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Os "Canto" nos jardins paisagísticos da Ilha de S. Miguel

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Academic year: 2021

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DA ILHA DE S. MIGUEL

Nestor de Sousa*

Num dos primeiros dias do mês de Julho de 1861, às cinco horas da tarde, fundeava no ancoradouro de Ponta Delgada um navio de guerra da Armada francesa. De bordo desembarcaram dois membros da família imperial, o príncipe Napoleão e sua mulher, a princesa Clotilde. Na comi-tiva, um ajudante de ordens de Napoleão III, imperador dos franceses.

Era presença inesperada, em viagem para os Estados Unidos da América, que teria ainda aportagem intermédia na Horta, para abasteci-mento de carvão.

Entrados no cais da cidade, a Matriz de traça manuelina, construí-da no reinado de D. João III (c. de 1530 a 1545), foi visita primeira, quan-do nela se batizava um neófito aparentaquan-do com a família Canto. Deste epi-sódio, os ilustres recém-chegados puderam beneficiar da comodidade de duas carruagens particulares. Outro tanto não diria a mãe do batizado que, com o oferecimento de Ernesto do Canto e de Honorato do Canto, teve de palmilhar a pé com o pequeno o regresso a casa.

De seguida, os visitantes estavam no Jardim de José do Canto, então ausente em Paris com a família, surpreendendo D. Francisca Cândida de Medeiros, sua sogra, que com o segundo marido e uma das filhas deste novo matrimónio, ali tinham ido espairecer de nojo recente por outro genro.

Das impressões colhidas das bellas vistas que apresenta o Jardim, os ocasionais anfitriões ouviram referências elogiosas do príncipe, porque

*Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais, Universidade dos Açores.

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estava muito bem tratado à Ingleza, não se esquecendo a princesa Clotilde de manifestar o seu agrado pelas flores oferecidas e pela observação da estufa de ananáses, ainda que, como lamentou D. Francisca, naquela época do ano elas não abundassem e os frutos estivessem verdes.

Na mesma tarde houve também visita aos jardins de José Jácome Correia — adjacente do lado poente ao de José do Canto — e de António Borges, um pouco mais afastado, para poente-sul. Antes deste, paragem na gruta que havia na Quinta do Brander, por particular interesse geoló-gico do príncipe Napoleão.

Por igual as afirmações de apreço, com a particularidade, porém, de a Caza do José Jácome ter suscitado acrescida surpresa na alteza imperi-al, que não pensava achar na Ilha um tão grande Palacio, como o havia comentado á sua cometiva1(sic).

Foi já na madrugada do dia seguinte que o vapor deixou Ponta Delgada, para que os forasteiros cumprissem, no Vale das Furnas, a últi-ma etapa do seu percurso micaelense, com o previsível alvoroço que iriam causar na sociedade elegante ali de veraneio e a banhos (Doc. 1). A bordo seguiram os mencionados Ernesto do Canto e Honorato, seu irmão, que lhes serviram de cicerones e apresentadores2.

Obsequiados pelo visconde da Praia com almoço3, as referências sobre o que puderam observar, numa paisagem onde a Natureza e o arti-fício tinham articulação romântica, não desmereceram das anteriores.

A qualificação de jardim à inglesa atribuída ao Jardim de José do Canto pelo príncipe Napoleão, corresponde a uma etapa, ao tempo ainda de relativamente recente generalização europeia, de uma jardinagem com longes de distância e cuja genealogia remonta às primeiras sociedades his-tóricas — jardins, ditos suspensos, de Babilónia, pela organização em ter-raços plantados de árvores e seu dispositivo de rega.

Com outra concepção chega-nos a mítica — e fatídica — cena da maçã, fruto tornado fruto de todos os males da Humanidade. O sítio do desacato à ordem divina, na imagem transmitida pela tradição judaico-cristã, é a de um espaço plurifuncional e utilitário, feito Paraíso, de que os primeiros

progenito-1UA,JC, Carta de Agostinho Machado a José do Canto, em Paris, Caloura, 9-8-1861. 2UA,JC, Carta de Agostinho Machado a José do Canto, em Paris, Caloura, 9-8-1861. 3UA,JC, Carta de Agostinho Machado a José do Canto, em Paris, Caloura, 9-8-1861.

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res foram expulsos. Tema de pintura, encontra em Masaccio (1401-1428) ponto de partida de uma renovação estética em começo de ruptura com o sis-tema tardo-medieval de representação iconográfica. Num “Quattrocento” flo-rentino, que logo se afirma recuperador do nu e avança pelo ilusionismo pros-péctico, a composição, figurada com profundo sentido de humanização, valo-riza as anatomias e expressividade da situação e do acto, por efeitos de som-bra-luz em simbologia que neutraliza a paisagem da expulsão.

De outro sentido edénico — não já de Paraíso perdido —, o jardim corânico — paraíso de novo prometido, povoado de húris —, é lugar de delícias para os crentes. Transposto para a terra, em articulação com arqui-tecturas palacianas ou de mesquitas, a civilização islâmica realizou-o como “hortus conclusus” acordado com os quatro pontos cardeais e referência a Meca, onde o elemento água, sempre essencial, assume particular signifi-cado por relação com as ideias da morte, esperança numa nova vida e sabe-doria, entendida esta como indispensável purificação da mancha original com que o homem nasceu.

A ordem rigorosamente geométrica e delimitada do jardim, a poli-cromia das flores, a visão dos frutos e fragância dos seus perfumes, jugados com o verdejante das folhagens, sombras e frescas brisas que con-sentem, completam-se, no mesmo ideal de harmonia, com a arquitectura concebida como estilizada construção da natureza vegetalista e floralista. E nisto se afirma lugar de contemplação por excelência, que aproxima o ser humano do seu Criador, cuja voz é a própria água murmurante. Derramada de fonte centralizada no espaço ajardinado, espalha-se-lhe por canais de linhas rectilíneas — que o fragmentam racionalmente — até se confundir com a terra, como se uma e outra tivessem a mesma origem4.

Jardim associado a estas noções paradisíacas, não o haviam conheci-do os gregos. Os Campos Elíseos homéricos são Planura (...) no extremo da terra (...), onde sopram aragens sempre ligeiras, vindas do Oceano. Primavera quase perene, ali não cai a neve e não há grande invernia, nem chuva5. Muitos séculos depois, à entrada da Época Clássica, eles são, para Píndaro, lugar debaixo da terra. E se aí há prados de rosas rubras,

ensom-4Ver, Pietro Porcinai e outro, Giardini d’occidente e d’oriente(...), pp. 20-21; Georges

Gromort, L’Art des jardins, p. 1.

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bradas pelo incenso, e árvores carregadas de aúreos frutos”, situam-se à frente da cidade dos eleitos, para quem o deleite são os cavalos, os exercí-cios gímnicos, o xadrez e a lira6. Esta concepção tem lembrança da descri-ção deixada por Homero dos jardins de Alcinoo, rei dos Feaces, em que o palácio é realidade outra e fechada, mas para além do qual se estendem qua-tro jeiras com uma sebe a toda a volta, onde crescem altas árvores viçosas, pereiras e romãzeiras, e macieiras de frutos luzidios, doces figueiras e oli-veiras frondosas, também plantado de vinha. A zona florida, cultivada de alegretes e plantas de toda a espécie, é relegada para o extremo do jardim, distinta, pois, do terreno frutífero, num conjunto em que uma das fontes irri-ga o jardim todo, enquanto a outra vai passar sob o limiar do pátio, a cami-nho do palácio altaneiro, servindo para abastecimento da cidade7.

Próximo do conceito mesopotâmico, sem com ele se confundir enquanto organização, falta-lhe o sentido mítico que reservaram aos bos-ques em volta dos templos, o recinto sagrado (...), no prado florido ou os prados de rosas floridos8.

Ao contrário do mundo grego, a civilização romana, de tradição etrusca, consubstanciou na casa e seu terreno adjacente, o microcosmo da família sob a “patria potestas”. A residência é, ao mesmo tempo, o templo da vida privada do cidadão, onde desde a soleira da porta tudo é sacro e de que é sacerdote o “pater familias” que, assim, combina simultânea-mente a suprema autoridade civil e religiosa do mundo particular de cada romano. É ali que se fundarão as práticas públicas de cidadania, projecta-das no “cursus honorum” republicano, antes que o luxo consagrado no Império lhe transformasse a mentalidade terrantesa, o modo de vida e os rituais domésticos.

O jardim privado romano, estruturado em partes distintas, compor-tava a área de cultivo de plantas diferenciada do “pomarium”, destinado às árvores frutíferas, particularmente significativo nas normas de hospita-lidade e em vista das oferendas às divindades familiares. Mas tinha tam-bém uma zona florida, da qual se destacava, separadamente, o local do roseiral, porque a rosa era entendida como símbolo de um futuro pleno de

6Píndaro, Os Campos Elísios, (frag.), id., ib., p. 148.

