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(1)

IMAGEM

TAMBÉM

SE LÊ

OBJETO/DESIGN

Sandra Ramalho

e Oliveira

EDITORA ROSARI

2004

(2)

PRIMEIRO, O CARDÁPIO

As letras douradas da minha tese de doutorado sumiram.

As capas dos dois exemplares, depositados na biblioteca da universidade onde eu trabalho, estão sem identificação, quase. Considerando-se que se tratava de uma impressão de boa qualidade, fiquei vaidosa, pois é um indício de que ela está sendo bastante lida, ainda que sendo uma tese, geralmente sinônimo de leitura muito de um texto muito formal e, por isso, enfadonha. Assim, achei que o assunto poderia ser interessante para um número maior de pessoas.

Seu título é “Leitura de imagens para a

educação

”; foi defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da

PUC/SP, sob a orientação de Ana Claudia Mei Alves de Oliveira

e ela dá origem a este livro.

*****

Minha preocupação vem sendo

, há tempo

, o acesso

às imagens, ou melhor,

à

significação das imagens

. Como professora de arte, muitas vezes eu mesma tinha dúvidas diante de determinadas obras. Buscava orientação nos conhecimentos de história da arte, ou na história de vida dos artistas. Mas tinha pruridos éticos; como professora, achava que eu não poderia ter certas dúvidas. Eu me sentia, por vezes, uma impostora...

Nesse tempo, preocupavam-me exclusivamente as imagens artísticas. Ainda assim, como motivar as pessoas para compreender a arte contemporânea, se agora é que muitos começam a perder as resistências em relação à arte moderna (não faz muito que assisti alguém conhecido ficar exultante por “descobrir” que Picasso “também sabia pintar”, ao visitar o museu que leva seu nome, em Paris, onde as obras do início da sua carreira também estão expostas)?

Em seguida, novas deduções: fora dos grandes centros,

a arte vem sendo

sistematicamente terceirizada.

Quero dizer com isto que nas escolas, mesmo em muitas escolas superiores, e até em algumas paredes tidas como respeitáveis, as imagens às quais se refere como se arte fosse, são meras reproduções. Nas escolas, a arte está terceirizada em livros, slides, transparências e, mais recentemente, em power point. Assim, os alunos não estão estudando arte, mas outra mídia, geralmente, a fotografia “da” arte (e não a fotografia “de” arte). E pelo fato de ser outra mídia, a imagem fotográfica que reproduz a arte, geralmente a modifica em, no mínimo, três de seus elementos constitutivos:

dimensão, cor e textura

. E esses elementos, já que são

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“constitutivos”, eles são básicos, eles constituem a imagem, eles engendram sua significação. E se estão distorcidos (ou modificados), implicam modificações na sua significação.

Quando uma reprodução é apresentada “no lugar” da arte, além de a “imagem em questão” não ser a “imagem em questão”, seu significado fica inevitavelmente alterado. Lembro-me do impacto que senti diante de três exemplares da série “Os Retirantes”, de Portinari, ao subir as escadas do MASP, percebendo-os tão mais eloqüentes (porque tão “maiores”) do que as pequenas reproduções que eu conhecia...

Diante desta constatação, percebida de diversos modos, ampliou-se o raio do meu interesse sobre imagens. Não me desafiavam “apenas” as imagens artísticas, mas todo o universo visual em torno de nós, dos rótulos às capas de caderno, do desenho dos biscoitos à estamparia de tecidos, dos cartazes às capas de CD, da organização que associa texto verbal a imagens visuais (isto não é redundância, como veremos mais tarde), dos jornais à propaganda eleitoral gratuita. Além do mais, ou seja, além de podermos estudar com nossos alunos o original dessas imagens, e não sua cópia, os exemplares de composição visual no qual elas consistem eram – e são – sempre mais próximos da realidade dos alunos, o que faz com que lhes seja mais interessante conhecer melhor.

Aí está o

início (ou o início da formalização) do meu interesse pelo design.

*****

É necessário

– e eu continuo defendendo isto -

que as pessoas possam

conhecer e usar um referencial mínimo para poder decodificar o universo

de imagens que invade o seu cotidiano.

Intuitivamente eu achava que a mesma base estrutural que sustentava as imagens da arte também estava presente na base das imagens estéticas do cotidiano. Depois, confirmei através de teorias e de exemplos. Primeiro, foi necessário estabelecer teoricamente esta classificação. Mas, afinal, o que é arte? Pergunta irrespondível, definitivamente, é claro, pois pode ser respondida dos mais diferentes modos. No meu caso, eu precisava saber, ou

diferenciar, o que era arte do que não era (e o que seriam essas imagens

que não eram arte?)

. Jan Mukarovský foi o teórico que me auxiliou, neste sentido. É uma das questões que eu trato no primeiro dos meus

“textosdesign”

, que recebeu o título de

IMAGENS

DO DESIGN, IMAGEM DA ARTE?

Não menos polêmico é o assunto seguinte:

estética

. Quais os diversos sentidos e interpretações que esta palavra carrega consigo, através da história? E o que hoje atribuímos a ela? Se

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imagens nos interessam, seja quanto à criação ou à leitura (e não é melhor escritor aquele que muito lê?),

os significados da palavra estética

, as funções das imagens, sua condição de imagem estética ou imagem artística têm que interessar também. Disso aborda o texto que tem como título

AFINAL, O QUE É ESTÉTICA?

, que acabou começando também com um questionamento, como o anterior. Tudo a ver... não são as dúvidas que nos fazem pesquisar, buscar conhecimentos?

*****

Confirmada, com a devida unção teórica, a possibilidade de não se ter preconceitos em relação às imagens, independentemente de suas funções ou da categoria na qual esteja ela classificada, era imperativa a busca de uma via de acesso à significação. Qual a chave que pode abrir a misteriosa porta da

arte conhecida como “abstrata”

, por exemplo? Seria a História da Arte, com seu acervo de características de uma sucessão de estilos, movimentos, acontecimentos, vidas? Ou a Psicologia, por meio de interpretações das pinceladas daqueles que são compelidos a se expressar através da arte, dada a incapacidade das linguagens convencionais para explicitar seus sonhos? Ou a Sociologia, atenta às características do contexto, as quais permitem o surgimento de fenômenos artísticos, cada vez mais associados a movimentos sociais?

Ora, foi aí que entrou a Semiótica. E, ao entrar também aqui, me obriga a escrever um pouco mais, mesmo sendo o mais breve possível. É apenas

UMA PINCELADA DE SEMIÓTICA.

E nem vai precisar pular o capítulo; além de ser um assunto que é bom estar por dentro, pois parece estar “na moda”, garanto não ser chata.

*****

Tudo é preparação para o que vem depois, que são as leituras de imagens. Antes ainda de começar, falta apresentar o “como fazer”, ou seja, o roteiro, ou os passos da proposta metodológica,

para que os leitores possam depois fazer as suas próprias leituras de

imagens

. Os professores de arte poderão trabalhar com seus alunos usando mil imagens diferentes. Os designers de todas as especialidades poderão desconstruir imagens para melhor estudá-las e melhor criar novas imagens. E o leigo, bem, para ele vou contar a lição que deu meu Primo Paulo, advogado:

- Legal te interessares tanto por arte! Afinal, nem á a tua área... - Como não é a minha área? Eu sou gente!

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Assim, para todos que “são gente”, escrevi

UM MODELO PARA LER IMAGENS.

Foi durante a escrita deste capítulo que senti a necessidade de incluir alguma coisa sobre a violação de normas quando da criação de imagens. Mais precisamente, ao estabelecer analogias entre o texto verbal e o texto visual. Daí surgiu

ABAIXO AS REGRAS.

*****

Apresento as duas primeiras leituras, que são de duas obras de arte, usando esse modelo que venho propondo. Afinal, foi da arte que eu parti... E outra: o mesmo modelo de análise usado para uma imagem da arte serve para a análise de uma imagem ou a imagem de um produto do design. Isto será mostrado, exatamente pela analogia das leituras e pela semelhança entre os passos.

