• Nenhum resultado encontrado

Psicologia, Pedagogia e Disciplina na Formação Sacerdotal sem Culpas

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "Psicologia, Pedagogia e Disciplina na Formação Sacerdotal sem Culpas"

Copied!
31
0
0

Texto

(1)

Católico teológico quanto os atores que ali se produzem e atuam. A produ-ção de subjetividade significa produprodu-ção de sujeitos e também de institui-ções, de modo dialético e concomitante. Para compreender alguma coisa, é preciso compreender o campo que a produziu e que está conferindo força a tal coisa observada.

Entendemos que uma instituição como o Seminário Católico não se explica por si mesma, não é um objeto autônomo, uma realidade fechada Resumo: neste artigo, procuramos explicitar nossa

perspecti-va de pesquisa de doutorado em Psicologia Social, tendo como objeto de investigação e de análise a formação sacerdotal num Seminário Ca-tólico teológico. Nossa metodologia teórico-técnica-política pauta-se pela análise institucional. Analisamos a teoria da formação sacerdo-tal proposta por Marmilicz, enquanto um bom representante da produção teórico-técnica no campo da formação do clero, procurando problematizar sua perspectiva, seus impasses e sua perplexidade di-ante dos dados da realidade concreta. Uma análise dialética, focada no coletivo institucional, nos parece necessária e adequada para um equacionamento político, pedagógico e também místico dos proble-mas emergentes no Seminário Católico que estamos estudando.

Palavras-chave: psicologia, seminário, formação sacerdotal ANÁLISE INSTITUCIONAL DO SEMINÁRIO CATÓLICO

Sílvio José Benelli

PSICOLOGIA, PEDAGOGIA

E

m nossa pesquisa de doutorado, estamos trabalhando com a perspec-tiva da análise institucional para estudar tanto a instituição Seminário

SACERDOTAL SEM CULPAS* E DISCIPLINA NA FORMAÇÃO

(2)

em si mesma, mas se trata de uma formação social que possui uma história e se situa em um contexto social e religioso mais amplo: a própria Igreja Católica.

Não nos parece possível entender o Seminário sem estudar brevemente alguns aspectos históricos da Igreja Católica que ocasionaram a emergência dessa agência de formação do clero. Também seria difícil entender quem é o padre de hoje sem verificar como é o processo educacional e formativo que o preparou para seu ministério. Para compreender o atual Seminário, tam-bém precisamos analisar a estrutura e a conjuntura eclesial contemporânea, estabelecendo os diversos movimentos dialéticos que estão em conflito em seu interior e buscam a hegemonia no campo católico.

Esse quadro de referências nos parece condição fundamental para o equacionamento das contradições, vicissitudes e desafios que compõem a formação sacerdotal no Seminário Católico. Trabalhamos com a hipótese de que os conflitos específicos do Seminário são derivados das contradições mais amplas que atravessam toda a instituição eclesial católica: na formação do clero, captamos os ecos e ressonâncias de lutas silenciosas, às vezes truculentas, que têm lugar no cenário eclesial mundial.

No campo da Psicologia Social, procuramos superar a ingenuidade das perspectivas inatista, funcionalista e interacionista, buscando um posicio-namento sócio-histórico que pensa a produção do ser humano como cons-trução dialética social e histórica.

Nosso método de investigação transita por diversos campos de saber: da psicologia (CAMPOS, 1996; CAMPOS, GUARESCHI, 2000; BOCK; GONÇALVES; FURTADO, 2002), da sociologia (LAPASSADE; LOURAU, 1972), da pedagogia (GALLO, 1997, 2000; VEIGA NETO, 2003), da his-tória e da filosofia (FOUCAULT, 1999a, 1999b), da teologia (LIBANIO, 1984, 2000, 2005; COZZENS, 2001; COMISSÃO NACIONAL DOS PRESBÍTEROS, 2001; COMBLIN, 2002; QUEIRUGA, 2001, 2003; VALLE, 2003; ANJOS, 2004), buscando elementos para a construção de um olhar institucionalista (GOFFMAN, 1987; LOURAU, 1996; NASCIUTTI, 1996; FOUCAULT, 1999b), de uma escuta do sujeito coletivo (LEFÈVRE, 2000) e de uma análise micropolítica (BAREMBLITT, 1984, 1998; COS-TA-ROSA, 2000; BARUS-MICHEL, 2004; BENELLI, 2004) que possa apreender diversas facetas do nosso objeto de investigação, que é complexo, multifacetado e que dificilmente seria esgotado por uma pesquisa.

Quando nos referimos à análise institucional, certamente partimos de um campo específico que inclui Lapassade e Lourau (1972), Lourau (1996), Baremblitt (1984, 1998), Altoé (2004), mas aí também

(3)

acrescenta-mos Goffman (1987), Foucault (1999a, 1999b), Costa-Rosa (2000) e Barus-Michel (2004). Todos esses autores constituem e constroem nossa perspec-tiva teórico-técnica e política de investigação do Seminário Católico teológico. Com eles, procuramos desenvolver um olhar acurado e uma escuta atenta, focalizando práticas, discursos, saberes, poderes, sujeitos, arquitetura, lutas e embates, no cotidiano do campo de pesquisa, no encontro formal (através de entrevistas semi-dirigidas que estamos realizando) e informal com os diversos atores institucionais. Também na solidão do trabalho de leitura, do estudo e da produção escrita, estamos convivendo intensamente com esses companheiros de pesquisa. Lentamente, vamos nos apropriando da diver-sidade e da riqueza que podem nos oferecer e buscamos incorporar sua es-tratégia de investigação. Trata-se de uma caixa com ferramentas diferentes, muitas vezes complementares quando superamos bairrismos teóricos que tendem ao gueto, instrumentos potentes e eficazes para a compreensão de diversas formações sociais.

Na literatura tradicional dedicada ao nosso tema (CENTINI; MANENTI, 1988; CNBB, 1995, 2001; JOÃO PAULO II, 1992; MÉZERVILLE, 2000; NOUWEN, 2001; MARMILICZ, 2003), o enfoque que estamos procurando desenvolver, uma abordagem institucional, da problemática da formação do clero católico é rara (LOSADA et al., 1999). A literatura especificamente católica, ao ser elaborada no campo teológico e pastoral, tende a ignorar o próprio campo, tomado como pano de fundo tacitamente homogêneo e não-problemático. A literatura propriamente acadêmica sobre o Seminário e a formação do clero católico é mais exígua, como veremos em seguida, mas nela tampouco encontramos uma problematização voltada para uma perspectiva institucional. Parece predo-minar um enfoque psicológico e pedagógico centrado no indivíduo semina-rista, como sujeito individual e não se percebe sua produção e ação como sendo eminentemente coletiva, social e institucional. Haveria um desconhe-cimento tácito de que toda a realidade institucional é produzida pelos pró-prios agentes institucionais, que produzem e reproduzem a dinâmica institucional no seu cotidiano.

Notamos que a efetividade da formação sacerdotal parece consistir no desconhecimento da ação, das práticas institucionais cotidianas realiza-das pelos diversos atores implicados na produção dessa realidade social es-pecífica. Caso isso se verifique, pensamos que uma das dificuldades para a compreensão e a elaboração dos problemas e do sofrimento psíquico institucionais que ali constatamos estaria nessa perspectiva individual e psicologizante, centrada predominantemente no seminarista. Então uma

(4)

análise dialética, focada no coletivo institucional nos parece necessária e ade-quada para um equacionamento político, pedagógico e também místico (LIMA VAZ, 2000; SUDBRACK, 1993, 2001; PEREIRA, 2004) dos problemas emergentes no Seminário Católico que estamos estudando. Por isso, vamos estudar a teoria da técnica da formação eclesiástica institucional.

O Seminário Católico como Instituição Educativa

O que designa o termo formação sacerdotal? E o termo processo formativo? Processo indica tanto movimento, atravessamento de etapas, desenvolvimento, quanto remete à noção jurídica de “causa movida contra um indivíduo”. Afinal, estar no processo formativo sacerdotal tanto signi-fica estar sendo preparado para o ministério eclesiástico quanto estar sendo observado pela equipe de formadores que busca os indícios e sinais de uma autêntica vocação sacerdotal (BENELLI, 2003).

Analisaremos em seguida a teoria da formação sacerdotal proposta por Marmilicz (2003), enquanto um bom representante da produção teó-rico-técnica no campo da formação do clero, procurando problematizar sua perspectiva, seus impasses e sua perplexidade diante dos dados da realidade concreta. Seu texto apresenta irregularidades gramaticais e às vezes é um pouco obscuro, contudo, as transcrições literais que fizemos são fiéis ao original. Marmilicz (2003) entende que o itinerário formativo do presbítero é mar-cado sobretudo por uma relação educativa construída sobre algumas dimen-sões psicológicas. Aí já temos o imbricamento de três áreas do saber: Educação, Pedagogia e Psicologia. Parece ser este o campo da formação sacerdotal: um condensado dessas três ciências, mas tomadas ainda em estado embrionário e não enquanto disciplinas autonomamente constituídas.

