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Mulher, sertaneja, negra e yalorixá: notas biográficas sobre Mãe Érica de Oxóssi (Delmiro Gouveia – AL)

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Academic year: 2021

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(1)1. UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS CAMPUS DO SERTÃO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA. SAMIRA KELLY DA SILVA TORRES. MULHER, SERTANEJA, NEGRA E YALORIXÁ: NOTAS BIOGRÁFICAS SOBRE MÃE ÉRICA DE OXÓSSI (DELMIRO GOUVEIA-AL). DELMIRO GOUVEIA-AL AGOSTO DE 2019.

(2) 2. SAMIRA KELLY DA SILVA TORRES. MULHER, SERTANEJA, NEGRA E YALORIXÁ: NOTAS BIOGRÁFICAS SOBRE MÃE ÉRICA DE OXÓSSI (DELMIRO GOUVEIA-AL). Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao Curso de História como requisito parcial para obtenção do grau de licenciado em História. Orientador: Gustavo Manoel da Silva Gomes. DELMIRO GOUVEIA-AL AGOSTO DE 2019.

(3) Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas Biblioteca do Campus Sertão Sede Delmiro Gouveia Bibliotecária responsável: Renata Oliveira de Souza CRB-4/2209 T689m. Torres, Samira Kelly da Silva Mulher, sertaneja, negra e yalorixá: notas biográficas sobre Mãe Érica de Oxóssi (Delmiro Gouveia - AL) / Samira Kelly da Silva Torres. – 2019. 28 f. Orientação: Prof. Me. Gustavo Manoel da Silva Gomes. Artigo monográfico (Licenciatura em História) – Universidade Federal de Alagoas. Curso de História. Delmiro Gouveia, 2019. 1. História – Alagoas. 2. Delmiro Gouveia – Alagoas. 3. Can-. domblé. 4. Yalorixá. 5. Mãe Érica de Oxóssi. 6. Memória. 7. Biografia. I. Título. CDU: 981(813.5).

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(5) 5. RESUMO: O presente artigo objetiva reconstruir episódios da história de vida da Yalorixá Érica Aparecida Santos, mais conhecida como Mãe Érica de Oxóssi, a partir de suas memórias e narrativas orais, evidenciando sua trajetória desde a infância, como uma sertaneja de família simples, até a sua vida adulta, focando na sua experiência religiosa após alcançar o mais alto cargo no candomblé: yalorixá, ou, mãe de santo. Ao pensarmos esse processo, refletimos sobre alguns aspectos da memória social do sertão alagoano a partir de temáticas como gênero, raça e religião. PALAVRAS-CHAVE: História; Memória; Candomblé; Mãe Érica de Oxóssi; Biografia..

(6) 6. ABSTRACT: The article seeks to reconstruct episodes from the life story of Yalorixá Érica Aparecida Santos, better known as Mãe Érica de Oxóssi, from her memoires and oral narratives, displaying her trajectory since childhood as a countryside girl from a humble Family, to her adulthood, focusing on the religious experience after reaching the highest position in candomblé: yalorixá, or mãe de santo. When we think about this process, we reflect about some social memory aspects of the hinterland of Alagoas from themes such as gender, race and religion. KEYWORDS: History; Memory; Candomblé; Mãe Érica de Oxóssi; Biography..

(7) 7. SUMÁRIO. 1. Numa encruzilhada, o início: os domínios e abordagens historiográficos que se cruzam nessa pesquisa ........................................................................ 08 2. Ensinar a menina a viver e a ser uma mulher: o contexto familiar na formação de Érica Santos ............................................................................... 14 3. Consagrando-se Yalorixá e abrindo um Ilê Axé em Delmiro Gouveia: conflitos e estratégias de enfrentamento de Mãe Érica de Oxóssi .................. 18 4. Considerações Finais ................................................................................... 25 5. Referências .................................................................................................. 27.

(8) 8. MULHER, SERTANEJA, NEGRA E YALORIXÁ: NOTAS BIOGRÁFICAS SOBRE MÃE ÉRICA DE OXÓSSI (DELMIRO GOUVEIA-AL). 1. Numa encruzilhada, o início: os domínios e abordagens historiográficos que se cruzam nessa pesquisa. No Brasil, durante os últimos anos, vinha crescendo o número de pesquisas em diversas áreas sobre relações étnico-raciais e cultura afro-brasileira, também como fruto de políticas públicas encampadas por governos democráticos. Contudo, esse contexto vem sendo ameaçado pela ascensão do neoconservadorismo de extrema direita que tomou força política e cultural no país após o golpe de Estado de 2016. Nessas circunstâncias, o racismo tem se tornado uma bandeira “pública”, sendo. deliberadamente. praticado. por. intelectuais,. celebridades,. políticos,. profissionais liberais, pessoas comuns, etc. Destarte, persistir em produzir pesquisas e textos científicos que considerem as experiências e as vozes das minorias político-raciais, dando-lhes visibilidade em espaços conservadores e excludentes, além de registrar as práticas violentas às quais são submetidas, é um ato não só científico, mas também político. É um ato de resistência em se repensar o nosso projeto de sociedade brasileira. Outro fator que justifica a abordagem da temática aqui proposta é a carência de estudos sobre as religiões afro-brasileiras centradas no espaço do sertão alagoano já que a maioria dos estudos sobre esse tema versam sobre as experiências históricas dos afro-religiosos que se dão em Maceió. Nesse sentido, podemos citar trabalhos icônicos sobre o tema que versam sobre as religiões afrobrasileiras em diferentes recortes históricos. O antropólogo Ulisses Rafael que pesquisa as memórias da perseguição promovida pelo Estado aos cultos afro no início do século XX, episódio conhecido como Quebra do Xangô (RAFAEL, 2012); a historiadora Irinéia Santos que discute os processos de modernização e mobilização política das casas afro-religiosas maceioenses nas últimas décadas do século XX (SANTOS, 2014) e a historiadora negra Ellen Cirilo Santos, que investiga a formação e atuação do movimento de juventude de terreiro de Alagoas (SANTOS, 2018). Nesse sentido, é importante a construção de pesquisas e reflexões sobre as.