No tocante à arte, uma das imagens analisadas é uma colagem de Matisse, a obra chamada “Formas”, em um texto verbal intitulado

FORMAS MATISSIANAS

; a outra é um Portinari da série “Os Retirantes”, que se chama “Enterro na Rede”, no capítulo batizado de

UM ENTERRO

SEM CAIXÃO.

*****

De imagens artísticas para imagens estéticas, entramos no campo da moda; inicialmente, uma espécie de introdução, onde lembro que a moda é um profícuo sistema de comunicação entre os seres; por isso essa parte recebeu o título de

MODA TAMBÉM É TEXTO

.

Ela vem seguida de uma leitura de uma imagem nessa área, intitulada

ARGOLAS

DOURADAS

. Como a moda é, intrinsecamente, mutante, e como também é muito complexa, em termos de elementos constitutivos e até de figuras que a compõe, tomei formas, as argolas, e cores, os dourados, que são recorrentes ao longo da história, para pensar um pouco sobre esta “linguagem” que usa o corpo como suporte através da história e da geografia. Igualmente, as argolas douradas servem aqui de um exercício de análise do minimalismo e, neste sentido, pretendo ainda aplacar um pouco os preconceitos e mostrar as identidades/identificações entre entidades perceptíveis ao olhar.

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Não esquecendo da relação, nem sempre harmoniosa, entre design e artesanato, escrevi

ENQUANTO O ARTESANATO NÃO SE ATUALIZA

, para compartilhar com o leitor preocupações sobre esta “linguagem”

tão designer

, como é a “linguagem” artesanal, a qual é complementada com a análise de duas imagens tridimensionais. É mais um dos

“textosdesign”

que apresento, o qual batizei de

IMAGENS

HAND MADE

, que consiste em uma minuciosa leitura de duas peças de cerâmica figurativa, oriundas da minha terra, o litoral catarinense. Através deles faço também uma homenagem à toda produção visual de Florianópolis e adjacências.

*****

Então, entramos no âmbito do produto. Devo confessar que tenho uma predileção por vidros de perfume (e pelo seu conteúdo também). Vai ficar evidente, pois apresento partes selecionadas de meu estudo de pós-doutorado, desenvolvido em Paris, sob a orientação do semioticista italiano, radicado na França, Andrea Semprini, tendo como objeto de estudo imagens específicas da marca Givenchy. O perfume Hot Couture – seu vidro – foi estudado, vindo a compor com outra leitura de frasco desenvolvida ainda no doutorado, qual seja, o vidro do perfume Eden, da Cacharel. Iniciamos com

FRASCOS TAMBÉM SÃO TEXTOS

, que contém considerações de ordem geral, tendo como foco a significação das imagens, ainda que em forma de vidro de perfume.

Seguimos com

ESSÊNCIA DO PARAÍSO NUMA GOTA

, o capítulo onde é apresentada a leitura do perfume Eden, da empresa francesa Cacharel e, logo após, é apresentada a leitura de Hot Couture, que recebeu o título de

UM PRISMA QUE É MAIS QUE UM

FRASCO

.

*****

Chegamos então no último bloco de textos, este voltado para a publicidade. O primeiro capítulo, introdutório como os que antecederam as leituras da moda,do artesanato e dos frascos, recebeu o título de

PROPAGANDAS, TEXTOS SINCRÉTICOS.

Para comprovar esta afirmativa, apresentamos as duas últimas leituras de imagens; uma delas refere-se à marca Mont Blanc e recebeu o título de

UMA CANETA “TRÈS CHIC”

.

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O outro exercício de leitura de imagem publicitária consiste no capítulo intitulado

UM

DIÁLOGO ENTRE DESIGNERS.

Ele encerra esta coletânea, mostrando as relações intertextuais que se estabelecem em um texto híbrido ou miscigenado como o da publicidade do perfume Hot Couture, de Givenchy. É o último dos

“textosdesign”

que ora apresento.

Enfim, são muitos temas; eles todos têm relações entre si, mas apontam para distintas questões. São escritos que foram bem sintetizados, “penteados”, simplificados, para facilitar o acesso do leitor... afinal, são duas teses saindo da prateleira... e de uma só vez...

Mas não é preciso que o leitor se assuste com isso: além de sintetizado, simplificado e “penteado”, tudo foi devidamente “traduzido”, daquele linguajar pomposo das teses para um português que todo mundo entenda!

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IMAGENS DO DESIGN, IMAGENS DA ARTE?

Existem diferenças entre as imagens produzidas nas diversas áreas do design e as imagens consideradas obras de arte?

Para complicar mais a questão, vamos fazer uma outra pergunta:

pode uma imagem

estética, produzida por um designer, destinada a um determinado fim

específico, vir a tornar-se uma obra de arte?

Como se sabe, as imagens podem desempenhar vários papéis. Fica então registrado que o parâmetro da funcionalidade pode contribuir para o estudo da imagem, mesmo não sendo absoluto nem definitivo, uma vez que não se trata de um referencial destituído de polêmica.

Assim, este pode ser um bom começo para a discussão: analisar as finalidades que podem ter as imagens. Isto significa examinar as funções de cada imagem, verificar como ela funciona, para quê ela serve, para poder definir se ela é um produto do design ou uma obra de arte.

Existem diversos estudiosos que são contra pensar em arte como um fenômeno que tenha “função”, pois a relação entre a arte e o sujeito deveria ser de

“pura gratuidade”

. Outros dizem que o próprio fato de uma imagem “funcionar esteticamente”, já é, em si, uma utilidade, uma função.

O que se observa é que as funções de uma imagem podem mudar, através não só do tempo, como do espaço. E se mudam as funções, conseqüentemente, também pode mudar a categoria dessa imagem. Por exemplo, o que em determinado contexto cultural teve função religiosa e persuasiva pode, em outro espaço, deixar de tê-las, mesmo que permaneçam outras funções, como a simbólica e a estética. Servem como exemplo as Igrejas que são ou que contém relevantes obras de arte sacra, e que hoje estão transformadas, praticamente, em museus, pois são abertas permanentemente à visitação – e muitas delas cobram ingressos – já que nelas raramente são oficiados atos litúrgicos; nessas circunstâncias, inexistem funções religiosas e persuasivas.

Cartazes de espetáculos

, como os que foram criados no início do século por Toulouse-Lautrec podem, através do tempo, perder sua função informativa. Prova disso é que nos recortes desses cartazes, quando da sua reprodução, não há cuidado com elementos verbais, pois certas palavras foram cortadas ao meio, já que só tinham sentido quando os cartazes possuíam a função informativa. Mas neles ainda restam as funções simbólica e estética.

Outros tipos de imagem podem servir de exemplo para a ocorrência de mudança nas funções das imagens. É o caso das

pranchas de botânica

, aquelas dos cartazes escolares ou mesmo reproduzidas nos livros de ciências, contendo como ilustração de cada planta, o desenho do fruto

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“aberto” e “fechado”, da flor, da folha, da árvore inteira. Muitos exemplares dessa categoria de imagens são comercializados em galerias de arte.

Para ampliar ainda mais os exemplos, lembramos das imagens produzidas pelos

viajantes

europeus

que aqui no Brasil estiveram, como Rugendas, Debret ou Eckhout. Eles desenharam a flora e a fauna, os trajes, os costumes, os tipos físicos aqui encontrados na época, com a principal finalidade de mostrar, em terras distantes, como a vida acontecia por aqui. As exposições desses trabalhos têm levado muita gente aos museus onde se realizam. Hoje, são considerados arte.

Em um olhar panorâmico em direção ao mundo das imagens, poderemos nelas encontrar diversas funções:

mágicas, religiosas, políticas, estéticas, epistêmicas,

informativas, decorativas, persuasivas ou até comerciais

. Além da função simbólica, que parece ser inerente à sua condição de imagem, uma ou mais funções podem se realizar em uma mesma imagem.