7Homero, Odisseia, VII, 112-132, Maria Helena Rocha Pereira, ob. ind., p. 57. 8Ver Pietro Porcinai (...), ob. ind., pp. 22-37.

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felicidade. As outras, com presença abundante da violeta, ficavam-se pelo estatuto de flores comuns, com préstimo de dar ao ambiente o seu perfu-me e colorido. Completava-lhe a orgânica o “vivarium”, área de criação de animais. Era parte acessórica, como também o era o lago ou piscina, tornado viveiro de peixes e provido de fonte.

Outros complementos eram a gruta, geralmente com função deco-rativa, e o pequeno templo dedicado aos “Lares” e “Penates”, divindades protectoras de cada família. Integrava ainda a “diaeta” ou terraço9.

Mas este é o jardim do tempo em que ao fausto se junta o luxo. Aquele, no sentido de glorificação ou favorecimento por escolha divina, é expressão da tradicional autoridade — “auctoritas” — dos valores familiares, que viria a confundir-se, nos últimos tempos da República e sobretudo no Império, com a fortuna financeira capaz de realizar a sumptuosidade, enquanto mani-festação exterior e exibicionista de um poder meramente material.

O fluxo de riquezas proporcionado pela expansão conquistadora para além dos limites itálicos, amorteceu a severidade da vida patriarcal antiga. A casa familiar da tradicional classe senatorial, de sóbria que era transformou-se e engrandeceu-transformou-se. Desaparece a horta para dar lugar ao peristilo portica-do e floriportica-do, tenportica-do ao centro o tanque rectangular com repuxos, que irá estender-se por terrenos arborizados em forma de bosques, a espaços orna-dos de estatuária. Para aí se transfere o altar do culto doméstico, em templo para o efeito edificado. O romano inicia um modo novo de se interessar pela Natureza, que irá desenvolver-se e, das cidades, ganha as “villae” rústicas, tornadas fabulosas residências de veraneio. Impõe-se-lhe o repouso da agi-tação urbana, onde o ócio ganha dimensão de actividade do espírito, reali-zada sem objectivo de imediato pragmatismo. Deste ócio participará a mulher romana, perdido o recato que era exigido à antiga matrona e a con-finava na intimidade dos afazeres domésticos. Ficaram conhecidos círculos elegantes de romanas cultivadas, tanto como de costumes livres, em cujos jardins se realizaram memoráveis festas, em que o refinamento mundano e cultural andava de par com a permissividade dos comportamentos.

O incêndio de Roma no tempo de Nero e a reconstrução empreen-dida, condicionou o espaço urbano para amplos jardins residenciais. Todavia, o imperador teve-os e, depois dele, ainda outros os possuiram no século I, em áreas mais ou menos periféricas da cidade em expansão. As

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vilas imperiais, como as de grandes personalidades, no circuito de Roma ou já fora dele, chegam-nos por testemunhos literários e arqueológicos. Também outras do Baixo Império.

Um princípio lhes é comum. A imensidão espacial, em que o jardim se confunde com a paisagem natural, aproveitando-se encostas de colinas, margens fluviais ou litorais marítimos e demais acidentes topográficos. Os seus limites serão dissimulados por sebes, sem uma parede que oculte a paisagem10.

Se confinando com a orla marítima, também aí o jardim estabele-ce, por feliz disposição de terraços, uma transição imperceptível entre a floresta e o mar. É o antigo jardim fechado que se torna aberto, sem per-der, no entanto, a dupla situação de herdade agrícola ou, pela localização costeira da vila, conjugando-a com a utilidade de porto privativo de gran-des lagos de água salgada, simultâneamente piscinas e reservatórios pis-cícolas, com que se melhorava a alimentação do proprietário.

O jardim-quinta anterior permanece, mas torna-se parque sumptuo-so na zona de lazer, onde o artifício ganha presença de exótica cenografia, não só pela abundância de estatuária de divindades — já sem crença — e espelhos de água, com sublinhado dos canais construídos, mas também por uma particular intervenção escultórica, que transforma troncos de árvores em figurações de diversificadas representações — caçadas, arma-das, escultura animalista e composições de letras —, tornadas fantasiosas emoldurações de alamedas ou decorativismo de clareiras e recantos11.

Penetrado o romano pelo contacto com diferenciadas culturas e civilizações, o seu jardim foi realização de luxo espaventoso, imagem de impressivo eclectismo.

A Idade Média, nascida das ruínas do Império, ignora a jardinagem sob as marcas dominantes dos germânicos infiltrados, povos de florestas bravias.

Depois da gradual cristianização dos novos reinos e da recuperação carolíngia da ideia de império — sucessivamente reanimada em confron-tos do poder temporal com o da Igreja —, a Europa das catedrais góticas — ultrapassado o monaquismo campesino —, encontra no Cântico das Criaturas de Francesco Bernardone — o “poverello” de Assis —, um

par-10Pierre Grimal, A Vida em Roma (...), p. 135. 11Id., ib., pp. 135-139.

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ticular momento de exaltação da fraternidade universal, porque tudo que existe em volta do ser humano, tanto como ele, tem progenitura em Deus. Sob esta inspiração, a França da língua de “oc” reclama-se das can-ções de amor, que terão correspondência portuguesa e variante autóctone de poética trovadoresca e cortesã nas cantigas de amigo.

Mas este, é tempo também de heresias cristãs, de lutas feudais, de papas e antipapas e, ainda, de reconquista no Ocidente peninsular.

O jardim monástico, senhorial ou pontifício, não contém novidades que lhe afirmem evolução de conceito e de organização. Lugar de medi-tação mística e, no Quattrocento, de inspiração poética humanística, de contemplação neoplatónica ou já aristotélica, ele é igualmente e indistin-tamente sinónimo de horta.

A separação como entidade autónoma dar-se-á na Itália do Alto Renascimento e do Maneirismo artísticos. O jardim é, então, nas luxuosas novas vilas palacianas, lugar privilegiado de fruição do belo, onde a vegeta-ção se constitui cenário de antiga estatuária e de arquitecturas. É o “jardim decorativo”, com seus canteiros geométricos de flores e bosques ao longe12. Na outra Europa, ainda quinhentista, a França construirá os seus mais sumptuosos espaços ajardinados submetendo-os inicialmente a dupla influência. Os relvados flamengos conjugam-se com terraços, fon-tes, grutas e pavilhões do jardim italiano. Será desta combinação que, no século seguinte, Le Nôtre e Versalhes — expoentes maiores da jardina-gem e do jardim francês clássico —, definirão um novo programa, que recolherá paulatina evolução. As novidades que nele emergiram são, essencialmente, de relação diferente entre as diversas partes do jardim entre si, e do todo com o palácio, pelo uso que se faz dos jogos de água e o diverso modo de adaptação do jardim ao terreno. É que, na Itália, mais do que prévia ordenação planimétrica, a jardinagem afirmara-se como adaptação ao lugar, sem sujeição das partes a unidade compositiva, antes constituindo-se o jardim em parcelas autónomas, umas relativamente às outras e todas por referência ao edifício.

Não assim o jardim francês, determinado pela unidade e em função do palácio que, pela sua posição dominante, permite alcançar o mais amplo panorama.

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O princípio básico da sua orgânica decorre do eixo axial, constitu-ído por grande avenida vinda do espaço urbano perpendicularmente ao frontispício palaciano, desenvolvendo-se aí em avantajado semicírculo ou em forma quadrangular. Penetrado o pátio aberto do edifício — ponto médio entre a povoação e o jardim —, é a visão ilimitada deste que se define em confronto com a imagem cerrada daquela. Por idêntica preocu-pação de impedir que das janelas posteriores da habitação se deparassem obstáculos ao olhar, os canteiros alinham-se uns ao lado dos outros, ape-nas bordejados de arbustos e, por fim, já distantes, pequenos bosques e sebes, uns e outros cortados de alamedas a desembocar no ornato de uma estátua ou de um espelho de água com seu fontenário.

Neste sistema, percorrido por eixos secundários transversais e radiais, a ideia de extensão sem limites visíveis acentua-se pela transformação do ter-reno natural numa sucessão de terraços planos, pontuados de grandes super-fícies de águas espelhantes, a que acrescem chafarizes, tanques e canais, num conjunto que converge para a dinamização de toda a composição.

