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Conhecimento, ceticismo e alternativas relevantes em Dretske 1

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Academic year: 2021

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Tradicionalmente tem sido defendido que um sujeito S sabe que p quando as seguintes condições, tomadas conjuntamente, estiverem satisfeitas:

1) S acredita que p 2) p é verdadeira

S tem boas razões para crer que p ou está justificado em crer que p.

O entendimento do que está compreendido em cada uma dessas condi-ções foi objeto de muita controvérsia na história da epistemologia e o de-bate permanece aberto. A despeito das controvérsias, no tocante à terceira condição, tem sido admitido mais amplamente que uma “boa razão para crer que p” deve ser entendida como uma razão capaz de assegurar ou ga-rantir que p. Essa garantia pode ser concebida através do estabelecimento de uma vinculação indissociável entre as evidências ou razões para p e a verdade de p. Isso seria possível, a princípio, desenvolvendo uma descrição da justificação onde as razões que oferecemos para nossas alegações devam ser tão boas a ponto de garantir que todas as possibilidades de erro estejam excluídas pela evidência sensível disponível. Assim, um sujeito S saberia que p se, tendo uma crença, essa crença for verdadeira e se as razões para essa mesma crença forem capazes de garantir p através de ~q (onde q representa o conjunto das alternativas incompatíveis com p). A exigência, ainda que assegure inegavelmente o conhecimento, carrega consigo um preço bastante

Conhecimento, ceticismo e alternativas

relevantes em Dretske

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FLÁVIO WILLIGES

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alto: a limitação da esfera daquilo que comumente admitimos como sen-do conhecimento a um pequeno conjunto de proposições: as proposições auto-evidentes. A razão para essa conclusão é bastante simples: se hipóte-ses céticas forem hipótehipóte-ses inteligíveis (como parecem ser), dado o que foi dito acima, S não poderia asseverar legitimamente que sabe p. Uma hipótese cética é uma hipótese capaz de anular ou cancelar as melhores evidências disponíveis. Elas criam um cenário onde podemos ter boas razões para nos-sas crenças, mas esnos-sas razões sozinhas seriam compatíveis com a falsidade das nossas crenças. Hipóteses céticas tornam as evidências empiricamente neutra, ou seja, fazem com que as evidências emudeçam quando a ques-tão é determinar a verdade ou falsidade de nossas crenças. O argumento do sonho (apresentado originalmente por Descartes nas Meditações), por exemplo, mostra isso muito claramente: eu continuaria tendo as mesmas experiências sensíveis e evidências, mesmo sendo falso que estou sentado diante do fogo. Assumindo que uma boa razão é aquela que elimina todas as alternativas incompatíveis e admitindo, ainda, que hipóteses céticas são possibilidades de erro plausíveis, o teórico do conhecimento deverá optar entre três possibilidades distintas: (1) aceitar a concepção da justificação apresentada acima e admitir que tal concepção da justificação não pode ser humanamente satisfeita, o que implicaria, em última instância, em admitir que não sabemos nada sobre o mundo ao redor ou sabemos muito menos do que costumamos admitir; (2) negar que hipóteses céticas sejam possibi-lidades de erro legítimas. (3) recusar a concepção da justificação epistêmica que estabelece que, para que um sujeito S saiba que p, S deve ser capaz de eliminar todas as possibilidades em que não-p (ou alternativas a p). A pri-meira dessas possibilidades tem sido pouco assumida entre epistemólogos, embora versões dessa caracterização possam ser encontradas na história da epistemologia. A segunda possibilidade tem sido perseguida com resultados relevantes entre os seguidores de Wittgenstein, especialmente Putnam, Ca-vell, Travis e Conant. A terceira possibilidade tem conduzido, num sentido radical, à análises confiabilistas e externistas do conhecimento, análises que, num sentido mais radical, sustentam que o conhecimento não pressupõe o

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acesso epistêmico do sujeito às razões e, num sentido menos radical, origi-nou as chamadas abordagens do conhecimento a partir da noção de “alter-nativas relevantes”, aquele tipo de abordagem que se caracteriza por susten-tar que o conhecimento e a justificação pedem a exclusão de uma número limitado de alternativas consideradas, por algum critério, relevantes. É essa última tradição de abordagem do conhecimento que cabe aqui analisar.

A teoria das alternativas relevantes nasceu como uma reação às con-cepções infalibilistas do conhecimento, precisamente aquelas concon-cepções que sustentam que, para saber que p, S deve ser capaz de eliminar todas as contra-possibilidades a verdade de p. Os defensores da relevância afir-mam que nem todas as possibilidades de erro dispõem de um mesmo grau de importância ou relevância para saber. O conjunto das possibilidades de erro, argumenta-se, deveria ser desmembrado entre possibilidades ou al-ternativas relevantes e irrelevantes e, para saber, seria necessário eliminar mediante evidência apenas as alternativas de erro relevantes. O diagnóstico do ceticismo oriundo da concepção do conhecimento baseado na noção de alternativas relevantes é que o teórico (cético) do conhecimento, ao exigir a eliminação de todas as possibilidades de erro, estaria sendo vítima de uma confusão, uma vez que nem todas as possibilidades de erro possuem um mesmo grau de relevância para saber. Contra o cético, seria suficiente mos-trar, dessa forma, que um determinado conjunto de alternativas, no interior do qual estariam incluídas as hipóteses céticas, seria irrelevante para saber. O grande problema da agenda dos defensores de uma concepção da relevância consistiu, então, em precisar critérios de relevância. Diferentes filósofos con-tribuíram para essa tarefa. Nesse artigo, examinarei as três principais formu-lações da relevância apresentadas por Dretske durante o período que cobre os anos de 1970 até 1998: Epistemic Operators, Contrastive Statements e The Pragmatic Dimension of Knowledge. Nesse textos, Dretske formulou pelo menos três critérios distintos para considerar uma alternativa R relevante para saber que p: i) a existência de razões positivas ou indícios para pensar que R pode ser o caso. Se não existem razões positivas para tomar uma al-ternativa R como relevante, R torna-se irrelevante (uma mera

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possibilida-de) para saber que p; ii) R é relevante para saber que p, quando R é uma possibilidade incompatível próxima ao estado de coisas caracterizado por p; iii) R faz parte do conjunto de possibilidades competitivas significadas pelo falante. Nessas três caracterizações, estão incluídos critérios lógicos, sociais e lingüístico-pragmáticos para o estabelecimento da noção de relevância. No que segue, eu farei uma exposição geral da fundamentação que Dretske deu a essas diferentes versões da relevância e, no final, procurarei desenvol-ver uma crítica geral da proposta e avaliar seu impacto para o ceticismo. A partir da análise dos diferentes critérios esboçados nesse período, procu-rarei argumentar que a abordagem das alternativas relevantes de Dretske é válida para pensar as condições que nos legitimam a dizer que sabemos que p, embora, do ponto de vista das condições do conhecimento, p possa ser falso ou, o que é o mesmo, cumpridas as exigências impostas pela análise do conhecimento a partir das alternativas relevantes, ainda é possível que não saibamos aquilo mesmo que dizemos saber. Em última análise, isso significa dizer que a abordagem do conhecimento a partir da noção de alternativas relevantes de Dretske não consegue mostrar que possibilidades céticas são irrelevantes para saber. Elas mostram suficientemente bem que são ilegíti-mas ou irrelevantes para a asserção justificada, ilegíti-mas não para saber.

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epistêmico

A abordagem das alternativas relevantes de Dretske tem em comum com outras versões das alternativas relevantes a recusa da tese de que o conhe-cimento exige a eliminação de cada possibilidade de erro, cada alternativa àquilo que alguém diz ser o caso. O que importa é a exclusão das alternativas relevantes. No entanto, o que deu destaque à epistemologia da relevância de Dretske foi o fato de vir acompanhada de uma discussão inteiramente inovadora: a tentativa de vincular a solução do problema do ceticismo sobre o conhecimento do mundo exterior à recusa de um princípio que estaria na base dos argumentos céticos: o closure principle (doravante, princípio do

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fechamento epistêmico). Nessa seção, meu objetivo é mostrar que a com-preensão da doutrina da relevância esboçada por Dretske em Epistemic Operators supõe o entendimento do seu projeto de negação da validade do princípio do fechamento epistêmico.