Exemplificando, praticamente todos os afrescos com temas religiosos, além de sua função simbólica, guardam ainda as funções religiosa, estética e persuasiva. Um videoclipe publicitário, juntamente com seu caráter simbólico, tem também função persuasiva e comercial, além de apresentar uma proposta estética.

Assim parece claro que as imagens se prestam para diversas finalidades, que podem ser chamadas de funções, e que essas funções podem se alterar, ao longo do tempo.

Fica então registrado que o parâmetro da funcionalidade pode contribuir para o estudo da imagem, mesmo não sendo absoluto nem definitivo, uma vez que não se trata de um referencial destituído de polêmica.

*****

De posse dessas idéias, podemos apreciar (e, quem sabe, adotar) uma afirmação baseada em Jan Mukarovský, um estudioso da estética e da significação das imagens; ela pode funcionar como um paradigma quando da necessidade de classificação de imagens e pode ser assim resumida:

quando a imagem tem entre suas funções a função estética, mas ela é

secundária, temos uma imagem estética;

quando a imagem tem entre suas funções a função estética, e ela é a mais

importante, temos uma imagem artística.

(10)

A partir deste paradigma podemos responder às questões iniciais. Em primeiro lugar, sim, existem diferenças entre imagens da arte e imagens do design, na medida em que existem distinções entre as funções dessas imagens.

E quanto à segunda questão, um produto do design, uma imagem ou um produto estético pode tornar-se, sim, uma imagem ou produto artístico: no momento, no contexto e na medida em que sua função estética tornar-se mais importante do que suas outras funções utilitárias.

É o que acontece com muitos produtos do design que já estão em museus, porque são representativos de um estilo, ou de um movimento estético, ou significam uma quebra de paradigmas ou registram um determinado momento da história.

Neste sentido (e para concluir), é ainda importante lembrar que

toda a imagem artística

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AFINAL, O QUE É ESTÉTICA?

Estamos, todo o tempo, falando de imagem “estética”; devido a mudanças ocorridas, igualmente através do tempo, com a palavra

estética

, torna-se necessário atualizar o conceito que está por trás desta palavra.

Muitos enganos podem ser cometidos ao se ouvir ou usar a palavra estética. Geralmente, ela é considerada

sinônimo de beleza

, e esta beleza sendo considerada como

padrão ideal

, com base no estilo clássico da antiga Grécia e depois, de Roma, princípios formais mais tarde retomados no Renascimento, como

o equilíbrio e a harmonia

.

Mas estamos no século XXI e os equívocos continuam. Daí merecer uma revisão as definições que a palavra estética recebeu através da história. Derivada do grego aisthetikós, de aisthanesthai, que quer dizer perceber, sentir, a palavra foi usada primeiramente por Alexander von Baungarten, no século XVIII, para designar mais do que ciência do belo:

o estudo da sensação ou a teoria da

sensibilidade

. Estética, como disciplina da área da Filosofia, é relativamente recente na história do pensamento humano, portanto. Mas os homens pensam acerca da natureza da arte, do porquê e do para quê da atividade artística muito antes de Baungarten ter batizado esse conjunto de conhecimentos com o nome de Estética.

Daí que estética, no sentido de reflexão sobre imagens produzidas pela humanidade, existiu desde os tempos mais remotos, mesmo que o termo não fosse usado para nomeá-la; e mesmo que não se tenha autores de textos verbais na

pré-história

, é certo que se pode extrair questões científicas, estéticas, a partir da produção gráfica da arte rupestre.

*****

Podemos ainda considerar como origem da Estética a

Antigüidade grega

, mesmo que não tivesse este nome, como já foi afirmado. Não que os gregos tenham concebido um sistema estético, mas certamente elaboraram determinados princípios que não se pode adjetivar de outra maneira que não seja de estéticos, os quais podem ser encontrados em diversos pensadores.

Após o período mitológico, ou seja, o período onde a visão do homem grego se delineava através de mitos, deu-se um período intermediário entre aquele e o que foi denominado metafísico; trata-se do lapso de tempo e espaço chamado de mitológico-poético, onde os poetas como Hesíodo,

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Homero, os líricos ou os precursores do teatro como Ésquilo e Sófocles falam de estética cantando, à sua maneira, o que entendiam como sendo a beleza.

Nesse período, surge a

beleza como atributo de traços e cores

, na natureza e na figura feminina; posteriormente, os homens também podiam possuí-la, quase sempre associada à força ou à bondade. Mais tarde, a beleza passa a ser também qualidade de objetos, bem como da

música e

do canto, com os poetas líricos

. É a partir deles, também, que a beleza física começa a ser vinculada à beleza moral. Com os trágicos, a beleza é associada à idéia de morte, dando origem a uma estética dramática que, transitando em temas que buscam equilibrar loucura humana e espírito de justiça, apresenta-os estruturados nas três unidades, espaço, tempo e ação.

Com Pitágoras, inaugura-se o formalismo:

os números, as medidas, as figuras,

as dimensões postos a serviço da harmonia

, norma estética proposta para a articulação de elementos, aplicável à música e à geometria.

Em Sócrates, evolui um pouco mais o que anteriormente havia sido apenas entrevisto: a

fusão

das idéias de beleza e de bem

, conceito denominado kalocagatia, o que viria a ser consolidado, posteriormente, por Platão. Para Sócrates, é belo o que cumpre sua finalidade; trata-se de uma estética utilitária, mais preocupada com o conteúdo do que com a forma.

Platão, na obra Hípias maior, dedicada especificamente ao belo, recapitula as propostas anteriores, ou seja, posiciona-se frente a conceitos estéticos preexistentes. Nesta obra Platão define teses fundamentais para a história da estética, entre as quais se destaca a proposição de uma noção de beleza, um conceito

de belo, belo em si, belo ideal e não só o belo como

atributo de alguma coisa

. Importante também é a transformação que faz sofrer o conceito de beleza utilitária, tomado de Sócrates, ao vincular o belo ao bem, bem em si, acabado e perfeito, e não ao útil, como queria Sócrates; para Platão,

a beleza suprema está no verdadeiro e no

bem

. É a definição do conceito de kalocagatia.

Há uma diferenciação entre belo e arte para Platão, pois

o belo é incorruptível, está

no mundo das idéias

e confunde-se com o bem, enquanto que

a arte é uma tekné,

existe no mundo do sensível, é matéria

. E se o mundo sensível é a cópia do mundo das idéias, a arte é menor que beleza: faz coisas belas, mas não é beleza em si. Ainda segundo suas teorias - e sob influência pitagórica - o ouvido e a vista transmitem as sensações organizadas através das medidas, o metron; assim,

a beleza nas artes está subordinada a elementos de

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Se, para Platão,

a realidade é uma cópia imperfeita das idéias

, para Aristóteles, seu discípulo, o importante é a realidade, uma vez que as idéias são abstratas; assim, para ele, quanto mais se materializa a coisa, mais real se torna o conhecimento e

quanto mais a

imagem é abstrata, mais genérico é o conhecimento

.

Da mesma maneira que seus antecessores, Aristóteles não deixou um sistema estético, mas sim opiniões sobre o belo e sobre a criação artística, considerada sempre por ele uma técnica, campo onde incluiu a música, a poesia e o teatro, deixando de lado as artes plásticas. O valor da arte, para ele, residia no fato de ser uma atividade do homem e não por ter um valor em si mesma, uma vez que seus esforços estavam centrados na constituição do ser humano.

Reduzida à condição de técnica, Aristóteles diferenciava, como Platão, a arte do belo, que para ele era metafísico. Distingue o bem, que para ele tem uma finalidade, do belo, que não a tem. Separa ainda o belo moral (cósmico, prático ou útil) do belo formal e, neste último, destaca a importância da matemática, pois para ele o belo está condicionado a leis que tornam a forma bela, à simetria e ao que chama de determinação, uma modalidade da ordem.