Afirmado por Le Nôtre no jardim de Vaux-le-Vicomte (1656-1661), o programa do jardim barroco francês culmina com a transposição realiza-da em Versalhes, numa escala que, sendo maior, contempla mais varierealiza-dade de componentes, particularmente nos seus bosques, cuja aparência selva-gem comporta, todavia, arranjos de diferentes denominações: sala verde, sala de dança, sala do conselho e sala dos festins13. O jardim à Le Nôtre é, pois, uma construção geométrica que, à regularidade estática ensaiada no ainda “hortus conclusus” renascentista italiano, prefere a caprichosa inven-ção de perspectivas a perder de vista, afirmando-se como alternativa à Natureza, enquanto criação que a subordina a uma ordem racional. Ele é um panorama para ser visto do palácio, com unificação das suas diferentes par-tes hierarquizadas em função do maior ou menor afastamento do centro ideal que aquele representa. Mais do que espaço de repouso, é o cenário de um Poder que começa por impressionar para depois divertir. A ostentação casa-se com a Festa, e esta, no século XVII francês, define-se essencial-mente por representação teatral, numa ambivalência dos seus elementos ordenadores — naturais e artificiais — que, em Versalhes ou nas Tulherias, servirá aos espectáculos de Molière como aos do “Ballet du Roi”. À

inti-13Ver, Nestor de Sousa, “Jardins privados paisagísticos (...) na Ilha de S. Miguel”, in

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midade do episódio sentimental, destina-se-lhe as zonas secundárias mais afastadas. Imagem do poder monárquico absolutista, o jardim francês foi de larga progenitura na Europa barroca e iluminista, de Portugal à Rússia auto-crática dos czares, na profusão de desenhos possíveis de conhecer.

Na Inglaterra, porém, aristocratas cultivados e apreciadores de Claude Lorrain (1600-1682), o mais italiano dos pintores classicistas ou barrocos franceses, despertam para a paisagem própria, porventura ani-mados pelas gradações cromáticas que, nas telas do artista, substituem a simetria prospéctica, e onde na fase madura avulta um paisagismo inven-tado, de pitorescos efeitos lumínicos.

Um novo interesse pelo ambiente físico e pela sua dimensão histó-rica ganha amplitude com a influência colhida em viagens pela China e com o conhecimento de plantas e flores que a Europa ignorava, mas fáceis de aclimatar na Grã-Bretanha.

No mesmo ano de 1685 em que William Kent nasce, William Temple publica o “Ensaio sobre os Jardins de Epicuro”, depois de em escritos de outra natureza o chanceler Bacon se ter afirmado contra a simetria, a poda das árvores, os espelhos de água parada, que deviam ser banidos dos jardins. Ainda que sem avançar com idêntida oposição às pér-golas, colunas. pirâmides e demais aparelhos ornamentais então comuns, preconizava, no entanto, que próximo se lhes deixassem espaços agrestes, de modo a conseguir-se imagem de árvores e plantas endémicas aproxi-mada da ideia de jardins da natureza14.

Contudo, os jardins ingleses das primeiras décadas do século XVIII — precedendo o retorno à Natureza defendido por Rousseau e outros enci-clopedistas da mesma geração—, não representaram uma imediata nem completa ruptura com os programas franceses ou à francesa. Foi assim com o desaparecido Jardim de Twickenham, desenhado por Alexandre Pope em 1718, perto de Richmond e de uma das margens do Tamisa.

A esta fase de transição pertencem também os arranjos de Bridgeman, o parque de Chiswich e as realizações de William Kent nos jardins reais de Kensington, Richmond e de Stowe, este, originalmente da responsabilidade de Bridgeman e por ele modificado dez anos antes da sua morte em 1748.

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Situando-se na fronteira de uma nova estética da jardinagem inglesa, com repúdio da linearidade rectilínea e de quanto representava a essência da organização ainda dominante, as novidades propostas por Kent tomaram, como ponto de partida, a não subordinação à arquitectura de habitação.

A natureza que o inspirou decorreu da sua formação de pintor e foi a mesma que assinalámos para Claude Gellée, dito Lorraine ou de Lorraine, mais ainda do que em Poussin, sujeitando o terreno à ideia cri-ativa, dispondo a arborização ora com individualização ora constituindo agrupamentos, de modo a obter diversidade de perspectivas, para que o olhar se não dispersasse por excessiva extensão. Nesta orientação os efei-tos de sombra-luz assumem relevância, num todo que se pretendeu mimé-tico da Natureza, mas a que a multiplicidade de aparelhos construídos e sua proveniência imprimiu animação, tão ecléctica, que nela tudo é con-sentido: pirâmide egípcia, mirante barroco italiano, casa chinesa, templos de recordação romana, cabana e pórtico, gruta e ponte paladiana, lago arti-ficial e cursos naturais de água. E assim, se o modelo referenciado é visí-vel na mistura que faz, nem por isso se pode recusar a William Kent o mérito de ter sabido criar, para cada artefacto, encenação apropriada e de as suas perspectivas, que incluem paisagem natural, se projectarem para além dos limites ajardinados, indo fundir-se com o território campesino15. Responsável, em grande parte, pela gestação do que se designou de jar-dim à inglesa, Kent teve no seu discípulo e auxiliar Lancelot Brown, conheci-do por “Old Capability” (1715-1785), o primeiro desenhaconheci-dor profissional desta nova tipologia, cujo mais importante trabalho foi o parque de Blemheim. Ultrapassadas as primeiras experiências do século XVIII, William Chambers (1726-1796) dar-lhe-á contributo importante, depois de estada na China entre 42 a 44. Dos desenhos aí registados e da teorização que veio a produzir — “A Dissertation on Oriental Gardening” (1772) — deu prova no Kew Garden, em Richmond, que por encomenda da princesa Augusta de Saxe-Coburgo, mãe de Jorge III, teve um seu primeiro dese-nho em 1756 ou 59. Quando a rainha Vitória o ofereceu à nação, em 1841, os onze acres originais tinham entretanto passado a 300, com as conse-quentes alterações, afirmando-se as 45.000 espécies nele contidas, com suas estufas e viveiros, como a maior colecção botânica do mundo, sob denominação oficial de “Royal Botanic Kew Garden”.

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Será, pois, a partir da segunda metade de setecentos, quando a influ-ência chinesa transportada ganhou consolidação, que o gosto melhor se ori-entará no sentido de parque e o jardim inglês, a coberto da teoria do pito-resco, se definirá como jardim paisagístico (Landscape Garden). A popula-ridade que veio a alcançar encontrou em Humphrey Repton (1752-1818) o definidor do pitoresco como teoria estética. Os seus conceitos, codificados em “Observations in theory and pratice” (1803), a que sucedeu “An Inquiry into changes of Taste in Landscape Gardening” (1806), foram fórmula de composição com largo uso. A renovação posta em prática funde o cientifis-mo das preocupações prospécticas com efeitos ópticos — enquanto leis gerais de composição —, onde avulta, como essencial, a relação cromática de folhagens, em combinação de tonalidades, associada às incidências luminosas projectadas sobre as arquitecturas nas diferentes fases do dia. Por isso, nenhuma espécie botânica é desprezível16.

Sublinhe-se, no entanto, que a sensibilidade ocidental mais não colheu do jardim chinês que o quadro formal, ficando-lhe estranha a apre-ensão do conteúdo profundo e mágico.

Inovado no século XIX por William Robinson (1838-1935) com a técnica dos canteiros mistos e o espalhar de junquilhos e jacintos, em hábeis ordenações de cores, o jardim paisagístico inglês teve fortuna em toda a Europa e na América, com as suas áleas sinuosas, canteiros floridos e rel-vados, bosques e macissos frondosos, colinas serpentinadas de atalhos, cla-reiras habilidosamente dispersas, lagos artificiais de margens recortadas, ribeiras naturais e cascatas construídas, pontes e ruínas fingidas, pavilhões e templetes, numa variedade de sujestões que, todavia, a partir dos fins do século, foram sendo simplificadas. Nas suas perspectivas fragmentadas, que se pretendem imitativas de paisagem natural, haverá lugar, nas compo-sições de maior extensão, para zona agreste — com toda a espécie de arbo-rização —, antes que outra, dita jardim rochoso, se lhe acrescentasse17.

Os refinamentos da vida social e do conforto que, ainda no século XVIII, determinaram a prática de espairecer ao ar livre e a busca de

tranqui-16Id., ib., pp.103-125; Georges Gromort, ob. ind., pp. 99-101; Marguerite Charageat,

L’Art des jardins, pp. 162-165; Robert Joffet, Les Jardins et les Fleurs, pp. 15-16; M. Fouquier e outro, Des divers styles de jardins, p. 150; Pierre Puttemans, Les jardins anglais (...); Robin Middleton e outro, Architettura dell’Ottocento, v. 1, pp. 33-61.

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lidade compensadora dos ritmos citadinos, ir-se-ão traduzindo na Inglaterra da Revolução Industrial e em outros países de mais aceleradas transformaçõ-es da economia agrária, relacionadas com os progrtransformaçõ-essos do comércio e da riqueza financeira, na prática de residências secundárias em zonas rurais. Uma classe de média burguesia, ligada ao negócio ou a profissões liberais — e não apenas o reduzido número que constituía a nobreza de côrte ou a nova aristocracia plutocrata —, foi criando o hábito de construir ou alugar “casa de campo”. Nela, o jardim é parte importante, porque propiciador de um inti-mismo semelhante ao do interior. Por isso, também, o modelo inglês, com o seu sentimentalismo de expressão romântica, ganhará favor.