Podemos estudar o significado conceitual e político dessas três áreas do saber. Psicologia designa, numa definição ampla, englobante e acadêmi-ca, a ciência humana que abrange os seguintes campos: o estudo das estru-turas, do desenvolvimento das operações da mente humana (consciência, vontade, percepção, linguagem, memória, imaginação, emoções); o estudo das estruturas e do desenvolvimento dos comportamentos humanos e ani-mais; o estudo das relações intersubjetivas dos indivíduos em grupo e em sociedade; o estudo das perturbações (patologias) da mente humana e dos comportamentos humanos e animais. A Psicologia estuda o comportamen-to, entendido como toda e qualquer ação, seja reflexa (no limiar entre a psicologia e a fisiologia), incluindo também os comportamentos considera-dos conscientes ou psíquicos (experiências, conhecimentos, pensamentos e

(5)

ações intencionais) e também a dimensão inconsciente, que não se encontra num plano diretamente observável. Mas sabemos que a psicologia também possui uma função normalizadora (FOUCAULT, 1999b) e atende uma encomenda estatal de controle social da normalidade. A ‘instituição’ Psico-logia emerge em meio a uma nova realidade social burguesa: o Estado pre-cisa gerenciar indivíduos dotados de liberdade e de uma consciência psicológica subjetiva, sujeitos individuados, únicos, originais, numa socie-dade divida em classes (FIGUEIREDO, 1991). A encomenda social estatal com relação à Psicologia refere-se a um trabalho de ajustamento e adaptação do indivíduo à norma social vigente. O processo de psicologização do sujei-to pode ser entendido como uma estratégia mistificadora que se superpõe às relações de poder, ocultando-as através de um discurso lacunar, deslocando-as para a interioridade individual: há uma particularização de fenômenos que são originalmente de ordem social e coletiva; individualização e subjetivação psicológica de fenômenos de ordem política.

Educação significa tanto educare, no sentido de transmitir conheci-mentos quanto educere, ato de fazer desabrochar potencialidades, desenvol-vendo a personalidade do indivíduo (COTRIM, 1993). Essas duas acepções nos remetem à pedagogia tradicional e à renovada. São diversos os estudos que analisam as ambigüidades e contradições da instituição educativa que se encarna nos equipamentos escolares (LIBÂNEO,1994; GUIMARÃES, 1985; FOUCAULT, 1999B; GALLO, 1997; 2000; REBELO, 2002; VEIGA NETO, 2003). Sabemos que a ascensão da burguesia liberal e democrática imprimiu na instituição escolar um novo princípio: o da moralidade do trabalho, relacionando educação e trabalho, cultura e produção. A escola passou a ser uma agência de educação moral, com uma tripla função: socializadora (transformação da criança e do adolescente em seres sociais, imbuídos dos valores burgueses); repressiva (utilizando uma tecnologia pedagógica tradicional e autoritária para a manutenção do sistema, repro-duzindo as relações sociais de dominação e subordinação); e finalmente, transformadora (promotora de modificações sociais via instrução cultural, instrumento de ascensão social). Psicologia, educação e pedagogia se atra-vessam nas instituições educativas, produzindo efeitos de saber e de poder diversos e pouco inocentes (FOUCAULT, 1999b).

Na verdade, poderíamos dizer que a formação sacerdotal é mais an-tiga, é anterior ao surgimento das ciências humanas como saberes compartimentalizados, como disciplinas. Na preparação dos candidatos ao sacerdócio (CENTINI; MANENTI, 1988; JOÃO PAULO II, 1992; CNBB, 1995, 2001; MÉZZERVILLE, 2000; MARMILICZ, 2003 etc.) fala-se em

(6)

processo formativo, não em Educação, trata-se de formação humano-afetiva, não de ciência psicológica, fala-se de vida comunitária, não em Sociologia ou Dinâmica de Grupos, trata-se de formação intelectual, não de Pedago-gia, fala-se em formação pastoral, não em Administração, Gerência, ou se-quer em Política, fala-se em formação espiritual, não em psicoterapia. Nesse sentido, parece que a formação sacerdotal tende a recobrir múltiplos cam-pos de saberes e a condensá-los, apesar de, historicamente, eles já se terem tornado disciplinas independentes. A ação do sacerdote se situa entre as “profissões de ajuda”, tal como o médico, o psicólogo, o professor e o assis-tente social, mas “possui um halo sagrado próprio” (VALLE, 2003, p. 45). O título do livro de Marmilicz (2003) O ambiente educativo nos

seminários maiores do Brasil é muito adequado para demonstrarmos nossas

impressões e, já de saída, podemos localizar sua posição e enfoque: para ele o Seminário é compreendido, sem mais, como um ambiente educativo, não como uma realidade institucional complexa, híbrida, atravessada por diver-sas outras instituições, plena de contradições específicas e também fortemente marcada pelas vicissitudes do contexto social e especialmente pelo cenário eclesial mais amplo. É como se o Seminário fosse uma ilha, isolado da amplidão do campo social, como se estivesse protegido por uma estufa, uma bolha, uma redoma de vidro.

A primeira parte de seu livro se intitula Relação Educativa durante o Itinerário Formativo do Presbítero: Aspectos Psico-Pedagógicos. Marmilicz (2003) situa-se no campo da Educação, da Psicologia e da Pedagogia. Aí estão a originalidade e os limites de sua contribuição, e também, a razão mesma de sua perplexidade. A formação sacerdotal seria uma prática híbri-da que estaria na intersecção entre várias ciências humanas, um amálgama entre pelo menos três campos de saberes sobre o homem. Marmilicz se situa no plano teórico abstrato e parece desconhecer a realidade institucional concreta: apresenta “princípios”, valores ideais que deveriam nortear o pro-cesso formativo sacerdotal.

DIMENSÕES DA FORMAÇÃO SACERDOTAL: POLÍTICA, PSICOLOGIA E NORMALIZAÇÃO

Segundo Marmilicz (2003, p.11), existem importantes “dimensões psi-cológicas na relação educativa: a dimensão de controle (que denominamos política), a emocional (que interpretamos como psicológica) e a de congruência-autenticidade-transparência” (que lemos como normalizadora). Parece que ha-veria uma concepção antropológica platônica subjacente a essa perspectiva

(7)

pedagógica, entendendo o ser humano como uma organização hierárquica tripartite: razão que precisa ser controlada, desejo e emoções que devem ser educadas e vontade que deve ser exercitada e dirigida. O autor se baseia em Herbert Franta, educador italiano, para explicitar sua teoria sobre a formação sacerdotal. A dimensão do controle é considerada por Marmilicz (2003, p. 12) como uma necessidade implícita do processo educativo em geral:

Existe a necessidade de regular de modo consistente as competências e os comportamentos entre educadores e educandos. Essa necessida-de provém do fato necessida-de que os educandos têm necessidanecessida-de dos adultos para sua formação integral, porque se encontram no estado de pes-soas necessitadas e dependentes. Da parte dos adultos dependem as condições materiais e as competências diversas. Essa interação nasce quando o educador instaura relações autorevoles1 ‘desenvolve

respon-savelmente funções regulatórias e orientativas que vem respeitadas de maneira consciente e confiante da parte do educando’.

Quando falamos em controle de pessoas, inegavelmente nos situa-mos no campo da política, das relações de poder. Os adultos, proprietários dos meios de produção e das diversas qualificações profissionais, controlam os jovens com o assentimento consciente e confiante deles, mas também podem ser enfrentados com diversas estratégias de resistência. Podemos falar aqui de uma ‘terapeutização da pedagogia’ com finalidade normatizante e normalizadora. O que está em questão: relações políticas ou relações peda-gógicas? A situação do jovem enquanto um educando, ser ‘necessitado’ e ‘dependente’ dos adultos é a situação histórica do adolescente ocidental, paralisado numa longa moratória existencial (ABERASTURY; KNOBEL, 1983; BECKER, 1996; CÉSAR, 2000). A adolescência assim configurada não é natural, é uma construção social e histórica perfeitamente datada.

As relações pedagógicas são relações de poder, são relações políticas entre governantes e governados, entre senhores e súditos, entre formadores/ educadores e formandos/educandos (COTRIM, 1993; LIBÂNEO,1994; GALLO, 1997, 2000). A Pedagogia, disciplina científica relativa ao proces-so de ensino-aprendizagem, se superpõe às relações microfísicas dos poderes em conflito (FOUCAULT, 1999b).

Isso é tão evidente que, em seguida, Marmilicz (2003) discorre sobre os estilos de liderança conhecidos como autoritário, laissez-faire (antiau-toritário) e mediador. Lideranças diversas se exercem em diferentes regimes ou formas de governo, modos de gerenciar bens, competências e condução

(8)

dos jovens. Cada tipo de liderança implementa estratégias diversas de gerenciamento de pessoas.

