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“TEBAS NEGRO ARQUITETO”

Ciclo de debates – SESC Pinheiros

(23 de maio de 2019)

Mesa 2:

Tebas e o patrimônio histórico e artístico de São Paulo

Carlos Gutierrez Cerqueira – Historiador do IPHAN/SP

Boa tarde.

Farei minha comunicação em duas partes. Primeiramente vou procurar responder a duas das cinco questões prévias estabelecidas pelo organizador desse ciclo de debates, o sr. Abílio Ferreira.

Quais sejam: 1ª. Quem foi Tebas? e 2ª. Como era ser homem,

negro e profissional especializado em pleno século 18?

Em seguida vou rapidamente falar sobre o patrimônio produzido

em S. Paulo por Tebas, o que já foi identificado e tombado pelo IPHAN ou

que está em vias de ser protegido.

Eu comecei a conhecer melhor Tebas quando, já tendo ingressado no IPHAN, em 1983, me foi oferecido analisar um pedido de tombamento das pinturas de Padre Jesuíno do Monte Carmelo, e ao apreciá-las tive então acesso à documentação da Ordem Terceira do Carmo de S. Paulo, onde deparei-me com algo inusitado, muito raro na documentação histórica do Período Colonial, o registro do contrato feito com Tebas para confeccionar os arcos do frontispício da nova capela em construção. Daí em diante expandi as pesquisas a outros arquivos e reuni um conjunto de documentos até então inéditos que me permitiu revelar alguns fatos importantes da vida profissional desse mulato que foi famoso em seu tempo pelas obras artísticas que realizou.

Tebas foi um homem pardo, escravizado provavelmente desde o nascimento, que aprendeu os ofícios de pedreiro e de cantaria de pedra, trabalhando para o seu Senhor e Mestre Bento de Oliveira Lima até a morte deste em 1769. Cerca de 5 anos depois obteve sua alforria, tendo sido vendido pouco antes pela viúva, Dona Antonia Maria Pinta,para o Arcediago Matheus Lourenço de Carvalho que estava interessado em Tebas por ser o único profissional da cidade capaz de terminar a obra do frontispício da igreja Matriz de São Paulo, iniciada pelo seu antigo dono.

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Foi autorizado pelo seu novo Senhor a dar prosseguimento a outras obras às quais já estava comprometido (a obra da capela dos Terceiros do Carmo especialmente), de maneira que pode amealhar recursos que posteriormente utilizará para obter a liberdade, pagando pela sua alforria ao referido arcediago. Isso eu deduzi pela documentação que compulsei nos anos 1984-88, no arquivo da Ordem Terceira do Carmo e no Arquivo do Estado, conforme descrevi no texto Tebas Vida e Atuação na São Paulo

Colonial. Sua alforria ocorreu por volta de 1775.

Daí em diante Tebas torna-se Senhor de si mesmo, não deve nada mais a ninguém, e tudo o que se propusesse a fazer dependeria apenas da sua vontade e interesse. Não sendo mais mandado, faz apenas o que quer, e assim passa a atuar livremente, e, o mais importante, remunerado pelos trabalhos que executa como Oficial de Cantaria de Pedra e Pedreiro, profissões que aprendeu e lhe deu notoriedade desde sempre.

Abro aqui um parêntesis para traçar um paralelo, sugerir uma comparação, levantando outra questão para reflexão de vocês: Como

vivem hoje em dia na cidade de São Paulo os mestres pedreiros e os profissionais que talham pedras para ornamentação das fachadas e dos interiores dos edifícios?

A resposta que dermos a esta questão, talvez sirva também para embasar nossa resposta à pergunta que nos fez previamente José Aníbal Ferreira: Como era ser homem, negro e profissional especializado em

pleno séc. 18, numa São Paulo em formação?

Pois bem, por mais que refletimos e consideramos a distância do tempo, o percurso da História que separa a cidade do século XVIII da nossa do século XXI, cerca de 250 anos que nos distancia dos homens daquele tempo, guardamos ainda nós, negros ou não, nas profundezas de nossa alma uma sensação estranha e incômoda, um sentimento que as palavras encontram muita dificuldade de exprimir. E sei que esse sentimento em mim é diferente da minha companheira de mesa. Simplesmente porque sou branco? Eu me pergunto.