O princípio do fechamento pode ser formulado assim: Se S sabe que p e sabe que p implica q, então S sabe que q2. Como é possível reconhecer,

ad-mitir o princípio significa adad-mitir a possibilidade de extrair dedutivamente do conhecimento já possuído outros conhecimentos que são consequência lógica do conhecimento antecedente. Aparentemente não há nenhuma boa razão para rejeitar a validade desse tipo de processo inferencial. Nossas in-tuições corriqueiras acerca da capacidade humana de realizar inferências dedutivas a partir daquilo que já sabemos parece confirmar a validade do fechamento epistêmico. Se S sabe, por exemplo, que fumantes desenvolvem enfisema pulmonar e sabe que enfisema aumenta o risco de parada cardíaca, S sabe que fumantes estão mais expostos a acidentes cardíacos. Consideran-do a intuitividade da admissão desse tipo de princípio, não há, aparente-mente, nenhuma boa razão para abandoná-lo3.

As dificuldades em torno do princípio começam a aparecer, no entanto, quando lançamos atenção para nossa incapacidade para fornecer contra--evidências à verdade de hipóteses de erro remotas e muito especiais como, por exemplo, as hipóteses céticas. Dretske notou os argumentos céticos mais comuns na literatura epistêmica costumam pressupor a validade desse princípio. Uma forma bastante promissora de repudiar o ceticismo consiste, portanto, em rejeitar o princípio que está na base dos argumentos céticos. Um exemplo de Dretske pode ajudar a ilustrar esse ponto.

Imagine que alego saber uma proposição qualquer p como esta: “a pa-rede diante de mim é vermelha”. A evidência que tenho para saber é a per-cepção visual da parede. Contra essa alegação, o cético pode argumentar, valendo-se de uma hipótese cética especial (q): “como sabes que aquilo que vês não é uma parede branca habilmente iluminada por uma luz verme-lha?” Aplicando o princípio, para saber que p seria necessário saber que ~q, isto é, eu deveria saber que não é verdadeiro que estou vendo “uma parede

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branca habilmente iluminada por uma luz vermelha”. Porém, com base na evidência disponível, não é possível rejeitar a hipótese cética, pois a evidên-cia é compatível com a verdade de p e de q. Logo, não posso saber que p. O exemplo ilustra claramente que, usando o princípio do fechamento epistê-mico, podemos chegar a uma conclusão cética4. Em vista disso, qualquer

tentativa de opor-se ao ceticismo parece exigir um ajuste de contas com esse mesmo princípio. É essa a principal preocupação de Dretske em Epistemic Operators.

A essência da recusa do fechamento epistêmico por parte de Dretske con-sistiu em mostrar que o princípio admite contraexemplos. Com base numa exploração geral desses contra-exemplos, Dretske considerou possível sus-tentar que as consequências lógicas (dos principais operadores epistêmicos) não são transmitidas integralmente através da dedução. Em outras palavras, Dretske procurou mostrar que o conhecimento se transmite através da im-plicação, mas essa propriedade não é válida para todas as consequências ló-gicas daquilo que dizemos quando usamos operadores epistêmicos como “eu sei que...’, “eu tenho boas razões para crer que....” ou “eu creio que...’. Há, portanto, segundo Dretske, uma restrição no domínio de abrangência (pe-netratividade) dos operadores epistêmicos e essa restrição estaria amparada em situações ou casos intuitivos que indicariam que o operador epistêmico não se transmite por todas as conseqüências lógicas daquilo que se diz sa-ber. Fazendo uso de um modo de falar pouco peculiar, Dretske apresentou sua tese da não-transmissão das consequências lógicas através da dedução envolvendo operadores epistêmicos usando a expressão “penetratividade” dos operadores. Segundo ele afirma, operadores epistêmicos são semipene-trantes, ou seja, não penetram na classe inteira das consequências lógicas das alegações em que figuram. É essa limitação no grau de penetrativida-de dos operadores epistêmicos que explica como a análise do princípio do fechamento epistêmico pode tornar possível a neutralização das hipóteses céticas e, indiretamente, contribuir para o surgimento de uma abordagem do conhecimento centrada na noção de relevância. Vejamos mais detalha-damente esse ponto.

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Há dois sentidos em que o saber pode ser entendido como não-transmis-sível através da implicação. Num sentido bastante trivial, isso pode ocorrer quando ignoramos certas consequências daquilo que dizemos saber. Um exemplo de Williams pode ser útil para analisar esse ponto:

Suponha que agora eu sei que estou sentado na escrivaninha do meu escri-tório. Suponha também que eu sei que, se estou sentado na escrivaninha, não sou um cérebro numa cuba. Eu sei, portanto, que não sou um cérebro numa cuba? Talvez nem creia que eu não seja. A menos que eu tenha o ce-ticismo em mente, não tenho nenhuma opinião a respeito. Eu não rejeito o pensamento de que sou realmente um cérebro numa cuba, pois esta possi-bilidade nunca passou por minha cabeça. Mesmo se creio em coisas que sei que implicam que não sou um cérebro numa cuba comumente não faço essa relação. Talvez isso permaneça assim mesmo depois que ter notado que elas são implicadas por todos os tipos de crenças ordinárias. (WILLIAMS, 1996, p. 332).

Williams adverte nessa passagem que o princípio do fechamento pode falhar nas situações em que desconheço ou não tenho consciência das impli-cações lógicas das minhas crenças. Mas essa falha empírica na transmissão dedutiva do saber não representa o tipo de falha radical que interessa aos filósofos (e a Dretske em particular) que defendem a recusa do princípio. Segundo Williams, a rejeição mais radical consiste em negar que a penetrati-vidade plena ou absoluta sustenta-se nos casos em que sabemos ou estamos conscientes das relações de implicação lógica mantidas entre proposições. Tomando o exemplo dos cérebros em cubas citado por Williams, isso seria o mesmo que dizer que posso não saber se sou ou não um cérebro numa cuba e, ainda assim, saber muitas coisas sobre o mundo. A razão para isso é que algumas proposições que sabemos, quando colocadas no interior de uma estrutura de justificação, podem assumir o status de pressuposições. As pres-suposições figurariam como um pano de fundo não alcançado pela justifi-cação epistêmica5, de modo que um sujeito epistêmico poderia saber a

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des-peito do fato de não ter conhecimento das consequências lógicas implicadas por aquilo que sabe. Dretske desenvolveu essa tese a partir de uma classe particular de proposições que ele chama de consequências contrastantes.

É admissível que se colocamos um sujeito num contexto de justificação de suas alegações epistêmicas a partir de razões, dada uma determinada ale-gação epistêmica, esse mesmo sujeito se verá obrigado, numa epistemolo-gia internalista e centrada na tese que, para saber, devemos dispor de boas razões, a excluir alternativas incompatíveis. Dretske notou que não apenas as proposições contrárias a p podem cumprir o papel de canceladores da justificação que um sujeito S pode ter para suas alegações epistêmicas, mas também a classe particular das chamadas consequências contrastantes. Uma consequência contrastante é uma conjunção de uma propriedade incompa-tível com a verdade de p com outra propriedade que impossibilita o reco-nhecimento dessa incompatibilidade, criando uma situação de anulação das evidências de S para p, sem que S se dê ou seja capaz de eliminar, através da evidência disponível, a consequência constrastante gerada.

Alguém afirma saber que x é A; que a parede é vermelha. O cético acha um predicado “B” que é incompatível com “A”. Nesse exemplo particular, “B” representa o predicado “é branco”. Uma vez que “x é vermelho” implica “x não é branco”, também implica que “x não é (branco e Q), onde “Q” é um predicado que foi cuidadosamente selecionado. Assim, o cético seleciona um “Q” que exprime uma condição ou circunstância segundo a qual uma parede branca pode aparecer exatamente como uma parede vermelha. Por razões de simplicidade, podemos tomar “Q” para representar “habilmente iluminada para parecer vermelho”. Agora temos essa cadeia de implicação: “x é vermelho” implica “x não é branco” e implica “x não é branco habilmen-te iluminado para parecer vermelho” (1970, p. 38).