Fundamental para o estudo de estética são as formulações de Aristóteles sobre a tragédia e, em especial, um conceito que viria a ser recorrente na história, diversas vezes utilizada na Filosofia e mais adiante na Psicanálise:

a catharsis, a purgação das paixões através do

sofrimento

, da tragédia, esta considerada por Aristóteles como a ilusão do verossímil. *****

Na Idade Média, deu-se uma incompatibilidade entre o ideal cristão e a preocupação com a beleza, pelo fato de se acreditar que

o belo suscitava o que é sensível e sensual

no homem; esta espécie de temor caracterizava o sentimento de época e foi o que levou S. Tomás a declarar: “Pulchritudo corporis est pulchritudo maledicta”. Ainda no primeiro período medieval, Santo Agostinho, que filosofava para resolver os problemas da sua própria existência - sendo considerado o precursor do existencialismo - deixou reflexões sobre o signo e a beleza, inclusive a do corpo.

Mas durante esse período, a maior contribuição foi a de S. Tomás de Aquino. Ele distingue três categorias de bem: o

bem útil

, que não é belo porque não é desinteressado; o

bem deleitável

, que pode levar ao pecado da luxúria, através da lisonja; e o

bem honesto

, desinteressado e espiritual, como o belo da alma, onde o bem e o belo se confundem.

(14)

No seu sistema filosófico, são diversas as abordagens de beleza, sendo que de Aristóteles toma duas das três características a ela atribuídas:

a integridade ou perfeição e a justa

proporção ou harmonia

.

A terceira característica tem em S. Tomás mesmo sua origem e por isso merece destaque:

claritas

, que é claridade, que é luz, luz que é Deus, luz que é cor, pois sem luz não há cor e a cor torna as coisas mais belas. É esta estética da luz que se presentifica na catedral gótica, mais precisamente, na luz passando através dos seus vitrais.

De qualquer maneira, na Idade Média prepondera o valor utilitário da arte, sendo que este sentido permanece na transição para o Renascimento, quando o ofício de construir a beleza é um ato de fé e fruí-la é a contemplação do divino. A arte é utilizada pedagogicamente para evangelizar, através da imitação da natureza ou de alegorias.

*****

No Renascimento, a arte deixa de ser um meio para ser um fim em si mesma e a retomada dos ideais da Antigüidade Clássica, com nova roupagem, substitui o misticismo medieval. O homem, como centro do universo, é a idéia fundamental, presente nas teorias e confirmado na produção artística, onde a beleza sensual glorifica as manifestações mais altas da arte.

Nesse período histórico, surgem tratados sobre a arquitetura e escultura e mesmo sobre as cores, e

o conceito de beleza passa (ou volta) a ser confundido com o de arte

. A partir daí também os estilos artísticos adquirem características próprias em regiões diferenciadas, de acordo com as influências e o pensamento do respectivo contexto: na Espanha, permanecem resquícios medievais, dado o sentimento nacional de religiosidade, o qual disputa espaço com as influências estrangeiras; na França, a partir do século XVIII e por influência do racionalismo, a sensibilidade deve subordinar-se à razão e às leis dela emanadas.

Em torno deste período da história, diversificam-se as correntes filosóficas e muitos são os estudiosos que se ocupam com questões como as sensações, a sensibilidade, a beleza e a arte, em maior ou menor proporção. A partir de Baungarten, a Estética passa a ser considerada uma disciplina específica, o que torna mais objetiva a busca teórica, ainda que “dentro” da Filosofia.

Desde que adquiriu o status de área específica do conhecimento, o termo “estética” foi se ampliando cada vez mais, quer para designar as teorias do belo e da arte, quer para compreender as teorias mais recentes que

já não remetem a beleza à sensação ou a arte ao

(15)

*****

Em pleno século XX, um francês, teórico da significação, chamado Algirdas Julien Greimas, resgata o sentido de estética como inicialmente proposto por Baungarten, pautado na noção

de

percepção de sensações

, concede-lhe nova roupagem e o aprofunda, na medida em que estabelece relações recíprocas entre o sensível e o inteligível. Esta espécie de trânsito entre o cognitivo e as sensações é o que possibilita o acesso do sujeito ao mundo, independentemente da cara que este mundo tem, “bonita” ou “feia”. Isto porque Greimas se afasta de um conceito de estética vinculado ao

belo e se aproxima da Estética como

estesia

- percepção através dos sentidos, do mundo exterior, análoga ao conceito de Baungarten. Trata-se da

experiência do prazer ou mesmo do

desprazer, das percepções dos sentidos, da sensualidade e da

sensibilidade

.

Nada mais adequado do que esta ampliação, uma vez que, na produção artística contemporânea, verifica-se a presença do jocoso, do irônico, do escatológico, da transgressão, da descontinuidade, da pluralidade, das interfaces, da atemporalidade, da arte virtual, do chocante, do forte,

dessacralização, em relação à arte e ao artista

.

Enfim, a arte contemporânea produz o que alguns chamam de antiarte. É necessário, pois, ampliar os mecanismos de percepção e recepção, bem como a disposição para a reflexão sobre a contemporaneidade.

(16)

UMA PINCELADA DE SEMIÓTICA

O que é Semiótica?

Antes de tudo, este é o título de um livro de Lúcia Santaella, que bem melhor responderá a esta questão específica, pois nele ela dedica-se apenas a respondê-la, ainda que se declare impotente para concluir tal tarefa, remetendo o leitor para outras leituras.

Do mesmo modo, Winfried Nöth, em dois trabalhos, quais sejam eles, “Panorama da Semiótica” e “Semiótica no século XX”, responde, de um modo respeitável, à aparente simplicidade da questão.

Isto tudo me lembra meu querido sobrinho neurocirurgião, o Dr. Marcelo Linhares que, em visita, durante meu “postdoc” “à Paris”, fez a mesma aparentemente singela questão. Ouviu tentativas de respostas durante a noite inteira... E na noite seguinte, ao encontrarmos brasileiros na Opera Bastille, percebendo que faziam a mesma pergunta, exclamou, balançando a cabeça entre as mãos, temendo participar de nova pregação: - Não! Eles fizeram “aquela” pergunta (

o que é Semiótica

)!

Existem muitas histórias sobre apenas “o que é Semiótica”, sem entrar no que seja Semiótica, propriamente dita. Exemplos: ainda do livro da Santaella, anteriormente citado, ela coloca: seria o estudo dos símios? Ou uma especialidade em Camões? Meu próprio filho, subsidiado por primo Paulo (aquele que é gente), dizia que eu era uma semi-ota, mas que, a partir da defesa do doutorado, passaria a ser uma ota inteira.

Também há o caso da vizinha de poltrona de avião, quando eu estava rumo ao congresso internacional realizado no México, em 1997, que perguntou, ao saber que me destinava ao congresso de Semiótica, se eu era oftalmologista... E isto é verídico!!!

Encerrando as brincadeiras, embora algumas verdadeiras, – e com elas procurando tirar lições – o fato é que Semiótica é uma palavra e um conceito desconhecidos. Isto porque ela é uma nova, em termos de organização em sociedade científica, ao menos – área de conhecimentos (para não contrapor aos que não aceitam chamá-la de ciência).

Mas, com tantos senões (

é ou não é ciência? é uma área nova, de fato?

existem várias Semióticas?

), parece haver mesmo necessidade de algumas palavras sobre Semiótica, neste livro; por outro lado, como se está pretendendo também atingir um público leigo, além de estudantes que não tenham tido Semiótica anteriormente no seu currículo, mais evidente ainda parece haver a necessidade de apresentar algumas idéias sobre o assunto; e remeter os leitores mais interessados a fontes mais completas, profundas ou específicas.

(17)

*****

A primeira questão que surge, geralmente, quando se pronuncia a palavra Semiótica, é a seguinte:

o que existe em comum entre Semiótica e Semiologia

, este último, um termo mais conhecido dos leigos? De acordo com o francês Roger Odin, poder-se-ia escrever um livro para estudar em detalhes a totalidade das definições propostas para cada uma destas duas palavras; no entanto, ele apresenta três possibilidades.