Em França, o movimento de adesão inicia-se em tempos vizinhos da Revolução. A austríaca Maria Antonieta, descuidada das ameaças que a levariam ao patíbulo juntamente com Luis XVI, pretende, em 1774, o seu “Petit Trianon”, que teve plano inicial de Antoine Richard, mas que só nove anos mais tarde terá desenho definitivo de Coutaut de la Motte, numa mistura de influência inglesa com o geometrismo da tradição fran-cesa. Aquela, obrigando às veredas, cursos de água caprichosamente tor-tuosos e macissos de árvores e arbustos, aceita igualmente o pitoresco de lembrança popular, que inclui aparelhos característicos de herdade rústi-ca, mas em justaposição com temas barrocos, a que pertencem um templo, simbolicamente dedicado ao Amor, e um pavilhão de música18.

A mesma simbiose de antigo e moderno terá aplicação em outros jardins palacianos, nomeadamente em Versalhes.

O século XIX dará a vez aos grandes parques públicos nas principais cidades francesas do II Império. Na Paris de Napoleão III e de Haussmann, o “Bois de Boulogne” foi transformado sob projecto do paisagista Alphang, de colaboração com Barillet-Deschamps. Os seus 95 quilómetros de avenidas e alamedas, numa superfície de 862 hectares, foram plantados com 200.000 árvores. Ainda nos começos da década de 1850, para os novos prazeres ao ar livre e em pleno centro da cidade, reorganiza-se o parque Monceau, enquan-to que de 66 a 78, agora em bairros populares e periféricos, outros dois foram criados19. Mas estes equipamentos urbanísticos oitocentistas franceses, são já programas de traçado simplificado, menos variados de cambiantes e mais

18Ver Pierre Grimal, L’Art des jardins, pp. 103-104.

19Id., ib., pp. 104-125; Marguerite Charageat, ob. ind., pp. inds.; Jacques Levron,

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económicos de ornatos e suas simbologias, sem deixarem de ser paisagísti-cos. Neles prevalece o gosto pela harmonização de formas e cores e o inte-resse pela aclimatação de árvores de longínquas paragens.

Depurada, embora, a influência inglesa é a nota mais visível, de tal modo que, quando o jovem micaelense Agostinho Machado Jr. regressa de Paris a Ponta Delgada, em Julho de 1863, na escala de alguns dias que fez em Bordéus, o jardim público lhe tenha parecido ... muito bonito e de gosto inglez, onde havia uma grande estufa com plantas, e o seu lago com ilhas no meio, tendo uma ponte de ferro muito bem feita e de gosto20(...).

A Portugal, a fórmula havia de chegar por via alemã, ao iniciar-se o parque do palácio da Pena, em Sintra, que em 1841 D. Fernando de Saxe-Coburgo, desde 1836 marido da rainha D. Maria II, mandou plantar com 10.000 árvores, integrando, poucos anos decorridos, espécies norte-americanas. Da pátria de origem veio o jardineiro Cifka e para lá foi aprender o ofício um jardineiro português.

Dos desenhos para o palácio, o rei-consorte encarregou o renano Wilhelm Ludwig, mais conhecido por barão de Eschwege (1777-1855). General do exército português e amador de arquitectura, estivera no Rio de Janeiro com a corte de D. João VI e fora privado da arquiduquesa D. Leopoldina que, por casamento com o príncipe real D. Pedro, viria a ser a primeira imperatriz do Brasil independente.

A obra do palácio da Pena decorreu de 1840 a 47 e teve colabora-ção de Possidónio da Silva e dos cenógrafos do Real Teatro de S. Carlos, Rambois e Cinatti, não sem que o próprio rei lhe tenha introduzido ele-mentos de sua iniciativa, particularmente em aspectos decorativos e de natureza simbólica.

Edifício de ecléctico revivalismo, onde o Neomanuelino, imita-do de monumentos padrão, se articula com particularidades neogóti-cas, outras de recuperação mudéjar e também de origem oriental, aque-le palácio, de programa espacial irregular, deu ao sítio a fantasiosa composição que, na paisagem ainda agreste, foi sinal primeiro de medievalismo romântico, quando o país se contentava com o discurso neoclássico. Neste sentido, não deixa de ser original no conjunto de similares arquitecturas europeias, designadamente as que, décadas

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vidas, Luis II fará construir na Baviera, entre as mais que pontuam a paisagem do Reno21.

A Pena, na mistura plurifuncional do seu Parque, terá o seu Jardim Inglês, área distinta das Tapadas, do Viveiro, dos Lagos e das matas. E tê-lo-á o palacete de Monserrate, também em Sintra, que por gosto do nego-ciante Francis Cook substituiu a sujestão neogótica do de Gerard Devisme, compatriota que o edificara em 1791, cedo abandonado e deixado arruinar. O novo Monserrate, projecto de James Knowles Jr. e obra de 1863 a 67, é proposta romântica diferente do palácio fernandino, pelo orientalismo que oscila entre a recordação indiana das suas torres e estruturas amouriscadas que as ligam. Com ele, confirma-se a tendência do jardim paisagístico, que o irlandês F. Burt veio desenhar e plantar de abundância de árvores, domi-nantemente de proveniência oriental e aclimatização na Inglaterra22.

No sítio eleito de veraneio que Sintra representou para a sociedade oitocentista da capital portuguesa, antes que outras estâncias lhe disputas-sem a primazia, a Pena e Monserrate foram emblemas que lhe definiram a encenação romântica, mas onde, todavia, as suas arquitecturas sobrele-vam os efeitos da paisagem e do paisagismo que as envolveram.

Antes, porém, destas imagens sintrenses — continuadas um pouco por todo o continente português no século XIX e para além dele, com melhor ou pior entendimento do processo —, as reclamadas novidades de jardinagem haviam sido inauguradas na Ilha de S. Miguel.

Um oficial inglês de marinha, integrado nas forças militares que o duque de Bragança nela concentrara para implantação do regime constituci-onal no país, registava em 1832 que, mau grado o atrazo agrícola açoriano, em termos científicos, conhecia-se a excepção da importação de plantas, ervas e árvores de várias espécies, de todas as plantas próprias dos países do norte bem como muitas oriundas das regiões tropicais e equatoriais23.

No caso particular micaelense, de que destacava a maior produtivida-de, enquanto Pico, Terceira e Santa Maria eram as menos prósperas, o mesmo estrangeiro salientava o aumento em Ponta Delgada de familias

ingle-21Ver, José-Augusto França, A Arte em Portugal no Século XIX, I, pp. 296-306; Salette

Tavares, “Dois Jardins de Sintra”, in Estética do Romantismo em Portugal (...), pp. 240-242.

22José - Augusto França, ib., ib., pp. 372-373; Salette Tavares, ib., pp. 242-245. 23Capitão Boid (...), in Insulana, vol. V, 1 e 2 (...), pp. 76-77.

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sas, que tomam de renda aos naturais as quintas vizinhas, dispondo ali o gosto ornamental peculiar do seu país, sendo assim esses terrenos ou jardins, cultivados sob a influência da ordem, do arranjo e da horticultura24(...).

Quanto a esta, no dito aspecto, era tão grande a falta de gosto e de saber, e até a ausência de vontade de os adquirir, que se encontra com-pletamente abandonada, excepto entre alguns residentes estrangeiros, ingleses e americanos, que aqui e além exibem aquele fino gosto próprio de uma educação superior (...).

Um exemplo concreto era a quinta do cônsul americano no Faial, com moradia edificada numa elevação, olhando o mar em frente da pito-resca montanha do Pico. O jardim que a envolvia apresentara-se-lhe como a mais admirável e sumptuosa combinação que se pode conceber, de belos arbustos e flores, de todos os climas e países. Adiantando um pouco mais a descrição, afirma:

Com todas as produções raras que actualmente constituem o orgu-lho dos jardins da Europa, vêem-se artisticamente misturadas, as árvores ornamentais e as plantas dos trópicos, isto é, todas as variadas espécies de palmeiras, numerosas espécies de cactos, sangue-de-drago, aloés, árvores-de-judas, as quais, combinadas com a figueira, com o nosso muito apreciado chorão, com a laranjeira, o limoeiro e a vinha produzem um efeito absolutamente encantador.

Sobre flores, refere a hidrângea, o gerâneo e o loentro (...), a fúc-sia (...) e a camélia japónica, que ali alcançava as proporções e a robus-tez de árvore de floresta25.

Para além desta via de introdução, outro exemplo concreto obser-vara em Vila Franca do Campo, na Ilha de S. Miguel, numa quinta que visitara, com um jardim que o seu proprietário acabara de completar e que plantara de ameixoeiras, pessegueiros, damasqueiros e outras árvo-res de fruto, à imitação do estilo inglês, neste caso, todavia, por conheci-mento directo de um micaelense, porque (...) tinha estado exilado na Inglaterra e na vizinhança de Plymouth26(...).