Como o exemplo mostra, a conjunção das propriedades ~p (no exemplo de Dretske “x é branco”) e q (x é branco habilmente iluminado para parecer vermelho) anula as razões que se poderia ter para inferir que S sabe que p

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(a parede é vermelha) a partir da percepção visual de uma parede vermelha. Ou seja, a possibilidade q não ataca diretamente a justificação disponível para p, mas torna ilegítimo inferir que sabemos que p a partir das evidências disponíveis, pois saber que p exigiria evidências contrárias à conjunção (~p e q). Assim, mostra-se que a evidência disponível é neutralizada ou insufi-ciente para garantir que p. Se aquilo que S sabe não permite garantir que ~p ou ~p e q, então S não sabe que p, pois em qualquer dos casos o sujeito do conhecimento parece obrigado a satisfazer as exigências de eliminação des-sas possibilidades para saber. Entretanto, dizemos saber muitas coides-sas que são compatíveis com a situação anteriormente esboçada, ou seja, sem nos preocupar com a eliminação desse tipo de possibilidade cética. Em virtude dessa assimetria entre a análise filosófica do conhecimento e nossas práti-cas epistêmipráti-cas corriqueiras, Dretske concluiu que uma das duas deve estar equivocada. A conclusão de Dretske é que o erro encontra-se do lado dos filósofos céticos, de modo que a conclusão mais intuitiva e sensata é reco-nhecer que o conhecimento das consequências contrastantes não se trans-mite através da implicação lógica conhecida. As consequências contras-tantes funcionariam como pressuposições não alcançadas pela implicação. Esse ponto pode ser explicitado melhor através de um comentário feito por Dretske em 2005, onde ele afirma que temos um “protoconhecimento das pressuposições”, uma vez que elas representam “consequências mais pesa-das” acerca daquilo que dizemos saber. É o caso, por exemplo, da afirmação de que sabemos que existem objetos materiais. Segundo Dretske, se o prin-cípio do fechamento for verdadeiro, saber que há biscoitos no pote, implica saber algo muito mais exigente: saber que há objetos materiais. Mas nossas evidências sensíveis (aquilo que vemos) não autoriza essa última conclusão. Logo, o conhecimento não parece se transmitir para essas consequências.

“Que existem objetos materiais” tem de ser verdadeiro se “existem biscoitos no pote” (e, portanto, para que você veja que há biscoitos no pote), mas não é algo que você vê que é assim. Quando você vê, simplesmente por olhar, que há vinho na garrafa, o fato de que não é água colorida é um

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protoconhe-cimento. Isso tem que ser verdadeiro para que haja vinho na garrafa (o que você percebe como sendo assim), mas não é um fato que (normalmente) você pode ver que é assim. Ao descrever como se sabe que há vinho na gar-rafa não se está (não normalmente) descrevendo como se sabe que não é simplesmente água colorida. (DRETSKE, 2005, p. 14).

Como o exemplo ilustra, o conhecimento de fatos empíricos como a exis-tência de vinho em garrafas (e não água colorida) ou biscoitos em potes de-pende da pressuposição (verdadeira) de que existem objetos materiais. Esse presuposto, no entanto, não confere justificação para essa crença. Nossas crenças e alegações têm muitas consequências que são simplesmente pressu-postas, de modo que posso estar legitimado a dizer que sei certos fatos sobre haver ou não biscoitos no pote ou vinho na garrafa e não saber se existem objetos materiais, pois o conhecimento desses fatos não exige que eu dispo-nha de evidências para crença sobre objetos materiais. Ou seja, a restrição da penetratividade dos operadores nas consequências constrastantes resulta do estatuto particular de certas proposições como pressuposições. Acerca das pressuposições, não é necessário saber que as mesmas são verdadeiras para saber algo que é implicado por elas. Para saber algo sobre a história pessoal e sobre a vida política de Napoleão não parece necessário dar evidências para a existência da terra6. O saber não penetra nessas consequências mais

“pe-sadas” ou de fundo. Aplicando essa análise para o caso das consequências contrastantes, obtém-se como resultado que saber que p exige estar numa posição evidencial que permita excluir a primeira classe de conseqüências ~p, mas não a classe formada pela conjunção ~p e q. Foi pensando nisso que Dretske formulou em Epistemic Operators um conjunto de contra-exemplos ao princípio do fechamento que pretendia mostrar que o saber não penetra na classe completa das consequências lógicas de proposições.

A seguir farei uma breve exposição de um grupo de contra-exemplos de Dretske ao princípio do fechamento e, em seguida, analisarei algumas crí-ticas que esses mesmos contra-exemplos sofreram. As crícrí-ticas dirigidas aos contra-exemplos de Dretske ao princípio de fechamento apontam, em

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senti-do negativo, as dificuldades envolvidas na recusa senti-do princípio senti-do fechamen-to; em sentido positivo, ajudam a entender a fonte de onde Dretske extraiu a concepção da relevância, pois se para saber não é necessário excluir todas as possibilidades lógicas contrárias a uma dada crença, então nem todas as alternativas ou possibilidades são relevantes.

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Dretske apresentou pelo menos cinco contra-exemplos ao princípio do fe-chamento. Como existem diferenças quanto aos propósitos visados nesses exemplos, analisarei alguns exemplos representativos como forma de prepa-rar o caminho para a apresentação da crítica de que Dretske foi alvo e, pos-teriormente, de sua fundamentação da doutrina da relevância. O primeiro exemplo que convém analisar é o seguinte:

Meu irmão entra num ônibus lotado e senta rapidamente no último banco vago. A velhinha que ele deixou para trás para sentar no banco para de pé ao seu lado com olhar bravo. Alguns minutos passam. Finalmente, percebendo que meu irmão não iria se mexer, ela suspira e vai resignadamente para o fundo do ônibus. [...] Eu disse que a velhinha percebeu que meu irmão não se moveria. Isso implica que ela percebeu ou soube que foi meu irmão quem se recusou a se mover? Obviamente não! Podemos dizer que S sabe que X é Y sem sugerir que S sabe que é X que é Y. Não temos que descrever a velhinha como sabendo que o homem ou a pessoa não se mexeu. Podemos dizer que ela percebeu que ou sabia que meu irmão não se moveu (menos, é claro, esse padrão de ênfase), e podemos dizer isso, pois dizer isso não implica que a velhinha sabia ou percebeu que foi meu irmão que se recusou a se levantar. Ela sabia que meu irmão não se mexeria e sabia isso a despeito do fato de que ela não sabia algo que é necessariamente implicado pelo que ela sabia, a saber, que a pessoa que se recusou a se levantar era meu irmão (DRETSKE, 1970, p. 36).

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A conclusão que Dretske pretende extrair desse exemplo é que do fato de que a velhinha sabia que o sujeito sentado no banco não se moveria, não se segue que ela sabia que era meu irmão (Harold) quem não se moveria. No interior da estratégia de Dretske, esse exemplo indica que há algo que ela não sabia (que X era irmão de Y), que não se segue daquilo que ela sabia (que X não se moveu).

Um segundo contexemplo trata do operador epistêmico “ter uma zão para crer...”. Dretske considera a situação de alguém que afirma ter ra-zões para crer que uma determinada igreja esteja vazia.

Suponha que você tem razões para crer que a igreja está vazia. Você deve ter uma razão para crer que é uma igreja? Eu não estou perguntando se você ge-ralmente tem uma razão. Eu estou perguntando se é possível ter uma razão para crer que a igreja está vazia sem ter uma razão para crer que é uma igreja que está vazia. Certamente sua razão para crer que a igreja está vazia não é em si mesma uma razão para crer que é uma igreja, ou não é necessário que seja. Sua razão para crer que a igreja está vazia pode ser que você fez uma inspeção total e não encontrou ninguém nela. Esta é uma boa razão para crer que a igreja está vazia. Mas não é tão claro que seja uma razão, muito menos uma boa razão, para crer que o que estava vazio era uma igreja. O fato é, ou parece ser, que eu não preciso ter qualquer razão para crer que é uma igreja. Naturalmente, eu nunca diria que a igreja está vazia, a menos que eu creia ou, presumivelmente, tenha alguma razão para crer, que era uma igreja que estava vazia, mas esta é uma condição presumida do meu dizer algo, não do meu ter uma razão para crer em algo. (1970, p. 36)

Esse segundo exemplo visa a mostrar que as razões para acreditar que uma determinada igreja esteja vazia não são razões para acreditar que isto que está vazio seja precisamente uma igreja e não outra coisa. O exemplo pretende mostrar que podemos ter razões para crer que a igreja está vazia (pois andamos por ela e não encontramos ninguém) sem termos razões para

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crer que era uma igreja e não outra coisa que estava vazia. Assim, podemos ter razões para crer que x é assim (de um certo modo), sem sabermos o que é x. Assim, posso ter razões para crer que a igreja está vazia, sem ter razões para crer em algo que é uma consequência lógica daquilo que creio (que o algo que está vazio é precisamente uma igreja e não qualquer outra coisa). O terceiro exemplo apontado por Dretske é este:

Ao dizer que o café está fervendo, afirmo que o café está fervendo, mas ao asserir isso eu não afirmo que é café que está fervendo. Antes, isso é pressu-posto, assumido [...] ter uma razão para acreditar que o café está fervendo não é, portanto, o mesmo que ter uma razão para crer que é café que está fervendo (1970, p. 37).

Ao dizer que o líquido x, seja ele qual for, está fervendo, eu não afirmo que é café que está fervendo. Pode muito bem ser o caso de que eu tenha razões para crer que algo está fervendo sem ter razões para crer que é café que está fervendo.

