2011). A prática segregacionista, também conhecida como “linguística ortodoxa”, pôde ser vista em ação no processo de nomeação das línguas em África, em que a “forma falada” recebeu um nome, assim como uma etnia foi vinculada a uma dada língua (MAKONI, 2011, p. 381). É o caso, por exemplo, da prática etnolinguística que usa um dado conceito de língua atrelado a uma etnia (MAKONI, 2011).

O espírito científico nas ciências humanas propiciou um discurso de objetividade e neutralidade no ato de fazer ciência na linguística. Pensando no funcionamento do dispositivo delineado por Foucault (2015, p. 367), a épistémè seria um dispositivo especificamente discursivo, com função de responder a uma urgência histórica e operando, nesta tese, ao separar o inqualificável do qualificável para a definição do que conta como língua, selecionando entre os enunciados possíveis aqueles que seriam aceitáveis num campo de cientificidade. Estrategicamente, proponho que o dispositivo epistêmico da língua coloniza um saber sobre a língua que é legitimado por um dado enunciado científico. Dessa maneira, esse dispositivo opera ao conceituar línguas, estabelecer fronteiras entre as línguas, hierarquizar as línguas e conceder o aval técnico para implementação e/ou gestão das línguas.

A invenção das línguas em África, por exemplo, transformou a paisagem linguística4 de acordo com uma visão de língua e sociedade eurocêntricas, na qual a experiência de comunicação ou a dinâmica das línguas africanas não foram contempladas (MAKONI, 2011, p. 681). A empreitada colonial “civilizadora”, presa numa chave de interpretação eurocêntrica, imaginava e classificava os mundos com a pretensão de apresentar os fatos como reais, certos e exatos, fatos esses muitas vezes inventados (MBEMBE, 2014). Assim, podemos compreender que o discurso europeu precisou recorrer a “processos de efabulação” (MBEMBE, 2014, p. 29) a fim de desenvolver um conhecimento das coisas que tentava apreender, através de uma “relação fundamentalmente imaginária” (MBEMBE, 2014, p. 29) com os objetos que se pretendiam tornar conhecidos objetivamente ou cientificamente. Isso inclui pensar as descrições das línguas africanas como um conhecimento inventado.

4 A expressão “paisagem linguística” foi conceituada por Landry e Bourhis

(1997). Quando utilizo o termo “paisagem linguística” penso na organização do espaço público por meio da linguagem.

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O aparato analítico e a matriz para descrição de uma dada língua apoiavam-se nas línguas dos colonizadores, o que implicava um processo de gramatização, ou seja, a criação de dicionários e gramáticas, duas tecnologias que ainda são os pilares do “saber metalinguístico”, resultado de um processo de descrever e instrumentalizar a língua (AUROUX, 2009, p. 65). A colonização e a exploração de vários territórios tiveram por base a tecnologia gramatical do ocidente, em que a maior parte das línguas do mundo foi mapeada e descrita (AUROUX, 2009).

Analisar o papel da linguística colonial durante os regimes coloniais implica problematizar grande parte das descrições linguísticas, uma vez que eram realizadas por missionários dentro de um projeto de conversão religiosa que seguia a lógica de tornar os “pagãos em cristãos”, gramatizar as línguas orais e tornar o “desconhecido em compreensível” (ERRINGTON, 2001, p. 21). De uma chave interpretativa eurocristã, o processo político de discursivização das línguas locais operou na invenção da diversidade linguística com objetivos de conversão religiosa, dominação cultural e política.

As missões de diversas ordens religiosas produziram uma série de instrumentos linguísticos que visavam dominar e enquadrar os sujeitos nos contextos colonizados. No projeto colonial português, a relação entre a Igreja Católica e a coroa portuguesa foram vitais para a expansão colonial durante os séculos XV a XVIII, por meio do regime do padroado, em que a política administrativa foi conduzida pela Igreja (BATISTA, 2011). Os “cristianletos”, definidos por Severo e Makoni (2015, p. 29) como um conjunto de discursos e instrumentos linguísticos de orientação cristã, foram usados como mecanismo para esquadrinhar as pessoas e as línguas por meio da produção de saber sobre os povos e as línguas. No período colonial brasileiro, a produção de gramáticas e dicionários sobre as línguas indígenas e africanas em circulação tornaram-se potentes instrumentos teológicos, pois a intensificação dos estudos sobre a linguagem estava atrelada à conversão de indígenas e escravizados oriundos da África.