(9) 9. experiências religiosas afro-brasileiras voltadas para além da capital alagoana. Este é o primeiro Trabalho de Conclusão de Curso produzido acerca da presença do Candomblé no Sertão de Alagoas feito no curso de História do campus Sertão da UFAL, o que lhe confere todas as limitações de um estudo inicial para uma região sobre a qual não há referências bibliográficas ainda publicadas. É nesse contexto de inquietações que se localiza esse trabalho, produzido por uma mulher negra, sertaneja, candomblecista, abiã1. A personagem principal da história que narramos aqui é uma mulher simples de cotidiano comum da cidade de Delmiro Gouveia: negra e de classe média baixa que se tornou uma liderança religiosa do Candomblé e atualmente usufrui de considerável visibilidade no Sertão alagoano, região em que o machismo, o cristianismo, o racismo e o preconceito por classe social ainda são recorrentes2. Nossa abordagem biográfica não pretende construir uma história de uma grande mulher no sentido positivista, centrada em produzir uma verdade absoluta sobre uma personagem “quase heroína”, cuja vida se desenrolaria em grandes datas e fatos. Nossa pesquisa problematiza a Mãe Érica como uma mulher comum, produzida num cenário cultural, político, social e econômico específico, atravessada por múltiplos discursos e que precisa se reconstruir, se posicionar e se deslocar a todo momento. Ela é pensada aqui como um sujeito histórico que problematiza seus contextos e que pode ser, também, problematizada. Aqui, falamos de uma mulher comum que embora tenha alcançado um alto status dentro da comunidade religiosa a qual integra, ela ainda enfrenta muitos desafios para se estabelecer com total dignidade na sociedade sertaneja que, quantitativa e deliberadamente, defende outros valores raciais e religiosos, entre outros, perante os quais as identidades de Mãe Érica de Oxóssi destoam.. 1. Pessoa que está ingressando na religião Candomblé. Segundo a Nota Técnica “Vidas perdidas e o racismo no Brasil”, publicada em novembro de 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Alagoas é a unidade federativa que apresentou os maiores índices de exclusão social e violências letais (agressões físicas e homicídios) contra a população negra. Conforme o estudo, esta categoria social e racial foi historicamente submetida a um processo no qual tem acesso precário à equidade e justiça social, sendo, portanto, vitimada tanto pelos maiores índices de pobreza, quanto de discriminação racial, inclusive em âmbito institucional, sobretudo, dos aparatos de segurança pública como a polícia. Além de evidenciar a segregação racial, o estudo revela que a taxa de cidadãos negros mortos violentamente é mais que o dobro do que da população branca. Dados revelados também na pesquisa no campo do Direito feita por SILVA (2014). Conforme a metodologia econométrica aplicada na nota técnica do Ipea, em que se fez uso da estatística, conclui-se a violência letal à população negra não pode ser explicada apenas por fatores demográficos e econômicos, mas também por fatores históricos e raciais. Nossa pesquisa situa-se num espaço bastante hostil à pessoa negra, seja em caráter material ou simbólico. 2.

(10) 10. Conforme Le Goff (2003), a produção de uma biografia se faz apoiada em artefatos da memória, como o relato oral. O relato é uma informação passada através de uma narrativa que representa processos históricos acontecidos diante da impossibilidade de revivê-los concretamente. Mas é preciso ter cautela e se posicionar com certo grau de desconfiança diante dos relatos orais, pois a representação discursiva da memória não é algo imparcial, puro, ingênuo ou absolutamente verdadeiro. Portanto, carece de um olhar crítico e contextual. Como a memória é uma produção simbólica, nela pode existir lapsos de amnésia, imprecisões e constantes reformulações.. A memória, principal fonte dos depoimentos orais, é um cabedal infinito, onde múltiplas variáveis – temporais, topográficas, individuais, coletivas – dialogam entre si, muitas vezes revelando lembranças, algumas vezes, de forma explicita, outras vezes de forma velada, chegando em alguns casos a ocultá-las pela camada protetora que o próprio ser humano cria ao supor, inconscientemente, que assim está se protegendo das dores, dos traumas e das emoções que marcaram sua vida (DELGADO, 2010, p.16).. Portanto, é comum as oscilações da memória no esforço em produzir uma história de vida, já que a reconstrução de uma memória não se dá de maneira linear, mas está sempre fazendo conexões com a temporalidade em que se manifesta, ou seja, a cada momento diferente de nossas vidas, relembramos de modo diferenciado das coisas vivemos e sentimos, atribuindo sentidos distintos à nossa memória, à nossa história e às nossas identidades sociais (CANDAU, 2014). Porém, ao historiador cabe desenvolver técnicas da pesquisa histórica para poder estimular a memória, encontrar e produzir os vestígios materiais que a alimentem (ALBERTI, 2010). Nesse sentido, podemos observar a entrevista oral como um documento-monumento (LE GOFF, 2003), pois ele é produzido de forma intencional, de modo a construir uma memória e uma história que para os historiadores contemporâneos deve ser tomada como problematizadora das experiências dos homens no tempo. Portanto, embora a vida e a experiência de Mãe Érica de Oxóssi seja muito maior e complexa, a biografia aqui produzida é o efeito de recortes entre, não só um conjunto de experiências concretas, mas também uma construção simbólica, negociada por suas memórias, narrada e representada em seu discurso e, ainda,.

(11) 11. assim, filtrada pelas escolhas da pesquisadora em busca de produzir sentidos que respondam as inquietações e objetivos desta pesquisa. Nos relatos de nossa entrevistada, a sua história de vida não foi relatada de forma linear e temática como a organizamos neste trabalho para fins de didatizar uma reflexão. É a partir das memórias de Mãe Érica, e dos devidos cuidados teóricometodológicos que isso implica, que construímos esse trabalho historiográfico: verificando os vestígios, revisitando a memória e analisando as problemáticas que foram expressas por meio delas no tempo presente, pontuando seus projetos, decisões, fragilidades, processos de vitimização e de resistência, etc. Contudo, se a ciência histórica se abriu para estudar as pessoas comuns, muito ainda o faz considerando as experiências masculinas. Nesse sentido, foi importante o repensar da história a partir de óticas femininas, um exercício epistemológico ainda em construção. A personagem de nossa discussão, contudo, nos coloca um desafio epistemológico que nos requer outras ideias de feminilidades, pois ela não é apenas uma mulher, mas uma mulher com outros pertencimentos identitários que são fundamentais nas formas como a sociedade local se relaciona com ela: negra, classe média baixa, candomblecista, lésbica. Isso nos fez recorrer à noção de interseccionalidade3, já que falamos de uma pessoa que não só constituiuse perante uma representação de gênero, mas também de raça e de sexualidade, delimitada pela sua posição na estrutura social desigual do Brasil. Pretendemos com isso tentar compreender a questão: como a Mãe Érica reconstrói a sua vida e sua comunidade religiosa em uma sociedade que funciona estruturada em torno de valores como patriarcado, racismo e desigualdade social, uma vez que ela não está situada em posição privilegiada de poder? Mas essa é, também, uma história que se debruça sobre uma cultura religiosa ainda periférica no espaço sertanejo em relação às culturais religiosas dominantes. 3. Conforme Carla Akotirene (2019), o conceito de interseccionalidade foi criado por Kimberlé Crenshaw em 1989 para analisar a situação de múltipla vitimização e discriminação que as mulheres negras sofrem, sendo empurradas historicamente para as camadas economicamente desprivilegiadas. Conforme explica Akotirene, esse conceito passou a ser utilizado não somente em teorias científicas, mas também em discussões políticas, sobretudo de movimentos sociais e em discussões culturais, econômicas, sociais, filosóficas, etc. Explica que essas reflexões surgiram como parte da crítica ao movimento feminista que ainda estava centrado na perspectiva de mulheres brancas, burguesas e ocidentais. Nesse sentido, o movimento feminista não somente era incapaz de reconhecer as desigualdades a que estavam submetidas todas as mulheres, a partir de diferentes critérios de submissão, como também reproduzia as estruturas de exploração e segregação de outras identidades femininas que não correspondessem à identidade padronizada em suas reflexões. Assim, as intelectuais negras passaram a tecer críticas na perspectiva afrocentrada, elaborando categorias analíticas que pudessem melhor explicar suas situações de vida concreta na sociedade moderna..