A exposição desses três contra-exemplos pretende ilustrar a tese de que o grau de penetrabilidade dos operadores epistêmicos é limitado ou, o que é o mesmo, que o escopo do operador não penetra em todas as conseqüências lógicas. Em todos eles, há algo que é implicado por aquilo que dizemos saber que não parece ser, necessariamente, sabido.

As críticas mais importantes aos contra-exemplos de Dretske foram dirigidas por Gail Stine. Segundo Stine, a conclusão de que os operadores epistêmicos são semipenetrantes é, para pelo menos dois dos exemplos, in-conclusiva. A razão da inconclusividade funda-se numa ambiguidade na lei-tura das proposições que ocorrem como premissas e conclusão nos contra--exemplos de Dretske. A seguir apresentarei uma glosa da análise de Stine e, posteriormente, indicarei algumas razões para admitir que o mesmo tipo de crítica que Stine formulou contra esse exemplo poderia ser transferido para outros exemplos de Dretske. A ambiguidade apontada por Stine diz respeito a duas possíveis leituras das premissas desses argumentos: uma leitura de re

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e outra de dicto. A distinção de re e de dicto surgiu na lógica aristotélica como forma de estabelecer uma separação entre argumentos válidos e falácias7.

Existem diferentes concepções dessa distinção. Consideremos a proposição abaixo:

(1) Ralph acredita que alguém é um espião.

Essa proposição pode ser entendida como expressando, pelo menos, duas possibilidades:

(2) Ralph acredita que existem espiões (de dicto). ou

(3) Ralph acredita de alguém em particular que ele é um espião (de re).

A ambiguidade existente em (1) mostra que podemos formular premis-sas ambíguas para produzir argumentos inválidos. Alguém que estivesse interessado em indispor Ralph com seu vizinho poderia usar a sentença 1 para dizer, sabendo que Ralph acredita que alguém é um espião no sentido 2, que Ralph acredita que seu vizinho Tobias, que tem um comportamento estranho, é um espião (explorando, portanto, o sentido 3 da sentença). A crítica que Gail Stine dirige a Dretske consiste justamente em sustentar que os contra-exemplos ao princípio do fechamento formulados por Dretske permitem, como na sentença 1, duas leituras distintas das sentenças que aparecem como premissas nesses argumentos. Na primeira possibilidade de leitura, eles geram inferências válidas e são instâncias do princípio do fecha-mento epistêmico. Noutra leitura, eles não representam uma forma válida de argumento; no entanto, nesses casos, eles também não são instâncias do princípio do fechamento. Se Dretske foi capaz de localizar algum problema com a validade do fechamento, tal resultado seria, segundo o diagnóstico de Gail Stine, fruto de uma ambiguidade entre duas possíveis leituras das sentenças que ocorrem como premissas e conclusão nos contra-exemplos que ele formulou. Em outras palavras, os contra-exemplos de Dretske ao princípio do fechamento não afetariam em nada a validade do princípio, pois nas situações em que eles representam inferências inválidas, eles não

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são instâncias do mesmo; não colocando em xeque, portanto, sua validade. Gail Stine constrói o primeiro argumento de Dretske segundo duas formu-lações (STINE, 1971, p. 297):

(1) A velhinha sabia que meu irmão não se moveria.

(2) A velhinha sabia que o meu irmão não se moveria implica que foi meu irmão que não se moveu.

(3) A velhinha sabia que foi meu irmão quem não se moveu.

O ponto salientado por Stine é que se a premissa (1) e a conclusão (3) do argumento forem entendidas como expressando crenças de re, então o argumento é, de fato, válido e não há nenhuma violação do princípio do fechamento. Nesse entendimento, aquilo que a velhinha sabia era do meu ir-mão que ele não se moveria. A crença da velhinha, nesse caso, aquilo que ela alega saber é que x não se moveu. A velhinha no ônibus sabe que x (Brother Harold) não irá se levantar, mas não sabe que o x em questão é Brother Ha-rold. Ela sabe do Brother Harold (de re), que ele não vai se levantar. Porém, a primeira premissa pode ser entendida de dicto. Nesse caso, o argumento não é válido e não possui a forma do princípio do fechamento. Na leitura de dicto, o argumento foi reconstruído por Stine assim:

(1´) Meu irmão (Brother Harold) é o sujeito tal que era sabido pela velhinha que ele não se moveria.

(2) A velhinha sabia que meu irmão não se moveria implica que foi meu irmão que não se moveu.

(3) A velhinha sabia que foi meu irmão que não se moveu.

Nesta segunda formulação, o argumento não tem uma forma válida. Na primeira premissa, ela afirma que o sujeito X tem a propriedade de ser o irmão de Y: Brother Harold. A crença envolvida é de dicto. No entanto, o que ela afirma saber não se refere à identidade do irmão de Dretske. Assim, temos uma inferência inválida, pois aquilo que ela sabe (que x não se

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levan-tou, conforme estabelecido em 1) não implica o que ela não sabe (que o x que não se levantou é irmão de y, conforme estabelecido em 1´). Como no segundo argumento, a conclusão 3 não se segue de 1´ (apenas de 1), o argu-mento não pode ser tomado como uma instância do princípio, uma vez que há uma mudança nas premissas.

O mesmo problema de ambiguidade pode ser apontado no segundo exemplo de Dretske. Digo ter razões para crer deste x (que por acaso é uma igreja), que ele está vazio. Mas não sei se x é uma igreja. Como o princípio do fechamento é um princípio que regula as consequências alcançadas, as consequências daquilo que é sabido, não há nenhuma violação do princípio se as premissas do argumento forem de dicto, pois a consequência lógica de “X está vazio” não é “o x que está vazio é uma igreja”, mas “não há nada no interior de x”. Digo, acerca de x, que “tenho razões para crer que está vazio”, mas não afirmo ter razões para crer que x é uma igreja. O “ser uma igreja” (que é apresentada por Dretske como uma pressuposição) não cumpre o papel de pressuposição no exemplo. O que é implicado pela afirmação que eu alego saber é aquilo que está implicado em alegar que “isto está vazio”, ou seja, ausência de pessoas, caso seja um espaço para alojar pessoas. Nenhuma alegação é feita acerca do x “ser uma igreja”, uma casa ou outra coisa; eu não sei o que é x. Aqui, claramente, podemos notar a dualidade de leituras. Não há, nesse exemplo, uma situação onde o operador epistêmico não penetra nas consequências daquilo que afirmo saber. Nesse caso, se a inferência for acerca do tipo de objeto, a inferência é realmente uma inferência inválida, mas não uma instância do princípio, pois o escopo do operador, como vi-mos acima, compreende a possibilidade de estar ou não vazio, e não a possi-bilidade de ser ou não uma igreja. O mesmo problema parece estar presente no último exemplo.

A conclusão que podemos extrair dessa análise é que as objeções de Stine retiram o efeito de, pelo menos, esses contra-exemplos de Dretske. Um exa-me mais acurado do ponto de vista da lógica dos raciocínios que envolvem o princípio do fechamento mostrou que aquilo que era sabido nos casos exa-minados era diferente daquilo que Dretske supunha. Ora, como o interesse

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de Dretske em torno do princípio do fechamento dizia respeito ao grau de penetratividade dos operadores epistêmicos, a apresentação desses contra--exemplos não foi capaz de esboçar um entendimento inequívoco da lógica dos operadores epistêmicos. Ao contrário, o resultado dessa análise parece ser, como resumiu Williams:

... que operadores epistêmicos que parecem operar sobre o conteúdo inteiro de uma afirmação mostram-se, sob análise, operando somente sobre alguns constituintes da proposição. Isto significa que os contra-exemplos [indica-dos por Dretske] ao fechamento podem ser apenas aparentes, explorando distinções de escopo que, na gramática de superfície da linguagem ordinária, não são suficientemente claras (1995, p. 335).

Trata-se, portanto, de uma crítica que atinge uma das frentes mais im-portantes da argumentação de Dretske. Essa crítica não é, de toda maneira, conclusiva, pois não mostra que qualquer tentativa de recusa do fechamento epistêmico esteja fadada ao fracasso. Ela mostra apenas que o projeto de re-cusa do fechamento por Dretske é controverso. Seja como for, para minhas finalidades, os argumentos de Stine parecem suficientes para considerar in-satisfatória a tentativa de Dretske de recusar o princípio do fechamento, de modo que assumirei que nenhum desses contra-exemplos de Dretske pare-cem realmente convincentes e suficientes para abrir um caminho promissor para rejeitar o ceticismo8. Esse resultado recoloca o problema inicial

enfren-tado por Dretske de saber como lidar com as possibilidades céticas. Haveria alguma perspectiva de neutralização das hipóteses céticas que não dependa da rejeição do princípio? Pretendo sustentar, na próxima seção, que as intui-ções de Dretske em torno do “caso da zebra” antecipam, de um modo que não é dependente da recusa do fechamento, a concepção da relevância que ele veio a formular explicitamente em textos posteriores.