O guia autoritário se faz sentir através do controle ou dominação da parte dos educadores, que ‘mediante o seu comportamento limitam e obrigam o comportamento dos educandos’. Estes podem ser do tipo organizativo-operativo e dizem respeito à administração das ativida-des. Com respeito às primeiras, os guias autoritários apresentam as normas institucionais de modo rígido, querem o reconhecimento da própria superioridade na competência do poder, demonstram dis-tância e controlam o comportamento desviante das normas. A dimen-são que diz respeito à administração das atividades consiste na excludimen-são dos educandos da co-administração e das corresponsabilidades. Vi-vem uma relação incongruente, não decidem em comum, ordenam a execução de tarefas e trabalhos, passam por cima dos legítimos interesses dos educandos (MARMILICZ, 2003, p. 13).

O líder autoritário intervém de modo diretivo, utilizando palavras de ordem, comandando, comunicando-se de modo impessoal, em tom moralizante, interrompendo e cortando o diálogo. Sua influência educativa é considerada negativa, pois ele não trata o educando como pessoa, descon-fia dele e por isso priva-o da liberdade, alijando-o da administração e da responsabilidade na formação.

Muitos educadores dizem que se sentem obrigados a agir de modo autoritário para alcançar o mínimo indispensável dos escopos educativos, assim como para manter a ordem e a disciplina. Pode-se dizer que estes últimos têm uma visão reduzida do papel do guia na interação educativa, porque não compreendem que as intervenções têm a única função de ajudar os educandos a tornar-se protagonistas da sua própria vida

(MARMILICZ, 2003, p. 13).

Já podemos observar a contradição entre uma autoridade diretiva e a produção do protagonista autônomo como efeito do processo pedagógico. A vida no contexto institucional provoca a reação dos educandos, submetidos a condições de menoridade tutelada à qual opõem resistência. Então, num momento posterior, o formador ‘se sente obrigado a agir de modo autoritário’ para que as coisas funcionem ‘como deveriam’. É possível que a suposta desor-dem e indisciplina que o formador autoritário procura enfrentar sejam efeitos

(9)

diretos produzidos pelo próprio dispositivo institucional, e não apenas efeitos colaterais disfuncionais. A pedagogia nova ou renovada tem grandes limites, pois a autoridade moderniza seu discurso, mas sem abrir mão do poder e do controle (COTRIM, 1993).

O líder antiautoritário acentua a liberdade absoluta dos educandos, a partir da teoria do crescimento espontâneo e do desenvolvimento natural do indivíduo. Mas ela tende a cair num

laxismo permissivista, em que a espontaneidade inicial pode se tornar fechamento e a participação tende ao vazio formalístico de novas formas de burocratização [...]. Assim sendo, podemos afirmar que não existe edu-cação sem conflitos, haja vista que a frustração faz parte da nossa vida. O homem deve, pois, aprender a controlar seus impulsos de um ponto de vista subjetivo e social. Portanto, a educação significa sempre limites, estímulos e facilitação ao pró-social (MARMILICZ, 2003, p. 15-6). Superando os extremos dialéticos do líder autoritário e do antiau-toritário, o primeiro centrado no educador e o segundo no educando, Marmilicz (2003, p. 16) propõe o “guia mediador”:

É por isso que é necessário um estilo que não deixe à parte nem educando e nem educador, que não conduza a um comportamento passivo, nem menos crie uma desorientação. Podemos dizer que o verdadeiro guia olha o educando em modo proativo, confiando nas suas qualidades e potencialidades e sendo capaz de promover a autonomia nos educandos. O verdadeiro educador ‘interage invés em função de guia mediador quando vem reconhecido pelos educandos como pessoa que possui competências objetivas e normativas quando, pela sua conhecida e aceita superioridade em modo construtivo através de funções orientativas e regulativas.

As intervenções pedagógicas autoritárias e as mediadoras teriam a mes-ma finalidade: modificar comportamentos no educando. Mas elas operariam de modo diferente: as primeiras interviriam a partir do poder (reprimindo e do-minando) e as segundas pretenderiam ajudar o educando a ser protagonista da sua própria vida.

Marmilicz (2003) utiliza diversas vezes a palavra protagonista se re-ferindo ao educando. Protagonismo do formando é uma palavra chave do ideário da Escola Nova, da Pedagogia Renovada (COTRIM, 1993;

(10)

LIBÂ-NEO, 1994). Ele propõe uma formação mais participativa e o cuidado com a dimensão afetiva dos educandos. Podemos situar Marmilicz na Pedagogia Renovada. Será que os ‘avanços’ dessa tendência pedagógica são suficientes para equacionar os problemas atuais do processo formativo? Como não são quaisquer meios que podem produzir os fins que se bus-cam, é preciso procurar as mediações adequadas para alcançá-los. Os paradigmas pedagógicos (COTRIM, 1993; LIBÂNEO, 1994) produzem o que eles podem, não o que gostaríamos que produzissem.

Marmilicz (2003) apresenta os princípios fundamentais do processo educativo: o educador é o responsável pelas pessoas em desenvolvimento e pelos conteúdos educativos, os educandos reconhecem a superioridade do educador e se mostram como pessoas corresponsáveis e protagonistas do seu futuro. Marmilicz não situa o processo educativo num espaço institucional concreto, permanecendo numa abstração idealizada da relação pedagógica. Apresenta princípios teóricos que implementam uma política educativa para os seminaristas, não condições institucionais específicas, ou dispositivos institucionais (BENELLI, 2003).

Marmilicz (2003, p. 18) afirma que o “educador é superior ao for-mando e é também seu modelo”. Deve ter “calor afetivo” e prestígio que o tornem crível para o jovem formando. A Pedagogia se baseia então na capa-cidade de influência do líder, através da sugestão, por acréscimo de imagi-nário, “pela modelagem do Ideal-do-eu a partir do fornecimento de traços identificatórios” (MILLOT, 1987, p. 130).

O formador deve proporcionar aos formandos a sensação de serem protagonistas da sua formação. Caso não experimentem isso, podem mani-festar comportamentos defensivos:

As intervenções do guia mediador favorecem o protagonismo do educando, na medida em que o educador atua para facilitar a escolha das metas, favorecer o auto-suporte, estimular a auto-determinação e incentivar a responsabilidade (MARMILICZ, 2003, p.18-9). O diálogo também é considerado um instrumento muito importan-te no processo educativo, estratégia para lidar com os conflitos emergenimportan-tes na educação. Mas não há nenhuma indicação com relação a sua freqüência ou sistematicidade, permanecendo no plano das boas intenções. Sintoma-ticamente, nunca se fala em observação, sempre se enfatiza o diálogo. Estamos verificando que no campo concreto da instituição Seminário o diálogo é esporádico, não sistemático, e poderíamos mesmo afirmar: escasso e quase

(11)

raro. Predomina a observação do comportamento externo e os comentá-rios sobre a conduta e o desempenho do seminarista que circulam na instituição e que chegam até os padres formadores.

Finalmente, Marmilicz (2003, p. 19) indica o valor de um acompa-nhamento personalizado: “requer-se que as relações respeitem a peculiar situ-ação de cada educando, e especificamente o seu desenvolvimento psíquico”. É preciso conceder ao formando “o maior grau de auto-determinação possível e impor a hétero-determinação somente se necessário.” Isso facilita para que o jovem em desenvolvimento alcance a autonomia pessoal. Essa prática peda-gógica proporcionaria um desenvolvimento da autonomia pessoal do forman-do. Personalizar o processo formativo então significa prestar atenção na pessoa à qual ele se direciona, considerando diferenças individuais, estágio evolutivo, expectativas, possibilidades e limitações do jovem formando.

Para que o guia mediador tenha sucesso na tarefa educativa, deve ter uma personalidade madura: “a extensão do sentido do eu; cordial relação com os outros; segurança emotiva; percepção realista; habilidades e empe-nhos e uma concepção unificadora da vida” (MARMILICZ, 2003, p. 20). Qualidades pessoais e presença ativa, próxima, atenta ao desenvolvimento da autonomia pessoal do formando, cultivando sua maturação e “cuidando da disciplina e do uso correto da liberdade” (MARMILICZ, 2003, p. 20). A dimensão institucional, considerada como organização do contexto educativo é considerada importante para o êxito da educação:

Pode-se perceber no interior de uma organização fatores como privilé-gios, direitos, aspectos hierárquicos entre os membros, que podem di-ficultar as funções do guia moderador. Pelo contrário, ajudam e facilitam quando existe uma recíproca aceitação dos papéis e das posições de cada um. Na organização educativa as normas exercem um poder de influên-cia muito grande no papel de guia, e são de natureza tremendamente negativa quando obscuras e não explícitas. Pelo contrário, o educador é ajudado na sua função de guia quando as regras são percebidas pelo grupo como humanas, flexíveis, atuais, construtivas e respeitosas, e se são assu-midas criticamente e reciprocamente (MARMILICZ, 2003, p. 21). Infelizmente, essa perspectiva funcionalista, típica na literatura sobre a formação, apesar de notar o dispositivo institucional, subestima sua estrutura e eficiência funcional automática. Se o dispositivo institucional não determi-na em último grau o sentido da ação dos atores instituciodetermi-nais, certamente os condiciona com grande potência, sobretudo quando ele é ignorado.