(12) 12. Porém, pensar o sagrado é algo importante, pois, nas narrativas da nossa personagem, ele é quem fornece muitos argumentos que dão sentido às suas próprias memórias e identidades. Os universos sagrados têm sido objeto de pesquisa de muitos campos antropológicos e históricos, entre outras ciências humanas, que buscam entender os símbolos religiosos não de maneira estritamente teológica, ou de forma pitoresca, ou ainda como mera reprodução alienada da infraestrutura material. Eduardo Basto de Albuquerque (2007) afirma que ‘‘criou-se uma abordagem da religião distante da teologia, a História das Religiões, para dar conta das multiplicidades dos fenômenos religiosos do mundo’’ (ALBUQUERQUE, 2007, p. 37). Benatte (2008) vem reforçando como o estudo da história religiosa vem crescendo no Brasil e como tem se popularizado, trazendo novas tendências e novos conceitos. Assim, esse novo conhecimento representa uma abertura da sociedade brasileira ao reconhecimento da diversidade cultural e religiosa que lhe compõe, articulando experiências individuais e coletivas, produzindo novas narrativas que nos permitem melhor rever e questionar o conhecimento de nossa história a partir de problemáticas das religiosidades, ou seja, de como as pessoas lidam consigo e com o mundo a partir das noções e relações com o sagrado que elas professam. Aqui pensamos a religiosidade na perspectiva da história cultural, para identificar, analisar e problematizar esses símbolos enquanto produtos e produtores de relações de poder, construção de práticas, costumes e tradições que mobilizam sujeitos e grupos sociais ao longo dos espaços e dos tempos. Para dar seguimento a este trabalho foi preciso pensar os procedimentos a serem adotados. Devido a estrutura reduzida que compete a um artigo acadêmico, fazemos uso majoritariamente dos relatos orais produzidos por Mãe Érica em nossa entrevista gravada a partir das técnicas da história oral proposta pela historiadora Verena Alberti (2010). A história oral corresponde a uma necessidade científica do historiador em obter outras técnicas de pesquisa que o possibilitem preencher algumas lacunas deixadas por documentos escritos. Ela viabiliza o acesso à narrativa de um sujeito comum da sociedade e possibilita, de um lado, documentar as experiências que não estão registradas em documentos escritos oficiais e, de outro, perceber valores subjetivos que outras fontes não conseguem registrar..

(13) 13. A história oral é um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos, registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos, versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais, espaciais, conflituosas, consensuais (DELGADO, 2010, p. 15).. Mas a história oral é uma metodologia bastante complexa que não pode ser reduzida a “tapar buracos” de pesquisas. Desde a segunda metade do século XX até hoje, houve muita ampliação e amadurecimento de suas bases teóricas e metodológicas. Atualmente essa metodologia se coloca atenta a diversos aspectos das narrativas do sujeito, pois suas narrativas expressam relações de poder de bases históricas.. De modo geral é recomendável não pensar que a história oral serve exclusivamente para ‘‘tapar buracos documentais’’. Pelo contrário, relevar o valor das narrações como forma de vê-las ‘‘em si’’ é modo saudável de considerar a história oral (MEIHY; HOLANDA, 2013, p. 25).. Neste trabalho, desenvolvemos a tipologia de “história oral de vida” (ALBERTI, 2010), pois ela nos viabiliza explorar a narrativa da trajetória existencial do sujeito analisando seus relatos para produzir uma biografia. Assim, elaboramos um roteiro de entrevistas programado, mas aberto a novas possibilidades interpretativas criadas na interação com a entrevistada. ‘‘A história, como toda atividade. de. pensamento,. opera. por. descontinuidades:. selecionamos. acontecimentos, conjunturas e modos de viver, para reconhecer e explicar o que se passou’’ (ALBERTI, 2010, p. 13). Na verdade, é um ensejo para a prática de conhecimento histórico já que nos mostra as práticas passadas de acordo com a fala da personagem conforme os valores que ela atribui no presente às suas experiências ao longo do tempo. A história oral se fez de grande valia metodológica para a contextualização, problematização e compreensão da história de vida de Mãe Érica de Oxóssi em meio à história local. Contudo, esse processo não foi realizado de forma simples, porque uma operação historiográfica nunca o é. De acordo com Verena Alberti (2010), na realização de uma entrevista de história oral há dois autores: o entrevistador e o entrevistado, pois se é o entrevistado quem narra os processos históricos por meio de seu discurso, é o entrevistador quem direciona a entrevista e.