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hgkkßn]ak!

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A motivação fundamental da tentativa de fornecer contra-exemplos ao princípio do fechamento consiste em mostrar que os operadores epistêmi-cos não transmitem o saber através da classe de consequências chamada de consequências contrastantes. As consequências contrastantes são aquela clas-se de conclas-sequências que exigem, para garantir que sabemos que P, a exibi-ção de evidência que permita eliminar possibilidades de erro que envolvam conjunções do tipo (~p e q). Ao justificar nossas alegações epistêmicas, as evidências que fornecemos são incapazes de eliminar tais possibilidades de erro, pois esse tipo de possibilidade neutraliza a base evidencial disponível. O que poderia ser uma evidência para p fica efetivamente bloqueado ou anulado por sua compatibilidade com a falsidade de p. Para tratar desse pon-to analisarei o chamado “caso da zebra” formulado por Dretske. A análise desse exemplo é importante, pois foi através dela que Dretske concebeu uma estratégia de contraposição ao ceticismo que não parece depender da recusa do fechamento. Numa avaliação dos ganhos filosóficos, poderíamos afirmar, então, que mesmo que o projeto de recusa do fechamento seja controverso e talvez fracassado, a reflexão sobre casos paradigmáticos como o caso da zebra abriu caminho para Dretske e outros filósofos explorarem uma ima-gem alternativa do conhecimento, uma imaima-gem onde conhecer o mundo ao nosso redor não implica ter evidências da falsidade de tudo aquilo que é incompatível como nossas alegações de conhecimento.

O caso da zebra consiste, essencialmente, na apresentação de uma ale-gação de que sabemos que p, a qual é desafiada por uma consequência in-compatível q que anula a evidência disponível a favor de p. Dretske formula o exemplo assim:

Você leva seu filho no zoológico, vê várias zebras, e quando questionado por ele, você diz que sabe que são zebras. Você sabe que elas são zebras? Bem, muitos de nós não hesitaríamos em dizer que sabemos que são zebras. Sabemos como as zebras parecem, e, além disso, estamos num zoológico e os animais estão numa cerca onde está escrito “zebras”. Todavia, ser uma

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zebra implica em não ser uma mula e, em particular, em não ser uma mula habilmente disfarçada pelos responsáveis pelo zoológico para parecer zebra. Você conhece que esses animais não são mulas habilmente disfarçadas pe-las autoridades do Zoológico para parecerem zebras? Se você está tentado a dizer “sim” para esta questão, pense um pouco sobre as razões que você tem, as evidências que podem ser produzidas em favor dessa afirmação. A evidência que você teve para pensar que elas eram zebras foi efetivamente neutralizada, pois não estava sendo contada a possibilidade de serem mulas habilmente disfarçadas para parecerem zebras. (1970, p. 39)

O exemplo pretende tornar plausível a tese de que se aceitamos o princí-pio do fechamento epistêmico, as evidências para saber que p (é uma zebra) deveriam ser também suficientes para eliminar q (ser uma mula habilmen-te disfarçada). Se a evidência é incapaz de indicar a falsidade de q, tanto p quanto q podem ser o caso. Assim, S não sabe que p. Tal estratégia aparece claramente nos argumentos céticos. Consideremos as proposições:

(p) há uma zebra diante de S;

(q) há uma mula disfarçada diante de S;

O princípio do fechamento estabelece que, se S sabe que x é uma zebra e sabe que ser uma zebra implica em não ser uma mula, particularmente uma mula habilmente disfarçada, então S sabe que x não é uma mula habilmente disfarçada. Desde que S não parece ter boas razões para crer em ~q, pois não fez nenhuma investigação pormenorizada sobre o animal que estava à sua frente, ele também não parece justificado em crer que p, pois p e q são incom-patíveis. Portanto, ele não sabe que há uma zebra diante dele. A estratégia de mostrar que p não é conhecido a partir da indicação de uma alternativa que não excluímos e não podemos excluir oferece um argumento bastante sim-ples e inicialmente muito plausível em favor da tese cética. Não poderíamos dizer que sabemos que não se trata de uma mula disfarçada, pois ela teria a mesma aparência que uma zebra se fosse uma mula habilmente disfarçada.

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Em relação a esse exemplo, Dretske faz dois movimentos. Inicialmente ele apela para a recusa do fechamento a fim de sustentar sabemos que x é uma zebra, mesmo sem saber que x não é uma mula disfarçada. Depois, ele passa a fazer explorações intuitivas sobre o conhecimento amparadas no exemplo. Foram essas explorações que originaram sua concepção da relevância, ou seja, de maneira embrionária e talvez inconsciente, Dretske parece ter reco-nhecimento de mecanismos de análise do coreco-nhecimento e contraposição ao ceticismo que não envolveriam a recusa do fechamento epistêmico. Vejamos melhor esse ponto.

Em primeiro lugar, é intuitivamente admissível que podemos dizer que sabemos que animais num zoológico são zebras, ainda que não sejamos ca-pazes de excluir possibilidades incompatíveis suscitadas por perguntas do tipo: “como você sabe que não são imitações hábeis de zebras?” As razões epistêmicas que sustentam a legitimidade da alegação são as seguintes: elas parecem com zebras, estão num cercado onde está escrito “zebras” e esta-mos (no exemplo em questão) num zoológico. As evidências são, portanto, muito boas. Ao mesmo tempo, as evidências para que não seja uma zebra são bastante improváveis e poderiam, supostamente, ser verificadas mais atentamente. Assim, pareceria natural concluir diante de um exemplo dessa natureza que podemos dizer que sabemos, se estivermos assumindo as con-dições que costumeiramente seguimos para saber. Assim, sem negar o prin-cípio do fechamento, poderia ser legítimo a partir das evidências dizer que sabemos que são zebras. Esse caminho não foi explorado por Dretske, pois ele aceitou que a hipótese de serem zebras disfarçadas realmente anularia as evidências disponíveis. Dretske adotou esse caminho, pois aceitou que, uma vez que as hipóteses céticas são evocadas, todas as evidências fornecidas em favor de p ficam neutralizadas. Dretske nega abertamente que as razões que temos para p (X é uma zebra) sejam suficientes para saber que a alternativa q (X é uma mula disfarçada) é falsa:

Você conhece que esses animais não são mulas habilmente disfarçadas pe-las autoridades do Zoológico para parecerem zebras? Se você está tentado

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a dizer “sim” para esta questão, pense um pouco sobre as razões que você tem, as evidências que podem ser produzidas em favor dessa afirmação. A evidência que você teve para pensar que elas eram zebras foi efetivamente neutralizada, pois não estava sendo contada a possibilidade de serem mulas habilmente disfarçadas para parecerem zebras. (1970, p.39)

Por reconhecer que não seria capaz de garantir que sabe que o animal não é uma mula disfarçada, Dretske viu na recusa do princípio o único modo de garantir que S sabe que x é uma zebra. Conforme esclareceu num texto recente que retoma o problema da recusa do fechamento epistêmico, as razões de Dretske para rejeitar o princípio nesse exemplo podem ser com-preendidas a partir da ideia de transmissão da garantia evidencial. Como ele explica, a transmissibilidade não é a mesma coisa que o fechamento pela implicação conhecida, mas ajuda a entendê-la. Em circunstâncias normais, numa sessão de degustação de vinhos, as evidências para crer que há vinho numa garrafa não são evidências para crer em algo que sabemos que é im-plicado por isso - que o líquido na garrafa não é água colorida. Assim, as evidências para uma coisa (que vemos) não são evidências para outra (que provamos) (DRETSKE, 2005, p. 14). O mesmo ponto parece ser válido para o conhecimento. O fechamento falha, pois as coisas corriqueiras que sabe-mos têm “implicações pesadas” que são desconhecidas. Proposições corri-queiras como “sei (com base na degustação) que essa garrafa tem vinho” implica que sei que “existem objetos externos”. A percepção da garrafa, no entanto, dá conhecimento de objetos externos, mas não dá razões para saber que o idealismo é falso. Como Dretske afirmou, trinta anos depois de ter apresentado a tese da recusa do fechamento,

Parece-me ainda hoje que se o princípio é verdadeiro, se o conhecimento é fechado pela implicação conhecida, se, a fim de ver que há biscoitos no pote, vinho na garrafa e zebra no cercado, eu tenho que saber que eu não estou sendo vítima de uma situação de embuste [fooled by a clever deception], que “as aparências” (os fatos nos quais meus juízos são baseados) não são

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enga-nadoras, então o ceticismo é verdadeiro (2005, p. 15).