(12)

Como os educandos são imaturos, limitados e não sabem enfrentar o mundo, o guia formador deve promover intervenções específicas que le-vem à “promoção da decisão comum e da colaboração”, deve favorecer o “protagonismo”, deve facilitar a resolução de conflitos e problemas através do diálogo e ainda “favorecer a realização das metas através da colaboração” sobretudo em pequenos grupos (MARMILICZ, 2003, p. 21-6).

O formador também tem como tarefa realizar intervenções de orien-tação, nas quais deve ajudar o formando a encontrar entre as diversas alter-nativas a direção justa e adequada:

O educador é chamado a orientar os educandos sobre os conteúdos da sua vida cotidiana, instaurar uma comunicação sobre os proble-mas existenciais e por fim desenvolver o seu papel de guia em função de uma reestruturação do mundo experiencial do educando. Por fim, como guia que orienta, o educador-facilitador é chamado a desen-volver nos educandos adequadas capacidades de escolha, a fim de tomar decisões positivas para sua vida (MARMILICZ, 2003, p. 28). O formador ainda é um ‘guia regulativo’, pois também deve realizar intervenções em função da disciplina. As intervenções disciplinares são de caráter preventivo e corretivo: as primeiras buscam desenvolver nos formandos os comportamentos de obediência e observância das normas estabelecidas, as segundas visam corrigir as transgressões voluntárias e cons-cientes das normas:

Deve-se antes de tudo ver as causas que estão na base do comporta-mento desviado do educando. Em seguida, avaliar na escolha dos interventos os efeitos conseqüentes transgressor. Enfim, escolher o tipo de comunicação mais apropriado (MARMILICZ, 2003, p. 32). Finalmente, o educador deve empreender intervenções de coopera-ção para resolver conflitos de interesse entre pessoas que possuem idéias e posições diversas:

Na interação educativa existem ocasiões nas quais os indivíduos lu-tam somente por seus interesses, criando um mal-estar e muitas ve-zes provocando um verdadeiro conflito dentro de um grupo. Isso se deve principalmente ao fato de que o educando não está aberto à solidariedade, mas guiado por um modo egoísta de ver as coisas e de

(13)

agir. Entendemos por solidariedade a capacidade que educador e educando têm de se comunicarem de modo representativo

(MAR-MILICZ, 2003, p. 34).

Marmilicz (2003) reconhece que os conflitos são normais, podem ser superados e resolvidos. Quanto à origem desses conflitos, não ignora que advenham de prováveis “incompreensões causadas por comunicação inefi-caz” que criam distanciamento e ainda por “uma injusta distribuição do poder, de reconhecimento e de responsabilidades, ou causados por desencontros de caráter normativo” (MARMILICZ, 2003, p. 35). Mas novamente sua perspectiva pedagogizante das relações de poder no contexto institucional o impedem de calcular o significado e as conseqüências de tais hipóteses.

A dimensão emocional (psicológica) é o segundo aspecto importante no processo pedagógico, segundo Marmilicz (2003, p. 38):

A dimensão de controle que analisamos em precedência, tem como objetivo principal ajudar o educando a uma ‘autorevolezza’, isto é, a ser protagonista da sua história, das suas decisões, do seu futuro. A dimensão emocional, em complemento à primeira, tem como obje-tivo principal ajudar o educando a sentir-se importante, pessoa de valor, ou em palavras concretas e diretas, sentir-se valorizado e ama-do por aquilo que é.

Marmilicz (2003) desenvolve uma psicologia predominantemente humanista, baseando-se em Franta, Rogers, Viktor Frakl, Erik Erikson e em outros psicólogos italianos. Ele considera que a pessoa humana, particular-mente a que está em processo de desenvolvimento, necessita de encontros e contatos afetivos positivos para que tenham uma maturação boa e sadia. Os grandes problemas afetivos na educação estão relacionados à “personalidade do educador e às estruturas comunicativas” (MARMILICZ, 2003, p. 43). Somente relações afetivas e sociais positivas podem ajudar na valorização e cres-cimento normal do educando. Elas devem ser conscientemente implementadas pelo educador, que deve criar um clima de confiança, de harmonia, de diálo-go, estando presente junto aos formandos, cuidando deles e protegendo-os. Na literatura sobre a formação do clero católico, a vertente humanista da psicologia parece ser predominante (VALLE, 2003).

A dimensão da congruência-autenticidade-transparência (que lemos como normalização e modelação) é o terceiro aspecto que Marmilicz (2003) destaca no processo pedagógico de formar jovens educandos:

(14)

O educando em crescimento observa muito a figura do educador, que é para ele um modelo para seguir, no sentido negativo ou positivo, através dos afetos recíprocos. Isso introduz a importância de um edu-cador que seja transparente, que comunique de acordo com as pró-prias experiências e que se relacione responsavelmente consigo mesmo e com os outros.

Continuando a trabalhar com os autores da psicologia humanista, sobretudo em Franta, Marmilicz (2003, p. 66) prossegue explicando a im-portância da comunicação social congruente, da transparência, do compor-tamento relacional congruente e autêntico:

O comportamento autêntico-congruente-transparente da parte dos educadores cria nos educandos uma maior credibilidade nestes últi-mos, gerando a experiência de uma segurança pessoal. O agir como guia moderador, conseqüência deste comportamento, cria uma con-fiança nos educandos, estimula-os a tomarem contato com as pró-prias experiências. Além disso, os educandos se sentem facilitados a distinguir a realidade de modo objetivo, recebendo feedback que po-dem experimentar como verdadeiros.

As condições e qualidades do comportamento congruente, transpa-rente e autêntico por parte dos educadores estão relacionadas a fatores pes-soais (personalidade do educador) e a fatores sociais (ambiente institucional educativo). São qualidades comunicativas (constatativa e representativa) que operacionalizam o comportamento relacional proposto:

Quando a organização de tais espaços não é hierárquico-autoritária, os educadores podem instaurar uma corresponsável administração da vida do grupo. Este modo de interagir evita a competitividade, a passividade, e por outra parte ativa a cooperação entre educadores-educandos, ins-taurando contatos interpessoais positivos (MARMILICZ, 2003, p. 67). APLICAÇÃO DA TEORIA PSICO-PEDAGÓGICA NA PRÁTICA INSTITUCIONAL DO SEMINÁRIO

Depois dessa introdução teórica, Marmilicz (2003, p.73-143) vai aplicar essa teoria pedagógica no processo formativo, tratando do formador e do ambiente de formação (Seminário):

(15)

É certo que a realidade do seminário é muito diversa daquela que analisamos a respeito da relação educativa de modo geral, e por isso exige uma adaptação. No seminário, por exemplo, o jovem vem geralmente porque tem um objetivo mais claro, isto é, aprofundar a sua vocação e aquilo que Deus pede dele. Os rapazes geralmente têm idade superior a 15 ou 16 anos, e exigem naturalmente um modo diverso de acompanhamento. Além disso, o jovem passa praticamente todo o seu dia e uma parte de sua vida dentro do seminário, com um programa definido. Enfim, o clima no seminário é muito diverso e exige a unidade de ações dos formadores, bem ajustada, para poder responder melhor às diversas tarefas e funções.

Aqui aparecem algumas características específicas da instituição se-minário: o regime de internato, o enclaustramento prolongado no qual se processa a formação sacerdotal. O seminário é um lugar para cultivar a vocação sacerdotal e discernir o eventual chamado divino. Aí o formador exerce uma função privilegiada, incumbido da tarefa de acompanhar o jovem candida-to através de um diálogo direcandida-to e regular. A relação formando-formador se constitui no fator fundamental do processo formativo no tempo vivido no Seminário.

Na formação sacerdotal, Marmilicz (2003) indica a dimensão de controle, pois o seminarista é considerado um jovem em desenvolvimento e precisa ter ao seu lado a presença de uma pessoa madura que o acompanhe e oriente. O formador deve ser um ‘guia mediador’, servindo de modelo ideal de maturidade afetiva no qual o jovem deve espelhar-se, para

ser protagonista da sua história [...] tornando-se o senhor e artífice do seu caminho, capaz de conduzir a sua própria vida. [É importante não esquecer que] dado o protagonismo do formando, o crescimento em grande parte depende da sua disposição interna em fazer o caminho, continua Marmilicz (2003, p. 78-9) já remetendo o sucesso do processo formativo à interioridade psicológica do formando.