Omissa quanto à morfologia do espaço e artefactos decorativos, a informação transmitida e apresentada como equivalente à prática europeia,

24Id., ib., pp. 310-356. 25Id., ib., p. 78. 26Id., ib., p. 323.

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tem a tónica nos elementos botânicos. Nela cabem os efeitos pitorescos — pelo agrupamento de espécies de distinta geografia —, de que pomar e vinha eram partes integrantes, associando assim, na ideia de ornamental, sujeita às regras de bom gosto, aspectos da horticultura dita útil. Da subs-tituição do tosco inculto pelas artes e requintes da vida civilizada, resulta a conclusão de que os Açores tornar-se-iam como o paraíso terreal 27.

A origem mais antiga desses referentes de influência inglesa, é no Vale das Furnas que a encontramos, recuada às décadas finais do século XVIII.

Nesse, então, insignificante lugar do interior micaelense, a 45 quilóme-tros da cidade de Ponta Delgada, em 1706 apenas com 74 habitantes e 22 fogos28, que fora lugar de pastores e eremitério abandonado em consequên-cia da erupção de 1630, na pedra de uma das suas caldeiras de polme, agua, enxofre, tão horrendas, que não ha outra cousa com que se campare, situadas no lado nascente, Tomás Hickling fez gravar o seu nome e a data de 177029.

Filho de pai inglês natural de Sutton Bonnington, no condado de Nottingham, nascera em Boston a 21-2-1745. Chegado em Outubro de 1769 a Ponta Delgada, no veleiro “St. John”, aqui se fixou definitivamen-te. Aos Estados-Unidos, cuja nacionalidade adoptou, jamais voltaria.

Em S. Miguel foi despachado cônsul a 4-10-1784 e, por carta patente de 7-7-1795, nomeado vice-cônsul na ilha, onde se consorciara pela 2ª vez, em 1778, após quatro anos de viúvo da esposa deixada em Boston. Faleceu em Ponta Delgada a 31-8-183430, na sua residência defronte da paroquial de S. Pedro, que em 1799 estava em princípio de construção e em 1812 concluída31.

Empreendedor, Tomás Hickling conheceu a prosperidade de produtor e exportador na fase de expansão do comércio da laranja,

27Id., ib., pp. 71-72.

28Bernardino J. de Senna Freitas, Uma Viagem no Valle das Furnas (...), p. 13. 29Id., ib., p. 65.

30João H. Anglin, Tomás Hickling, in Insulana, ob. e vol. inds., pp. 108-115. 31Id., ib.; A. P. S. Pedro, Livro das eleições da Confraria de S. Pedro, esmolas e

des-pesas com as festas, 1749, f. 37v.: Tomás Hickling substituíu o morgado José Caetano do Canto no pagamento do juro de 2$000 réis para a fábrica do Altar de S. Pedro, (...) por aver a propriedade do dito Morgado por troca para acrescentar as cazas que esta fazen-do, e deve ser o primeiro anno de pagamento o de 1799.

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cujo principal destino foram mercados ingleses, mas que ele alar-gou à Rússia (S. Petersburgo), de que também foi representante consular32.

Seu filho, Tomás Hickling Jr., nascido e falecido em Ponta Delgada (1781-1875)33, sucedeu-lhe no negócio, já em decadência em vida do pai, com prejuízos que avaliou em mais de 1.000.000 de dóla-res até ao período de 1813-19. Para eles contribuiram acontecimentos de que os seus navios e carga haviam sido vítimas durante a Guerra da Independência e, mais tarde, com o Bloqueio Continental decretado por Napoleão.

À data da morte de Tomás Hickling Sr., a residência em S. Pedro, que lhe custara 29.389 dollars, sem contar a compra das modestas casi-nhas antes existentes no lugar, estava hipotecada, assim como a proprie-dade das Furnas, herdando o filho essas hipotecas e o correspondente a 8.150 dólares de juros em dívida. Por isso, em meados do século XIX, Tomás Hickling Jr. admitia arrendar a casa da cidade por 300 dólares anu-ais e, quanto àquele outro prédio, vendera-o em 1848 ao 1º visconde da Praia, Duarte Borges da Câmara Medeiros (1799-1872), título de 1845, que lhe afirmara a intenção de o conservar e melhorar, mantendo-o aces-sível ao público. Tendo o pai dispendido com ele para cima de 5.000 dol-lars, o filho vira-se constrangido a cedê-lo por cerca de 2.00034(...).

Situado no centro do Vale das Furnas, emoldurado de montes e a sul do povoado, o prédio construído pelo 1º Tomás Hickling na mencionada década de 1770, compunha-se de casa de veraneio coberta de colmo, no cimo de um combro. À volta, terreno ajardinado e vegetação formando pequenos bosques. Entre estes e o edifício, avantajado lago artificial, rigo-rosamente circular, com ilhota no meio plantada de árvores. Um pontão de pedra ligava-o ao caminho diante de ampla escadaria de acesso à residên-cia. Na década de 1830, esse lanço de cinquenta degraus era bordejado de

32João H. Anglin, artº, revista e pp. inds.. 33Id., ib..

34Carta de Thomaz Hickling Jr. (...), in Insulana, v. LI, Nº 2 (...), pp. 192-212 e nota

30, p. 212. Nesta nota refere-se que a casa de S. Pedro havia custado 27.800 Dollares, excluido o terreno, mas segundo William Hickling Prescott, em carta de Abril de 1816 a sua irmã, a casa teria custado ao avô somente 30.000 Dollares.

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hortênsias azuis que, na seguinte, se acompanhavam de arbustos (Fig. 1). Para entrada no jardim, uma longa avenida de sombrios buxos 35.

Por fidelidade à origem, a casa foi batizada de “Yankee Hall”. Ao espaço que a envolvia, chamaram-lhe “Tanque”.

Através do arvoredo viam-se as montanhas do vale e as habitações do lugarejo, maioritariamente ainda cobertas de palha, de que emergia a torre caiada da pequena igreja de Sant’Ana, reconstruída em 1792.

Foi o primeiro pequeno luxo de jardim, colhido de figurino inglês , onde o artificial ainda se não disfarçava na solução paisagística para que o modelo já evoluira e sem a exuberância que depois veio a conhecer.

Com o novo proprietário, o “Yankee Hall” cedeu a nova e mais ampla arquitectura de veraneio, no mesmo sítio e mantendo a anterior ligação ao lago. Ainda em construção no ano de 1852, essa espécie de palacete, de imprecisa concepção estética, merecia a um forasteiro a apreciação de bella casa36. No eixo da escadaria, repetida na fachada

35Ver, Joseph e H. Bullar, Um Inverno nos Açores e um Verão no Vale das Furnas (...),

p. 65; Bernardo J. de Senna Freitas, ob. ind., pp. 65-66.

36 Carlos José Caldeira, Apontamentos d’uma viagem de Lisboa à China (...), in

Insulana, v. 46 (...), p. 350.

Fig. 1 - Furnas, Jardim de Tomás Hickling, 1838, segundo desenho dos Bullar, reproduzido no livro de Senna Freitas, p. 66.

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posterior mas mais estreita, avança o seu octógono central, de lados côncavos, dos dois corpos laterais absolutamente simétricos. Envolve-lhe o andar o terraço gradeado de ferro forjado, ritmado de vãos na pru-mada dos que rasgam o nível inferior, em perfeita correspondência e identidade das formas rectangulares, debruadas de estreita cantaria basáltica, de que está ausente qualquer sinal de mais aparato na porta de entrada.

Foi neste edifício, já concluído, que os príncipes imperiais fran-ceses, Napoleão e Clotilde, com os demais acompanhantes, almoçaram no verão de 1861, como vimos logo de início. Em 1894, um visitante nacional denominá-lo-ia de elegante chalet, dominando o parque, entretanto já aumentado e continuado pelo sucessor do visconde da Praia, António Borges de Medeiros Dias da Câmara e Sousa (1829-1913), 1º conde e marquês da Praia e de Monforte, respectivamente em 1881 e 189037.

Conservando a estrutura do antigo Tanque — organizado em dois níveis —, mas delimitando de correntes de ferro pendentes de pilaretes de pedra o lago, escadarias e plataforma onde a habitação está implan-tada, as inovações respeitaram o terreno estendido para trás. Muito mais amplo, um outro esquema de traçado, atribuído a jardineiro inglês de nome Milton38, valoriza-lhe o acidentado. Ravinas, pequenos vales e colinas com seus relvados e gramíneas acompanham-se de canteiros floridos, arbustos e árvores de grande porte, individualizados entre macissos frondosos. Das alamedas que lhe circundam o perímetro con-torcido geram-se avenidas e atalhos que, no emaranhado da sua teia, levam a clareiras, sulcam declives, conduzem a artefactos, bordejam espelhos de água artificiais ou cursos nascidos de torrentes naturais

37O título de conde foi único no filho do 1º visconde da Praia, por Decreto de D. Luís

de 9-1-1881, com Grandeza, sendo 2º visconde. Casou em 3-3-1859 com Maria José Coutinho Maldonado Freire, nascida a 13-3-1833 e falecida a 18-10-1893, filha e herdei-ra dos 1ºsviscondes de Monforte. O título de marquês da Praia e de Monforte foi-lhe con-cedido por Decreto de D. Carlos de 21-1-1890. O primogénito Duarte Borges Coutinho de Medeiros Sousa Dias da Câmara (2-7-1861 a 25-7-1907), recebeu o título de 2º marquês em vida do pai.