A catequização de forma mais efetiva por parte dos jesuítas foi correlata à sistematização das línguas no período colonial. Tratava-se de uma invenção da língua a partir de um viés eurocristão, conforme ilustro com a gramatização da língua indígena quiriri, realizada pelo padre jesuíta Luís Vincencio Mamiani, em 1699:

Conhecendo pois a necessidade que tem a Nação dos Kiriris nesta Provincia do Brasil de sogeitos

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que tenhão noticia da sua lingua para trattar de suas almas, não julguey tempo perdido, nem occupação escusada, antes muito necessaria, formar hũa Arte com suas regras, & preceitos para se aprender mais facilmente. (MAMIANI, 1877, p. IV, apud BATISTA, 2011, p. 116).

Além do objetivo de expansão do cristianismo, as primeiras missões jesuíticas descreveram duas línguas faladas no Brasil e criaram um sistema educacional que perdurou por séculos, ao mesmo tempo que viabilizaram o controle colonial português (VAINFAS, 2000). Os catecismos e gramáticas produzidos durante o período colonial no Brasil tinham objetivos de conversão, mas também se tornaram aparatos linguísticos, dente eles, destaco o Catecismo da língua brasílica, (1618), autoria de Antônio de Araújo; Arte de grammatica da Lingoa mais uſada na coſta do Braſil (1595), por padre José de Anchieta; Arte da língua brasílica, por Luís Figueira (1573-1643); Arte da Lingoa de Angola oferecida a Virgem Senhora N. Rosario, Mãy e Senhora dos mesmos Pretos (1697), uma descrição gramatical do quimbundo, por Pedro Dias; Língua Geral de Mina (1731-1741), por António da Costa Peixoto (ANCHIETA, 1990; BATISTA, 2011; ROSA, 2013).

A promoção das línguas locais por meio da transcrição gráfica, dotando-as de uma modalidade escrita, configurou-se em uma prática de legitimação e invenção da diversidade linguística conduzida, por exemplo, pelo Summer Institute of Linguistics (SIL), uma missão cristã-evangélica, fundada em 1934, com sede no Texas-EUA. O trabalho acadêmico com as línguas minoritárias consistia na descrição etnolinguística de comunidades orais com objetivo de desenvolver práticas de letramento. Isso foi viabilizado com a construção de alfabetos, invenção de palavras que abarcassem os sentidos vinculados à cultura ocidental e a normatização dos usos (SEVERO; MAKONI, 2015). O mapeamento das línguas faladas ao redor do mundo originou a primeira edição do Ethnologue5, em 28 de fevereiro de 1953, um compêndio mimeografado que trazia a descrição de quarenta e seis línguas, principalmente na região da Ásia, realizada por linguistas que faziam parte da organização cristã-evangélica.

5 Desde então, publicado com periodicidade regular, o Ethnologue tornou-se

uma das principais fontes de pesquisa das línguas faladas no mundo, legitimada por acadêmicos e empresas. O banco de dados, atualizado em 2018, informa que existem, exatamente, 7.097 línguas faladas ao redor do mundo.