O formando é o sujeito da formação, embora esteja temporariamen-te submetido a uma condição de menoridade tutemporariamen-telada pela autoridade do formador. Este deveria acompanhar o jovem “a sair, nos tempos, nos modos e nas formas devidas, da sua menoridade, para fazer-lhe adquirir gradual-mente o processo de si mesmo, que sogradual-mente temporaneagradual-mente e instrumen-talmente é assumido pelo educador” (MARMILICZ, 2003, p. 79).

(16)

Marmilicz reconhece as dificuldades desse trabalho formativo na prática cotidiana: os formadores teriam problemas em deixar o protagonismo para os formandos devido a prováveis resistências psicológicas e a inconsis-tências emotivas. Novamente, ingressamos numa perspectiva psicologizante das relações formativas no contexto institucional do seminário. A chave do sucesso da empreitada formativo-pedagógica fica na dependência do grau de maturidade pessoal do formador.

O formador-mediador favorece o protagonismo do jovem semina-rista, oferece uma educação personalizada, reconhece a assimetria funcional que existe entre si e o formando. Deve gozar de prestígio e capacidade de liderança junto aos seminaristas, assumindo sua superioridade como servi-ço formativo. Deve ajudar o formando a ser ele mesmo:

A presença constante do formador parece ser um ponto pacífico para realizar uma autêntica formação, para ajudar o formando no seu cresci-mento contínuo. Estando 24 horas a serviço da formação, isso lhe per-mitirá perceber os comportamentos do jovem, as suas atitudes, as suas motivações e as suas opções de fundo, podendo ser assim um instrumento eficaz e positivo no caminho formativo do jovem (MARMILIZC, 2003,

p. 84).

As intervenções do formador junto aos seminaristas são de caráter disciplinar, ajudando-o a assumir uma disciplina na vida espiritual, na di-mensão acadêmica e na vida comunitária. O jovem deve ser levado a assumir sua própria história e ter uma certa regularidade na sua conduta, na auto-disciplina. Outros aspectos das intervenções do formador se referem ao gerenciamento das situações conflitivas, promovendo um clima comunitá-rio fraterno, ajudando o jovem a abrir-se aos demais e a praticar a solidari-edade. É preciso ajudá-lo a superar atitudes de fechamento, de egocentrismo, de falta de vontade pessoal, de desconfiança, de ansiedade exagerada e tam-bém seus complexos (MARMILICZ, 2003).

A dimensão emocional também deve ser valorizada no processo formativo para o sacerdócio:

Segundo uma pesquisa feita na América Latina, o jovem que entra no seminário traz consigo estes aspectos positivos, com relação à afetividade: capacidade de comunicação, sensibilidade ao sofrimen-to humano, valorização da amizade, capacidade de compartilhar com os outros, é muito acolhedor, é transparente e facilmente consegue

(17)

integrar-se no trabalho apostólico. Como aspectos negativos, geral-mente os jovens chegam ao seminário com muitas carências e traumas afetivos, e isto pode se constatar no seu modo de ser isolado, distante dos outros e nos seus comportamentos desequilibrados, feitos de altos e baixos (MARMILICZ, 2003, p. 90).

O formador deve proporcionar o crescimento afetivo do formando, baseado na confiança, na escuta compreensiva, no diálogo, ajudando-o a desenvolver uma personalidade madura. O ambiente formativo do seminá-rio deve ser caracterizado pela fraternidade, pela confiança e pelo diálogo, preferencialmente organizado em forma de pequenas comunidades onde as relações sociais e as trocas afetivas são diretas, onde todos se conhecem pes-soalmente.

Marmilicz (2003, p. 96-9) indica “algumas atitudes de fundo” ou qualidades consideradas indispensáveis para um formador na relação educativa com o seminarista: deve estimar o formando, amando-o e valori-zando-o por aquilo que o jovem é, ajudando-o a amadurecer; precisa confiar no formando e ser otimista com respeito ao seu desenvolvimento; também deve aceitar incondicionalmente o jovem, acolhendo-o sem classificar nem comparar, sem formar juízos de valor:

No seminário, lugar de formação por excelência, a compreensão entre formador e formando deve ser profunda e respeitosa a fim de pro-mover relações claras e animadas de um verdadeiro amor fraterno. Isto só será possível se o formador é capaz de viver a empatia a res-peito do formando.

Finalmente, a dimensão de transparência-congruência-autenticida-de coloca o formador como motransparência-congruência-autenticida-delo transparência-congruência-autenticida-de vida para o formando: transparência-congruência-autenticida-deve ser al-guém autêntico, congruente e transparente, não apenas nas palavras, mas em sua conduta geral. Ele deve encarnar diante do jovem o sacerdote exem-plar, assumindo e respeitando a própria vocação:

O formador, dada a sua presença constante no seminário, é objeto de muita atenção da parte do formando. O jovem candidato procura nele força e coragem para o seu crescimento, a sua orientação. Justa-mente por isso, o formador para ser um modelo deve viver plenaJusta-mente o seu sacerdócio e a alegria de ser formador dos futuros sacerdotes

(18)

Assim, o formador é figura central na formação sacerdotal. Uma vez que ele assuma essas dimensões pedagógicas, desenvolva um alto grau de maturida-de pessoal e adota as atitumaturida-des indicadas por Marmilicz (2003), qual é sua tarefa? Deve verificar, conduzir e orientar o desenvolvimento da autêntica vocação sacerdotal no jovem seminarista, através do acompanhamento pessoal. O ACOMPANHAMENTO PESSOAL DO VOCACIONADO PELO FORMADOR

No processo formativo sacerdotal, orientado pelo formador que tra-balha como ‘guia mediador’, Marmilicz (2003) mapeia as fases principais do acompanhamento pessoal tendo em vista o discernimento da vocação sacerdotal no jovem formando.

A primeira fase se ocupa com a percepção existencial: o formador deve focar sua atenção na história passada e atual do jovem, estando atento para detectar seus problemas e imaturidades, suas distorções perceptivas, memó-rias afetivas, áreas do eu ignoradas, etc. Deve perceber também o potencial de crescimento do formando e ajudá-lo a estar atento à própria história de vida, com todos os seus acontecimentos e contradições, vendo-o como um irmão que merece ser amado e escutado.

A segunda fase se caracteriza pela compreensão prático-intuitiva, na qual se busca formar o jovem para a libertação de suas escravidões psicoló-gicas e espirituais, que devem ser reconhecidas de modo preciso e pontual. O formador deve interpretar aquilo que é automático e instintivo no jovem, a partir de pequenos mas significativos discernimentos cotidianos. Ou seja, a partir da observação do comportamento cotidiano do jovem, deve procurar intuir as questões inconscientes que estão na origem daquelas atitudes:

É fundamental nesta fase conduzir o jovem a ele mesmo constatar a presença da inconsistência e do desejo que está na origem. O segun-do passo é aquele de impedir a gratificação, o próprio desejo ou, em outras palavras, romper o nexo entre aquilo que me agrada e aquilo que faço. O terceiro momento tem relação com a descida aos infer-nos. É desejável que o formando se sinta fraco e frágil, que se descu-bra ferido e doente, e que faça a experiência da sua impotência, para ser capaz de abrir-se realmente a Deus. Enfim, o quarto passo pede ao formando que aprenda e estar diante de Deus, ou aprenda a rezar. Rezar com o coração desarmado, aberto, sentindo a dramática ne-cessidade de Deus e do seu Espírito, da sua luz e da sua palavra.

(19)

Eli-minar aqueles desejos que não podem dar a verdadeira felicidade

(MARMILICZ, 2003, p. 141-2).

A terceira fase se refere ao desenvolvimento da capacidade de reflexão crítica e de julgamento, na qual se visa formar e exercitar o jovem à liberdade para aderir à verdade quando formular seu julgamento. Utilizando o método indutivo, o formador pode ajudar o jovem a extrair de sua experiência pessoal no processo formativo, alguns critérios fundamentais que em seguida serão confrontados com os valores cristãos objetivos e com a prática de Jesus:

Para favorecer tal abertura e a conseqüente aprovação desses valores da parte do jovem, são necessárias duas indicações precisas e concre-tas. A primeira é a exigência da unidade na proposta dos conteúdos formativos. A segunda é a globalidade da intervenção sobre as estru-turas intrapsíquicas. Não basta transmitir idéias, mas é preciso co-lher a verdade existencial e provocar a experiência de sua incidência no concreto da própria vida. Um das maneiras por excelência da parte do formador para consegui-la é ajudar o formando a despertar nele para o amor à Palavra de Deus. Essa tem o poder de abranger todo o homem, envolvendo-o e provocando-o a níveis profundos

(MARMI-LICZ, 2003, p. 142).