38Ver Marquez de Jácome Corrêa, Leituras sobre a História do Valle das Furnas (...),

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(Figs. 2 e 2a). A hierarquia da sua distribuição coleante comporta, porém, a contradição introduzida de duas áleas rectilíneas e compridas, uma das quais dá serventia a rotunda, no meio da qual, o marquês da Praia e de Monforte fez erguer, em 1898, o mármore piramidal de um

Fig. 2 - Furnas, Jardim que foi da família Praia e Monforte, actual Parque Terra Nostra.

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obelisco. Legendado e ornado de peças heráldicas, acostadas a quatro brutescos escultóricos, o monumento tem valor de memória e consa-gração familiares, associadas ao significado decorativo, na pretendida perpetuação das dignidades nobiliárquicas recebidas e de que o Constitucionalismo foi pródigo na concessão. Com elas coroava-se a mera tradição morgadia, diluindo-se também a obscura origem mercan-til e o sangue impuro, ou das pessôas de nação, descendentes, por via réta masculina de cristãos nóvos de nação hebraica. Ainda no século XVII obrigadas, por esse facto, a pagamento de taxa, de acordo com o rol de avaliação das fasendas, a requerimento de alguns antepassados Filipe II de Portugal ilibou-os, em 2-8-1630, de tão incómoda fama, acto que D. João IV renovou, mas tornado necessário uma vez mais durante a regência do príncipe D. Pedro, em alvará datado de 9-11-167339. Neste sentido, aquele obelisco consente interpretação de sin-crética religiosidade, por aproximação ao provável caracter evocativo do deus sol, da velha tradição egípcia, ou ao pequeno templo de culto familiar transposto para jardins romanos na época imperial.

De resto, o jardim que foi da família Praia — desde 1938 denomi-nado de “Parque Terra Nostra”, por ter sido adquirido pela empresa pro-prietária do hotel de que colheu o novo nome —, é parco de mais artefac-tos decorativos: um mirante de planta centrada hexagonal, com cúpula arestada sobre colunelos; pequeno tanque de lados recortados e bojudos com repuxo ao meio; quiosque ou pavilhão, vagamente oriental pela cober-tura de madeira, ao jeito de chapéu chinês, a cavalo de um riacho e prepa-rado para nele se repousar e merendar; ponte de pedra rochosa e rugosa ligando as margens de um dos novos lagos; vasos campanulados dispos-tos aqui e além sobre suportes aldispos-tos. Para comodidade de lazeres, bancos e cadeiras que foram de ferro fundido, com o espaldar floralista, ainda não há muito substituídos, colocados à sombra das árvores que rodeiam o gran-de tanque circular e na esplanada que envolve a residência.

Na irregularidade da sua composição orgânica e na multiplicidade das suas perspectivas, o elemento água emerge destacadamente no acrescenta-mento da segunda metade do século XIX, mas agora em diversidade de espe-lhos e caprichos de recortes. No plano mais profundo, para que se desce da parte posterior da casa, com a proeminência de vistas que esta assume sobre

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o conjunto e a paisagem do lugar, as formas acentuadamente sinuosas de um lago, aproveitado de torrente natural, espalham-se bucolicamente, com seus nenúfares e ilhotas, a dita ponte rochosa, como gruta, e seus atalhos margi-nais. Mais além, junto à ribeira de água quente que serve de limite ao parque do lado da actual Avenida de Manuel d’Arriaga, duas outras manchas lacus-tres, a curta distância uma da outra, contrastam o seu adormecido silêncio com o marulhar vivo que na vizinhança escorre e as alimenta.

Em 1868 outros jardins aformoseavam a beleza natural do Vale das Furnas, que Bulhão Pato descreveu como vasta concavidade, enorme crac-tera, para onde se descia por um atalho cortado a pique (...). De entre eles, forasteiros vários e de distinta formação elogiaram o Parque das Murtas, que aquele poeta, naquela data, adjectivou de bellissimo (...) para recreio do publico. Percorrido pela ribeira do Fojo, foi esta aproveitada para inte-gração de um vasto e elegante lago, sustentado por comporta que o enchia ao cabo de seis horas. Dos atrativos com que foi visto, o olhar romântico destacava-lhe a presença das flores mais bellas, e até as mais raras (...), primorosamente tractadas40. Sobre a ribeira, a novidade de uma ponte pensil. Mais além, num esconso aproveitado daquele curso natural, a talha bojuda, suportada por figura feminina de cerâmica colorida, serviu ao jorro permanente de água captado de nascente subterrânea41.

Pequeno vale dentro do Vale das Furnas e em plena povoação, o que das Murtas nos chega ajardinada é a parte que pertenceu a Ernesto do Canto, entre as Ruas dos Moinhos e de Sant’Ana, principiada no dealbar da década de 1860 e depois acrescentada com as parcelas adquiridas a dois outros iniciais co-proprietários do terreno.

Na morfologia da sua imitação paisagística, a concessão a um eixo axial feito avenida em linha recta. Vinda dos limites murados da entrada, penetra profundamente pelo meio dos relvados arborizados, assim se des-tacando, assimetricamente, da área ocupada pela habitação de veraneio que, descentrada, lhe fica sobranceira.

Outros arruamentos hierarquizam-lhe o percurso. Desprendendo-se ou articulando-Desprendendo-se como afluentes tortuosos de rio, definem-lhe

tabu-40Bulhão Pato, Dos Açores, Cartas, 2ª Parte, (...), pp. 77-78.

41Martim Machado de Faria e Maia, “A vida operosa e meritória de Ernesto do Canto

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leiros relvados de irregular geometria e extensão, onde há curvas e con-tra-curvas em envolvências do espaço fragmentado e recoberto de copadas folhagens, aqui e além escapando-se em mais acentuados volu-mes (Fig. 3).

Se o parque das Murtas perde, de algum modo, a coerência de fór-mula paisagística, como dois espaços de adjacente relação, o conjunto serve à dignidade do “chalet”. Encomenda parisiense de fins de 186542, foi projecto da responsabilidade do arquitecto A. Hugé, da Câmara Municipal de Paris, com desenho de planta e alçados datados de Juillet 1866, curiosamente endereçados, por erro geográfico do autor, à Proprieté

42UA, JC, Carta de Ernesto do Canto a seu irmão José do Canto, em Paris, S.

Miguel, 27-10-1865, f. 6: Não tenha o mano a menor pressa com a planta da casa, porque é coisa que de modo algum urge (...). Em outra carta para o mesmo, S. Miguel, 18-12-1865, ff. 4-5, renova a afirmação anterior: Agradeço tãobem e muito os passos que o mano tem dado para o plano da casa, e ainda mais uma vez lhe repito que não tenha pressa / alguma, e portanto que só quando o mano não tenha outra coiza a fazer é que poderá tractar d’aquelle negocio, e mesmo assim por forma que não lhe cause quezilias ou embaraços, condição sine qua non para o favor ser completo.

Fig. 3 - Furnas, plantas do Jardim das Murtas

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de Mr. Ernest du Canto, Ile St. Maurice (sic) aux Açores, Plan du Premier Étage, Echelle de 2.02 par 1 M.re.

Recebidos em fins de Setembro do mesmo ano — depois de preterido um primeiro risco —, a transformação introduzida agradou, no geral, ao encomendador que, todavia, manifestou reparos à fachada posterior, conside-rando-a já não (...) tão bonita, por ter um pouco de semelhança com o risco Nº 1 rejeitado (Fig. 4). Tal era o tecto mui proximo das janellas e a linha da beira m - n mui longa. Acautelando eventual susceptibilidade de Hugé, suge-riu as alterações que lhe convinham. Fundamentalmente, abertura de janela no telhado para iluminação do sótão ou falsa, que passaria a um bom quarto. Além disso, para o que entendia como maiores defeitos, situados no que designava por cabeças da caza — corpos laterais —, propunha a introdução, no andar de uma delas, de janellas fingidas ou mesmo alguma real e no piso inferior uma porta, ou um nicho — para um vaso ou qualquer outra coiza, real ou sómente para vista exterior. O que estava em causa era assegurar uma imagem mais atraente daquele lado do “chalet”, quando visto do alto das Pedras do Galego, que do norte domina a paisagem do Vale das Furnas, e simultâneamente permitir gozar no 1º andar da bella vista das montanhas.