- Sim, e não. Chamemos a isso o que seja. O fato é que esse sentimento perdura e incomoda-nos, negros e brancos. Algo que se incutiu em nós, corrompendo nosso ser, manchando nossa humanidade. Parece uma mistura de coisas indecifráveis, não é? Que herdamos do passado, que

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atravessa o tempo, e carregamos dentro de nós como se fizesse parte de nosso DNA. E que hoje exige de todos nós muita reflexão e atitude.

Por que isso? Talvez seja possível discorrermos sobre esse sentimento sob um ponto de vista da psicologia social, mas que eu não me aventuro.

Me perdoem, não sei dar uma resposta que possa satisfazer a mim mesmo, quanto mais a vocês que vieram aqui interessados em saber um pouco mais sobre Tebas, interessados também em ouvir alguma coisa a respeito da pergunta do Senhor Abílio Ferreira que nos faz refletir sobre o que era ser um profissional negro no século XVIII em São Paulo em pleno

regime escravagista. O que nos leva a considerar uma perspectiva de

análise que permita eleger o enfoque da chamada história da

mentalidade, seja durante seja depois da escravidão.

Vou tentar então um caminho onde procuro vê-lo no seu próprio tempo, vivendo na cidade que o seu trabalho ajudou a transformar, colaborando para criar uma paisagem urbana algo diferente, porque passados dois séculos e meio de colonização, atingira-se já o auge dos empreendimentos bandeiristas, que submetera ao seu domínio nações nativas inteiras, e alcançara a glória da descoberta do ouro, gestando então uma sociedade pautada em outros interesses e outros valores, muito distinta da que fora nos séculos anteriores. A economia paulista começa a se diversificar; e deixa de ser baseada apenas na agricultura e nas expedições bandeiristas. O açúcar ganha relevo no interior, substituindo o trigo e o algodão; o comércio com Minas se desenvolve; o gado vacum e muar leva o paulista a conquistar todo o Sul até os campos do Rio Grande. Em meio a isso a população vai ganhando uma nova coloração. A população se adensa com um novo contingente: ao nativo, que o historiador John Monteiro chamou de “negro da terra”, a mão-de-obra escrava utilizada pelo colonizador branco nos séculos XVI e XVII, vê acrescer o “negro da África” que chega a número cada vez maior, principalmente para desenvolver a agroindústria do açúcar.

Assim, paulatinamente, a pequena cidade de S. Paulo vê sua população começar a se diversificar. E seus edifícios, que até então eram construídos com barro amassado, concretado por meio da taipa de pilão, começarem a receber uma nova aparência e a formar uma paisagem urbana que se configura através de construções e reformas de seus

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principais edifícios, pelas igrejas e prédios públicos. A novidade era a cantaria de pedra, técnica que, associada ao tijolo, permitiria revestir as paredes de taipa e adorná-las com pedras entalhadas artisticamente.

Tebas participou da construção da nova igreja de São Bento, talhando pedras para o seu frontispício; da mesma sorte para a igreja Matriz quando viu seu Mestre e Senhor Bento de Oliveira Lima falecer. Deu prosseguimento a essa obra, ao mesmo tempo em que se comprometia (e era ainda escravo da viúva de Bento, Da. Antonia Maria Pinta) com os Irmãos Terceiros do Carmo para levantar os três arcos de entrada de sua nova capela. Em meio a esses trabalhos consegue se livrar da escravidão, pagando por sua alforria ao seu novo Senhor o Arcediago Matheus, quando concluiu a obra da Matriz.

Assim Tebas viveu numa São Paulo que ajudou a transformar, quando a cidade pouco ultrapassava os limites do distrito da Sé atual, com uma população ainda muito pequena e que crescia muito lentamente. O tecido urbano mal saíra do núcleo inicial, tornara-se um pouco mais adensado somente; todavia sua população era menor do que a de muitas das grandes comunidades da periferia de nossa cidade atual.

