• Nenhum resultado encontrado

MARCO ANSELMO VASQUES IDEIAS E PRÁTICAS TEATRAIS DE FLÁVIO DE CARVALHO

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2019

Share "MARCO ANSELMO VASQUES IDEIAS E PRÁTICAS TEATRAIS DE FLÁVIO DE CARVALHO"

Copied!
153
0
0

Texto

(1)
(2)

MARCO ANSELMO VASQUES

IDEIAS E PRÁTICAS TEATRAIS DE FLÁVIO DE CARVALHO

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre em Teatro na linha de pesquisa

“Teatro, Sociedade e Criação Cênica”, pelo Curso de Mestrado em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGT – CEART/UDESC).

Orientadora: Profª Vera Regina Martins Collaço, Dra.

FLORIANÓPOLIS

(3)
(4)

MARCO ANSELMO VASQUES

IDEIAS E PRÁTICAS TEATRAIS DE FLÁVIO DE CARVALHO

Esta dissertação foi apresentada à banca para a obtenção do Título de Mestre em Teatro, na linha de pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica, em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina, em 12 de dezembro de 2014.

Apresentado à Comissão Examinadora, integrada pelos professores:

Profª. Vera Regina Martins Collaço, Dra. Orientadora

Prof. Dr. João Roberto Faria (USP) Membro

Prof. Dr. Edélcio Mostaço (UDESC) Membro

Prof. Dr. Cláudio José Guilarduci (UFSJ) Suplente

(5)
(6)

AGRADECIMENTOS

Amanda Corrêa da Silva, Denize Gonzaga, Rubens da Cunha, Péricles Prade e Vera Collaço. Evoco aqui o sentido de agradável para a palavra agradecimento. Porque agradáveis têm sido o convívio e os encontros com cada um de vocês. Se a arte é uma espécie de carícia na existência e o saber é um instrumento para se saborear a arte e a vida, como propunha Roland Barthes, saibam que vocês me ajudam a sonhar com sabor.

Edélcio Mostaço, João Roberto Faria, Fátima Costa de Lima e Nini Beltrame. A vocês que me ensinaram a abrir tempos dentro do tempo e que compartilharam suas realidades e ficções, quero deixar um afetuoso abraço e registrar minha profunda gratidão e admiração. Uso a palavra afeto, na sua melhor acepção, aquela recuperada por Deleuze, via Spinoza.

Amilcar e Vitória Neves. Porque sempre tiveram a sensibilidade para ouvir e acolher alegrias e tormentos.

(7)
(8)

RESUMO

A historiografia do teatro brasileiro, pouco a pouco, vem ganhando novos contornos e novas análises. Num primeiro momento, esteve vinculada à crítica literária, depois passou a ter vida própria e se solidificou. Ainda que tenhamos muitas maneiras de registrar a cena, o teatro continua uma arte da presença, o que dificulta sua captura. O historiador, por sua vez, faz escolhas, recortes e constrói caminhos. O objetivo deste estudo é discutir as práticas e as ideias teatrais de Flávio de Carvalho, já que seus experimentos e escritos estão inseridos num momento decisivo para o teatro no Brasil, que é a sua modernização com o início dos anos de 1920, com Renato Vianna e Álvaro Moreyra na proa e sua consolidação décadas depois. Flávio de Carvalho com o Teatro Experiência e com a montagem do espetáculo O Bailado do Deus Morto, com a Experiência N° 2 e com a Experiência Nº 3, por exemplo, já reivindica, a partir dos anos de 1930, um teatro feito para a cena e para o ator. A iluminação, o cenário, o texto e o corpo do ator, enfim, passam a ser pesquisados fora da hierarquia convencional que tinha na tríade texto, ator principal e empresário a espinha dorsal de um espetáculo. Por isso, considero que a análise das ideias e das práticas teatrais de Flávio de Carvalho à luz da história e da estética pode abrir novos espaços e sugerir novos modos de olhar nossa história teatral.

(9)
(10)

ABSTRACT

The Brazilian theater historiography has been improved with new and different kind of analyzes. At first, it was linked to critics of literature, but it has gained a proper and self status. Despite many ways of registering the scene moment, Drama remains an Art of presence, which makes it very difficult to investigate. The historian, in his or her turn, has to make choices, to present cuttings and to set new paths. Taking these ideas into consideration, the aim point of this study is to discuss some practices and dramatic ideas of Flávio de Carvalho because his experiments and essays are inserted in a crucial moment for the Brazilian theater due to its modernization in 1920, headed by Renato Vianna e Álvaro Moreyra and consolidated decades later. Flávio de Carvalho with his Teatro Experiência (Experimental Theater) and his staging of the play O Bailado do Deus Morto (Dance of the Dead God), with Experiment Nº 2 and Experiment Nº 3 has established, since 1930, that dramatic texts should focus basically on scene and actor. Lighting, stage, text and actor's body became a vital aspect and they began to be researched out of the conventional hierarchy, which was simply based on text, actor and investor. For this reason, we consider that a study, in the light of History and Aesthetics, of Flávio de Carvalho's ideas and his theatrical practices can open doors and suggest new ways of investigating our theater History.