(14) 14. instiga o entrevistado a narrar suas próprias experiências. Portanto, toda entrevista é também uma relação de poder. Durante a gravação de nossa entrevistada, percebemos que Mãe Érica de Oxóssi pode ter ficado um pouco desconfortável em falar de alguns temas diante de uma inversão provisória das relações de poder que costuma ter. Ela tinha consciência de que sua narrativa não era produzida numa situação de conversa informal com alguma amiga, mas com uma pesquisadora, estudante do curso de História do campus Sertão da UFAL e também que essa biografia seria futuramente exposta, avaliada e publicada. Isso produz um impacto considerável, sobretudo, quando se pensa o Sertão alagoano. Também essa pesquisadora era, na verdade, uma de suas filhas de santo, uma abiã, alguém que pretende se iniciar no Candomblé. Nesse contexto, falar aspectos de sua vida pessoal e religiosa se constituiu numa atividade complexa, mas em que pesou a convivência para que houvesse confiança em relatar. Ainda assim a personagem usufruía de seu poder, retomando-o, podendo silenciar algumas informações de sua vida pessoal ou religiosa. Isso nos faz nos posicionar com relativa desconfiança diante de seu discurso que representa, mas que não reproduz a totalidade de sua vida. Estabelece uma noção de verdade sobre a sua vida, mas não a única e absoluta. Contudo, essa pesquisa não está buscando uma verdade que se passa na vida dessa pessoa, mas sim problematizar fatos acontecidos com uma pessoa comum, enxergando a entrevista como recortes de experiências, uma fonte, uma narrativa oral produzida em 2019 com todas as limitações e potencialidades que isso implica.. 2. Ensinar a menina a viver e a ser uma mulher: o contexto familiar na formação de Érica Santos. Durante os anos 1970, a seca e a falta de emprego assolavam fortemente o Nordeste. No sertão alagoano, no município de Olho D`água do Casado, situado à 271,4 km da capital, Maceió, e a 27,4 km do município de Delmiro Gouveia, um casal humilde de namorados, mestiços de índios e negros, sonhava em formar uma família e buscava meios para sobreviver à falta de emprego e à seca que afligiam o Sertão. Esses fatores fizeram com que em 1973 o jovem agricultor Neusvaldo Florêncio dos Santos migrasse para a cidade de São Paulo com o intuito de buscar.

(15) 15. novas oportunidades de trabalho e renda. Após um período morando sozinho nessa cidade, ele trabalhando como ajudante geral em metalúrgica, conseguiu juntar uma quantia suficiente para buscar sua namorada, Ivone dos Santos, para São Paulo a fim de se casar com ela. Neusvaldo e Ivone se casaram e tiveram três filhos: Emerson Alex Santos, Dário Santos e Érica Aparecida Santos. Todos nascidos naquela cidade onde seus pais passaram aproximadamente dez anos. Ali, na metalúrgica em que trabalhava Neusvaldo aprendeu o ofício de operador de máquinas enquanto sua esposa cuidava do lar e dos filhos. Em 1984 as irmãs de Dona Ivone, Aparecida e Zumira, pedem para que a família venha para ao Sertão de Alagoas, para ficar perto do grande grupo familiar. A fim de convencer o casal, articularam duas opções de emprego no sertão: a primeira era trabalhar como agricultor na roça da família em Olho D’água do Casado e a segunda era trabalhar na Fábrica da Pedra S/A Fiação e Tecelagem, já que a fábrica era muito importante para a economia da região na época e nela Neusvaldo podia exercer a função de operador das máquinas, ofício que aprendera na capital paulista. Desse modo, a família partiu rumo ao Sertão, porém por apresentar alguns problemas cardíacos, o pai não foi aceito para trabalhar na pretendida fábrica. Com a ajuda de alguns amigos ele conseguiu um emprego cidade de Petrolândia-PE, a 77 km de Delmiro Gouveia, exercendo a função de operador de máquinas na empresa Mendes Júnior. Sua família continuou situada na cidade de Delmiro Gouveia enquanto o pai trabalhava em Petrolândia. A irmã de Dona Ivone cedeu uma casa para ela passar uma temporada com sua família. Essa residência fica localizada no centro da cidade, na histórica Vila de Trabalhadores da Fábrica da Pedra, em frente à praça de eventos públicos, ao lado da Igreja Católica mais antiga de Delmiro Gouveia, dedicada à Nossa Senhora do Rosário. Nessa casa, muito bem situada no centro de espaço urbano, Dona Ivone começou a trabalhar vendendo roupas e cosméticos pela vizinhança a fim de complementar a renda familiar. Em 1994, Dona Ivone e Érica decidem entrar em contato com uma senhora conhecida popularmente como Lurde Gata que trabalhava no hospital da cidade e ficava responsável para fazer a adoção de crianças abandonadas pelas mães. Nessa conversa Dona Ivone mostra seu desejo de adotar uma menina para fazer companhia a Érica. Com poucos meses, Lurde Gata aparece na residência de Dona Ivone com um menino que foi deixado no hospital ao nascer e que já tinha sido.

(16) 16. recusado por três famílias. Dona Ivone e Érica sensibilizadas com a história da criança, decidiram o adotar. Seu Neusvaldo deu todo apoio à decisão da esposa e hoje Everson Walicy dos Santos é o irmão mais novo da família. Após sair da empresa Mendes Júnior por volta de 1993, os problemas de saúde impediram o Senhor Neusvaldo de conseguir outras vagas de emprego como operador de máquinas. Devido a isso, ele passou a trabalhar cultivando roças de outras famílias da região. O salário era muito baixo e isso obrigou o pai a levar os filhos e a filha para trabalhar na agricultura de modo a ajudar na renda familiar. Depois de algum tempo, o Senhor Neusvaldo conseguiu juntar dinheiro e comprar a sua própria terra. Nesse período, a família ficava sempre indo e voltando da zona rural para o centro urbanizado de Delmiro Gouveia, tendo de cuidar das duas casas: a da roça e a da vilinha de trabalhadores. As crianças foram criadas conforme os preceitos do Catolicismo. Érica nos conta que toda a sua infância foi voltada à educação escolar e ao ensino religioso cristão. A preocupação de sua mãe era de que aprendesse a ser uma “boa” menina, cristã. Ela sempre esteve junto com sua mãe envolvida nas atividades da Igreja e participando dos grupos de oração como catequese, Legião de Maria, entre outros. Segundo conta:. Minha mãe sempre me levou para a Igreja, íamos regularmente, todos os sábados, eu e meus irmãos, para a missa das crianças e aos domingos íamos com toda a família. Eu e meus irmãos fizemos catequese, crisma, somos batizados, já era tradição da família (Mãe Érica de Oxóssi, em entrevista concedida à autora em: 04 jun. 2019).. Dona Ivone também orientava os filhos para o trabalho doméstico, para a participação em grupos religiosos e o trabalho na agricultura. Como Érica cita na entrevista: ‘‘a família sempre foi simples, mas muito unida’’. A educação familiar que Érica recebera, de certa forma a treinava para muitos aspectos considerados fundamentais para a formação de uma mulher íntegra conforme a ótica das pessoas de origem humilde na região: ser cristã, saber realizar afazeres domésticos e cuidar do lar, ser uma boa esposa, ter estudos, ser trabalhadora e conseguir um bom emprego. Importa observar que, segundo nos narra, a sua mãe orientava todos os filhos a saber cuidar das atividades do lar e a buscarem bons empregos..