O ceticismo é verdadeiro, pois ele admitia não haver como extrair de nossas evidências para a alegação de que as zebras estão no cercado que sa-bemos que não são mulas disfarçadas. Mas se consideramos essa exigência espúria, um novo caminho de abordagem do conhecimento se abre. Dretske atentou, de passagem, para essa possibilidade. Intuitivamente ele parece ter reconhecido que, se desejamos evitar o ceticismo e, ao mesmo tempo, pre-servar a dimensão normativa do conhecimento, ou seja, uma concepção em que o conhecimento depende de razões, uma teoria do conhecimento que não envolvesse a rejeição do princípio deveria apostar numa fundamentação do conhecimento com caráter menos comprometido com condições lógicas extremas, mas vinculado às dimensões práticas ou sociais do conhecimen-to9. Foi a partir desse estágio de seu itinerário filosófico que nasceram os

principais elementos da teoria da relevância de Dretske.

A proposta geral de defesa da irrelevância da eliminação de possibilida-des céticas foi articulada inicialmente em Epistemic Operators em termos de possibilidades remotas, em função de não se materializarem em mundos possíveis próximos. Essa é a primeira formulação importante da noção de alternativas relevantes de Dretske. Ele inicia a formulação dessa proposta dizendo que o saber que p deve ser entendido a partir de um conjunto de possibilidades próximas ao mundo atual e apresenta o seguinte exemplo como ilustração de sua intuição.

Se estamos simplesmente analisando os fatos, então podemos dizer que é um fato que Brenda não pediu a sobremesa (embora ela estivesse incluída no cardápio). Podemos dizer sem qualquer pensamento sobre o tipo de pessoa que Brenda é ou o que poderia ter feito se ela tivesse pedido a sobremesa. Contudo, se colocamos este fato dentro de um contexto explicativo, se ten-tamos explicar este fato, ele de repente aparece dentro de uma rede de fatos relacionados, uma rede de alternativas possíveis que servem para definir o que está sendo explicado. (1970, p. 44-45)

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A sugestão é que, em contextos comunicativos corriqueiros, se um fato ou evento corriqueiro não ocorresse, outros fatos relacionados se dariam. Podemos estipular esses fatos como sendo:

A) Brenda pediu a sobremesa e comeu. B) Brenda pediu a sobremesa e não comeu;

Esses dois casos são próximos a um terceiro estado de coisas: C) Brenda não pediu a sobremesa.

As situações relatadas em A e B compõem um universo ou mundo pró-ximo ao mundo em que Brenda se encontra, o mundo C, onde ela não pede uma sobremesa. A e B representam dois acontecimentos diferentes de C, mas poderiam, naturalmente, ocorrer. Os mundos A e B são próximos, pois são os mundos que se materializariam se C não fosse o caso. Mundos distan-tes poderiam ser os seguindistan-tes:

D) Brenda pede a sobremesa e atira no garçom. E) Brenda pede a sobremesa e pisa nela.

A partir dessa distinção entre mundos próximos e remotos ou distantes é possível fundar uma concepção intuitiva da relevância. Para saber que p, devemos levar em conta as conseqüências vinculadas a mundos possíveis próximos, ou seja, para saber que P, nem todos os mundos possíveis são rele-vantes. Há um conjunto de mundos selecionados como relevantes e S deve ser capaz de excluir os mundos em que ~p dentro desse conjunto. Dretske formula esse ponto assim:

Uma alternativa relevante é uma alternativa que poderia ter sido realizada nas circunstâncias atuais se o estado de coisas não tivesse se materializa-do. Quando explico por que Brenda não pediu a sobremesa dizendo que ela estava satisfeita (estava de dieta, não gostou de nada no menu), eu explico

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porque ela não pediu sobremesa ao contrário de, em oposição a, ou em vez de pedir uma sobremesa e comê-la. É esta possibilidade competitiva que ajuda a definir o que é que eu estou explicando quando eu explico por que Brenda não pediu uma sobremesa (DRETSKE, 1970, p. 44-45).

Numa nota que segue a passagem citada, Dretske antecipa uma possível objeção à sua definição da relevância e afirma que a expressão “poderia ter sido realizada” é demasiado vaga para figurar como critério de relevância, particularmente se considerarmos a existência de contrafactuais, ou seja, situações não consideradas pelo agente cognitivo; mas que, ontologicamen-te, poderiam ocorrer. Sendo este o caso, não haveria ainda um critério para estabelecer que os mundos A, B e C são mais próximos do mundo atual do que os mundos D e E. Contudo, como o próprio Dretske esclarece, ele não pretendeu, nessa primeira formulação da relevância, indicar um critério definitivo ou rigoroso. Ele considerou suficiente estabelecer uma definição preliminar das alternativas relevantes em termos de mundos próximos ao mundo atual. Podemos concluir que esse critério é satisfatório para uma definição das alternativas relevantes?

Tomando as alternativas relevantes como aquelas alternativas que seriam prováveis de ocorrer caso o mundo atual não tivesse se materializado, as possibilidades ou alternativas levantadas pelo cético deixariam de repre-sentar um problema para o conhecimento, pois poderíamos, sem dúvida, tomá-las como distantes ou remotas. Afinal, elas não são admitidas como parte do conjunto de alternativas que ocorreriam caso o estado de coisas inicialmente concebido não estivesse materializado! No exemplo da zebra, poderíamos dizer então que se o animal não fosse uma zebra, num mun-do alternativo próximo ao munmun-do atual, ela também não seria uma mula disfarçada, pois esse mundo é pouco provável ou muito distante daquilo que costuma acontecer em zoológicos, dado nosso conhecimento do com-portamento de administradores de zoológicos, das regras legais existentes, etc. Consequentemente, a possibilidade de erro deixaria de interessar por ser muito distante daquilo que poderia ocorrer se o estado de coisas não

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tivesse se materializado. No entanto, uma fundamentação adequada dos critérios para a determinação das alternativas relevantes parece exigir mais do que a exclusão de mundos próximos ao mundo atual. Afinal de contas, uma imaginação pobre sobre a estrutura do mundo atual poderia tornar o conhecimento banal e disponível mesmo em circunstâncias epistêmicas desfavoráveis. Além disso, se o mundo atual fosse rico em termos de pos-sibilidades competitivas, nenhuma evidência seria satisfatória, pois sempre haveria o risco de novas possibilidades serem reconhecidas como possíveis (sendo, ipso facto, próximas).

Uma solução para esse problema seria uma metafísica dos mundos pos-síveis que estabelecesse mais claramente o sentido ou compreensão acerca do que é o “mundo atual/real”, uma concepção de atualidade que evitasse os inconvenientes resultantes de uma concepção frouxa de proximidade ou re-levância. Por exemplo: se, num certo entendimento dessa noção, assumimos que situações anuladoras da evidência como cenários céticos são parte do mundo real, as alternativas relevantes não parecem mais capazes de realizar a tarefa de garantir que sabemos. Seria necessário encontrar uma concepção mais forte de mundo atual, uma concepção que não guardaria lugar para possibilidades céticas. Essa dificuldade foi apontada por Heller:

...se o mundo atual é povoado com facsímiles de árvores em papier mache, de tal modo que S é incapaz de distinguir [os facsímiles] de arvores reais, S não pode saber que o que ele está olhando é uma árvore, uma vez que ele poderia estar facilmente diante de um facsímile de árvore. (HELLER, 1999, p. 200)

Para contornar esse problema, Heller sugere a formulação de uma con-cepção expandida de mundo atual. Nessa concon-cepção, haveria uma amplia-ção das alternativas relevantes, fazendo com que as mesmas alcançassem não apenas mundos próximos ao mundo real, mas também mundos que não sejam muito próximos do mundo real, mundos em que poderíamos ver facsímiles de árvores ou mundos em que poderia não haver qualquer árvore diante de nós, mundos onde poderíamos sonhar ou ser cérebros em cubas

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e continuar acreditando estar diante de árvores. Heller formula esse ponto dizendo que as alternativas relevantes requerem

que S seja capaz de excluir alternativas a P, não queremos apenas que tenha a habilidade de distinguir este mundo dos mundos não-P similares, mas de qualquer mundo que não seja muito dissimilar. Estamos interessados não apenas em sua habilidade de distinguir o mundo atual daquele que seria o caso se P fosse falso, mas também daquele que poderia ser o caso. (1999, p.200)