A quarta é a fase da decisão e da ação, na qual o jovem dever ser for-mado para ter a coragem de confiar e entregar sua vida a Deus:

O formador nesta fase, e durante todo o processo decisional, é aque-le que orienta, sustenta, ajuda a purificar as motivações e a libertar o coração de apegos inconscientes da parte do formando. No fundo, deve formar o formando a saber escolher autenticamente e respon-savelmente em cada circunstância da vida, a obedecer em cada mo-mento à voz do Espírito. Diante de tudo isso, o discernimo-mento torna-se verdadeiramente um modo de ser e de caminhar do peregrino na fé

(MARMILICZ, 2003, p. 143).

ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS NO PROCESSO FORMATIVO Depois de apresentar a teoria da formação sacerdotal, Marmilicz (2003) indica alguns meios necessários e considerados indispensáveis para o crescimento do jovem seminarista. A relação educativa entre formador e

(20)

formando na instituição seminário pode ser implementada na prática coti-diana a partir de algumas estratégias.

Uma estratégia importante estaria na elaboração do Projeto Comu-nitário, instrumento que auxilia o crescimento da vida comunitária, “na qual se sinta e se descubra a importância fundamental de cada formando, a fim de viver sua função com liberdade e responsabilidade” (MARMILICZ, 2003, p. 145-6). O Projeto Comunitário é uma forma de organizar a vida cotidi-ana no ambiente institucional, estabelecendo o calendário de atividades, horários de oração, trabalho, estudo, lazer, silêncio, etc., além da distribuição de serviços domésticos.

Outra estratégia pedagógica seria a elaboração de um projeto pessoal de vida, com o objetivo de individualizar e concretizar o Projeto Comuni-tário, permitindo que o jovem formando possa vivenciá-lo de modo pessoal e único. Elementos de tal projeto pessoal são as dimensões da formação: a educativa, a da oração, a da penitência, a da autenticidade humana, a cultu-ral, a da comunhão eclesial e a vocacional (MARMILICZ, 2003, p. 163-6). O pequeno grupo também é considerado um instrumento pedagó-gico relevante que propicia o crescimento pessoal do formando. Em grupos de trabalho pequenos, o jovem pode ser mais autêntico, estabelecendo rela-ções interpessoais diretas e dialógicas. Mas é preciso conhecer os aspectos da dinâmica de grupos, os perigos a evitar e as formas das estruturas de lideran-ça nos pequenos grupos, alerta Marmilicz (2003).

A ‘animação do formador’ é outro recurso pedagógico para implementar a teoria sobre a formação na prática. O formador animador é “aquele que está por tudo mas não se vê” (MARMILICZ, 2003, p. 180): ele tem a função de estimular o formando a participar ativamente do processo formativo.

Enfim, Marmilicz (2003, p. 189-90) propõe o acompanhamento pessoal como estratégia pedagógica necessária na formação sacerdotal:

Cada pessoa carrega dentro de si um mistério, algo para descobrir e transmitir aos outros. Isto é um dom recebido gratuitamente de Deus. No entanto é necessário um longo caminho de atenção, de busca, para entender a vontade de Deus. Neste sentido, o acompanhamento pessoal comunitário é importante, mas não pode prescindir de uma relação pessoal cotidiana, que ajude o jovem a entrar no seu próprio eu e encontrar ali aquilo que Deus quer a seu respeito. Isto exige a presença de um formador maduro, preparado e um formando que se abra a fazer o caminho.

(21)

O acompanhamento pessoal seria uma entrevista periódica, um co-lóquio pessoal, um diálogo entre o formador e o formando, no qual buscam juntos discernir a vontade de Deus sobre o jovem seminarista e responder a ela com liberdade e responsabilidade. Trata-se de um trabalho psicológico e espiritual ao mesmo tempo, em que não é fácil distinguir a especificidade de cada campo.

Marmilicz (2003, p. 199) oferece um modelo de acompanhamento pessoal:

O modelo é operacional, partindo da projeção, momento no qual o jovem vem para falar de si mesmo, procurando convencer o forma-dor daquilo que diz como verdadeiro e certo, passando para um momento de reelaboração objetiva da parte do formador com base em alguns pontos de referência, desembocando então num terceiro e importante momento, ou seja, a re-apropriação da parte do forman-do, que deseja identificar-se com aquilo que foi reelaborado da parte do formador.

RESULTADOS DA PESQUISA DE CAMPO SOBRE O AMBIENTE EDUCATIVO NOS SEMINÁRIOS MAIORES DO BRASIL

OBTIDOS POR MARMILICZ

Marmilicz pesquisou a formação nos seminários através da aplicação de questionários para os formadores e para os formandos, conseguindo uma amostra representativa do campo da formação sacerdotal no Brasil. O nú-mero de seminaristas que responderam ao questionário foi de 1.517, correspondendo a 25% dos seminaristas maiores do Brasil em 1998. Um total de 68 formadores responderam ao instrumento de pesquisa. Mas não há estatística relativa ao total deles no país. O questionário foi elaborado a partir da teoria de Herbert Franta e seus colaboradores sobre a relação edu-cativa e as atitudes essenciais do educador na relação com o educando no campo específico da formação sacerdotal.

Aqui nos interessa recolher algumas análises de Marmilcz quanto às diferenças significativas que ele encontrou entre formadores e formandos, que não coincidem com a teoria desenvolvida sobre o seminário como ins-tituição pedagógica.

Marmilicz (2003, p. 330) constatou que os seminaristas brasileiros não tendem a tomar o formador como modelo, enquanto que os formadores ava-liam positivamente que têm um bom relacionamento com os formandos:

(22)

A diferença entre aquilo que pensam os formadores, e aquilo que pensam os formandos é muito discrepante. Existem dois modos de ver o mesmo problema, de modo totalmente diferente. Estariam os formandos insensíveis ao grande amor que os formadores têm por eles, ou então, os formadores estariam tentando justificar suas ações como positivas, enaltecendo o relacionamento com os formandos? Ou então, estariam os formandos transferindo problemas advindos da família, para o mundo do seminário? Permanece uma grande interrogação.

Há um grande descontentamento por parte dos seminaristas e uma falta de preparação dos formadores. A qualificação dos formadores parece problemática:

Parece, através da pesquisa e das respostas obtidas, que grande parte dos formadores é colocada no seminário sem nenhuma preparação, mas como um ‘tapa-buraco’. Sabemos que existem alguns cursos, algumas escolas no Brasil, mas são ainda poucos aqueles que se pre-param eficazmente para esse trabalho tão árduo e fundamental na Igreja (MARMILICZ, 2003, p. 331).

Um número muito significativo de seminaristas afirmou não estar satisfeito com a “formação humana” recebida no seminário. Ora, segundo Marmilicz (2003, p. 332), “o Seminário deveria formar em primeiro lugar pessoas humanas, capazes de sentir, de amar, de viver os valores humanos”. Os seminaristas avaliam muito positivamente suas famílias, mas conside-ram muito negativo o ambiente do seminário:

Comumente se diz que os seminaristas vêm de famílias com tantos problemas, desestruturadas, com carências enormes. Essa é muitas vezes a análise feita pelos formadores, o que não coincide com a análise feita pelos formandos. Estes dizem que se sentem muito satisfeitos com a família, mas muito insatisfeitos com o seminário. [...] O que está errado nessa análise? Talvez a resposta tão positiva ao fator famí-lia e comunidade seja um modo de rebelar-se contra o seminário. Esse fator deveria ser muito inquietante, e os formadores deveriam se perguntar e analisar onde está o erro. Costuma-se dizer que os pro-blemas da família continuam no seminário. No entanto, o forman-do diz que em casa ele se sente bem, os problemas são muito menores.

(23)

Os problemas seriam então criados pelo próprio seminário? Não deixa de ser um aspecto muito curioso. No entanto, não deixa de revelar um dado muito interessante: os seminaristas maiores do Brasil não sentem o seminário como um lugar propício para o seu crescimento, a sua formação (MARMILICZ, 2003, p. 333).

Outro dado alarmante é que os seminaristas demonstraram uma grande insatisfação quanto ao processo de discernimento vocacional:

Esse fator é muito preocupante, pois o tempo de formação deve ser sobretudo um tempo de discernimento vocacional. Grande parte dos formandos chega ao sacerdócio sem ter certeza daquilo que realmen-te quer. E sem firmeza daquilo que escolheu. Culpa dos formandos, ou de um ambiente que não oferece condições para o seu crescimen-to e desenvolvimencrescimen-to pessoal? Percebe-se a importância do acompa-nhamento pessoal, mas que realmente vá ao encontro com a vida do formando, com sua história, seus desejos, seus sonhos e suas intui-ções. [...] Com um bom início, o andamento da caminhada tenderá naturalmente a acontecer, com uma continuidade no discernimento, até que aconteça a resposta final, tranqüila e consciente ao projeto de Deus a seu respeito (MARMILICZ, 2003, p. 334-5).