Estou a falar de uma S. Paulo muito, muito diferente da nossa atual. Viver aqui no século XVIII, me faz imaginar uma cidadezinha dessas que nem existem mais no interior do país. Afinal tudo cresceu enormemente, deixando para trás uma cidade muito diferente, de quando a vida urbana teria outro ritmo e sentido, outro conteúdo social e político, outra significação cultural, especialmente para as pessoas da raça negra porque sujeitas a leis que autorizavam e regiam a sua própria escravidão das quais poucas conseguiam se livrar. Tebas, nesse sentido, é uma exceção.

Os escravos eram facilmente reconhecidos, a começar pela simplicidade e pobreza de sua vestimenta, roupas feitas de pano grosso de algodão e pés no chão, identificados pelo comportamento subserviente aos senhores, prontos a responder às suas ordens, a executar todo tipo de tarefa, da mais árdua às mais trivial, enfim uma infinidade de trabalhos, dos mais pesados e cansativos até os mais imundos. Cabia-lhes uma enormidade de serviços, toda uma gama de trabalhos manuais, simples e penosos, que mesmo o mais pobre dos homens brancos se recusava a executar, pois executá-los era desonroso.

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O Trabalho, portanto, era expressão da condição escrava. E o negro, a simbiose, a encarnação viva do Trabalho escravo, próprio à sua “natureza escrava”. Em outras palavras: um era a expressão do outro e

vice-versa.

Essa a razão porque todo homem branco tinha um escravo. E talvez também a razão de por que um homem da raça negra quando conseguia se libertar da escravidão, tendo recursos e meios para afirmar sua nova condição, a de homem livre, procurava logo criar uma imagem nova, livrando-se dos trajes servis, vestindo roupa diferente mesmo que modesta. E, sobretudo, assim que pudesse adquiria um ou dois escravos para realizar essa infinidade de coisas; enfim ter quem trabalhasse para si. Era como se o desfrute da liberdade, sua realização plena, fosse somente alcançada pela negação do Trabalho.

Essa era a percepção cotidiana da escravidão urbana, a sua expressão fenomenológica, a imagem de um estado de coisas que mal conseguia encobrir, porém, a desumanidade do sistema para com a maioria de sua população, os homens da raça negra, condenados ao Trabalho, isto é, a trabalhar para o livre, que o dominava, o possuía e o dispunha ao seu bel prazer, fazendo-o executar toda uma gama de trabalhos que considerava desonroso, impróprio ao ser humano, isto é, ao branco. Assim, reiterava-se a desumanidade do sistema, negando ao negro a sua humanidade.

Mas a escravidão não estigmatizava somente o negro; estigmatizava todos, indelevelmente, toda a sociedade. Os brancos também. Mas de maneira mais cruel todos os da raça negra. Até mesmo os libertos, alforriados, ou nascidos livres, continuavam portando o que era próprio do sistema social, do regime escravagista, cristalizado na cor da pele.Mesmo esses que escaparam da escravidão foram por ela afetados, como afetados fomos e somos todos nós, independentemente da cor que figura em nossas peles. Acarretando conseqüências brutais a toda a sociedade. O trabalhador moderno, sob o Capitalismo, que se vê reduzido a simples força de trabalho, enganosamente remunerada, levado a imaginar-se livre das amarras da servidão, é ainda por ela afetado. 400 anos de escravidão não foi pouca coisa. Conseqüências? Inúmeras. A mais nítida e cristalina delas vemos na remuneração hoje paga aos homens e mulheres negros, inferior à dos brancos. A desvalorização do seu trabalho.

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Todavia, ao trabalhador, negro ou não, compete o Trabalho. É o seu

destino. Mas é a sua sorte também, pois é por meio dele que pode

afirmar sua humanidade. Desse ponto de vista, acredito que Tebas sentia-se um homem realizado; entalhando e transformando pedras em objetos belos e admiráveis. E assim produzindo, afirmava a sua humanidade.

Vejamos isso com maior detalhe.

Tebas viveu duas fases bem distintas durante sua existência, uma como escravo e outra como homem livre. Mais ou menos metade da vida em cada condição. Infância, adolescência e parte da maturidade como escravo de Bento de Oliveira Lima. Da maturidade até a velhice, livre.