(11)
(12)

33 34 78 79 80 81 85 88 92 LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 Projeto Palácio do Governo do Estado de São Paulo, 1926 22 Imagem 2 Projeto para uma vila na Alameda Lorena, 1936_______________ 23 Imagem 3 Fotografia da montagem de O Bailado do Deus Morto, 1933 27

Imagem 4 Série Trágica, 1947. Carvão sobre papel. 70 x 50 cm. MAC/USP_ 30 Imagem 5 Flávio de Carvalho durante o Percurso da Experiência Nº 3, 1956_ 32

Imagem 6 Flávio de Carvalho atuando na sua Experiência Nº 3, 1956 32

Imagem 7 Bailado Dorinha Costa, cenografia de Flávio de Carvalho Imagem 8 Ritmos de Prokofiev, cenografia de Flávio de Carvalho Imagem 9 Balada do Deus Morto, direção de Livio Tragtenberg Imagem 10 Balada do Deus Morto, direção de Livio Tragtenberg Imagem 11 O Bailado de Flávio de Carvalho, direção de Roberto Lage Imagem 12 O Bailado do Deus Morto, direção de Zé Celso

Imagem 13 O Bailado do Deus Morto, direção de Flávio de Carvalho Imagem 14 O Bailado do Deus Morto, direção de Flávio de Carvalho Imagem 15 O Bailado do Deus Morto, direção de Flávio de Carvalho

(13)
(14)

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 15

CAPÍTULO I FLÁVIO DE CARVALHO – O ARREBOL DE UM TEMPO E AS TEMPESTADES DE UTOPIA 19

1.1 AS DISPERSÕES POÉTICAS DE UM ARTISTA SEM FRONTEIRAS 21

1.1.1 As intervenções no corpo social 25

1.1.2 Do teatro às artes visuais, e vice-versa, a decupagem do artista 26

1.2 A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX E A RADICALIDADE PERFORMÁTICA 32

1.3 PARA ALÉM DAS NOTAS DE RODAPÉ 37

CAPÍTULO II REFORMAR, DEMOLIR: AS IDEIAS TEATRAIS DE FLÁVIO DE CARVALHO 34

CAPÍTULO III O BAILADO DO DEUS MORTO: UMA NOVA DRAMATURGIA PARA UM NOVO HOMEM_____________________________________________________________ 41 3.1 AS PROMESSAS DE UM NOVO HOMEM, A EXIGÊNCIA DE UM NOVA LINGUAGEM 60

3.2 O BAILADO DO DEUS MORTO ENTRE AS VANGUARDAS E A PERFOMANCE 73

CAPÍTULO IV ASPECTOS INOVADORES DA MONTAGEM DE O BAILADO DO DEUS MORTO, 1933 85

4.1 VOZ E VOCALIDADE 88

4.2 A EXPRESSÃO E AS MÁSCARAS 92

4.3 O FIGURINO, O CORPO E O CORPO NEGRO EM CENA 96

CONSIDERAÇÕES FINAIS 101

REFERÊNCIAS 105

(15)
(16)

INTRODUÇÃO

2012. Rússia. Um trio de garotas, mentoras da banda de punk rock Pussy Riot, adentraram uma igreja para realizar uma intervenção contra as posições políticas de Putin, o comando ortodoxo da cúpula católica deste país e, sobretudo, para tentar discutir o papel da mulher em um mundo em que o pensamento e a força masculinos preponderam. O desfecho pode ser imaginado. Elas foram a julgamento e condenadas à prisão. Madonna escreveu o nome dessa banda em seu corpo, protestou em suas apresentações e chegou a ceder espaço na abertura de suas turnês para que as integrantes, em liberdade, pudessem expressar suas indignações com a punição atribuída ao grupo.

1766. França. Jean de la Barre é supliciado pela Igreja Católica, que ateou fogo em seu corpo. Sobre ele, as informações históricas são desencontradas1, mas o que se sabe é que ele ironizou uma procissão e foi morto. Até hoje, na França, ao se falar nele, escancaram-se os portais da intolerância cristã.

Na segunda metade do século XX, a banda inglesa de punk rock Sex Pistol foi impedida pela rainha de tocar em território inglês sob a acusação de profanação. Diante disso, Sid Vicious, um dos líderes do grupo, alugou um grande barco e fez um evento histórico sobre as águas do rio Tâmisa. Aliás, a breve trajetória do músico é impressionante pelo que existe de teatral. Sabe-se que ele não tocava instrumento algum e que, ao assumir a função de baixista da Sex Pistol, mesmo sem tocar uma nota musical sequer, arrebatava seu público com sua energia feroz.2

1931. Brasil. São Paulo. Flávio de Carvalho quase foi linchado por fiéis, ao praticar o que nomeou de Experiência N° 2. Mais tarde, ele vai escrever um livro homônimo no qual reflete e descreve sobre o comportamento da multidão que segue a procissão de Corpus Christi em direção à Igreja da Praça da Sé. O líder da Semana de Arte Moderna, Oswald de Andrade, narrou esse fato na Cena 3 do quadro “O Tribunal”, da peça O Homem e o Cavalo:

VOZES – Viva o Chanceler! Viva! Péu! Péu! Tira o chapéu! Tira. Flávio! Lincha! Mata!

1 Wilson Martins, em sua História da Inteligência Brasileira (volume VI, p. 501), refere-se a este episódio,

dizendo que a morte de Jean de la Barre, pela igreja, teria acontecido em 1618.

2 O filme Sid and Nancy, do cineasta Alex Cox, de 1986, traz rico material sobre a personalidade inventiva de

(17)

A VOZ DE UM ENGENHEIRO – Evidentemente, coagido pela força bruta, vencido pelo número, vejo-me forçado a continuar o meu caminho sem chapéu. Mas esse puto me paga!

Som de castanholas. Tumulto.

VOZES – Viva la gracia! Otro toro! Mi cago em Dios! Viva o senhor do sábado! Tira o chapéu, Flávio! Péu! Péu! Fora! Não tira! Deus da burguesia! Fora! Põe o chapéu! Desacata esse veado! Fora! Fora! (ANDRADE, 2005, p. 127).