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A reboque disso, a invenção das línguas estaria relacionada à criação de uma categorização e enumeração, reforçando certas “ideologias das línguas”6. O projeto linguístico cristão da enumeração das línguas também fez parte de um processo mais amplo de governamentalidade (FOUCAULT, 2015) eurocêntrico que, implacavelmente, codificou tudo o que era não-europeu, de uma maneira tão detalhada e completa, a ponto de não deixar nenhuma cultura inexplorada (MAKONI; PENNYCOOK, 2007). A codificação linguística resultou em um processo de constituição de saber (FOUCAULT, 2015) a respeito dos corpos e das línguas desconhecidas nos territórios colonizados. Conforme Mudimbe (2003), a discursivização sobre o “outro” e sobre a diversidade humana durante o período colonial passou a ser, pela primeira vez, um discurso em que um poder político pressupunha a autoridade de um conhecimento científico. O saber produzido durante o período colonial privilegiava um dado ponto de vista. A título de exemplificação, mesmo as pesquisas feitas em comunidades africanas em que o pesquisador se envolvia com os falantes em uma “busca por significados negociados”, os africanos tinham um papel secundário na produção do saber sobre as línguas africanas. Além disso, a separação entre prática e teoria era reforçada, em razão dos resultados sobre as práticas da língua serem apresentados de maneira fixa, tais quais em livros de gramáticas, cancioneiros e sermões, o que ainda tem sido central nos estudos linguísticos ocidentais (MAKONI, 2011, p. 682). Portanto, a fixação das línguas africanas em listas de palavras, ortografias, dicionários e gramáticas se realizou pela cristalização de práticas de linguagem, um processo com base na separação entre forma e significado, criando uma ideia de estabilidade entre a separação que, no entanto, conduz para uma minimização da fluidez linguageira e para a indeterminação da língua (MAKONI, 2011). A invenção tanto da língua quanto do seu modo de interpretação provocou efeitos reais, em sujeitos reais, configurando-se na construção de políticas linguísticas, na determinação do que se compreende por língua, na constituição de políticas educacionais e na forma como as pessoas se relacionam com as línguas (MAKONI, PENNYCOOK,

6 De acordo com Gal e Irvine (2000), aspectos ideológicos contribuem para

formatar a diferenciação entre as línguas, pois na atividade de mapeamento das fronteiras das línguas, realizado por linguistas e etnógrafos, também estão em jogo os interesses e posições sociais dos envolvidos na pesquisa. Assim, ideologias linguísticas são atravessadas por questões políticas e morais dos participantes e observadores no campo da sociolinguística.

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2007). De uma perspectiva de que as línguas foram inventadas como produtos de intervenção histórica e social (MAKONI; PENNYCOOK, 2007), tanto quanto a própria noção de tempo que é uma construção social e variável (MAKONI; MEINHOF, 2006), assumo que a língua portuguesa é uma invenção do dispositivo da lusofonia. A reboque da invenção das línguas, as categorias de raça e etnia também estiveram intrinsecamente envolvidas na invenção de povos e línguas durante o projeto colonial europeu (MAKONI e MEINHOF, 2006; MBEMBE, 2014).

A inclusão das populações não-europeias no projeto civilizatório do colonialismo exemplifica o funcionamento da biopolítica, pois ao mesmo tempo em que eram incluídas na “civilização” ocidental moderna, essas populações também eram excluídas. A atribuição de raça, etnia e língua aos povos colonizados produziu corpos assimiláveis e sem cultura. Desabilitados da condição de cidadão, a vida desses sujeitos passou a ser desprovida de liberdade, o que os desabilitava de viver politicamente. Mesmo assumindo que sempre há o lugar da resistência, a condição apolítica dos sujeitos não-europeus era uma maneira perversa de “inclusão”. Desse modo, proponho que a entrada da língua e raça na ordem da governamentalidade exemplifica o dano provocado pela entrada da zoé na bios, ou da necessidade (oikos) no lugar da política, visto que, corresponde à produção de formas de vida que não são correlatas nem à vida natural, nem à vida política, antes, são formas de vida que remetem ao estado de exceção em que os sujeitos são portadores da “vida nua” (AGAMBEN, 2007).

Portanto, em complemento ao estudo conduzido por Foucault (2008a, 2010) da prática da biopolítica, é preciso refletir que a inclusão da zoé na polis produziu algo. Assim, a partir da crescente implicação da vida natural do homem na formação dos Estados modernos, questiono o que restou da bios, ou seja, da vida qualificada de cidadão.