O que há de diferente é a condição. Trocou a condição escrava pela livre. Substancialmente é isso. Serve-nos para especular a respeito de um bocado coisas. Entre outras pergunto: Teria Joaquim Pinto de Oliveira Tebas se tornado uma figura tão conhecida e reconhecida como exímio oficial de cantaria de pedra, fixado na memória da cidade sua imagem e as obras que executou se não tivesse galgado a fama que alcançou? E se não tivesse exercido livremente o seu ofício? Penso que por melhor que fosse Tebas, enquanto permaneceu escravo quem mais se beneficiava do seu trabalho, das obras que produzia, era o seu Senhor, o Mestre Bento.

Faço outra indagação, de outro ponto de vista, traçando paralelo entre passado e presente: quantos engenheiros e arquitetos ainda hoje se valem de seus Mestres de Obra e de seus melhores Operários, da experiência e perícia deles, tornam-se famosos, mas não se dão ao trabalho de mencioná-los, esquecendo de reverenciar aqueles que conferem qualidade e segurança aos edifícios que projetam?

Volto a Tebas.

E pergunto: O que nele Tebas permaneceu de uma a outra condição? Na passagem da Escravidão à Liberdade?

É fácil responder, não é? O que permaneceu em Tebas, sim, sem dúvida, a cor de sua pele. Essa não muda, estava nele. E isso tinha (como ainda hoje tem) grande significação. Significação que, também sabemos, não estava somente nele, nem derivava somente dele. Pois a significação

é social. E cultural também. Emerge das relações com os outros, na interação com os outros. E conflita com os outros também. Porque conflita com valores, pensamentos e interesses diferentes e opostos. De

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um lado, com os brancos livres; e de outro com os da sua própria raça, com os escravos. Tebas, digamos, num dado momento, trocou de lado, e daí em diante precisou se firmar como pessoa livre. Encontrava-se numa situação nova, sempre ansiada e a custo alcançada, mas que exigiu dele adaptação.

A questão que se colocava então a Tebas: Como viver a sua nova

condição, a de homem livre, numa sociedade escravista, preconceituosa, racista, sendo que, independentemente da sua nova condição, continuava sendo um homem da raça negra? Acho que voltei à questão

colocada pelo Abílio.

E assim, sou obrigado a concluir que a condição do indivíduo da raça negra (e da indígena também) na sociedade brasileira colonial não era fácil, nem como escravo nem como livre ou alforriado, pois essa condição

se definia por uma ordem hierárquica de valores (legais, econômicos,

étnicos, religiosos e morais) que assim os qualificava e os distribuía, determinando a posição e a função que desempenhavam, estabelecendo também as formas de relacionamento entre as pessoas, livres ou não, brancas ou negras. Nesse tipo de organização social, que grosso modo é chamado de estamental-escravista, a população é dividida em cortes estratigráficos que formam uma pirâmide, mas que tem na escravidão a sua base estrutural, onde estão os povos dominados, índios e negros. A

liberdade que alguns desses, índios e negros, e mestiços (mamelucos e

pardos) chegaram a desfrutar, possibilitou-lhes acesso à educação e a aprendizagem de ofícios artesanais e artísticos, alcançando certa

mobilidade social, contato e relações com estratos superiores e também a

espaços privilegiados que lhes proporcionavam uma vida melhor.

Mas é preciso frisar que essa nova posição que a alguns poucos homens da raça negra foi permitido chegar e desfrutar no período Colonial adveio e dependeu do seu próprio esforço e de seu trabalho, do que souberam produzir, seja pelo trabalho artesanal (os chamados ofícios mecânicos, como marceneiros, carpinteiros, serralheiros, etc.), sejam os de natureza artística propriamente dita (escultura, pintura, música, teatro). Eis que então chegamos ao ó da coisa, ou seja, àquilo que explica a situação diferenciada vivida por Tebas na sociedade escravista paulista. E a diferenciação provinha da natureza especial do seu trabalho: o

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Desse modo, não foi só a cor que permaneceu em Tebas quando se livrou da escravidão. O que de mais importante permaneceu em Tebas foi o seu trabalho artístico consubstanciado nas obras que realizava e que nos legou e que nós hoje celebramos. Um trabalho que era e continua sendo muito valorizado, e que não é simples; pelo contrário, a cantaria de pedra exige formação especializada e muita habilidade técnica, coisa que adquiriu provavelmente em tenra idade, ensinado pelo Mestre Bento, mas que soube desempenhar com tamanha maestria e qualidade que alcançou fama já desde antes de se tornar livre.