Flávio de Carvalho, que pautou toda a sua vida pelo confronto com o status quo, é o objeto de pesquisa desta dissertação. A escolha se justifica pela radicalidade de seus experimentos artísticos e de seus escritos. Tal quais os artistas acima mencionados, tratou o corpo em vida, isto é, o ato da existência como ato de criação teatral, e confrontou todas as estruturas de sua época, não apenas as estruturas sólidas, representadas pelas instituições, do mundo moderno, mas o mais importante, rebelou-se e lutou contra as estratificações simbólicas em que o homem se encontrava. O intento deste trabalho é ampliar a discussão sobre as suas ideias e incursões teatrais, tangenciando, quando conveniente, seus escritos, sobretudo Experiência N° 2, A Moda e o Novo Homem, A Origem Animal de Deus, O Bailado do Deus Morto e OsOssos do Mundo.

A vasta bibliografia existente sobre ele, em sua quase totalidade, é dedicada ao artista visual e ao arquiteto.Hoje, no Brasil, Luiz Camillo Osorio e Rui Moreira Leite são os maiores pesquisadores de Flávio de Carvalho. Ainda que seus escritos perpassem sua obra teatral, ambos se dedicam, com maior profundidade, às duas áreas anteriormente citadas. Pesquisas que percorram as suas atuações no teatro ainda são poucas e, quando citado na historiografia do teatro brasileiro, ele é tratado de maneira bastante superficial e ligeira, conforme se demonstrará no decorrer do trabalho. Flávio de Carvalho foi cenógrafo, figurinista, iluminador, dramaturgo e diretor. Pensou todos os elementos da cena, sobretudo a necessidade de se buscar um novo ator que pudesse traduzir no palco a construção de um novo teatro.

Faço uma contextualização histórica das práticas e das ideias teatrais de Flávio de Carvalho, relacionando-as, também, com as vanguardas europeias, sobretudo com o Surrealismo, o Expressionismo, o Futurismo e o Dadaísmo, assim como com o modernismo brasileiro, porque são correntes afins aos planos estéticos do objeto de pesquisa em questão. Da mesma forma, explano a seguir aspectos relacionados à historiografia do teatro brasileiro e às suas lacunas em relação ao tema, sempre com o objetivo de compreender tal fenômeno.

(18)

artes cênicas. A apresentação se estabelece por década, destacando as principais intervenções do artista justapostas a uma contextualização de outras manifestações no âmbito cultural no respectivo período.

No segundo capítulo, trato de relacionar as ideias teatrais de Flávio de Carvalho, estabelecendo relações com o pensamento de Gordon Craig, Vsevolod Meyerhold, Antonin Artaud e Adolphe Appia. Por meio de pesquisas em jornais, livros e revistas, busco demonstrar que as propostas e teorias de Flávio de Carvalho estão em constante diálogo com as correntes renovadoras da arte teatral. Corro o risco de relacionar os escritos desses pensadores, ainda que tenha consciência de que suas teorias partem de pressupostos distintos e têm sua própria gramática; no entanto, o que me interessa é buscar o que há de convergente entre esses artistas e teóricos, posto que entendo que todos, cada qual a seu modo ‒ tanto nas práticas quanto nas teorias ‒, erigiram suas propostas com um objetivo comum, o de buscar um teatro vital e um novo modo de teatralidade que os vigentes em suas épocas.

Com isso, pretendo mostrar não apenas a importância de Flávio de Carvalho na cena teatral brasileira mas a sua plena conexão com o que havia de mais radical e experimental no pensamento e na prática teatral do início do século XIX até meados do século XX. Prevalece a ideia de combate à prática teatral vigente como primeiro passo na tentativa de reformar e atualizar a chamada modernização do teatro brasileiro. Após a apresentação do conjunto de conceitos e pensamentos teatrais, que é o norte construtor do segundo capítulo, o trabalho segue aproximando, quando julgar necessário, os experimentos de Flávio de Carvalho aos autores citados.

No terceiro capítulo, discuto a dramaturgia d'O Bailado do Deus Morto, que foi escrita e dirigida por Flávio de Carvalho em 1933, no Teatro Experiência, também fundado por ele. Além da análise estrutural da peça, afirmando a sua dessemelhança com a dramaturgia preponderante na época e relacionando sua escritura com as vanguardas, faço uma breve apresentação de algumas montagens do texto O Bailado do Deus Morto, por diretores brasileiros da atualidade, com o objetivo de apontar a presente inquietação que o experimento teatral de Flávio de Carvalho provoca.

(19)

qual figuram também o seu bailado, escritos e cartas sobre teatro, assim como fotos da montagem dirigida por ele – consiste em um manifesto explicativo aos seus propósitos cênicos.

Por fim, apresento o resultado da pesquisa, com a expectativa de abrir luzes à importância das ideias teatrais de Flávio de Carvalho para a modernização do teatro brasileiro e de suas conexões com o pensamento renovador do teatro ocidental entre o final do século XIX e meados do século XX, bem como as irradiações de seus trabalhos no teatro produzido em nosso tempo. Tendo como objetivo deslocar o olhar dos experimentos de Flávio de Carvalho do habitual exotismo com que eles são vistos e abrir espaço para uma nova possibilidade de fruir seu temperamento intempestivo e radical.

Concluo, retomando, brevemente, o percurso aqui apresentado, com as devidas considerações derradeiras. Mostro que o trabalho feito não teve como escopo estratificar novas ideias sobre as experiências de Flávio de Carvalho, mas, sobretudo, como objetivo primeiro a abertura de novos olhares e leituras sobre o objeto de pesquisa em questão.