A primeira hipótese seria a de considerá-las sinônimos, sendo apenas diferenciadas pelo fato de semiologia ser um termo de origem européia e Semiótica, de origem norte-americana.

A segunda possibilidade apontada por Odin, para diferenciá-las, consiste em se reservar a palavra semiologia para a tradição saussureana (teorias dos seguidores do suíço Ferdinand de Saussure), e Semiótica para a tradição peirceana (teorias dos seguidores do norte-americano Charles Saunders Peirce), não apenas para diferenciar seus pais fundadores, mas para distinguir seus modelos teóricos e corpos de referência: estruturalismo no caso da semiologia e pragmatismo, no da Semiótica.

A terceira relação entre semiologia e Semiótica apontada por Odin diz que, na França,

Semiótica é freqüentemente usada para designar as teorias propostas pelo francês A. J. Greimas, as

quais pretendem dar conta do fenômeno da produção de sentido em geral, diferenciando-a assim da

semiologia européia, que se ocupa do estudo da estruturação das linguagens, além da sua produção de

sentidos.

Mas, para os iniciados, esta polêmica entre os termos Semiologia e Semiótica passou a ser um episódio histórico

a partir de 1969

, quando Roman Jakobson propôs - e a Associação Internacional de Semiótica aceitou – a

adoção do termo comum Semiótica para

designar todo o campo de estudo abarcado tanto pela semiologia quanto

pela Semiótica.

*****

E “o que é Semiótica” (volta a tal pergunta)...?

A palavra Semiótica é derivada do grego semeion, que significa signo. E signo significa tudo aquilo ou todo aquele que significa, de um modo simplista.

(18)

São inúmeros os estudiosos que vêm tentando definir Semiótica, até porque, como já pode ser observado anteriormente, existem várias correntes teóricas dentro da Semiótica, e cada uma delas a define de acordo com sua visão específica. Algumas dessas conceituações são complexas; todavia, pode-se iniciar por definições sucintas, não podendo evitar simplificações grosseiras e lacunares, conforme palavras de Lúcia Santaella.

Semiótica é a ciência geral dos signos

; também pode ser considerada a

ciência da significação

, ou

ciência que estuda todas as

linguagens

; ou ainda, “ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno de produção de significação e de sentido”, se usarmos palavras da já citada estudiosa Lúcia Santaella.

Pode ser ainda definida como a “ciência geral de todos os sistemas de signos através dos quais estabelece-se a comunicação entre os homens”, usando-se palavras de T. Coelho Netto; ou conforme Odin, inspirado em Greimas: “teoria geral dos sistemas de comunicação,

capaz de possibilitar

o estudo do conjunto dos processos de produção de sentidos

, seja intervindo nas linguagens verbais, não verbais ou no mundo natural”.

Semiótica também pode ser considerada como um conjunto de meios que tornam possível o conhecimento de uma grandeza manifesta qualquer que se propõe conhecer, “tal qual aparece durante e depois de sua descrição”, se considerarmos a definição do Dicionário de Semiótica de A. J. Greimas e J. Courtés. Ou a

ciência dos signos e dos processos significativos (semiose)

na natureza e na cultura

, conforme Nöth. Porém, o próprio Winfried Nöth pondera, a seguir, seu conceito integrador, reconhecendo que esta definição não é aceita por todos os estudiosos da área.

Enfim, são muitos os modos de conceituar esse campo de estudo que é recente, em termos históricos, enquanto conhecimento sistematizado, embora remonte às cavernas seu objeto de estudo, qual seja, o fenômeno da significação. E, por outro lado, o próprio estudo das linguagens verbais e não-verbais remontam a Platão, embora não organizados no contexto de uma área específica de investigação.

*****

Na História Antiga, esses estudos situavam-se no âmbito da Filosofia; na Idade Média, nos domínios de vertentes da Filosofia – Teologia e Lógica, bem como da Gramática e da Retórica; daí em diante, dentro de diversas correntes filosóficas e da Filologia; modernamente, na Lingüística, na Teoria Literária, na Antropologia, na Semiologia e nas chamadas ciências da Comunicação e da Informação,

(19)

até essas diversas vertentes se encontrarem em um estuário caudaloso e desembocarem em um mar comum, denominado Semiótica, já na segunda metade do século XX. Daí o questionamento a respeito de ser ou não a Semiótica uma ciência recente.

*****

Outra questão polêmica diz respeito a ser ou não a Semiótica uma ciência. Alguns propõem como pressuposto para considerar qualquer conjunto de conhecimentos acumulados e em desenvolvimento como ciência, o fato de existir

um objeto de estudo definido, um

método de investigação próprio e uma base teórica comum

.

Ora, o que contemporaneamente se considera Semiótica não atende a nenhum dos três pressupostos. Não existe um objeto de estudo para a Semiótica: poder-se-ia dizer as linguagens; mas como delimitar linguagens, quando hoje se fala da ecossemiótica, da sociossemiótica, da biossemiótica e da semiótica da cultura? Conseqüentemente, essa diversidade de objetos de estudo exige equivalente multiplicidade de instrumentos de investigação. O mesmo vai ocorrer, como se pode deduzir, do referencial teórico necessário para dar conta desse mundo significante. Ou seja, os fundamentos semióticos estarão associados ora a bases teóricas das ciências da vida, ou das ciências sociais, ou da Física, da Filosofia, ou de uma ou mais subdivisões de alguma dessas ciências, como a Estética, para dar conta da especificidade de cada objeto de estudo. Assim sendo, permanece a polêmica.

Como se já não bastassem essas interrogações (Semiótica ou Semiologia? recente ou remota? ciência ou não?), a Semiótica contemporânea apresenta escolas ou linhas teóricas distintas, o que já foi evidenciado quando da apresentação de definições, pois cada definição encerra um modo particular de descrever o que seria a área de estudo, na dependência da matriz teórica a qual se filia seu autor.

Existem, portanto, diversas linhas teóricas dentro da Semiótica, mas vamos fazer umas poucas considerações apenas sobre três delas, que são as mais conhecidas no Brasil.

Uma delas é a chamada Semiótica Russa, Semiótica Soviética ou Semiótica da Europa Oriental, sendo que depois de vários desenvolvimentos nas teorias e após algumas mudanças geo-políticas havidas naquela região da Europa, hoje é conhecida como

Semiótica da Cultura

. Dizem os autores, entre eles Bóris Schneidermann, autor do livro Semiótica Russa, que na segunda metade do século XIX, na Rússia, embora não existisse ainda essa área de conhecimento estruturada, já havia uma consciência semiótica, que perdurou praticamente até Stálin assumir o poder. Essa

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conhecido como Círculo Lingüístico de Moscou. Foi aí que surgiu o chamado formalismo russo, dada a preocupação daqueles estudiosos com a forma lingüística.

O Círculo Lingüístico de Moscou inspirou a criação do Círculo Lingüístico de Praga, anos mais tarde, já entre as décadas de 20 e 40. Em ambos, havia a predominância de estudos acerca da linguagem verbal, com ênfase na análise sintática, especialmente da poesia. Entretanto, já havia o prenúncio da possibilidade de estender os princípios da estruturação da linguagem verbal para o estudo de outros códigos estéticos, como a pintura, o teatro, o cinema e a arte popular. A esse respeito, uma figura fundamental foi Roman Jakobson, que participou de ambos os grupos, além de ter deixado claro, em suas obras, a possibilidade do trânsito entre sistemas distintos, a partir de um modelo comum, até então usado nos estudos das línguas naturais.