É bom porém repetir que nem todos, ou melhor, por certo a maioria dos negros e mulatos que obtiveram alforria não teve a mesma sorte na vida. Faltava-lhes qualificação; não aprenderam ofício artesanal nem desenvolveram outras habilidades que lhes possibilitassem ganhar dinheiro e viver com autonomia.

E a cor, negra ou parda da pele, era (e continua sendo) algo que estigmatiza seu portador na sociedade escravagista que Tebas vivia. O fato de ter se tornado livre, alforriado, o desvencilhou desse estigma? Evidentemente que não.

Seu trabalho, no entanto, o dignificava; suas obras eram reconhecidas e admiradas; os brancos que as admiravam logo apoiaram a atitude do arcediago Matheus e ficaram satisfeitos porque passaram a contar com Tebas sem mais a interferência de seu antigo dono, de mais ninguém, tratando diretamente com ele as obras que desejavam que ele executasse, especialmente nas mais ricas igrejas paulistanas, e ainda o Poder Público, a Câmara Municipal e os Governantes da Capitania que puderam se valer do seu trabalho, como é sabido, por exemplo, para construir o famoso Chafariz da Misericórdia.

O que nos introduz ao tema desta mesa:

Tebas e o patrimônio histórico e artístico de São Paulo

Bem, aqui falo como funcionário do Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, o mais importante órgão de preservação do

país, criado em 1937 por gente como Mário de Andrade – outro mulato famoso, poeta e romancista modernista, cujo trabalho como intelectual, com o auxílio de seus muitos companheiros e amigos, escritores, músicos, pintores, arquitetos, engenheiros, arquivistas, professores e, notem

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também, com políticos (como Paulo Duarte, Gustavo Capanema, que eram literatos também, o Governador Armando de Salles Oliveira e o prefeito Fábio Prado) revolucionou a Cultura Brasileira, numa trajetória iniciada a partir da Semana de Arte Moderna em 1922; treze anos depois criou o Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, foi mentor da Missão de Pesquisas Folclóricas ao Nordeste de 1938 que resgatou uma multidão de coisas do nosso rico folclore, através de registros fílmicos, sonoros, fotografias e desenhos – uma ação que deve ser conhecida por todos nós, pois reúne um manancial enorme de informações sobre a cultura popular brasileira, sua poesia, suas músicas, suas danças, suas crenças, fontes genuínas e permanentes de inspiração criativa literária e musical.

Mas volto a Tebas para dizer que o IPHAN reconheceu e tombou uma bela obra sua: o frontispício da capela da Venerável Ordem Terceira do Carmo de São Paulo. Esse frontispício sofreu, ao longo do tempo, poucas alterações e conserva quase todos os elementos de cantaria de pedra lavrada por Tebas. Seu estado de conservação, logo se vê, não é bom. Vira e mexe, pichadores invadem as grades de proteção e o lambuzam, desrespeitando uma das poucas obras que restaram do Mestre Tebas na cidade. Um dia, quem sabe, com mobilização de gente que admira e luta pelo resgate da memória e das obras por ele executadas, reuniremos as condições para que seja efetuado o restauro desse belo frontispício construído por Tebas, obra de 250 anos atrás, e quem sabe restauremos também os miolos desses insensatos pichadores.

Além desse frontispício, as pinturas decorativas do interior dessa igreja são de outro importante elemento representativo da raça negra, o também mulato Jesuíno, que foram inteiramente restauradas pelo IPHAN entre 2007 a 2011. Trabalho que durou 5 anos e exigiu trabalho meticuloso e incansável de uma equipe de especialistas de primeira ordem. Quem não conhece essas pinturas restauradas, precisa deve conhecer, principalmente o grandioso painel do forro da nave da igreja, uma imensa e belíssima composição pictórica, representativa da pintura colonial paulista.