(20)

CAPÍTULO I - FLÁVIO DE CARVALHO - O ARREBOL DE UM TEMPO E AS TEMPESTADES DE UTOPIAS

Às vezes vem um vento E levanta a aba do pensamento Jogando o meu chapéu Para lá da possibilidade. (CHACAL, Drops de Abril)

Neste capítulo, apresento um breve perfil artístico de Flávio de Carvalho (18991973), com o objetivo de demonstrar suas múltiplas atuações, ou, suas "dispersões poéticas" (OSORIO, 2005). Artista plástico, arquiteto, cenógrafo, encenador, agitador cultural, escritor, jornalista, antropólogo, enfim, ele é o autêntico espírito do artista de vanguarda para o qual, via de regra, o experimento é instrumento de liberdade criadora. Sua atuação, no Brasil, dá-se no início da segunda década do século XX.

Como pretendo ambientar o leitor à potência poética e existencial de Flávio de Carvalho, desenho, neste capítulo, os momentos de experimentações que afirmam que estamos diante de um artista pautado pelo exercício experimental e pela busca do ato poético espraiado dentro da própria vida. Por isso, como se pode observar, não apenas as díades tabu e totem, morte e vida, espírito e corpo, e arte e não arte estão no centro de suas investigações, mas, para Flávio de Carvalho, interessava o homem visto no seu tempo e por meio de “outros tempos”.

No entanto, para adentrar neste corpo poético, faz-se necessário estabelecer relações com o que se costuma intitular espírito de época; por isso a abordagem de alguns episódios que marcaram de forma significativa a passagem do século XIX para o XX.

A máquina da história impõe, muitas vezes, o trituramento de fatos, pessoas ou acontecimentos que ficam imersos sob sombras, quando não sob escombros. A fatia que figurará na galeria iluminada servirá de arauto e irradiará futuras análises e interpretações, tendendo à solidificação. Uma vez calcinado um percurso em detrimento da cristalização de outro, a máquina da história deve sofrer revisões, passar por novos processos de investigação, até que surjam novas possibilidades de se ler e de se ver os objetos em seus fluxos de tempo. Por isso, é preciso alertar que não cabe aqui, nesta dissertação, calcinações e cristalizações. O desejo é romper com as estruturas binárias de acomodação e exclusão.

(21)

estava sendo gerida, e Augusto dos Anjos, poeta que iria embaralhar a linguagem poética com o livro Eu, morreu em 1914. Lima Barreto, o inventor do personagem Policarpo Quaresma, falece em 1922, ano do escândalo da juventude paulistana. Ele trouxe para a literatura o desprezo pela gramática, desprezo este enfatizado constantemente por Oswald de Andrade, e, mais que isso, obras como Clara dos Anjos e Triste Fim de Policarpo Quaresma, o personagem e a linguagem populares, a crítica política e social e o combate a uma sociedade escravocrata dominada por uma literatura de doutores. Aspectos esses, em maior ou menor medida, constantes no programa da Semana de Arte Moderna e nos escritos de Oswald de Andrade, o filósofo-mensageiro dos modernistas.3

A Europa fervia com as vanguardas. O Expressionismo, o Futurismo, o Dadaísmo, o Cubismo4 surgiram e se impuseram a marteladas. Stravinsky buscou uma nova música. Freud publica, em 1902, o livro A Interpretação dos Sonhos. Tempestades de utopias se aproximam. Oswald de Andrade traz para o Brasil, em 1912, o manifesto Futurista de Fillipo Marinetti.5 Em 1917, Anita Malfatti faz sua segunda exposição no Brasil, e quadros como “A boba” e “Homem amarelo” escandalizam a crítica. O escritor Monteiro Lobato faz ataque virulento à artista, que havia realizado pesquisas na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. A atmosfera política e econômica está em chamas. No Brasil, em 1889, temos a instauração da República feita pelos generais, seguida de uma política do pingado, isto é, a chamada política do café com leite. Na Europa, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) está sendo ensaiada. A ciência e a indústria buscam diminuir distâncias. Surge o louvor às máquinas, à velocidade, aos arranha-céus. Enfim, nasce a promessa de um novo homem, que buscará um novo modo de vida e, por consequência, uma nova arte. É a vez do rádio, do carro, do telefone, do cinema. É o império do homem sobre a natureza. No teatro, Alfred Jarry e Maurice Maeterlinck6, por exemplo, já anunciavam a necessidade de um ator “essencial”. A arte teatral vai ganhar outros contornos. Se no Naturalismo e no Realismo tínhamos uma ruptura temática, agora, com o Simbolismo, outras questões serão colocadas à luz. A própria linguagem passa a sofrer novas investigações. Outras linguagens começam a ser pensadas. O ator, a cena, o espetáculo, o som, o movimento, as cores. Tudo será investigado, estudado. Marinetti, o

3 Tanto o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924, quanto o Manifesto da Antropofagia, de 1928, de Oswald

de Andrade, exigem uma revisão nas linguagens artísticas e nas rupturas do homem com a condição política e social instaurada no Brasil nas primeiras décadas do século XX.

4 Sobre os manifestos das vanguardas e suas variações, o livro Vanguarda Europeia & Modernismo Brasileiro

(1992), de Gilberto Mendonça Teles, traz amplo registro e apresentação crítica do período.

5 O Manifesto dos Dramaturgos Futuristas é de 1922, e o Manifesto do Teatro Futurista Sintético é de 1915.

Ambos estão publicados no livro O futurismo italiano (2013), da Editora Perspectiva.