Segundo Heller, portanto, a concepção do conhecimento de Dretske articulada em termos de alternativas relevantes deveria ser expandida. No entanto, o prolongamento da noção de alternativas relevantes proposto por Heller parece apenas transferir o problema para um novo registro. Afinal de contas, como se determina quais são os mundos mais próximos do mundo atual? Mundos em que podemos sofrer ilusões de que vemos árvores são mundos próximos do mundo real? Se forem, então a noção de alternativas relevantes não parece muito eficiente para lidar com o ceticismo, pois ela poderia ser estendida até um ponto em que, para algumas possibilidades, nenhuma evidência seria boa o bastante para eliminá-las. Nesse tipo de caso, não seria possível afirmar que sabemos. Em suma, a dificuldade de fundar a noção de alternativas relevantes numa teoria dos mundos possíveis é o fato de que nossa compreensão do que é um mundo possível próximo ou remoto em relação ao mundo real é sempre tributária de uma concepção epistêmi-ca da proximidade ou distância do mundo real. Se queremos saber como as coisas são, o saber não pode envolver riscos provenientes das limitações epistêmicas de seres finitos. Se é possível um múltiplo de mundos possíveis, alguns inclusive com propriedades contrárias àquelas que garantiriam o sa-ber que p e não acessíveis às nossas concepções epistêmicas de mundos pró-ximos, o saber simplesmente não estaria assegurado. Saberíamos como as coisas são relativamente à nossa perspectiva particular, às possibilidades de erro que consideramos, embora outras possibilidades (consideradas

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remo-tas) poderiam ser o caso e tornar o saber impossível. Consequentemente, se a doutrina da relevância pretende ser de algum valor para dar conta das pos-sibilidades competitivas, é necessário algo mais forte do que as concepções (ou convicções subjetivas) de um sujeito epistêmico acerca da probabilidade de certas ocorrências fundadas em uma concepção de mundos próximos ao mundo atual, pois aquilo que esse sujeito considera pouco provável pode ocorrer e então ele não saberia, uma vez que essa possibilidade contrária seria verdadeira para ele apenas num mundo possível distante do mundo atual. Nesse caso, o máximo que as alternativas relevantes garantiriam é que sabemos relativamente à nossa concepção de mundo próximo, embora nada garanta que essa concepção seja equivalente aos mundos que são realmente próximos do mundo atual.

Dessa forma, para garantir o conhecimento, não parece haver espaço para distinção entre possibilidades próximas ou remotas. A eliminação de contrapossibilidades deve ser completa. Ao menos que seja fixado que certas possibilidades competitivas são possíveis, porém falsas, a noção de alterna-tivas relevantes não parece ser suficiente para garantir que sabemos. O sim-ples fato de errarmos na estimativa das propriedades de mundos próximos ao mundo atual indicaria um erro acerca daquilo que deveria ser levado em conta atualmente (HELLER, 1999, p. 198).

Dretske adotou essa estratégia de defesa da relevância como forma de mostrar que uma alternativa põe em risco a evidência oferecida para p quando é verdadeira ou poderia ser o caso em um mundo possível próximo, e não qualquer alternativa. Mas em condições diferentes das condições em que conduzimos nossas práticas epistêmicas, não há nenhum espaço para essa distinção. E o que se espera é que justamente tenhamos uma resposta para entender o que tais possibilidades representam para o conhecimento e não apenas se elas são remotas. Assim, de um ponto de vista puramente epistêmico, não parece se oferecer uma base satisfatória para essa funda-mentação da relevância.

Além da noção de alternativas relevantes articulada na linguagem dos mundos possíveis, Dretske indicou outros critérios de definição da

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relevân-cia. Já no final de Epistemic Operators e em Constrastive Statements, Dretske buscou uma fundamentação linguística para a relevância que descreverei a seguir.

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Em Epistemic Operators Dretske explorou diferentes direções possíveis para a fundamentação da noção de alternativas relevantes. Além da referência a mundo possíveis, um novo critério para relevância, e que foi desenvol-vido posteriormente com maior profundidade em Constrastive Statements, estabelece que alternativas relevantes são selecionadas pelo significado do falante, ou seja, aquilo que ele tem em mente em diferentes pronunciamen-tos em contexpronunciamen-tos conversacionais. A idéia foi apresentada originalmente por Dretske em termos de ênfase ou entonação a partir da sentença “Lefty ma-tou Otto”. Essa mesma sentença pode receber três possibilidades de ênfase distintas:

1) Lefty matou Otto. 2) Lefty matou Otto. 3) Lefty matou Otto.

As marcas de ênfase ou entonação são adotadas para estabelecer diferen-ças de contraste ou um contraste dominante. Em diferentes situações de fala, podemos usar essa mesma sentença para falar que: a) uma pessoa determi-nada (Lefty) realizou certa ação, b) que a ação realizada foi a ação de matar; c) que a vítima da ação foi Otto. Conforme o contraste que o falante tem em mente, diferentes alternativas são estabelecidas. No primeiro sentido, o que o falante quer dizer é que foi Lefty e não outra pessoa que matou Otto. A classe de alternativas relevantes delimitada quando a ênfase é Lefty é a classe das alternativas epistemicamente relevantes para identificar o autor do

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cri-me. Importa, nesse caso, excluir alternativas como ter sido Righty, Defty ou qualquer outro autor. No enunciado 2, ao dizer Lefty matou Otto, afirma--se que o que Lefty fez foi matar, ao contrário de ferir ou dar uma surra. O contraste visado pelo falante estabelece como alternativas relevantes, nessa segunda versão, ações como ameaçar, matar e exclui o problema de determi-nar a autoria do crime. O contraste visado na terceira ênfase indica que Lefty matou Otto. Ela identifica quem foi o objeto da ação: Otto e não qualquer outra pessoa. Cada uma destas três ênfases delimita um conjunto distinto de alternativas relevantes. Dretske mostrou interesse nessas distinções, pois, numa conversação, é fácil gerar mal-entendidos ou mudanças sutis na classe das alternativas relevantes conforme diferentes falantes assumam perspec-tivas de compreensão distintas em torno da investigação que está sendo de-senvolvida. Dretske diz:

Mudando a ênfase padrão podemos invocar um conjunto de contrastes di-ferentes e, portanto, alterar o que S diz saber quando diz que sabe que Lefty matou Otto. [...] mudando a ênfase, muda-se o que é alegado saber. O ope-rador penetra apenas naquele conjunto de contrastes que forma parte da rede de alternativas relevantes estruturantes do contexto original em que a alegação foi feita. (DRETSKE, 1970, p. 46)

Ou seja, diferentes entonações marcam diferentes classes de consequ-ências e, em virtude disso, de alternativas. Quando um conjunto de alter-nativas é selecionado pelas intenções do falante, as demais alteralter-nativas que poderiam ocorrer deixam de fazer parte da margem de manobra da justi-ficação e passam a fazer o papel de pressuposições. A partir do significado do falante é possível (essa é a sugestão que pretende ser extraída da noção de significado do falante) reconhecer que algumas alternativas assumem o papel de pressuposições em contextos conversacionais. Quando digo que Lefty matou Otto, pressuponho que foi uma pessoa (e não um acidente, um terremoto, o ataque de um animal) que matou Otto. Se for verdadeiro que Lefty matou Otto, então é falso que um gorila matou Otto (como no conto

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de Edgar Alan Poe) ou um tornado. Por fazerem o papel de pressuposições no contexto conversacional, não preciso dispor de evidências para garantir que quaisquer umas dessas últimas possibilidades não tenham sido o caso. As evidências não são necessárias, pois o universo das alternativas relevan-tes é determinado pelas possibilidades contrastanrelevan-tes trazidas à tona em con-textos particulares pelo significado do falante. A pressuposição cumpre a função de estabelecer o que conta como evidência e que tipo de alternativas de erro são relevantes para a investigação que está sendo desenvolvida. As evidências contra a alternativa de ser um gorila e não um homem não são necessárias (e a alternativa irrelevante), pois não estabelecemos um vínculo cognitivo ou evidencial com essa sentença; simplesmente não é dela que es-tamos falando. Exigir que tenhamos evidência para eliminar a possibilidade de que um gorila ou qualquer outro ser tenha matado Otto é uma forma sutil de mudar de assunto.

Em Contrastive Statements, Dretske retomou e detalhou essa intuição inicial sobre a vinculação entre contexto de proferimento linguístico e alter-nativas relevantes. Nesse texto as distinções de ênfase são explicitadas como alterações pragmáticas, alterações no significado do falante, embora o senti-do literal das sentenças seja o mesmo. Vejamos primeiramente um exemplo e, posteriormente, podemos retomar o problema:

Eu tenho três amigos que são, de modos variados, mal informados sobre minhas transações recentes. O primeiro quer saber por que eu dei minha máquina de escrever para Clyde. Eu coloco-o diretamente a par da transação dizendo que não dei minha máquina de escrever para Clyde:

(1) Eu vendi minha máquina de escrever para Clyde.