Esse trabalho renovou o interesse sobre a obra de Jesuíno, estimulando os pesquisadores acadêmicos que produziram diversas teses de mestrado e doutorado sobre Jesuíno e outros artistas coloniais,

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descobrindo novos e importantes artistas, identificando muitas de suas obras, assim revigorando os estudos e enriquecendo sobremaneira o conhecimento sobre a Arte Barroca Paulista. E devo acrescentar que entre as pesquisas que mais contribuíram para alcançar esse resultado foi o da minha colega de mesa, Doutora Danielle Manoel dos Santos Pereira, pois nos deu a conhecer um panorama do patrimônio artístico paulista antes desconhecido e que certamente deverá contribuir para os trabalhos de pesquisa e identificação do IPHAN e dos demais órgãos de preservação futuramente.

Mas volto a Tebas.

Estão em processo de tombamento outras duas igrejas paulistanas, as da Ordem Primeira e Terceira franciscanas, aquelas duas que figuram lado ao lado junto a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que antigamente, até 1828, era o Convento dos Frades franciscanos, que algumas fotos antigas registraram, e através delas é possível observar e fruir a beleza do conjunto arquitetônico que formava com as mencionadas igrejas. Reconhecemos nessas duas igrejas, nos seus respectivos frontispícios, a mão de Tebas nos arcos, na portada, nas cimalhas e noutros elementos de sua ornamentação. As duas igrejas terão ainda neste ano de 2019 os pareceres técnicos necessários à subsidiação1 completa do processo, e poderá seguir a Brasília para apreciação final.

Estimo que outras obras de Tebas possam ter sobrevivido na cidade de São Paulo, mas estão à espera que algum de nossos especialistas as identifique e quem sabe algum historiador localize documentos que afirmem sua autoria. Tarefa que requer dedicação, persistência e um pouco de sorte, como eu tive ao compulsar a documentação do Convento de São Luiz e localizá-lo em Itu fabricando o Cruzeiro – único elemento que restou do conjunto arquitetônico franciscano do final do século XVIII. Desde então aguardo que um ituano ingresse no IPHAN com um pedido de tombamento do Cruzeiro; seria mais uma oportunidade para louvarmos Tebas e sua perícia artística. Por falar em Cruzeiro, aonde será que foi parar aquele que se situava defronte à igreja como vemos numa

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Segundo o Instituto Universitário de Lisboa, “A palavra subsidiação existe. Não aparece ainda nos dicionários porque é uma palavra recente na língua. Isso mesmo mostra um artigo de 2004, chamado Neologismos terminológicos na área da Economia:

processos mais frequentes em Português Europeu, da autoria de Mafalda Antunes, Margarita Correia e Rita Gonçalves, da

Associação de Informação Terminológica, que regista subsidiação nos exemplos de termos neológicos construídos por meio de sufixos: deriva do verbo subsidiar. Quer dizer qualquer coisa como: «acto de subsidiar, ajudar, auxiliar; contribuição com subsídio para». https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-palavra-subsidiacao/23385.

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foto de Militão Augusto de Azevedo? Suponho que possa ser da autoria de Tebas também.

Há no IPHAN um pedido de tombamento que ingressou há alguns anos, mas que desde então ficou sobrestado, à espera de análise de um arquiteto desatento. Trata-se de processo que pleiteia a preservação do edifício da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, cuja construção foi iniciada à época em que Mário estava na direção do Departamento de

Cultura que idealizou e administrou por pouco mais de dois anos,

retirando-se quando os ventos políticos começaram a soprar de forma adversa. Ora, penso que esse pedido de tombamento nos dá oportunidade de renovar a homenagem a esse mulato, um dos maiores intelectuais paulistas, estendendo à biblioteca que recebeu o seu nome a consagração merecida, tornando-o monumento nacional.2

Bem, espero ter colaborado para esclarecer um pouco as questões colocadas por Abílio Ferreira. Muito obrigado pela atenção.

SESC/Pinheiros, 23 de maio de 2019 Carlos Gutierrez Cerqueira – IPHAN/SP

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Conclui Parecer de tombamento da Biblioteca Mário de Andrade em 14 de maio último. O processo deverá ainda receber aval de um técnico em Arquitetura, para depois seguir para Brasília, onde será avalizado e encaminhado para o Conselho Consultivo do IPHAN. Este talvez constitua o último trabalho que realizo no IPHAN antes de me aposentar.

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