6 Dois textos são fundamentais para se pensar as transformações do eixo temático para o eixo formal nas

(22)

líder do Futurismo italiano, publica, entre muitos de seus manifestos, dois sobre teatro. Jean Cocteau, por sua vez, caminha na poesia, no cinema e no teatro. Marcel Duchamp cria o ready made, e com a obra "A fonte" provoca, de forma decisiva, uma cisão no modo de olhar a arte; enfim, a própria ideia de obra de arte está sendo discutida, repensada. A pergunta “o que é arte?” entra, de forma definitiva, no centro do fazer artístico. Este é um pequeno recorte do contexto que ambienta a virada do século XIX para as primeiras décadas do século XX, tempo de inquietação, questionamentos, coragem e liberdade.

1.1 AS DISPERSÕES POÉTICAS DE UM ARTISTA SEM FRONTEIRAS

Na borrasca de acontecimentos do final do século XIX, no dia 10 de agosto de 1899, em Amparo de Barra Mansa, RJ, nasceu o artista Flávio de Carvalho. Aos doze anos, foi educado no Lycée Janson de Sailly, em Paris. Com o fantasma da Primeira Guerra, deixou a França e foi para a Inglaterra, onde completou seus estudos no Clapham College, de Londres. Quando ocorreu a eclosão da Semana de Arte Moderna, ele estava terminando os estudos de Engenharia Civil na Universidade de Durham, em Newcastle, na Inglaterra. Além desse curso, ele, espírito inquieto, fez também Belas-Artes, na mesma universidade. Em 19227, voltou ao Brasil.

Ainda que o escopo deste trabalho sejam as ideias e as práticas teatrais de Flávio de Carvalho, vale tangenciar suas atividades de arquiteto, artista plástico e escritor, com o objetivo de apontar contaminações de uma prática na outra, tentando, sempre que possível, estabelecer conexão com sua atividade cênica. Ao analisar, por exemplo, alguns de seus projetos arquitetônicos, tais como o Palácio do Governo de São Paulo (1927), a Embaixada da Argentina, no Rio de Janeiro (1928), a Universidade de Minas Gerais, em Belo Horizonte (1928), o Farol de Colombo (1928), o Palácio do Congresso do Estado de São Paulo (1929) e o Projeto para uma vila na Alameda Lorena (1936-1938), conseguese estabelecer relações com o cenógrafo e com o perfomer. O jogo de luz e sombra e a concepção de espaço arquitetônico mobilizado pelo sol, sempre procurando a mobilidade, foi um recurso utilizado por Flávio de Carvalho tanto na sua montagem de O Bailado do Deus Morto, de 1933, quanto na iluminação e nos cenários que ele construiu. Em todos os seus projetos de arquitetura o artista manteve uma característica que possibilitou

7 Apesar de Antonio Carlos Robert Moraes, em seu livro Flávio de Carvalho

(23)

estabelecer mais uma ponte entre a atividade do arquiteto e a do homem de teatro. Tratase da presença da máscara e da figura humana nos seus projetos arquitetônicos, conforme se pode observar nas imagens logo adiante. Importante observar que, se os seus projetos tivessem sido executados, causariam grande impacto no cenário urbanístico da época. A pesquisadora Giuliana Simões, ao abordar os experimentos arquitetônicos de Flávio de Carvalho, afirma:

Em várias de suas experiências cênicas usava o próprio corpo como objeto. Atuava como um performer, que, partindo de elementos da própria vida, cria eventos artísticos, atuação que o lançará ao encontro dos embates típicos da arte contemporânea. Desejava uma nova ordem para a organização do mundo, libertando-o das amaras do cotidiano e deixava tal premissa patente, tanto em sua atuação como artista, quanto como arquiteto e engenheiro. (SIMÕES, 2010, p. 181)

Todos esses projetos causaram muitos debates, levando a uma bipolarização radical de opiniões.

(24)

Imagem 2. Projeto para uma vila na Alameda Lorena, 1936.

Dentre os defensores de Flávio de Carvalho estava o poeta Carlos Drummond de Andrade, que, ao se manifestar em jornais em favor de suas propostas e de seus projetos, escondia-se, sempre, sob pseudônimo. Performático ao total, é o próprio Flávio de Carvalho quem começou a fazer intervenções na imprensa em sua defesa, chegando à radical atitude de inventar entrevistas consigo mesmo para explicar, detalhadamente, cada projeto rejeitado nos concursos8. A sugestibilidade de que elementos e aspectos teatrais

estão constantemente na vida de Flávio de Carvalho é observada, também, por Rui Moreira Leite ao falar de uma série de pinturas, sobretudo em Estudo para Nossa Senhora da noite, Velame do destino e Presença perpétua do tempo, todas realizadas no início da década de 1950, em que a presença da pesquisa de figura e fundo parece ser a preocupação do artista, que, nesta década, intensificou a sua atividade de cenógrafo:

É possível sugerir que, para o desenvolvimento dessa série de pinturas, tenha contribuído a atividade de Flávio de Carvalho como cenógrafo, do início dos meados dos anos 1950. Nesses anos, projeta a cenografia e os figurinos de uma série de espetáculos – para a apresentação do Grupo Experimental de Ballet no Teatro Municipal, com coreografia de Dorinha Costa (1951); para Ritmos, apresentação do conjunto de Dança Moderna de Yanka Rudzka (1956) e o retrato coreográfico de Cangaceira (1953, composto a seis mãos com Camargo Guarnieri e Aurel M. Miloss, para o balé do IV Centenário). (LEITE, 2008, p. 74)

8 A pesquisadora Giuliana Simões, em seu livro Veto ao modernismo no teatro brasileiro, sustenta a tese de

(25)

Flávio de Carvalho parece estar na mesma esteira de Marcel Duchamp, pois está o tempo inteiro insinuando e problematizando a existência de uma obra de arte que não seja uma obra de arte. Apesar de nos anos de 1920 o artista estar mais empenhado em sua atividade de engenheiro e arquiteto, no final dessa década já havia escrito sobre uma exposição de Tarsila do Amaral, exposição em que figuraria o famoso Abaporu, que, segundo muitos, foi o quadro desencadeador da fase antropofágica de Oswald de Andrade.