Com a chegada de Stálin ao poder supremo, deu-se o fechamento do regime na então URSS, sendo que, como acontece nessas situações de cerceamento de liberdades individuais e de grupos, ficam sob suspeição todos os modos de comunicar. E, neste caso, não foi diferente: o regime político passou a interferir tanto na produção artística como na teórica, principalmente nos estudos lingüísticos. Mais tarde, na década de 50, é fundado em Moscou o Instituto de Semiótica da URSS, havendo a retomada de estudos anteriores e novos desenvolvimentos. Em 1970, a nova geração de semioticistas soviéticos passa a denominar a linha específica adotada por eles de Semiótica da Cultura, pelo fato de terem como princípio

investigar os sistemas de signos sempre levando em

conta seu respectivo contexto cultural

. Na atualidade, os princípios adotados por esses estudiosos ultrapassaram os limites da Europa Oriental e a Semiótica da Cultura está presente em diversas regiões do mundo.

Outra das três linhas ou escolas mais reconhecidas no âmbito da Semiótica é chamada de Semiótica Americana ou, simplesmente,

Semiótica Peirceana

. Isto porque seu fundador foi o norte-americano Charles Saunders Peirce (1839-1914), o qual deixou uma vasta produção teórica que talvez não tenha sido mesmo, até hoje, completamente explorada. O ponto de partida de Peirce não foi a língua natural, como foi o caso das outras linhas teóricas da Semiótica. Peirce, que era filósofo e matemático, criou uma teoria dos signos associada à lógica, cuja função seria a de classificar e descrever todos os tipos de signos.

Se para Goethe tudo na vida é ritmo, para Peirce, tudo no mundo é signo: os objetos, as idéias e o próprio ser humano são entidades semióticas. Este princípio é chamado por seus seguidores de visão semiótica universal do mundo ou visão pansemiótica do mundo, pois ele sequer admitia uma classificação entre entidades semióticas e não semióticas.

(21)

Para dar conta de classificar todos os fenômenos desse mundo inteiro semiótico, ou seja, para desenvolver a classificação de todos os signos, Peirce criou apenas três categorias; e teve a necessidade também de inventar novas palavras para designar essas categorias. Essas palavras foram traduzidas para o português como primeiridade, secundidade, terceiridade, repectivamente, do inglês

Firstness, Secondness e Thirdness

. Estas categorias constituem a base das teorias do autor, pois são esses os termos que designam

as únicas três possibilidades de se

enquadrarem todos os fenômenos da natureza e da cultura

, incluído o pensamento, os conhecimentos, e o próprio ser humano.

As categorias de Peirce podem ser assim sintetizadas: primeiridade, como sendo a capacidade contemplativa do ser humano; o ato de apenas ver os fenômenos; o acaso; o espontâneo; secundidade, como a capacidade para distinguir e discriminar as experiências, ou a reação aos fatos concretos; terceiridade, a capacidade de generalizar os fatos e organizá-los em categorias; neste nível, dá-se, segundo ele, a mediação, o crescimento, a aquisição. Essa tricotomia é um modelo teórico que possibilita a aplicação em diversas áreas do conhecimento. Do mesmo modo, outra tricotomia pregada por Peirce – as noções de ícone, índice e símbolo – tem servido para aproximar e inter-relacionar a Semiótica com as chamadas ciências cognitivas. A grande divulgadora e estudiosa da obra de Peirce no Brasil é Lúcia Santaella, que já conta duas dezenas de livros publicados com base em teorias peirceanas.

Como essas brevíssimas noções podem mostrar, a Semiótica peirceana, a exemplo de outras escolas semióticas, usa uma terminologia hermética, o que muitas vezes afasta interessados no estudo do fenômeno da significação. E sua construção teórica é tão original em relação a estudos sobre linguagens e significação com base na Lingüística, o que levou Roger Odin, outro francês, estudiosos da significação, a afirmar que a Semiótica de Charles Saunders Peirce quase nada tem a ver com a semiologia de Ferdinand de Saussure.

A última fonte teórica semiótica contemporânea, de acordo com a classificação de Santaella, em três origens distintas, nasceu e vem se desenvolvendo com mais consistência na Europa ocidental; é conhecida como Semiótica Saussureana (por conta de Ferdinand de Saussure), Semiótica da Europa Ocidental (para diferenciá-la da semiótica de origem soviética), Semiótica Francesa (mesmo que vários de seus seguidores sejam de outras nacionalidades), Semiótica Visual (pelo fato de o estudo da visualidade estar muito bem desenvolvidos pelo grupo da chamada École de Paris) e, mais recentemente, para se referir a desenvolvimentos posteriores, usa-se a expressão

Semiótica

(22)

Greimasiana

, para designar os adeptos das teorias propostas pelo francês Algirdas Julien Greimas e seu grupo de pesquisadores.

As linhas teóricas, no âmbito das ciências, desenvolvem-se como dinastias: determinado cientista professa princípios específicos, utiliza um método aplicável a outros objetos de estudo ou descobre certas propriedades de um elemento; seus assistentes acompanham-no, sucedem-no, fazem novas descobertas, associam-se a outra geração de discípulos; estes, por sua vez, continuam os estudos, aprofundando-os ou, às vezes, mudando seus rumos. E a ela, associa-se outra geração e assim, sucessivamente. Isto fica evidente na vertente francesa da Semiótica. Seu pai fundador, o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1915), partiu do estudo da linguagem; criou a Lingüística, que tinha como objeto não apenas o estudo de sinais, mas da matriz do comportamento e pensamento humanos, uma vez que considerava a linguagem como a formatação de atos, vontades, sentimentos, emoções e projetos, ou seja, um dos principais fundamentos das sociedades humanas.

Saussure, percebendo a possibilidade de estender várias das proposições adotadas para a análise da língua natural para outros sistemas de significação, propôs e termo Semiologia para designar o estudo geral de todos os sistemas de signos; contudo, fora o estudo mesmo das línguas naturais, apenas alguns estudos foram feitos, ainda assim, muito associados à lingüística ou, como “uma disciplina anexa” a ela, conforme disse, mais tarde, Greimas.

Na segunda geração dessa abordagem teórica destaca-se o dinamarquês Louis Hjelmslev (1899-1965), que estudou o isomorfismo entre diversos sistemas de signos, vindo a propor critérios para considerar outros sistemas, que não os das línguas naturais, como linguagem. É sua a denominação que designa plano da expressão e plano do conteúdo ao que Saussure havia chamado, respectivamente, de significante e significado, termos esses mais familiares aos leigos. Alguns o criticam por apenas mudar a terminologia adotada por Saussure neste e em outros fenômenos da significação. Outro nome de destaque é o francês Roland Barthes (1915-1980), que agrega a noção de sujeito e o sentido cultural ao processo de significação. Dedica-se aos estudos do mito, da língua, do teatro, da fotografia, do cinema, da arquitetura, da pintura, da propaganda, da moda e até da medicina e da música. Tanto Hjelmslev quanto Barthes têm diversas obras publicadas em português.

Um personagem de grande relevância nesta geração pós-saussurre é o de Algirdas Julien Greimas (1917-1992). Ele cria um grupo de pesquisadores dedicado à sociolingüística, cujos interesses estavam voltados tanto para a ciência especulativa quanto para a ciência aplicada, tendo inicialmente como objeto de estudo o texto literário. Deixou importantes fundamentos teóricos para seus seguidores em ensaios e livros.

(23)

Greimas foi um dos semioticistas que se manteve mais fiel às idéias estruturalistas de Saussure, sendo que o objetivo principal do projeto semiótico de Greimas é o de

estudar o

discurso com base na idéia de que uma estrutura narrativa se manifesta

em qualquer tipo de texto

, sendo que a palavra “texto” extrapola, de acordo com essa linha teórica, a condição exclusiva de texto verbal. Para Greimas e seus discípulos, um ritual ou um balé podem ser considerados textos ou discursos.

Em decorrência, ele e seu grupo ocuparam-se – e seus seguidores ainda hoje se ocupam – do estudo do espaço, da arquitetura, da pintura, da teologia, da televisão e do cinema, da publicidade e da moda, do direito e de outras ciências sociais, sempre considerando cada manifestação, em qualquer dessas áreas, como textos.