(17) 17. Mesmo com os filhos trabalhando na roça, Dona Ivone sempre os incentivou para estudarem a fim de que pudessem ter um bom emprego e não precisar mais trabalhar nas roças de ninguém. Érica pondera com satisfação que as orientações da mãe foram seguidas, pois Emerson Alex Santos tornou-se servidor público, Dário Santos tornou-se advogado, Everson Walicy Santos é autônomo e ela, Érica Aparecida Santos, atua sob contrato no setor público. Apesar dos conflitos da rotina familiar em casa, nossa personagem afirma que teve uma adolescência normal. Ela saía com seus amigos para passear, frequentava bailes, mas sempre sob a regulação da mãe, pois deveria ser uma moça de respeito. Estudou todo o ensino fundamental em escola pública e iniciou o ensino médio em escola particular, porém teve que desistir dos estudos para trabalhar no comércio local. Com seus pais adoentados, era a única da casa que trabalhava, o seu salário garantia o sustento da família e a mensalidade da escola dos irmãos Emerson e Dário. Seus principais empregos foram na Fábrica da Pedra, principal fonte de emprego ainda nos anos 1990 e, posteriormente, num posto de gasolina como frentista. Ela contou que saiu dos empregos por opção, para ajudar a cuidar da saúde da mãe. Érica narra que com a morte da matriarca, a família ficou ainda mais unida. Contudo, embora todos tenham sido preparados para cuidar do lar e dividir responsabilidades, Érica teve de assumir o lugar de única figura feminina no núcleo familiar e a partir daí passou a exercer outra feminilidade, especificamente domesticada: praticamente uma mãe. Ela passou a “cuidar” dos irmãos e dos afazeres domésticos, enquanto eles trabalhavam fora. Apesar da suposta igualdade de funções entre meninos e menina incentivada pela mãe, o modelo clássico de divisão de papéis sociais entre os gêneros acabou vencendo também neste núcleo familiar. Mas Mãe Érica de Oxóssi alega que os irmãos e o pai sempre estiveram cuidando uns dos outros, cada um de sua forma, embora reconheça que as principais responsabilidades de orientação familiar recaem sobre ela, que atua como principal referência de acolhimento entre os irmãos. Assim, Érica foi sendo construída para o meio social local. De menina à mulher: cristã, cuidadora do lar e da família, alguém que possui estudos e não pode se abster de trabalhar para não ficar dependente. Mas, nesse processo histórico, nem tudo foi só concordâncias, o processo foi não foi tão harmônico assim..

(18) 18. 3. Consagrando-se Yalorixá e abrindo um Ilê Axé 4 em Delmiro Gouveia: conflitos e estratégias de enfrentamento de Mãe Érica de Oxóssi. Para pensarmos a experiência religiosa de Érica, precisamos entender que o contexto social em que ela nasceu e foi criada era bastante hostil à religião que ela escolheu para a própria vida. O primeiro contato com o Candomblé aconteceu aos onze anos de idade quando conheceu alguns amigos de uma de suas tias que eram candomblecistas e residiam em Aracaju-SE. Eles estavam de visita na casa da sua tia Afonsina em Olho D’água. Na ocasião, havia uma consulta espiritual sendo realizada e ela conheceu duas entidades: Zé Pelintra e Tranca Ruas5. A partir desse momento, Érica nos conta que decidiu conhecer um pouco mais da religião porque sentiu o desejo de futuramente participar.. Eu quis participar porque achei muito bonito e me identifiquei com a religião, só que eu quis esperar ficar de maior pra falar pra minha família, porque minha mãe não aceitava, mas mesmo quando eu completei dezoito anos ela não aceitou, quis me colocar pra fora de casa, não aceitava eu na casa do pai de santo, não me aceitava, foi um inferno uma confusão (Mãe Érica de Oxóssi, em entrevista concedida à autora em: 04 jun. 2019).. Quando o tema era a religião afro-brasileira, a leitura de uma família unida é interrompida. Surge o conflito. Sua mãe não aceitava a filha no Candomblé porque considerava como uma religião do ‘‘demônio’’ ou do ‘‘diabo’’, uma religião exclusiva para adorar o “Satanás”. Segundo a entrevistada, esses termos de demonização que estabelecem um valor de inferioridade aos cultos afros, conforme a perspectiva cristã, eram frequentes não só em sua casa, mas em vários ambientes da cidade. Esse aspecto discriminatório, explica ela, a não aceitação das famílias dos jovens que decidem fazer parte do Candomblé, é muito comum em Delmiro Gouveia ainda hoje, pois quase todos os filhos de santo de sua casa já sofreram ou sofrem com esse tipo de resistência familiar. No entanto, se a mãe a renegava, a ameaça e. 4. Casa de axé, como são referidos os terreiros de Candomblé. Expressão cunhada em yorubá, língua litúrgica desta religião. 5 Zé Pilintra e Tranca-Ruas são nomes de entidades da linhagem de Exú Catiço, ou seja, são diferentes do Exu orixá, africano. Os Catiços são ancestrais que ainda cumprem missão espiritual de orientações, curas etc. e falam em língua portuguesa..

(19) 19. punia, sempre deixando claro que era contra essa decisão, a tia Afonsina dava apoio à sobrinha. A escolha de Érica, conforme a sua narrativa, não esteve embasada em condição social, não foi para resolver problemas de pobreza, embora não necessariamente possa ter deixado de ter relação com esse aspecto. Ela diz que foi uma espécie de encanto que os catiços lhes causaram. Essas entidades, segundo a cosmologia afro-brasileira, possuem comportamento que se aproxima das práticas de pessoas comuns: cantam, dançam, dão conselhos e broncas, sorriem, fumam, bebem, etc. Os atributos sobrenaturais que lhes conferem sacralidade, são, no entanto, a sabedoria ancestral que a eles se atribui, bem como seu poder de resolver problemas de doenças, vida material, espiritual e afetiva. A escolha de Érica, na ótica dos cultos afro, explica-se enquanto “vocação”, “destino” ou “missão”. Mas em termos da história cultura ela se explica também pela existência de outras referências, identidades e práticas religiosas dentro do seu grande grupo familiar, no espaço sertanejo, pois essa tia, nas palavras de Érica, era uma mestiça, uma mulher cabocla/índia que estava acostumada a praticar rituais e viver fenômenos sagrados diferentes, para além do cristianismo convencional. Deste modo, e escolha de Érica pelos cultos afro representava um contraponto, um outro discurso em comparação à toda educação católica, disciplinadora do corpo, da subjetividade, da “alma”, que recebera desde pequena. Aos onze anos de idade, Érica já estava fazendo uma opção por um projeto de vida divergente daquele para o qual foi insistentemente preparada dentro do seu núcleo familiar. Aos dezessete anos Érica fez seus primeiros processos iniciatórios na religião: lavação de cabeça6 consecutivamente tomar um borí7, na casa do Babalorixá8 Edson Francisco do Nascimento, Orunkó9 Omin Adilolá (já falecido), na cidade de Delmiro Gouveia. Esses rituais a oficializaram como filha de santo na condição de abiã no ano de 1997. Segundo relata, a essa época, ela já não ia mais. 6. Lavação de cabeça: ritual religioso feito com pessoas que pretendem fazer parte do Candomblé. Ritual para alimentar orí, orixá individual que rege a cabeça de cada indivíduo, responsável pela sensatez das decisões e boa condução do ser humano na sua vida material, espiritual, afetiva, psicológica, etc. Nesse sentido, o ritual de Borí ou Oborí é comumente traduzido como “dar de comer à cabeça”. O objetivo deste ritual, que pode ser aplicado não só a pretensos iniciantes, mas também a clientes das casas de Candomblé, caso seja necessário, é fortalecer e equilibrar o orí de cada indivíduo para que eles tenham condições de melhor se conduzir na vida, com sabedoria, leveza e carregado de energias e foças positivas, chamadas de Axé. 8 Sacerdote, comumente chamado também de “pai de santo”. 9 Orunkó: nome em Iorubá que o adepto recebe no ato iniciático. 7.