Nesse período, ele já era um modernista convicto e um militante da filosofia antropofágica. Estava, também, ambientado com a cena teatral e, em 1928, atuava no elenco da peça Adão, Eva e Outros Membros da Família, levada ao palco pelo Teatro de Brinquedo, de Álvaro Moreyra. Em 1929, conheceu, em São Paulo, Benjamin Péret e Elsie Houston9 e se aproximou definitivamente do Surrealismo.

No entanto, foi nos anos de 1930 que Flávio de Carvalho veio apresentar um nível de radicalidade incomum em tudo o que propunha. A década começou com a apresentação de duas palestras no IV Congresso Panamericano de Arquitetos, que ocorreu no Rio de Janeiro; a primeira tem o título de A cidade do homem nu, que o artista publicou, no mesmo ano, no Diário da Noite, e a segunda, Antropofagia no século XX. Para comprovação do espírito consonante com as vanguardas, mais ainda com o projeto de uma filosofia antropofágica, que vai culminar na tese A crise da filosofia messiânica, escrita por Oswald de Andrade, na década de 1950. Vale ler parte do artigo que Flávio de Carvalho publicou no jornal Diário da Noite e foi reproduzida no catálogo A Cidade do Homem Nu:

A cidade do homem nu será sem dúvida uma habitação própria para o homem antropófago. Lá ele poderá sublimar os seus desejos organizadamente. Lá ele poderá sentir em si a renovação constante do espírito; o movimento da vida aparecerá de um realismo estonteante e ele compreenderá que viver é raciocinar velozmente e dominar os tabus pela compreensão.

A cidade americana não é mais a cidade-fortim da conquista. Ela será a cidade geográfica e climatérica, a cidade do homem nu, do homem com raciocínio livre e eminentemente antropófago.

A cidade antropófoga satisfaz o homem nu porque ela suprime os tabus do matrimônio e da propriedade; ela pertence a toda coletividade, ela é um imenso monólito funcionando homogeneamente, um gigantesco motor em movimento, transformando a energia das ideias em necessidades para o indivíduo, realizando o desejo coletivo, produzindo felicidade, isto é, a compreensão da vida ou movimento.

A cidade do homem nu será ela a casa do homem. O homem encontrará na sua casa imensa as suas necessidades organizadas, arquivadas em locais apropriados, permitindo o acesso fácil e imediato. Ele não perderá energia inutilmente como o

9 Ao lado de Louis Aragon, Philippe Soupault, André Breton e Paul Élaurd o escritor Benjamim Péret

(26)

nosso homem de hoje. A sua fadiga será mínima, o seu rendimento espantoso surpreenderá a ele próprio; ele encontrará na sua vida uma nova felicidade, a felicidade da eficiência: um novo orgulho, o de ter conquistado a sua alma, o orgulho da compreensão da sua existência e do desejo de mudar sempre. (CARVALHO, 2010, p. 24-25)

Com isso Flávio de Carvalho aderiu filosoficamente ao movimento criado por Oswald de Andrade e passou a ser um defensor da antropofagia, da existência de um novo modelo de vida para o homem e da necessidade de esse novo homem construir um espaço que abrigue as suas capacidades criadoras. Não é apenas o homem que precisa mudar. É preciso que seu ambiente físico e sua psicologia sejam reformulados; por isso a premência de se abandonar hábitos e costumes-tabus, tais como o matrimônio ‒ que estanca a liberdade e o erotismo ‒ e a noção de propriedade, para que se possa colocar "a energia das ideias" a serviço da experiência viva.

Além de se filiar definitivamente à filosofia antropofágica, pode-se observar aspectos do Futurismo, no que tange pensar uma nova cidade para um novo espírito e evidentes aproximações com o Surrealismo, já que o homem nu é o ser que vive o fluxo de seus prazeres e desejos.

1.1.1 As intervenções no corpo social

Vital, infatigável e antropofágico será mesmo na década de 1930 que ele seguirá com a Experiência Nº 2, realizada em 1931, no centro de São Paulo. O artista faz o caminho inverso de uma procissão de Corpus Christi, munido de um chapéu verde, observando os fiéis e provocando-os num jogo constante que testava não apenas os limites da massa humana, que se entrega ao corpo de Cristo, mas também os limites de seu próprio corpo e suas variações emocionais, tal qual ele mesmo narrará em livro homônimo, escrito no mesmo ano. A polêmica se estabeleceu. Quase linchado, acabou na delegacia, onde explicou ao delegado que estava fazendo apenas uma análise da

“psicologia das massas”.

(27)

limite real da tolerância do coletivo. E mais, oferece, tal qual Cristo, sua carne, seu corpo, como oferenda aos olhares interpelativos, que revelavam ora estranhamento, ora horror, e, por fim, a rebelião dos revoltosos, que perseguiram o artista e queriam, tal qual ocorreu com Jesus, sacrificar o corpo do infiel que cruzou o ato sagrado dos imaculados.