Para maior evidência das desejadas modificações, Ernesto do Canto acompanhava-as de dois elementares esquemas, por si desenhados,

assi-Fig. 4 - A. Hugé, desenho colorido para o “chalet” de Ernesto do Canto, no Jardim das Murtas.

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nalando os locais de intervenção, dispondo-se, naturalmente, a novo paga-mento suplementar, para além dos 100 francos que Hugé cobrara pelos novos desenhos, objecto agora destas esperadas inovações (Doc. 2). Com elas, a visão imediata construída artificialmente ganhava amplitude pano-râmica natural, sem prejuízo da intimidade familiar, o que se acorda com o conceito e encenação que informaram o discurso de William Kent atrás referido.

Só em finais daquele ano de 1866 o arquitecto parisiense havia de receber a nova comissão, a que veio a corresponder43. Por isso, no parque das Murtas — o mesmo que mirtos, planta que tem associação a um modo particular de “skolion” ou “canções de mesa”, forma de líri-ca monódilíri-ca que na Grécia arlíri-cailíri-ca teve nos poetas Alceu e Anacreonte (séculos VII-VI A.C.) dois conhecidos cultores —, o “chalet” de Ernesto do Canto terá tido início depois de 68, tanto mais que, segundo ele, tudo aquilo podia esperar 6 ou 8 mezes sem o menor inconvenien-te, ou mesmo mais tempo44e Bulhão Pato, na mencionada apreciação, não se lhe refere. Importa sublinhar, todavia, a anterioridade cronológi-ca daquela cronológi-casa de cronológi-campo, impropriamente também dita “quiosque”, com a versão de gosto suiço goticista que na mata de Sintra foi cons-truída para a condessa d’Edla, segunda e morganática esposa do viúvo de D. Maria II. Mas também que, enquanto encomenda e desenho de plano, antecede o “chalet” que o arquitecto inglês Thomas Henry Wyatt projectou no ano de 73 para os duques de Palmela. Edificado em Cascais, teve continuidade tipológica em outro posteriormente constru-ído à ilharga, da autoria de José Luis Monteiro45. O “chalet” das Murtas, na menor dimensão do seu plano, não deve, em entendimento de linguagem arquitectural àquelas realizações da primeira aristocracia

43UA, JC, Extractos de Carta de José do Canto para seus irmãos e sobrinha, Paris

10-11-1866: Ainda não dei conta da commissão que o Ernesto me deu para o Architecto, e ainda que elle me não apressou, é do meu dever explicar, por que rasão ainda não está satisfeita. (...). Mas voltando ao meu ponto, esta semana que vem é que pertendo tratar do teu negócio. Já teria visto Mr. Hugé, se elle parasse em casa, mas é preciso tomar com antecipação de dias um rendez-vous, por que elle passa todo o seu tempo no Hotel de ville, aonde é empregado. (...)

44UA, JC, Carta de Ernesto do Canto a seu irmão José do Canto em Paris, 27-9-1866. 45Ver José-Augusto França, ob. ind., I, p. 375 e II, p. 163.

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do país, com a qual, no entanto, o seu proprietário não podia competir em riqueza nem em práticas de mundana sumptuosidade (Figs. 5 e 6).

Fig. 5 - Furnas, Jardim das Murtas, “chalet” de Ernesto do Canto, fachada principal.

Fig. 6 - Furnas, Jardim das Murtas, “chalet” de Ernesto do Canto, fachada do corpo lateral norte.

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Como aqueles, é produto de outra civilização. A elegância dos seus três corpos, com telhados e empenas de bico emoldurados de madeira de carvalho e franjas recortadas, suas varandas gradeadas ou já abalaustradas e “loggias” envidraçadas marcadas de colunelos esguios, também de madeira, marca o ponto de mais apurada aproximação cosmopolita de alguns “notáveis” da nova categoria de burgueses que, em viagens de negócios ou de lazer, afirmaram propósitos de actualização, no modo como lhes era possível realizá-los.

Equivalente do “chalet” de Ernesto do Canto e ainda nas Furnas, mas agora na bucólica paisagem de uma das margens da sua lagoa, é o “cottage” que o seu meio irmão José do Canto ali fez construir, por enco-menda de 1864 dirigida ao arquitecto inglês David Mocatta. Retirado da actividade e apenas com ocasionais ocupações, como em Maio desse ano a integração do júri do Grand Prix de Paris , o arquitecto foi apenas con-selheiro para a obra desejada (Docs. 3 e 4), para a qual, no entanto, reali-zou quelques esquisse (sic) que considerou muito adequados como dese-nhos (Doc. 5). Do acompanhamento a que se dispôs resultou a indicação de Digby Wyatt para autor dos planos, un architecte et artiste de sua intei-ra confiança, a quem não deixaria de dar assistência, começando por soli-citar de José do Canto a devolução dos desenhos enviados e des observa-tions que melhor o habilitassem a perceber quaisquer substituições ou faire des alterations (Doc. 6). A Wyatt caberia, igualmente, apresentar estimativa dos custos da construção, em função do prévio conhecimento dos materiais, preço da mão de obra e, sobretudo, da dimensão do edifí-cio o que, em 30-5-1864, ainda não estava determinado. Nessa data, Mocatta reafirmava o contentamento em respeitar as ideias que lhe fossem transmitidas e o prazer de, em colaboração com o dito arquitecto, execu-tar cuidadosamente des modifications de mes esquisses que vous indiquez (Doc. 7).

A escolha de David Mocatta tinha antecedentes vindos de 1845, com diversos trabalhos projectados para José do Canto e que a seu tempo serão referidos, adiantando-se já, todavia, ter sido um deles, em 46, exactamente os desenhos, designadamente, para boat house (...), summer house (...) and a lit-tle seat building at the corner, que se desejavam elegantes mas não muito dis-pendiosos (Doc.8). O projecto para que Digby Wyatt foi indigitado era, pois, aspiração antiga de vinte anos atrás e a localização do que o encomendador chamou de choupana em que podésse estar mais ao pé da Lagôa em que de

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verão era o meu grande gôsto navegar, determinara-o a adquirir terrenos a mais de uma centena de proprietários, onde fez plantar árvores utilitárias e algumas espécies ornamentais, de começo empiricamente46. Em Janeiro de 1854, na Propriedade denominada da Lagoa das Furnas, com a qual confi-nava do lado norte até ao caminho que vae de Vila Franca para as Furnas, e a partir desse caminho com terrenos da Lagoa secca (...) (Doc.9), as New Holland plants, Rhododendrons Aucubas, Cedros das Bermudas, Araucarias, Cedro do Libano, Deodora, Criptomérias, Abies Bursioniana e planta de chá, estavam todas bem desenvolvidas, enquanto que, nomeadamente, os liláses, louriços, freixos e Ulmus montana, mostravam crescimento equili-brado. Contudo, algumas outras, devido ao vento e à chuva are broke a little and the more tender much cut by the wind. Em todo o caso e no conjunto, nada de maior a lamentar, informava George Brown, jardineiro inglês de José do Canto (Doc. 10). Estas eram espécies exóticas introduzidas numa flora que tinha representação também de Pinho maritimo e castanheiro.

Mas a propriedade, com suas choupanas para abrigo dos trabalhadores, comportava igualmente pomar de arvores de caroço, e d’espinho, que ainda não produz[iam]; e um pequeno jardim á ingleza, que tãobem está principiado apenas47. Assim, a edificação do “cottage” de José do Canto e o seu “chalet” vizinho, são posteriores ao espaço ajardinado em que foram situados, tendo por pano de fundo o parque estendido pelo que antes eram terrenos estéreis.

Se a encomenda de 64 a Mocatta teve planos de Digby Wyatt, tra-tar-se-á, presumivelmente, do edifício cujas fachadas têm remate de empenas recortadas, acima dos telhados, em sujestão vagamente neogóti-ca nórdineogóti-ca. A menos que essa construção corresponda aos desenhos enco-mendados em 46, de que fazia parte a mencionada summer house, o que aqui fica por provar. Do que se não trata, seguramente, é do “chalet” que se lhe situa próximo, o mais afastado da capela funerária de Nª Sª das Vitórias — programa de André Breton para José do Canto e esposa dese-nhado em 1866 e inaugurado vinte anos mais tarde —, porque esse é da autoria do arquitecto paisagista Georges Aumont, também Architecte de Jardins e Représentant de Mr. Barillet Deschamps, ao tempo com oficina

46Cartas Particulares do Sr. José do Canto aos Srs. José Jácome Corrêa e Conde de

Jácome Corrêa, (...), XXVI, 8-9-1863.

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própria na Rue de la Pompe, 71, Passy-Paris48, que o designou de Projects maison de garde (Fig. 7).