(20) 20. com tanta frequência à Igreja Católica. Esse foi um dos motivos dos conflitos rotineiros dentro de casa durante sua adolescência. A princípio a família ficou contra sua decisão, mas ao perceber que ela não iria abrir mão do Candomblé, decidiram respeitar sua escolha. Logo mais, com a morte da sua mãe, seu irmão Dário também decidiu fazer parte do Candomblé. Ele já era adepto de outros grupos como maçonaria e o grupo espírita de Allan Kardec, existentes na cidade. Interessado em experiências fraternas e sagradas diferentes daquela predominante em Delmiro Gouveia, ele também começou a conhecer e se familiarizar com o Candomblé e gostou. Contudo, Érica conta que ficou um período de aproximadamente dez anos afastada do Candomblé por não conseguir se adaptar bem às normas da casa de pai Edson: ‘‘nesse período tive muita dificuldade pra me adaptar as suas regras por causa da sua arrogância (...) e eu decidi me afastar, foi nesse período, longe que engravidei e tive meus filhos’’. Após se afastar e não ter procurado nenhuma outra casa de axé, Érica decidiu fazer parte da igreja Assembleia de Deus junto com seu marido Valdomiro Delfino da Silva, que era evangélico. Mas ela conta que só passou ali, cerca de três meses porque não se identificou com os ensinamentos da igreja. Depois desse período ela decidiu frequentar a Umbanda em Maceió. Quando ela decidiu retornar aos cultos afro, foi acompanhada pelo seu marido, que deixou de ser evangélico, e pelos seus filhos. Sob sua liderança, sua família ingressava nos cultos afro, mas ela diz que não se identificou muito com a Umbanda, pois sentia falta de algo e pouco tempo depois decidiu retornar ao Candomblé.. Quando eu fui pra a Umbanda eu decidi não parar mais e não parei. Tive uns problemas porque o pai de santo chegou a falecer aí eu tive que passar pra outra casa, pra fazer o procedimento de tirar a mão do falecido da cabeça. Decidi tomar obrigação nessa casa, mas não deu certo porque o pai de santo queria mudar meu santo e eu não aceitei porque queria mudar meu santo pra Oxum e meu santo é Oxóssi (Mãe Érica de Oxóssi, em entrevista concedida à autora em: 04 jun. 2019).. Em meados de 2009 ela voltou para a casa de pai Edson novamente, dessa vez para ser yaô10. Ela passou dois anos na casa, mas com alguns desentendimentos com irmãos de santo deixou essa comunidade, passou mais um 10. Iniciada..

(21) 21. ano afastada da religião. Só depois em 2013 voltou ao candomblé já fazendo parte da casa do babálorixa Humberto Schinayder orunkó Kêlêbájôsì da cidade de Aracaju-SE. Ela conheceu este sacerdote através de outras casas que visitava. Afirma que se identificou com a forma que o babálorixa cuida do axé, dos fundamentos em geral do seu terreiro. Ali ela pagou obrigações religiosas e recebeu seu Deká11 no ano de 2013, porém só abriu sua própria casa de axé em 2014, na mesma casa em que mora desde sua infância no centro da cidade. Conforme ela relata, nenhum familiar fez objeção com a abertura do terreiro. A única que sempre foi contra foi sua mãe Dona Ivone, mas a mesma já havia falecido quando ocorreu a abertura do terreiro. Os problemas que surgiram foram com a vizinhança que fez abaixo assinado e tentaram entrar com processo judicial para o fechamento da casa alegando incômodo pelo som alto das cerimônias, que fazem usos de atabaques, e a não aceitação de um terreiro de Candomblé naquele local. Importante frisar que a vizinhança não mora apenas ao lado do terreiro, mas também em frente à praça de eventos da cidade, onde ocorrem os grandes shows públicos que duram noites inteiras e amanhecem dias emitindo som com alta potência. Contudo, muitos vizinhos admitiram também que eram contra a abertura de um Candomblé naquela rua. Mas com a orientação do irmão Dário Santos, candomblecista, advogado, que trabalha no Fórum da cidade, ela passou a conhecer seus direitos perante a Constituição Brasileira e demais leis posteriores que garantem os direitos da população negra e afro-religiosa. Nesse momento, a yalorixá buscou conhecer e pedir orientações, apoio e ações oficiais de outras pessoas ligadas ao Forúm e à Secretaria de Cultura de Delmiro Gouveia e Secretaria de Cultura do Estado de Alagoas. Outro momento desagradável ocorreu em 2016 no período de campanhas eleitorais para os poderes municipais. No município de Olho D’água do Casado-AL, um pretenso candidato às eleições naquele município iniciou um processo de “cerco” e exposição pública de uma senhora e sua filha por serem parentes de Mãe Érica de Oxóssi. Ele liderou um grupo que a chamava de macumbeira entre outras coisas. Esse episódio foi tema de postagens em redes sociais como o Facebook tendo 31. 11. A entrega do Deká é o momento em que um iniciado recebe os seus direitos a ser sacerdote ou sacerdotisa do Candomblé, podendo abrir uma nova Casa de Axé..