O imperativo do corpo retorna na sua Experiência Nº 3 e, embora haja muita mitologia acerca de uma possível Experiência Nº 1, a verdade é que ela nunca existiu. Se existiu, o próprio artista não fez registro, algo incomum, porque todo o processo de criação de Flávio de Carvalho, toda a reflexão e a escritura são atos antecedentes ou precedentes. Vejamos alguns exemplos: a chamada Experiência Nº 2, após ser executada, em 8 de julho de 1931, sucede, meses depois, o livro com título homônimo. A sua Experiência Nº 3, ocorrida no dia 18 de outubro de 1956, é precedida de uma série de artigos que resultaram no livro A Moda e o Novo Homem. Da montagem da sua dramaturgia de O Bailado do Deus Morto, no Teatro Experiência, em 1933, surgirá, décadas depois, o livro-manifesto A Origem Animal de Deus, que elucidará e possibilitará os objetivos e os conceitos que nortearam a escritura e a montagem do espetáculo. Ainda na década de 1930, após viajar para inúmeros países europeus, redigiu o livro Os Ossos do Mundo, uma espécie de mapa antropológico e etnológico acerca das suas andanças, levando sempre em consideração os hábitos, as festas, as crenças, enfim, tudo o que lhe parecia digno de nota. Por tudo isso é possível especular e indagar: onde estaria o registro de sua Experiência Nº 1? A hipótese mais provável é que Flávio de Carvalho, dada a sua obsessão pelo corpo, tenha feito da sua existência, da sua vida, a experiência primeira, que seria, por obviedade e cronologia, a primeira e mãe de todas as manifestações sequentes. Acredito, após estudar suas intervenções na tessitura social, na possibilidade de sustentar a tese de que Flávio de Carvalho nos induz, em cada nova empreitada, a identificar a presença de seu corpo ‒ sobretudo a tomada de consciência do corpo na paisagem urbana ‒ como sua primeira experiência.

(28)

Imagem 3. Fotografia da montagem do espetáculo O Bailado do Deus Morto, 1933, Clube dos Artistas Modernos.

Em 1932, em São Paulo, Flávio de Carvalho fundou o Clube dos Artistas Modernos, ao lado de Di Cavalcanti, Carlos Prado e Antônio Gomide. Arrefecido o espanto da sua intervenção na procissão, não por acaso, fundou, também, em 1933 o Teatro Experiência. Note-se que ele manteve o nome da sua Experiência Nº 2 no batismo do seu teatro e, portanto, evidenciou uma atitude programática e sistemática de investigação, o que contraria a ideia de que suas experimentações teatrais eram assistemáticas ou acontecimentos exóticos, como vem sendo tratado, ainda hoje, em grande parte da historiografia do teatro brasileiro. Para a abertura do Teatro Experiência, ele escreveu a dramaturgia O Bailado do Deus Morto, que gerou enorme polêmica, como poderá ser visto no terceiro capítulo deste trabalho. Observe-se que o título do espetáculo está em inteiro diálogo com a sua Experiência Nº 2, pois mais uma vez Deus e o homem religioso vêm para o centro do debate. Mais uma vez Flávio de Carvalho enfrenta a polícia e seu teatro é fechado.

(29)

por ele passaram a cantora Elsie Houston, mulher de Benjamin Perét, Camargo Guarnieri, Raul Bopp, Lavínia Viotti, o violinista tcheco Frank Smith, Henrique Pongentti, Ophélia Nascimento, Mário Pedrosa, Jorge Amado, Tarsila do Amaral e tantos outros.

Foi neste período que Flávio de Carvalho pareceu se aproximar mais das ideias do movimento surrealista, pois em 1933 ele vai organizar, no Clube dos Artistas Modernos, uma exposição de esculturas, desenhos e pinturas de internos do Hospital Juqueri e de trabalhos de arte infantil recolhidos de escolas da cidade de São Paulo, que se chamou “Mês das Crianças e dos Loucos”. Assim, é o próprio Flávio de Carvalho que vai nos revelar suas aproximações com o surrealismo ao falar sobre o evento:

O certâmen visava focalizar a importância psicológica e filosófica da arte do louco e das crianças [...] O CAM expôs durante um mês inteiro um verdadeiro panorama dramatizado das espécies, espalhado sobre as pequenas mesas da sala única estava toda a tragédia da vida e do mundo, todos os cataclismas da alma e do pensamento a dolorosa caricatura de tudo e o drama simples de formas e cores que tanto faz inveja aos grandes artistas. Era um verdadeiro grito de revolta contra as paredes opressoras e asfixiantes das Escolas de Belas-Artes, que corrigindo e polindo procura impor aos alunos a personalidade frequentemente mofada e gasta dos professores. A importância da arte do louco e da criança foi devidamente focalizada, colocando com evidência os fenômenos de associação livre de ideias, a sequência de fatos ancestrais e as formas de uma evolução longínqua. (CARVALHO apud, SANGIRARDI JR., 1985, p. 38-39)

André Breton (2001, p. 22) escreve no seu primeiro manifesto surrealista, de 1924, que "a mania incurável que consiste em reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, só serve de entorpecer o cérebro". Flávio de Carvalho está sempre buscando rotas que fujam ao estabelecido, ao dado, ao classificado. Vive sob o signo da invenção.

(30)

Voltou ao Brasil com o livro de viagem Os Ossos do Mundo concluído, além de inúmeras entrevistas com os artistas mencionados; entrevistas que discutem, em sua grande parte, a estética do Super-realismo, o chamado Surrealismo e o Abstracionismo.10

Ainda nesta década, ajudou o psiquiatra Osório César a montar uma exposição com pacientes do Hospital Psiquiátrico Juqueri. Em 1939, o artista ficou responsável por organizar o 3º Salão de Maio, a partir do qual editou a Revista Anual do Salão de Maio, na qual encontraremos uma síntese de algumas das frentes do Modernismo Brasileiro e a consolidação da necessidade de afirmar a experiência antropofágica como uma saída tanto para a vida quanto para a arte.