Ainda há discrepância quanto à percepção de seminaristas e forma-dores no que se refere ao conceito sobre si mesmos. Os seminaristas se de-claram muito satisfeitos consigo mesmos, se sentem protagonistas e responsáveis, como senhores da sua história, atos e decisões. Já os formado-res percebem que os seminaristas não são protagonistas nem formado-responsáveis de modo satisfatório. Os formadores consideram que os seminaristas têm um baixo conceito pessoal, enquanto que os seminaristas manifestam um con-ceito pessoal bem alto:

Essa é uma questão que mereceria uma boa reflexão, haja vista que o modo como nos vemos influencia muito no modo como vivemos, nos empenhamos, encaramos as tarefas e os desafios da vida. Pesso-almente, pelo trabalho desenvolvido no seminário, percebo que os formandos de modo geral têm uma baixa auto-estima. Acredito que a resposta altamente positiva reflete uma racionalização, ou uma idealização. Talvez reflete muito mais aquilo que gostariam de ser , do que aquilo que são na realidade (MARMILICZ, 2003, p. 336).

(24)

Marmilicz também descobriu que não há partilha dos problemas afetivos: os seminaristas não confiam para os formadores seus problemas íntimos. Os formadores, por seu lado, consideram os seminaristas muito “imaturos” do ponto de vista emocional e afirmaram não estarem prepara-dos para trabalhar com a dimensão da “afetividade” prepara-dos jovens:

Como podem os jovens confiar seus problemas mais íntimos para alguém que se diz despreparado para entendê-los e ajudá-los? Parece evidente que haverá um fechamento recíproco. Provavelmente os formadores percebem os problemas, mas como não sabem como enfrentá-los, deixam passar. E aí, tantos formandos chegam ao sacer-dócio muito imaturos e despreparados afetivamente. E os problemas se manifestarão depois... esses serão os futuros formadores... e o cír-culo vicioso parece que não terá fim (MARMILICZ, 2003, p. 338). Apesar de apontarem para seu despreparo, ainda há uma presença pequena de psicólogos e pedagogos auxiliando os formadores em seu traba-lho no seminário, talvez devido a problemas com a orientação teórica desses profissionais, ou ainda de ordem financeira. Também não se verifica um acompanhamento eficaz antes do ingresso do candidato no seminário nem se costuma pedir um laudo psicológico:

Mesmo que houvesse uma equipe de pedagogos ou psicólogos acom-panhando o crescimento emocional dos formandos, isso não retiraria a responsabilidade dos formadores, porque no fundo são eles que acom-panham o dia-a-dia dos formandos, suas incoerências, percebendo aquilo que destoa da proposta vocacional. Os formadores jamais serão isentados dessa grande responsabilidade de ajudar os formandos no seu desenvolvimento emocional; para tanto, deverão preparar-se melhor para essa tão árdua, mas necessária tarefa (MARMILICZ, 2003, p. 341). Finalmente, a pesquisa revela que os seminaristas não sentem positi-vamente a presença do formador e avaliam negatipositi-vamente a totalidade do ambiente educativo do seminário. A relação com o formador não é conside-rada boa. Os formadores indicam também sua baixa “sensibilidade psicoló-gica” para estarem próximos dos seminaristas de modo positivo.

Os resultados obtidos pela pesquisa de Marmilicz (2003) coincidem de modo geral com nossas investigações anteriores relativas ao Seminário Filosófico (BENELLI, 2003). Pensamos que os Seminários que se

(25)

organi-zam de acordo com a lógica totalitária do poder disciplinar provavelmente não se distanciarão muito das cartografias que traçamos (BENELLI; COS-TA-ROSA, 2002, 2003). Nesse sentido, além de Marmilicz, a literatura vem corroborando essa nossa hipótese e nossos principais achados (BENEDETTI, 1999; LOSADA et al., 1999; COZZENS, 2001; MÉZERVILLE, 2000; NOUWEN, 2001, p. 79-101; BOFF, 2002; VALLE, 2003; OSIB, 2004; PEREIRA, 2004; ANJOS, 2004; FERREIRA, 2004; LIBANIO, 2005). Verificamos uma notável semelhança com relação a problemática geral do processo formativo tanto no clero diocesano quanto no das congregações religiosas, a partir da literatura compulsada.

Marmilicz (2003, p. 348) termina sua pesquisa de doutorado sobre O Ambiente Educativo nos Seminários Maiores do Brasil – Teoria e Prática com uma perplexidade:

Um dos problemas diz respeito ao grande paradoxo que existe ainda entre a teoria e a prática. Os documentos de modo geral têm uma linha clara, bela, apresentando um ideal a seguir, mas a realidade geralmente é diversa e distante desta proposta. Existe um número significativo de teorias, de propostas, mas falta muitas vezes uma metodologia clara para enxertar tudo isso no coração do formando. Além disso, não podemos fechar os olhos para o fato de que nem todos estão convictos da impor-tância de uma preparação sólida, e de uma contínua atualização para aqueles que trabalham no seminário. Os problemas abertos, se são negativos por um lado, por outro, nos estimulam a uma busca contí-nua que não termina nunca.

Ele constata então a contradição entre as belas teorias e a realidade concreta da formação sacerdotal. Há um número significativo de teorias educativas para a formação do novo clero e Marmilicz supõe que o proble-ma esteja no aspecto metodológico: qual será o método proble-mais eficaz para “enxertar tudo isso no coração do formando”. Mas será que a questão é meramente metodológica? Pensamos que não. Parece que falta um enquadramento teórico mais abrangente que permita a Marmilicz (2003) equacionar os fatos problemáticos que sua pesquisa de campo coletou e detectou. Acreditamos que seria necessário estudar os operadores institucionais disciplinares do dispositivo pedagógico Seminário Católico, a partir da análise institucional (BENELLI, 2003, 2004).

Notamos que a Psicologia tradicional, centrada em suas funções pre-ventivas e corretivas, focada no indivíduo, psicologizante e patologizante da

(26)

conduta e do comportamento pessoal, pode prestar um grande (des)serviço para o processo formativo sacerdotal. Há uma terapeutização do cotidiano da vida do seminarista no interior do Seminário (que se organiza de modo seme-lhante ao formato monástico em seus aspectos essenciais) que pretende realizar um trabalho de transformação do indivíduo em padre: tudo o que o semina-rista faz pode ser tomado como índice de amadurecimento, imaturidade, enlouquecimento, vocação ou ausência dela, de acordo com a leitura dos padres formadores, colegas seminaristas, professores e funcionários do estabelecimento. Nesse sentido, só o fato de viver no Seminário realmente pode ser considerado como formativo em si mesmo, independente de atividades formativas especí-ficas que venham a serem desenvolvidas.

CONCLUSÃO

Estamos verificando que as teorias e as técnicas do campo da psicologia (teorias da personalidade, do caráter, do temperamento, do comportamento, das emoções, da afetividade, psicoterapia pessoal e grupal, testes projetivos, dinâmicas de grupo) são todos instrumentos bastante limitados, diríamos inócuos, para detectar, diagnosticar e buscar equacionar as questões essenciais da formação sacerdotal, tal como a entendemos. Teorias e técnicas psicológi-cas são amplamente descritas e aplicadas na formação do clero no Seminário, de acordo com toda uma literatura (CENTINI; MANENTI, 1988; JOÃO PAULO II, 1992; CNBB, 1995, 2001; MÉZZERVILLE, 2000; COZZENS, 2001; NOUWEN, 2001; MARMILICZ, 2003; VALLE, 2003; OSIB, 2004; PEREIRA, 2004; ANJOS, 2004; MEDEIROS; FERNANDES, 2005 etc.) que procura alinhar a boa e sadia psicologia humanista com as orientações do magistério eclesiástico.

Podemos considerá-las complementos pedagógicos, psicopedagógicos da moda psicologizante atual, artigo de luxo incluído no processo de forma-ção sacerdotal, perfumaria anódina, que nem de longe toca nas questões es-senciais do poder e da política. A boa psicologia no Seminário não coloca em questão o paradigma disciplinar monástico que parece realmente organizar a vida no contexto institucional (BENELLI, 2003). Há uma pedagogização e uma psicologização das relações de poder político-religioso na formação dos futuros presbíteros que produz, conseqüentemente, o que pode.

A literatura sobre a formação utiliza teorias psicológicas e inclusive psi-quiátricas para realizar um processo de diagnóstico e triagem dos candidatos ao sacerdócio. É típica a sociologização e a patologização individual dos conflitos, contradições e aporias institucionais, por exemplo, remetendo sua origem ou

(27)

causa à família desestruturada do candidato ao sacerdócio ou à sua interioridade psicológica (personalidade, dimensão instra-psíquica individual).