(22) 22. curtidas, 57 comentários e 30 compartilhamentos. Transcrevemos o relato abaixo, publicado em 01 de agosto de 2016 sobre o caso:. CASO DE RACISMO E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA EM OLHO D’ÁGUA DO CASADO SERTÃO DE ALAGOAS Na tarde desse último domingo, dia 31 de julho de 2016, mais um caso de racismos e intolerância religiosa aconteceu no sertão de Alagoas. A vítima, uma senhora de 58 anos e a filha estavam chegando em sua residência depois de um dia de trabalho na roça, quando foram recebidas com agressões verbais e ameaças físicas de um grupo de pessoas acompanhadas por Luciano Bidinha candidato à prefeitura de Olho D’água do Casado pela coligação dos partidos, PSD - Partido Social Democrático e PSC - Partido Social Cristão, no mesmo dia havia acontecido a convenção desses partidos que definiu Luciano Bidinha como candidato à prefeitura pela coligação. A vítima descreve que quando chegou no portão de sua casa, ela e sua filha começaram a ser xingadas por Luciano Bidinha e seu grupo, usando os termos de “...rapariga, nega safada, vagabunda, quenga sem vergonha, macumbeira, cachorra vira-lata...” além dessas palavras segundo a senhora, eles empunhavam pedaços de pau ameaçando agredi-las, elas se trancaram dentro de casa com medo das ameaças que duraram do fim da tarde, cerca de 17 horas, até o começo da noite as 19 horas. De acordo com a senhora o motivo desse episódio, está no fato dela ter familiares do candomblé e por isso é taxada pejorativamente na rua onde mora e por outras pessoas, como “macumbeira”, o que teria despertado o ódio do grupo de pessoas que enfurecidas juntamente com Luciano Bidinha foram agredir e ameaçar as vítimas em questão. O caso se trata nitidamente de RACISMO e INTOLERÂNCIA RELIGIOSA, as vítimas não são do Candomblé, mas o fato de terem familiares da religião incomodou a um pequeno grupo de pessoas a ponto de fazem esses atos criminosos, o crime de racismo é evidente, segundo a vítima elas foram xingadas de “...rapariga nega safada...” entre outras agressões racistas. Temos que lembrar a Luciano Bidinha candidato à prefeitura de Olho D’água do Casado AL pelos partidos PSD e PSC, e seu comboio, que racismo no Brasil é crime (Lei 7716/89) e isso faz dele um criminoso em nosso país que ironicamente ainda pleiteia um cargo político. O caso está sendo encaminhado às autoridades competentes com a articulação da Yalorixá, Mãe Érica de Oxóssi, e sua casa o Ilê Axé D´Abalaxé Alayê Odé Inrilé Nófádêmírêfãn.. O caso foi levado oficialmente às instâncias competentes. Trâmites legais foram feitos já que esse acontecido teve grande repercussão na cidade e região circunvizinha. Contudo, o acusado alegou que teria agido daquela forma porque.

(23) 23. estava embriagado e enfurecido por questões políticas que estavam acontecendo nos dias anteriores. O caso foi arquivado. De acordo com Mãe Érica de Oxóssi:. Eu e Dário buscamos nossos direitos no Fórum daqui da cidade para nos ajudar a resolver esse problema, mas infelizmente não deu em nada. Quem ajudou na divulgação na sociedade foi meu filho de santo junto com o Abí Axé, aí alguns amigos entraram em contato comigo (Mãe Érica de Oxóssi, em entrevista concedida à autora em: 04 jun. 2019).. Ela cita o que aprendeu sobre a lei nº 16/2001, que garante a liberdade religiosa de cada indivíduo e o direito de não ser julgado, discriminado ou perseguido por motivos das práticas religiosas que venha a proferir. Foi nas conversas com seu irmão, Dário, que ela aprendeu sobre a lei e também sobre o Estatuto da Igualdade Racial (2010), que assegura sua liberdade religiosa, além de outros direitos étnicos-raciais, sociais, individuais e coletivos. Podemos perceber que a forma que vizinhos e outras pessoas conhecidas abordam, se afastam ou se sentem incomodados, é uma maneira de legitimar que naquele espaço habita uma instituição religiosa até então desconhecida para alguns, porém mesmo sem aceitação de todos, o terreiro existe e é algo atuante no meio social da região. A maioria dos seus filhos de santo são da cidade de Delmiro Gouveia, no entanto tem filhos de santo nas cidades de Inhapi-AL, Paulo Afonso-BA, Aracaju-SE e São Paulo-SP. A sua casa tem recebido pessoas de perfis diferentes, o que amplia em suas articulações políticas e potencializa suas ações para além da esfera espiritual. O texto transcrito acima foi escrito e publicado por um filho de santo da casa, um abiã, estudante do curso de História, na UFAL, campus do Sertão que é pesquisador da cultura afro-brasileira, cantor e ex-bolsista do Abí Axé Egbé - Grupo de Estudos, Pesquisa e Arte, que o instrumentalizou científica e politicamente a respeito das lutas históricas do povo negro. Além dos trabalhos espirituais, ela desenvolve uma série de trabalhos pedagógicos, políticos e culturais na cidade, como a participação em reuniões do Àbúrônilê, uma célula filial no Sertão, do movimento de juventude de terreiros de Alagoas. Até hoje as poucas reuniões realizadas nessa célula do movimento aconteceram no terreiro de Mãe Érica. Ela também foi integrante da primeira geração do Abí Axé Egbé, hoje Equipamento Cultural da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Sua presença está registrada além de fotos, também no relato que.

(24) 24. deu no primeiro documentário do grupo disponível no canal do grupo no YouTube. Também enquanto integrante do Abí Axé Egbé ela fez a sua primeira visita à Serra da Barriga localizada no município de União dos Palmares-AL, no dia 20 de novembro de 2013. A soma dessas experiências, aliada ao privilégio de ter uma Casa de Candomblé aberta no centro da cidade, o que torna a casa muito acessível a visitantes, foi a tornando uma referência para além do público candomblecista. Assim ela foi convidada a ser palestrante em eventos de escolas públicas da cidade e na UFAL, recebe grupos de estudantes das escolas públicas e universitários para visitação pedagógica em seu terreiro e participou do 2º Encontro e 1ª Jornada Científica de Comunidades Quilombolas e Povos Tradicionais de Terreiro, ocorrido no campus do Sertão em 2016. Ela sempre participa de eventos acadêmicos. Quando não pode, manda algum representante da Casa, como o fez na ocasião do Fórum Popular da UFAL promovido em julho de 2019, no campus A. C. Simões, Maceió. Mas se Érica se reconstruía enquanto mulher, esposa, mãe e yalorixá, ela ainda não tinha construído sua identidade racial enquanto negra. Tal fato, no entanto, não garantiu que ela nunca tenha recebido um tratamento discriminatório por conta da cor da pele e de seus aspectos culturais, como vimos, embora nem sempre tenha percebido as práticas das quais foi vítima, enquanto racismo. Mas segundo relata, ela começou a se ver na sociedade enquanto mulher negra apenas quando recebeu seu Deká em 2013, quando aconteceram os problemas já citados. Ao buscar a ajuda das pessoas e entrar em contato com o discurso universitário ela percebeu que a complexidade dos problemas que a envolviam dizia respeito primeiramente à raça. A partir de então, ela passou a reconhecer o tom escuro de sua pele e passou se reconstruir, não mais enquanto “moreninha”, mas a se afirmar enquanto mulher negra nos espaços públicos.. Não vejo problema em levantar minha cabeça e dizer que sou negra e candomblecista, mas é muito difícil levantar a cabeça e decidir fazer alguma coisa aqui nessa cidade quando se é negra, candomblecista e hoje pela minha opção sexual por ser lésbica também, mas eu não ligo pra isso não (Mãe Érica de Oxóssi, em entrevista concedida à autora em: 04 jun. 2019)..