Neste sentido, Agamben (2007) explica que a centralidade da vida biológica nos cálculos do Estado moderno, a prática da biopolítica, não reporta a um fenômeno característico somente da política moderna, mas é tão antiga quanto a exceção soberana:

[...] a tese foucaultiana deverá, então, ser corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoe na pólis, em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos

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cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção. (AGAMBEN, 2007, p. 16). A correspondência entre poder soberano e biopolítica é posta por Agamben (2007) a fim de compreender o problema político do homem moderno e, para isso, o filósofo italiano coloca em evidência o conceito de vida nua ou vida sacra. A mudança de funcionamento do poder nos Estados nacionais se deu via a inserção da vida biológica ou da vida nua no âmbito da política, ou seja, a zoé, a vida nua, em detrimento da bíos, a vida qualificada de cidadão. Segundo genealogia de Agamben (2007), o documento base que coloca a vida nua como sujeito político da democracia moderna é o writ de Habeas corpus, 1679. Não é a liberdade do homem, mas o corpus que se torna o novo sujeito da política. Isso produz o homo sacer, pois o que emerge é o corpo do homo sacer: a vida nua.

Portador da vida nua, os homens nem politicamente qualificados nem portadores de uma zoé vivem em um estado de exceção. A categoria sacer7 era usada no direito romano arcaico para atribuir uma condição humana que se situava no cruzamento entre o direito humano e o direito divino (AGAMBEN, 2007). Uma vez que está tanto fora do direito humano quanto do direito divino, o homo sacer permanece em estado vulnerável à vontade soberana. Assim, não pretendo discutir a ambivalência da sacralidade da condição do homo sacer, mas observar a dupla exclusão e a violência a que ele está submetido. De acordo com Agamben:

Esta violência - a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele - não e classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma

7 O homo sacer é uma figura ambígua: “pertence aos deuses na forma de

insacrificabilidade” e, ao mesmo, é “incluído na comunidade na forma de matabilidade”. Tomado como vida sacra, o sacer estava excluído de ser oferecido como sacrifício dado que era propriedade dos deuses, porém qualquer um poderia matá-lo sem cometer sacrilégio (AGAMBEN, 2007, p. 81, 90).

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condenação e nem como sacrilégio. Subtraindo-se às formas sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre uma esfera do agir humano que não é a do sacrum facere e nem a da ação profana [...] Esta esfera é a da decisão soberana, que suspende a lei no estado de exceção e assim implica nele a vida nua. [...] O espaço político da soberania ter-se-ia constituído, portanto, através de uma dupla exceção, como uma excrescência do profano no religioso e do religioso no profano, que configura uma zona de indiferença entre sacrifício e homicídio. Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, é a vida matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera. (2007, p. 90-91).

Em outras palavras, a vida do sacer está presa ao estado de exceção cuja vontade soberana tem o poder de decretar a existência nua. Assim, sacer é característico por sua vulnerabilidade, pois é uma vida matável que vive em estado de marginalidade ou exceção da vida política. O evento da inserção da zoé para o âmbito do bios foi decisivo para a modernidade, pois transformou as categorias jurídico-políticas da política clássica. No estado de exceção, a sacralidade é a forma originária da implicação da vida nua na ordem jurídico-política, pois a vida do homo sacer é sacra na medida em que está atrelada à exceção soberana (AGAMBEN, 2007). A matabiliade do homo sacer é produto de um fenômeno jurídico-político, visto que a vida nua foi inventada a partir do estado de exceção do sacer. A invenção desta forma de vida encontra-se em um vácuo jurídico no qual a vida pode ser isolada da forma: a vida nua está exposta à violência soberana.

Considero importante evocar à reflexão posta por Agamben (2007) sobre a função histórica dos direitos para compreender a biopolítica do Estado moderno nos séculos XIX e XX. As declarações dos direitos inserem a vida natural na ordem jurídico-política do Estado-nação, pois seu fundamento não é o homem livre como sujeito político, mas sua vida nua:

Por consequência, a ASSEMBLEIA NACIONAL reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão:

Referências

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