Em sua obra A Semiótica no Século XX, Winfried Nöth afirma que apenas um esboço

grosseiro das idéias de Greimas poderia ser apresentado, em um capítulo. Menor ainda é nossa

ambição nestas poucas linhas, não só em relação a Greimas, mas a toda a Semiótica. Afinal, é apenas

(24)

UM MODELO PARA LER IMAGENS

Para penetrar na complexidade da imagem, com vistas a uma leitura que contemple o seu todo, ou para que se perceba integralmente seu plano de expressão, ou seja, tudo aquilo que é perceptível ao olhar, é necessário vasculhar o texto, inicialmente tentando

definir a linha ou as

linhas que determinam a macroestrutura da imagem visual

, também chamada de estrutura básica. É uma diagonal? É um eixo vertical? Diagonais que se cruzam, horizontais paralelas, figuras geométricas, ângulos ou um ponto central?

Estas são as primeiras indagações

que devem suscitar uma imagem. Isto porque a estrutura básica da imagem vai dar sustentação à composição visual no seu todo e, portanto, será fundamental no jogo de decodificação dos significados.

Definida a estrutura básica da imagem, parte-se para a observação das minúcias, ou seja, para a identificação de seus

elementos constitutivos

, como linhas, pontos, cores, planos, formas, cor, luz, dimensão, volume, textura. Que elementos dão origem ao texto visual? E como se apresentam outros elementos, que não podem ser chamados de constitutivos porque não compõem a imagem, mas que também geram efeitos de sentido, como o suporte, o recorte e a moldura? Aliás, aqui cabe um parênteses: quando falamos em “moldura”, é no sentido amplo, não só aquela madeira ou metal, decorado ou pintado, mas tudo o que está em torno, que dialoga com a obra. Onde estão esses elementos mínimos constitutivos e significantes?

Este é o foco do segundo grupo de

indagações

que cada um deve fazer a si mesmo, diante de uma imagem.

Entre os elementos constitutivos estabelecem-se relações. Assim sendo, identificados os elementos constitutivos, buscam-se as articulações entre esses elementos, momentânea e mentalmente desfeitas, quando da investigação do rol de elementos que constituem a imagem. As relações, articulações ou regras de combinação entre os elementos constitutivos da imagem são chamadas

procedimentos relacionais

.

Essas relações podem ser encontradas entre elementos, entre elementos e bloco de elementos, entre blocos de elementos entre si; também um mesmo elemento pode estar articulado de modos diferentes. Por exemplo, entre várias circunferências que compusessem uma imagem, elas poderiam estar relacionadas pela repetição ou rebatimento das formas; por outro lado, as mesmas circunferências poderiam estar relacionadas pelo contraste de dimensões e de cores; poderiam, ainda, estar relacionadas de modo eqüidistante, gerando ritmo, considerando-se o fundo dessas figuras; e poderiam se relacionar

(25)

através do procedimento de repetição através da textura, fosse entre as circunferências ou deste bloco de circunferências com o seu fundo.

Para clarear um pouco esta composição intrincada que é a imagem, poderemos fazer analogias, que são bastante simplistas, mas têm funcionado. Uma das comparações propõe pensar na imagem como um texto verbal, onde os elementos constitutivos seriam as palavras, e os procedimentos relacionais corresponderiam à sintaxe, ou seja, ao modo de organizar as palavras entre si. Mas é preciso cuidado, pois existem distinções para além do aspecto visual de ambos os textos. Uma delas é que nem a escrita nem a leitura da imagem são lineares; a outra é que cada elemento não “concorda” com apenas um outro elemento, como já foi mostrado acima; ao contrário, ele geralmente está articulado com diversos elementos, como que formando uma teia. E a terceira, bem, é um papo para outro capítulo... trata-se da “obediência às regras gramaticais”, que já há muito não funcionam quanto às imagens...

Outra comparação pode ser feita entre a criação ou a leitura de uma imagem e um produto culinário,

um bolo

, por exemplo: os elementos constitutivos da imagem seriam os ingredientes, e os procedimentos relacionais, o modo de fazer...

Enfim, esta proposta para ler imagens faz um desmonte, em busca dos efeitos de sentido, das significações. Desconstruindo e reconstruindo a imagem, as articulações entre os elementos são processadas. A leitura passa a ser um processamento das relações, onde a cadeia de significações é remontada, com base em determinadas regras de combinação, selecionadas para construir a imagem, que são os procedimentos relacionais adotados pelo sujeito criador.

Como estão organizados

os elementos no texto? Eis a pergunta seguinte.

Elementos mínimos constituintes articulados através de regras são as marcas da concepção do texto visual que, nele deixadas intuitiva ou conscientemente, revelam o momento vivido e as pretensões do seu produtor. Em cada texto visual está registrado um discurso, evidenciando uma visão específica, a do seu criador. A imagem mostra a sua visão de mundo, suas relações com o seu contexto, além da sua capacidade de manipulação do código ao qual pertence a imagem. Todavia, qualquer que seja o contexto e a concepção de mundo do produtor e independentemente do código que se utilizar para a manifestação,

expressão e conteúdo, correlacionados, estarão sempre no seu

texto

, visíveis e ou audíveis.

Assim, o que o leitor ou o enunciatário da imagem tem diante de si é o texto estético, que é o próprio universo de sua leitura. Isso caracteriza a autonomia da imagem: os procedimentos relacionais estão ali registrados, e são essas relações que a definem como tal, pois tão logo o criador termine o seu

(26)

trabalho, ele não mais lhe pertence.

A imagem passa a falar por si mesma,

independentemente do que seu autor teria querido dizer.

O leitor fica, então, dispensado de pesquisar a história e o contexto do autor da imagem, pois os dados indicativos desses e de outros conteúdos estão na própria imagem. Por isso o leitor de um texto visual deve transitar incansavelmente de um ou mais elementos mínimos para outros elementos, de um tipo ou de vários procedimentos para outro ou outros, de elementos para procedimentos e vice-versa, deles para o todo da imagem. Em seguida,

retorna do todo ao que pode parecer

detalhe, ou seja, ao que algumas vezes não fica visível diante de um

primeiro ou segundo olhar.

Munido de seus sentidos e de sua capacidade cognitiva, segue o leitor na direção do desvelamento de novos conhecimentos, através de renovadas significações que encontra, transitando das partes para o todo e do conjunto do texto estético para seus componentes. São as inúmeras trilhas que se entrecruzam no visível da imagem (plano de expressão) ao mesmo tempo em que tecem a significação (plano do conteúdo); daí a necessidade de observar minuciosamente toda a imagem, resgatando pontos relevantes para, a partir deles, recriar, traduzindo uma teia de elementos e procedimentos significantes que, como tal, é construída por meio de linhas paralelas, concêntricas, todas relacionadas.

Tudo isto é necessário para que se chegue aos incontáveis

sentidos de um texto, ao que quer dizer a imagem, ao plano do conteúdo.

Os elementos constitutivos do texto estético não devem ser considerados como um vocabulário auto-suficiente apenas, pois estes elementos não adquirem sentido no isolamento, mas sempre e somente na relação. A descoberta dessas relações vai conduzir o leitor aos efeitos de sentido, ou ao plano do conteúdo.

O acesso às imagens estéticas não é, de modo algum, um processo simples; talvez seja tão complexo quanto o universo mesmo dos produtos visuais. O que se propõe é um

referencial

mínimo para a leitura da imagem

; parâmetros passíveis de utilização na leitura de diversas imagens; uma abordagem que oriente para um modo de ver diferente do habitual; uma estrutura básica a ser guarnecida com outros conhecimentos, tanto os já trazidos na bagagem do leitor, quanto aqueles que ele se sentirá instigado a buscar a partir da provocação proposta pelo texto estético diante de si.