(25) 25. Por essas situações de dificuldades e/ou preconceito que ela já passou, é que cobra dos filhos de santo que estudem e trabalhem, que busquem adquirir conhecimento para ter um bom emprego e não passar por determinadas situações que a mesma já passou.. O que eu cobro aqui na casa é que todos estudem, que façam faculdade, que procurem sua independência porque religião nenhuma você entra com propósito de enricar ou com propósito de conseguir alguma coisa, o que eu sempre passo para os meus filhos é que aqui na roça a gente vem buscar paz espiritual (Mãe Érica de Oxóssi, em entrevista concedida à autora em: 04 jun. 2019).. Atualmente boa parte dos filhos de santo trabalham ou estudam, buscaram o acolhimento no Ilê12 por amor ao sagrado, buscando novos ensinamentos e aprendizagens para suas vidas práticas já que avaliam as representações religiões como legítimas para suas memórias e identidades sociais. Um fator que surge na entrevista, mas que à vista da pesquisadora ainda pareceu ainda deixar a entrevistada um pouco desconfortável foi o tema de sua sexualidade, que fora publicamente assumida há pouco tempo e lhe atribui outra carga política no sertão. Por isso não exploramos essa temática neste trabalho ainda. Mas ponderamos a importância do momento em que é consagrada Yalorixá e abre seu Candomblé em Delmiro Gouveia. Nesse momento, muitos desafios lhes fizeram pensar em diversas estratégias de enfrentamento ao racismo e à intolerância religiosa, bem como a repensar sua existência a partir de dados concretos e a reconstruir as suas identidades a custo de muitas lutas.. 4. Considerações finais. Este trabalho produziu uma breve narrativa sobre a história de vida de Mãe Érica de Oxóssi, conhecida Yalorixá do Sertão alagoano, a partir de uma análise sobre suas memórias e seus relatos orais. As leituras sobre sua vida mostram que o processo de construção de suas identidades foi complexo, conflituoso e permanece aberto a rearranjos de acordo com as necessidades concretas que lhes possam aparecer em forma de desafios. É. 12. Casa em Iorubá, língua litúrgica do Candomblé..

(26) 26. assim que ela se fez, pela experiência prática, pela produção de suas memórias e de seu discurso, uma cidadã que oscila entre uma existência comum vitimizada por atos de violência, e uma existência relevante enquanto liderança religiosa que realiza trabalhos espirituais para sua comunidade e seus clientes, mas também políticos, culturais e pedagógicos na cidade. Para Mãe Érica de Oxóssi, não é fácil, mas é preciso se posicionar de forma resistente,. consciente. e. estratégica. enquanto. mulher,. sertaneja,. negra,. candomblecista e lésbica, numa cidade que defende valores totalmente opostos às cargas semânticas ativadas em suas identidades, o que a coloca num lugar fora das esferas de privilégios sociais locais. Para enfrentar o racismo, ela constrói diferentes laços de solidariedade que alcançam pessoas e instituições para legitimar seus direitos sobre questões diversas, envolvendo-se constantemente nos diferentes meios, eventos e processos sociais locais. Outra estratégia que enfatiza é a exigência que faz para que os filhos de santo estudem e se formem, já que consequentemente, “pessoas estudadas são pessoas mais conscientes” para, por exemplo, combater o racismo e a intolerância religiosa e ajudar em futuros problemas judiciais que venham atingir a comunidade religiosa. Nesse sentido, considera ela, todos ganham enquanto coletividade com a forma que atua ou pretende atuar na sociedade. Esse aspecto mostra como demonstram os estudos recentes de Irinéia Santos (2014) e Ellen Santos (2018) que as religiões afro-brasileiras em Alagoas se reconfiguram na atualidade e suas atuações vão muito além da pretensão espiritual ou sagrada. Elas se politizam e adentram nos espaços públicos, ocupando legitimamente seus lugares de fala e produzindo agendas de lutas. Este estudo parte do exemplo analítico de uma história de vida para nos ajudar a entender que esse fato não acontece apenas na capital alagoana, mas também, no Sertão. Contudo, só futuros trabalhos poderão trazer mais dados e nos fazer compreender de modo mais amplo a diversidade de sujeitos, processos, conflitos, conteúdos e formas que tem tomado a resistência dos sertanejos candomblecistas..

(27) 27. 5. Referências. Fontes primárias SANTOS, Érica Aparecida. Entrevista concedida à autora em: 04 jun. 2019. POSTAGEM NO FACEBOOK de Tiego Ribeiro, em 01 de agosto de 2016.. Bibliografia AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Polém, 2019. ALBERTI, V. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. ALBUQUERQUE, E. Da história religiosa à história cultural do sagrado. Ciências da religião – História e sociedade, São Paulo, v. 05, n. 05, 2007. BENATTE, A. A nova história religiosa: a propósito de um livro recente. Projeto História, São Paulo, v. 37, 2008. BRASIL, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Vidas perdidas e o Racismo no Brasil. Brasília: 2013. CANDAU, J. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2014. DELGADO, L. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. LE GOFF, J. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. MEIHY, J.; HOLANDA, F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2013. RAFAEL, U. Xangô Rezado Baixo: religião e política na primeira república. São Cristóvão: Editora UFS; Maceió: EDUFAL, 2012. SANTOS, E. “Àbúrò N’ilê” rede de juventude de terreiro de Alagoas: a formação histórica da juventude de terreiro alagoana (2014/2015). 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História) – Universidade Federal de Alagoas, Delmiro Gouveia-AL. SANTOS, I. O axé nunca se quebra: transformações históricas em religiões afrobrasileiras, São Paulo e Maceió (1970-2000). Maceió: EDUFAL, 2014. SILVA, R. Discriminação múltipla como discriminação interseccional: o direito brasileiro e as intersecções de raça, gênero e classe. 2014. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Faculdade de Direito, Porto Alegre..

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