Um pouco mais tarde meu segundo amigo me dá a entender que ele pensa que eu vendi minha máquina de escrever para Alex. Corrigindo-o digo: (2) Eu vendi minha máquina de escrever para Clyde.

Um terceiro amigo pergunta-me por que eu vendi minha calculadora para Clyde e, uma vez mais, eu me vejo dizendo:

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411).

Dretske chama essas sentenças que admitem variações de sentido pelo falante em contextos de constrastive statements. As alegações contrastantes constituem uma classe de sentenças que incorporam um “contraste domi-nante”, um foco de contraste ou uma exclusão característica de certas pos-sibilidades. Isso é o mesmo que dizer que, através de uma mesma sentença, algo diferente foi visado pelo falante em cada um dos contextos de uso. A variação incide no que ele significou e não no significado. O estado de coisas descrito, em cada uma das três situações, é o mesmo: “Dretske vendeu uma máquina de escrever para Clyde”. No entanto, os contrastes dominantes, que são aspectos pragmáticos envolvidos no uso de proposições em contextos, introduzem mudanças de entendimento e desempenham um papel signifi-cativo para a determinação das intenções do falante. Em cada um desses três casos, quem profere as três sentenças diz literalmente a mesma coisa.

Qual é, afinal, a diferença de significado entre dizer “eu vendi minha má-quina de escrever para Clyde” em resposta à questão “A quem você vendeu sua máquina de escrever?” e dizer isso em resposta à questão sobre o que eu vendi a Clyde? (1972, p. 422)

Assim, ele conclui que não há alteração no significado, mas no foco da afirmação dado pelo contraste embebido na sentença. A mudança é uma mudança de contraste, pois o falante significa algo diferente a partir do con-texto em que ela está embebida (1972, p. 429). As mudanças de contraste são uma característica pragmática de proferimentos e sugerem consequ-ências para o entendimento da semântica. “Podemos tomar isso como um argumento para a visão de que certas diferenças pragmáticas (assim como diferenças sintáticas) são relevantemente envolvidas na análise semântica de certas expressões em que elas aparecem” (1972, p. 423). A análise das mudanças de contraste mostra que saber o que eu significo ao dizer que vendi minha máquina de escrever para Clyde é uma questão de saber quais

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possibilidades contrastantes tenho em mente no contexto conversacional (WILLIAMS, 1995, p.186). Como explica Williams, essa forma de excluir alternativas como irrelevantes não tem nada a ver com ser sabido que elas não são o caso. Simplesmente se assume, pelo significado do falante, que elas não ocorrem. Ou seja, “dados os propósitos e finalidades presentes, elas simplesmente não estão em jogo, de modo que a questão de se elas são o caso ou não, nem mesmo surge”. O que podemos dizer acerca desse critério de estabelecimento de alternativas relevantes? Esses critérios de relevância, como Williams indica, não são efetivos como ferramenta anticética.

O cético pode insistir, com alguma plausibilidade, que não ser saliente não é o mesmo como ser completamente irrelevante. Ele pode admitir que o que significamos por uma dada alegação é uma função do que nós pretendemos selecionar como contraste dominante [...] mas a série completa das alterna-tivas relevantes para o que eu alego é determinada por aquilo que a sentença que uso significa, por tudo o que ela exclui e não apenas por aquilo que escolho enfatizar (1995, p. 188).

A crítica de Williams à estratégia de Dretske revela que em contextos filosóficos o conhecimento de alegações epistêmicas envolve a eliminação de todas as possibilidades de erro. No entanto, variações pragmáticas que res-tringem o significado literal de nossos proferimentos não parecem ser um instrumento suficiente para definir o conjunto das alternativas, pensadas, agora, em termos de relevância. A razão que está por trás dessa conclusão é simples: o saber é indiferente ao significado que o falante escolhe privilegiar com suas palavras. A possibilidade de definir alternativas relevantes segun-do critérios pragmáticos como o apelo ao significasegun-do parece exigir, assim, que o próprio sentido seja dependente do contexto prático de uso, como as-sumiram os seguidores de Wittgenstein. Mas essa é uma opção que Dretske não parece aceitar.

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Dretske voltou a se ocupar com a noção de alternativas relevantes em The Pragmatic Dimension of Knowledge. Nesse artigo, Dretske retoma o projeto de fornecer “um modelo para entendimento do conhecimento” (1981, p. 52) a partir das “alternativas relevantes”. No modelo de Dretske o conhecimento envolve dois itens ou aspectos: o conhecimento é absoluto e relativo.

O primeiro item faz referência à necessidade de que a justificação elimi-ne cada possibilidade de erro. Como ele mesmo coloca: “o conhecimento empírico é absoluto. É uma questão de tudo ou nada, como uma gravidez. Uma pessoa não pode ser mais grávida ou grávida de um modo melhor do que outra”. (1981, p. 48-49) Nesse sentido, o conhecimento é incompatível com a existência de possibilidades de erro. Por conseguinte, se q é incom-patível com p e se S não sabe que q (a evidência disponível não permite eliminar a possibilidade q), então S não sabe que p. Esse aspecto absoluto do conhecimento deve ser respeitado, pois Dretske considera que somente uma concepção da justificação conclusiva compatível com a relevância garante o saber. Referindo-se ao exemplo de um observador que não consegue distin-guir um pato Gadwall de um mergulhão, ele afirma:

O observador sabe que é um Gadwall; ele não tem razões conclusivas (ele não pode excluir a possibilidade de que o mesmo parece com um mergu-lhão); portanto o conhecimento não requer razões conclusivas. Mas isto é, eu sustento, uma falácia, um entendimento distorcido daquilo que é neces-sário excluir para saber. (1981, p. 58)

A infalibilidade ou dimensão absoluta do conhecimento admitida aqui por Dretske coloca um problema. Se entendemos que o conhecimento é ab-soluto ou infalível, não podemos deixar de reconhecer que hipóteses céti-cas mostram que a evidência ou justificação sobre a qual baseamos nossas crenças nunca é suficiente para garantir que sabemos. Diante dessa situação, há três possibilidades que poderiam ser seguidas: (a) abraçar o ceticismo,

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admitindo que na imensa maioria dos casos empregamos frouxamente o conceito de conhecimento, um vez que, de fato, não sabemos ou sabemos muito pouco. (b) rejeitar o caráter infalível do conhecimento: a justificação não precisa ser completa ou conclusiva; c) compatibilizar infalibilidade e conhecimento.

A saída adotada por Dretske, que pretende evitar o ceticismo preservan-do a ideia de uma justificação completa ou absoluta, é harmonizar a infalibi-lidade com o conhecimento relativamente ao contexto pragmático ou social, ou seja, ele pretende compatibilizar relevância com a concepção absoluta do conhecimento. Essa tarefa é levada a cabo mediante a inserção de fatores pragmáticos ou sociais na definição do conjunto das alternativas. Os fatores pragmáticos ou sociais determinam o que conta como alternativa relevante, ou seja, determinam as possibilidades que devem ser evidencialmente ex-cluídas para ter conhecimento em contextos determinados. É nesse ponto que aparece o segundo aspecto do conhecimento indicado acima: a dimen-são da relatividade do conhecimento. Dizer que o conhecimento possui uma dimensão relativa significa dizer que as possibilidades que contam como possibilidade de erro são relativas ao contexto, onde o contexto é entendi-do como as circunstâncias sociais ou práticas que envolvem o proferimento (1981, p. 53). O contexto não elimina o caráter absoluto do conhecimento; ele apenas define a subclasse de alternativas que, em cada caso, devem ser levadas em consideração. Assim, no modelo do conhecimento de Dretske a justificação deve ser absoluta ou completa relativamente a um dado con-texto. Assim, ficaria preservada a “absolutidade” do conhecimento sem eli-minar a sensibilidade a “mudanças de propósitos, interesses e outros fatores que influenciam sua aplicação cotidiana” (1981, p. 50). Dretske ilustra esse ponto através de uma comparação com os conceitos absolutos de “plano” e “cheio”.

Conceitos como “plano” e “cheio” respondem a padrões de satisfação que variam conforme a circunstância de aplicação. Uma dona de casa considera-ria que uma geladeira está cheia quando todos os lugares que podeconsidera-riam ser ocupados por alimentos que precisam de refrigeração foram ocupados. Um

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