(27)

ABAIXO AS REGRAS

Há pouco, ao falar das diferenças entre o texto verbal e o texto visual, lembramos das regras ou normas da gramática, aquelas que permitiram ao nosso professor de português nos tirar pontos, ou nos rodar, ou riscar nosso trabalho, ou passar por cima com tinta vermelha sobre nossos erros, ou escrever

aquele esperado “C” com perna bem comprida

, nas questões de prova. Todo mundo sabe o quê é uma destas coisas, ao menos, dependendo da idade que hoje temos. E agora, que não temos mais professor, continuamos errando, sem ter quem nos corrija...

Por que cometemos erros?

Porque existem regras para cumprir. Ou, no caso da linguagem verbal, porque existe a gramática, um conjunto de leis ou regras, que regulam o uso das palavras em um determinado idioma. Assim sendo, na linguagem verbal há o certo e o errado (o que está de acordo com as regras da gramática ou não); o professor ensina e depois corrige o que fizemos diferente do que foi ensinado por ele e pelo livro que, por analogia, também é chamado de GRAMÁTICA.

Antigamente, existiam os chamados cânones em arte, que eram equivalentes às regras gramaticais: os olhos deveriam estar no limite entre 1/3 e 2/3 da cabeça, de cima para baixo; o corpo deveria medir sete vezes a dimensão da cabeça e assim, sucessivamente. Aí acreditavam os gregos, os romanos e mais tarde, os artistas do Renascimento, estava garantida a beleza. Mas muitos experimentaram usar os tais cânones e não conseguiram bons resultados...

O que se percebe é que, no âmbito do sistema visual, não existem regras específicas, já há muito tempo. Ao contrário, quanto mais original é a imagem, quanto mais ela conseguiu um modo de se sustentar (ao mesmo tempo, cumprindo suas funções e quebrando as normas estéticas vigentes). Por exemplo, na publicidade, o primeiro a ultrapassar os limites da moldura do outdoor incorreu em uma violação de uma norma estabelecida. O precursor de anúncios com cheiro, em revistas, também.

Existe o habitual, o estabelecido, o quê é tacitamente aceito e reconhecido enquanto tal, seja uma embalagem, um cartaz, uma capa de CD. Isto é a norma, ou a regra, ou o paradigma estético. Criar algo além disto significa quebrar, violar, romper ou desobedecer as normas, regras ou paradigmas. Percebam: todos estes verbos, violar, desobedecer, por exemplo, nos levam à noção de infringir leis, nos levam à idéia de marginalidade. Porém, nas “linguagens” visuais, bidimensionais ou tridimensionais,

quanto mais violada a norma vigente, tanto mais original,

criativo e... eloqüente é a imagem

; porque ela se diferencia das demais da sua classe; ela se destaca...

(28)

Por este motivo, devemos ter cuidado ao fazer a transposição ou as analogias entre texto verbal e texto visual. Além das diferenças já conhecidas, certas palavras próprias do fenômeno de comunicação verbal, ao serem utilizadas no âmbito do visual, deveriam merecer uma referência qualquer para distingui-la, seja um grifo, um rodapé explicativo, umas aspas. Porque

não existe

uma gramática do visual

; não existindo gramática, inexiste uma sintaxe; não existindo gramática nem sintaxe, inexiste uma linguagem visual... apenas, uma “linguagem” visual, com linguagem entre aspas, quer dizer, uma espécie de “linguagem” que não é exatamente o que se pensa quando se diz linguagem. Deu para entender?

Ora, o uso já consagrou a expressão “linguagem” visual. No entanto, esta “falta de cerimônia” ao nos apropriarmos de uma terminologia importada de outro sistema, dada a nossa própria incapacidade de gerar palavras mais adequadas para designar nosso trabalho, merece, no mínimo, um reparo, uma demonstração pública de que sabemos que se trata de uma apropriação. Se é indevida ou não, isto é outro papo...

*****

Ao voltar para a questão das regras estéticas, vigentes e/ou consagradas, encontramos em um escrito do pensador alemão Walter Benjamin, uma referência ao contexto sócio-cultural europeu da primeira metade do século, na qual ele dizia que

o povo fruía, sem criticar, aquilo que

era convencional; o que era verdadeiramente novo era criticado com

repugnância

. Segundo Benjamin, a massa populacional necessitava da ligação entre a obra fruída e a experiência vivida e apresentava, como exemplo, o fato de o público de sua época reagir positivamente diante de um Chaplin e negativamente diante de um Picasso, ambos seus contemporâneos. O que haveria de diferente entre o cinema de Chaplin e a pintura de Picasso, a ponto de fazer com que o público reagisse de maneira oposta? O cinema é um código de massa e a pintura não o é? O código audiovisual pode ser usado como uma mídia para a massa populacional, mas o visual também pode ser assim entendido: a título de exemplo, todo o acervo da humanidade na forma de arte sacra teve e ainda tem a massa como fruidora. Em períodos históricos onde a maioria da população não tinha a compreensão do texto escrito, era o código visual que cumpria o papel de disseminador dos conteúdos bíblicos.

O problema estaria na temática? Seriam os temas chaplinianos mais próximos do cotidiano vivido pelo homem de então do que os temas de Picasso, como propõe Benjamim? O tema da guerra,

(29)

expresso em Guernica, um dos trabalhos mais divulgados da obra de Picasso, poderia ser considerado como distanciado da experiência vivida pelo homem da primeira metade do século na Europa? E a sua pomba da paz, identicamente conhecida?

Não! Os temas de ambos estavam muito presentes na vida cotidiana; mas a resposta do público com relação à obra de Picasso pode estar ligada à impossibilidade de compreendê-la, decorrente da falta de conhecimentos de paradigmas estéticos para a leitura; assim, o público reagia reacionariamente, afastando-se, na verdade, daquilo que não entendia.

Eis aí uma situação que coincide com o que se vê e se ouve em relação à produção cultural na realidade brasileira contemporânea. Como exemplo, pode ser citada a reação de boa parte do público, quando da realização de cada Bienal de São Paulo. Predomina a

perplexidade diante da

vanguarda artística

; e a imprensa muitas vezes reforça a visão do senso comum, destacando como excentricidade o que na verdade se caracteriza como violação da norma estética.

Mas as questões envolvendo compreensão ou da rejeição de produtos estéticos estão relacionados diretamente ao problema dos paradigmas ou regras estéticas. Vejamos: provavelmente, a massa fruidora reagia positivamente diante de Chaplin, não por estar mais próximo da sua experiência de vida, mas pelo fato de conseguir fazer uma “determinada” leitura de sua obra, adequada ou não ao potencial de significados que Chaplin oferece. Ou seja, a massa “lia” Chaplin com referenciais do cinema “literário”, prendendo-se apenas ao enredo, aos paradigmas ou regras do cinema voltado para o divertimento, à historinha com happy end, vivenciada no contexto do descompromisso característico da busca de lazer. As pessoas não percebiam a quebra da norma estética por trás da poética de Chaplin. Claro:

se ele iludiu censores, porque não iria entorpecer as massas?

Em relação a Picasso, pelo fato de ele propor novos paradigmas estéticos, explicitamente, ou seja, novas formas de apresentar seus temas, ou nova forma de uso do código, quebrando a norma estética então vigente para a leitura do código pictórico, havia a rejeição. As pessoas não estavam instrumentalizadas para o tipo de leitura que sua obra exigia; nem tinham um outro referencial anterior para adotar.

Por outro lado, o que ocorria, com o cinema de Chaplin, é que dele não era feita uma leitura estética; ele era visto, principalmente, como entretenimento. E última análise, ambos, Chaplin e Picasso quebraram os paradigmas estéticos de seu tempo, respectivamente, no cinema e nas artes plásticas. Porém, Picasso violou a normas estabelecidas e o público o rejeitou, pois não possuía um referencial alternativo para compreendê-lo. No caso de Chaplin, ele foi interpretado com referenciais de paradigmas ou regras vigentes, diferentes daqueles que ele propunha, mas ainda assim pode ser

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