A dimensão da formação humano-afetiva, área tradicionalmente refe-rida à Psicologia, pretende fundar-se em princípios humanistas e cristãos, pois um homem integral e integrado seria condição de possibilidade para a forma-ção de um padre maduro e equilibrado. Trata-se de construir uma base huma-na sólida e saudável para poder educar o corpo e a sexualidade para o celibato: educar os sentimentos, cultivar relacionamentos sociais altruístas, manter uma convivência fraterna e harmoniosa em amizades sadias, realizar um trabalho solidário em equipe, ter responsabilidade no uso dos bens pessoais e coletivos, tornar-se capaz de integrar a genitalidade num projeto de vida casto. Aqui detectamos todo um processo de pedagogização e psicologização (inclusive de forte psicopatologização) dos comportamentos.

A Pedagogia, a Psicologia e a Psicopedagogia ignoram o campo paradigmático em que funcionam (FOUCAULT, 1982, 1999a, 1999b) e desconhecem os efeitos políticos que podem produzir no campo social e institucional. Ainda não é comum que os profissionais dessas áreas de saber problematizem a ética de suas disciplinas e se impliquem politicamente em suas conseqüências. A metodologia psicológica de investigação não pode escapar de suas próprias condições de possibilidade; ela tende a tomar a realidade como sendo constituída por sujeitos e objetos, buscando comumente sua normalização totalizadora. As práticas da Psicologia produ-zem tanto a objetivação (disciplinar) quanto a subjetivação (confessional), criando seus objetos e sujeitos. O saber que suas práticas produzem são es-senciais para a expansão do biopoder (FOUCAULT, 1982) na sociedade contemporânea. A potência do biopoder consiste na definição da realidade bem como na sua produção.

O estudo da estrutura e da conjuntura eclesial (LIBANIO, 1984, 2000; QUEIRUGA, 2001, 2003; COMBLIN, 2002, COMISSÃO NACIONAL DOS PRESBÍTEROS, 2001; VALLE, 2003; MEDEIROS; FERNANDES, 2005) certamente nos ajudariam na compreensão dos diversos fenômenos que podemos detectar na instituição de formação do clero. Os impasses do processo formativo fazem sentido no contexto sócio-eclesial mais amplo. O equacionamento das contradições não passa apenas pela metodologia psico-pedagógica, mas se situa no plano da política eclesial, das relações de poder e dos embates dos diversos grupos em conflito. Todo planejamento pedagó-gico se pauta em escolhas, valores e decisões que são eminentemente políti-cas. A dimensão política da formação vem embutida na prática cotidiana da formação e essa nos parece ser a questão nevrálgica que deve ser

(28)

proble-matizada, sob pena de permanecermos com projetos abstratos que ignoram a realidade concreta.

Nota

1 Expressão do italiano: pessoa dotada de autoridade, importante, influente, competente (POLITO,

1993, p. 39).

Referências

ABERASTURY, A.; KNOBEL, M. Adolescência normal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. ALTOÉ, S. (Org.). René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec, 2004. ANJOS, M. F. (Org.). Novas gerações e vida religiosa: pesquisa e análises prospectivas sobre a vida religiosa no Brasil. 2. ed. Aparecida: Santuário, 2004.

BAREMBLITT, G. F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Rio de Janeiro: Record, 1998.

BAREMBLITT, G. F. O inconsciente institucional. Petrópolis: Vozes, 1984.

BARUS-MICHEL, J. O sujeito social. Tradução de Galery, E.; Machado, V. M. Belo Horizonte: Ed. da PUC, 2004.

BECKER, D. O que é adolescência. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BENEDETTI, L. R. O novo clero: arcaico ou moderno? Revista Eclesiástica Brasileira, Rio de Janei-ro, v. 59, n. 233, p. 88-126, 1999.

BENELLI, S. J. A instituição total como agência de produção de subjetividade na sociedade discipli-nar. Estudos de Psicologia, v. 21, n. 3, p. 237-252, 2004.

BENELLI, S. J. Pescadores de homens: a produção da subjetividade no contexto institucional de um Seminário Católico. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Faculdade de Ciências e Letras da Unesp, Assis, São Paulo, 2003.

BENELLI, S. J.; COSTA-ROSA, A. A produção da subjetividade no contexto institucional de um seminário católico. Estudos de Psicologia, v. 2, n. 19, p. 37-58, 2002.

BENELLI, S. J.; COSTA-ROSA, A. Estudo sobre a formação presbiteral num seminário católico.

Estudos de Psicologia, v. 20, n. 3, p. 99-123, 2003.

BOCK, A. M. B.; GONÇALVES, M. G.; FURTADO, O. (Orgs.). Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez, 2002.

BOFF, L. Crise: oportunidade de crescimento. Campinas: Verus, 2002.

CAMPOS, R. H. F. (Org.). Psicologia social comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis: Vozes, 1996.

CAMPOS, R. H. F.; GUARESCHI, P. A. (Orgs.). Paradigmas em psicologia social: a perspectiva latino-americana. Petrópolis: Vozes, 2000.

(29)

CENTINI, A.; MANENTI, A. Psicologia e formação: estruturas e dinamismos. Tradução de Ferreira, F. R. C.; Gastaldi, M. São Paulo: Paulinas, 1988.

CÉSAR, M. R. A. Por uma genealogia da adolescência. In: BIROLI, F.; ALVARES, M. C. (Orgs.).

Cadernos da FFC, Marília, v. 9, n. 1, p. 131-148, 2000.

CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Formação dos presbíteros da igreja no Brasil: diretrizes básicas. São Paulo: Paulinas, 1995.

CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Metodologia do processo formativo: a formação presbiteral na Igreja do Brasil. São Paulo: Paulus, 2001.

COMBLIN, J. O povo de Deus. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2002.

COMISSÃO NACIONAL DE PRESBÍTEROS. Presbíteros do Brasil construindo histórias: instru-mentos preparatórios aos encontros nacionais de presbíteros. São Paulo: Paulus, 2001.

COSTA-ROSA, A. O modo psicossocial: um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar. In: AMARANTE, P.D.C. (Org.). Ensaios de loucura & civilização. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000. p. 141-168.

COTRIM, G. Educação para uma escola democrática: história e filosofia da educação. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1993.

COZZENS, D. B. A face mutante do sacerdócio: reflexão sobre a crise da alma do sacerdote. São Paulo: Loyola, 2001.

FERREIRA, C. A. Das utopias religiosas às ilusões perdidas: memória de jovens católicos. In: ANJOS, M. F. (Org.). Novas gerações e vida religiosa: pesquisa e análises prospectivas sobre a vida religiosa no Brasil. 2. ed. Aparecida: Santuário, 2004. p. 99-113.

FIGUEIREDO, L. C. M. Psicologia: uma introdução – uma visão histórica da Psicologia como ciên-cia. São Paulo: Educ, 1991.

FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Machado, R. C. M.; MORAIS, E. J. Rio de Janeiro: Nau, 1999a.

FOUCAULT, M. A vontade de saber. Tradução de: Albuquerque, M. T. C. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982. (Col. História da Sexualidade).

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de RAMALHETE, R. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1999b.

GALLO, S. Repensar a educação: Foucault. Filosofia, Sociedade e Educação, Marília, ano I, n. 1, p. 93-118, 1997.

GALLO, S. Transversalidade e educação: pensando uma educação não-disciplinar. In: ALVES, N.; LEITE, R. (Orgs.). O sentido da escola. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. p. 17-41.

GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. Tradução de LEITE, D. M. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1987.

GUIMARÃES, A. M. Vigilância, punição e depredação escolar. Campinas: Papirus, 1985. JOÃO PAULO II. Sobre a formação dos sacerdotes: pastores dabo vobis. São Paulo: Paulinas, 1992. LAPASSADE, G.; LOURAU, R. Chaves da sociologia. Tradução de Caixeiro, N. C. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

LEFÈVRE, F. (Org.). O discurso do sujeito coletivo: uma nova abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do Sul: Edusc, 2000.

Referências

Documentos relacionados

Os resultados deste estudo mostram que entre os grupos pesquisados de diferentes faixas etárias não há diferenças nos envoltórios lineares normalizados das três porções do

Os estudos originais encontrados entre janeiro de 2007 e dezembro de 2017 foram selecionados de acordo com os seguintes critérios de inclusão: obtenção de valores de

A seleção portuguesa feminina de andebol de sub-20 perdeu hoje 21-20 com a Hungria, na terceira jornada do Grupo C do Mundial da categoria, a decorrer em Koprivnica, na

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

Apothéloz (2003) também aponta concepção semelhante ao afirmar que a anáfora associativa é constituída, em geral, por sintagmas nominais definidos dotados de certa

Com o intuito de dinamizar a área dos condicionantes comportamentais do Plano de Desenvolvimento de Saúde do Município do Seixal (PDS), e de delimitar estratégias de intervenção

Declaro meu voto contrário ao Parecer referente à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresentado pelos Conselheiros Relatores da Comissão Bicameral da BNCC,

Entre as atividades, parte dos alunos é também conduzida a concertos entoados pela Orquestra Sinfônica de Santo André e OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São