Seja como for, estas residências temporárias, juntamente com a das Murtas, são arquitecturas românticas de um saber erudito cosmopolita, tornadas emblema de um apuro sem espalhafato que, todavia, para a fun-ção, não teve continuidade qualitativa na paisagem construída das Furnas e da Ilha. Na estância de veraneio preferida, para o que contribuiu o méri-to das suas águas termais de múltiplas aplicações — com edifício público para banhos iniciado em 1863 mas em 93 ainda não concluído na sua fei-ção original, hoje transformada49—, as casas de verão que outros “notá-veis” fizeram edificar, ficaram-se por gosto bastardo que explica um esta-tuto sem mais exigência de apuro.

De começos indefinidos, a mata de José do Canto nas Furnas ganhou dimensão de parque organizado, visto na década de 1890 com a mais extraor-dinaria disposição e conjunto de arvoredos, de flores, de arbustos e varia-dissimas plantas, onde se encontram as florestas virgens do novo mundo, e os aprimorados jardins das cidades; (...) as vegetações luxuriantes dos tropicos,

48Ver Documentos do Elenco com os nºs13 a 18. 49M. Emygdio da Silva, A Ilha de S. Miguel em 1893 (...).

Fig. 7 - Georges Aumont, desenhos coloridos para o “chalet” de José do Canto, numa das margens da Lagoa das Furnas.

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e as largas ramagens das regiões equatoriaes. Na vastidão do seu espaço, havia longos arruamentos, e caminhos misteriosos, arcarias e columnatas, ninhos e palacios de verduras. E os elogios do observador, rendido àquela cidade de arvoredos, cujo autor ignorava, sublinhavam, por fim, o respeito pelos altos e baixos relevos daquelas architecturas assombrosas50.

A descrição recolhida, com algum provável exagero encomiástico, serve, no entanto, à definição paisagística, não por via inglesa mas de pro-cedência francesa e parisiense, de jardineiros com créditos prestigiados.

Logo em 61, o já nosso conhecido Barillet Deschamps, então Jardinier en Chef du Bois de Boulogne, du Parc de Vincennes, des Squares et Jardins Publics de la Ville de Paris, assinava em Outubro um dispositivo ou Etat de plantation pour la propriété de Monsieur Jose do Canto, sise Ile St. Miguel, Archipel d’Açores, distribuido por: Conifères osolés (sic) sur les pelouses; Arbres tiges isolés sur les pelouses; Couffes feuilles Caduques pour les Massifs; Couffes à feuilles persistantes pour Massifs e, finalmente, Arbres tiges pour les Massifs (Doc. 11).

Esta opção francesa fora precedida por contacto com o inglês John Morton, de que o micaelense de origem alemã Parckin Scholtz lhe anunciara de Londres, em 16-1-1856, o envio da respectiva resposta, datada do dia ante-rior, justificando tratar-se de cópia da carta que acabo de receber do Morton e não o original porque Vossa Senhoria não entenderia por estar muito mal escripto (quasi grego). Acrescentava o intermediário que: Elle deseja vir a Londres de proposito para me fallar, mas sem a resposta de Vossa Senhoria nada poderei fazer. Achava que era milhor (sic) eu hir a Glostershire51(...). Na realidade Parkin Scholtz enviou duas cópias, com algumas varian-tes de interpretação, confirmando a dificuldade de ler a caligrafia do que, mais do que jardineiro, pode considerar-se engenheiro agrário ou técnico agrícola — Agricultural Engineer by profession —, como o próprio se definiu, e que afirmava ter furnished the plans of all the Farm Buildings e erected agricul-tural Buildings on the Box systhem for Sir John Anson..., com todas as esti-mativas e informações complementares. Desse modo, teria gosto to make plans for you (...). Tratar-se-ia, então, de uma herdade, com cerca de 56 acres de terra arável, vacas, touros, bois, bezerros, porcos, carneiros, ovelhas, aves de capoeira, sobre a qual avançava hipóteses de cultivo e considerações

res-50Visconde do Ervedal da Beira, Narrativas Insulanas, (...), p. 7.

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peitantes aos aparelhos a edificar, a necessidade de uma conversa directa sobre o assunto, antes de I proceed with the plans as I would then be better able to give you the proper amount of accommodation for all objects you will require in producing and consuming the produce of the Farm (Doc. 12).

É visível que a natureza do assunto tratado com John Morton é dis-tinta da que levou à intervenção do arquitecto Barillet, como o próprio se designou no mencionado “Etat de plantation”, em consequência do qual veio a S. Miguel, contratado em 1864, através de Georges Aumont, por um período não superior a seis semanas, o técnico de jardinagem L’Ainé (sic), un de nos meilleurs directeurs de travaux, com o fim de se ocupar da propriedade de José do Canto nas Furnas.

Em 17 de Maio daquele ano indicavam-se-lhe as condições gerais a que o contrato obrigaria, cujo trabalho havia de ser não apenas faire le tracé de votre parc, mais donner sur les lieux tous les renseignements nécessaires, relever, et reporter tous les plans et nivellements que o enco-mendante considerasse convenientes. Aumont não tinha dúvidas em garantir-lhe o bom resultado do empreendimento, atendendo a son extrê-me habitude de nos grands travaux.

Quanto a encargos financeiros, a proposta contemplava une somme de deux mille francs para o ordenado e despesas várias no decurso do período acima indicado, em que ficava incluído o custo do traçado, mas não as viagens de ida e volta, também a pagar por José do Canto (Doc. 13).

Após contacto directo e aceites as obrigações, com minuta de 4 de Junho (Doc. 14) Georges Aumont confirmá-lo-ia formalmente dois dias mais tarde, referindo que Mr. Lainé notre conducteur de travaux era auto-rizado a viajar para S. Miguel a fim de, na propriedade de José do Canto, faire le tracé du parc, établir les profils, plans, états de plantation, devis, etc, (...). Partiria de Paris a 8 do corrente mês de Junho — isto é, dois dias depois —, devendo regressar, o mais tardar, a 15 do próximo mês de Setembro, sob compromisso do pagamento de 2.000 francos à payer entre nos mains et sur mes reçus, a saber: Quinhentos francos no dia anterior à partida e 1.500 no dia 15 do mês de Novembro do dito ano.

Ficava igualmente confirmado o encargo de José do Canto com as despesas de voyages/transport en chemin de fer, bateaux à vapeur, dilli-gences etc em 2ª classe, assim como, desde a partida, as respeitantes a alo-jamento e alimentação até ao regresso do dito a Paris. Do mesmo modo,

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os custos com instrumentos de agrimensura, escritório e correspondência obrigatória pour ces travaux (Doc. 15).

De acordo com o compromisso assinado e ratificado, Georges Aumont passava recibo, no dia estabelecido, dos 500 francos iniciais, pour travaux préparatoire (sic) concernant tracé, profils, devis etc de la dite proprieté (Doc.16).

De Paris, solicitava ele para S. Miguel, em 19-7-1865, le plaisir de mettre à disposition le montant de la note de notre convention relative au tracé d’un Plan de Parc, dans votre Propriété sise aux Açores, par le Géomètre M. Lainé (sic), no valor de 1868 francos e meio, em que se incluiam as despesas du voyage de retour (...) et la nourriture (Doc. 17), de que em 7 de Outubro acusava ter recebido la somme de mil huit cent cinquante neuf francs para saldo das contas até àquele dia, respeitantes a honorários e a despesas de conducteur de travaux (Doc. 18).

À distância de um ano, ou pouco menos, José do Canto, numa das oca-sionais interrupções da permanência de anos com a família em Paris, para educação dos filhos, era convidado pelo Director do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra para a escolha e contrato d’um Jardineiro em chefe, director de todos os trabalhos, com uma certa experiencia e conhecimentos scientificos, de acordo com as características daquela instituição. A comissão era-lhe confirmada por carta de 14-7-1865 do seu conterrâneo Carlos Machado, médico de formação com prolongada estada na cidade universitá-ria do país, após o que, regressado à Ilha, foi professor de Históuniversitá-ria Natural no Liceu de Ponta Delgada, também seu reitor e Comissário de estudos, onde fundou o Museu, que teve começo de organização em 1876 e inauguração em 80, no decurso das comemorações micaelenses do 3º centenário da morte de Camões. Nessa fase inicial das suas colecções científicas, intitulado de Museu Açoriano, passou em 1914 à designação oficial do nome do seu cria-dor, falecido a 23-4-1900, quando já acrescido de um sector etnográfico e de outro dedicado às artes visuais, naquele ano em embrião.

Carlos Machado, respondendo a pedido de informações do mês ante-rior, elucidava José do Canto de condições básicas que melhor o orientassem na tarefa. Dentre elas, a preferência por um inglês, mas que se estimaría (...) fallasse francez, a contratar por 4 annos, com honorários de 500 a 800$000 rèis, sem direito a casa paga. Sublinhava, no entanto, a liberdade de proce-der como melhor julgar em harmonia com o fim desejado, acrescentando a decisão de o Director do Jardim escrever ao Dr. Antonio Augusto da Costa

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