Nos anos de 1940, fez exposição individual na Argentina, Buenos Aires, na Galeria Viaura. A Segunda Guerra Mundial dividiu o mundo. O temor da bomba atômica se tornará real. O mundo começou um processo de pós-industrialização e o homem pósmoderno estava a caminho.11 A literatura brasileira, na prosa, viveu o auge do chamado romance regional com Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos na proa. Urge discutir as questões sociais e regionais, e é na prosa que isso acontece, já que a poesia, representada por João Cabral de Melo Neto, volta-se para o formalismo e procura estancar a herança libertária deixada pela Semana de Arte Moderna. É neste período, também, que as letras nacionais vão receber um dos seus melhores golpes, uma cisão definitiva. A escritora pernambucana Clarice Lispector aparece com o livro Perto de um coração selvagem, causando impacto na crítica e nos leitores, e, futuramente, é a própria Clarice quem vai instaurar um marco ímpar com a publicação de A paixão segundo G.H. Somando a este panorama, na política, Getúlio Vargas se entrona no poder com sua característica de ambiguidade, navegando sempre entre o populismo e o fascismo.

No meio de tudo isso, Flávio de Carvalho pintou retratos de inúmeros artistas, entre eles Pablo Neruda, Nicolás Guillén, Jorge Amado. Em 1943, “com apoio de Assis Chateaubriand, revive o Teatro Experiência, apresentando para Roger Coillois, o seu O Bailado do Deus Morto no restaurante Recreio Molinaro”, assunto que retomarei mais adiante, (TOLEDO, 1994, p. 756). Contudo, um dos acontecimentos mais marcantes nesta década foi o falecimento de sua mãe. O fato em si não teria importância substancial, já que

10 Algumas dessas entrevistas continuam inéditas; no entanto, as realizadas com Herbert Read, Tristan

Tzara, Man Ray, Roger Caillois, Jean Hélin, Marinetti, A. Hoffmeister, Frank Dobson, Ben Nicholson, Gaston-Denys Périer, JiříVoskovec, Emil Filla e André Breton, todas publicadas por Flávio de Carvalho na imprensa brasileira em 1935, estão coligidas num imenso catálogo organizado por Rui Moreira Leite, que foi publicado, em 2010, pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo.

11 No livro O pós-moderno, publicado pela primeira vez na França, em 1979, Jean-François Lyotard vai

(31)

todas as mães morrem um dia. No entanto, Flávio de Carvalho é domador de serpente e parece, mais e mais, hibridar o binômio arte e vida. Ele parece estar apontando para a premissa de que estar vivo, estar presente no mundo, requer um posicionamento estético. Em 1947, sua progenitora, Ophélia Crissiuma de Carvalho, agonizou no leito de morte e o artista, impactado pela expressão terrífica, compôs o que chamou de Série Trágica.

Imagem 4. Série Trágica, 1947. Carvão sobre papel. 70 x 50 cm. MAC/USP.

Trata-se de nove desenhos que mostram a agonia de sua mãe no leito de morte. O pesquisador Luiz Camillo Osorio, no artigo Eu sou apenas um!12, faz uma análise aguda do caráter poético, estético e ético das invenções do artista, além de atentar para questões

12EU SOU APENAS UM! As experiências de Flávio de Carvalho. In: Caderno Videobrasil. Associação

(32)

fundamentais como a necessidade de uma revisão histórica da sua contribuição para a arte contemporânea. Sobre a Série Trágica, diz:

Esses desenhos da Série Trágica (são nove ao todo focando essa agoniada própria mãe) parecem querer falar mais do velamento que da visibilidade. Não deixa de ser sintomático que esse artista, que fez da dispersão poética uma estratégia criativa, tenha o ponto mais alto de sua expressão gráfica associado a esse momento radical de passagem que é a morte. Neste aspecto, não precisamos nem destacar o caráter e a temporalidade performática que pulsam nessas linhas trágicas. (OSORIO, 2005, p.14)

Aqui aparece, mais uma vez, a sugestibilidade cênica no exercício das artes visuais. Num momento posterior, artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Marina Abramovich e Tadeusz Kantor, por exemplo, vão estreitar e nublar ainda mais as fronteiras entre artes visuais e experimentos cênicos. Em Flávio de Carvalho, a investigação duchampiana – e de grande parte da vanguarda, sobretudo do Surrealismo – de discutir os limites e os conceitos do que é uma obra de arte está sempre presente. E o artista parece estar o tempo todo em processo e interessado nos espaços, nos vãos, nas lacunas de suas “dispersões poéticas”. Imprime uma força vibrátil e uma energia que se esgarça e se fragmenta em múltiplas direções. Nos dizeres de Luiz Camillo Osorio,

[...] podemos sublinhar os elementos que qualificam a sua poética experimental, sua noção disseminada de experiência que atravessa os campos do teatro, da dança e das artes plásticas, a saber: a procura de uma potência criativa não convencional, que no cruzamento do cotidiano e do poético é capaz de provocar o choque e um forte estranhamento subjetivo. O alcance de uma obra e suas formas de transformação social variam, renovando-se a cada momento histórico, forçando o pensamento e a imaginação a cogitar caminhos novos entre o que é o que o pode vir a ser. (OSÓRIO, 2005, p. 14)

Ainda sobre a aproximação, em Flávio de Carvalho, do ato da pintura com o ato cênico, o depoimento sobre a forma com a qual o artista pintava, feito por Sangirardi Jr., nos induz, novamente, a relacionar o processo do pintor com a de quem está executando uma cena e, também, com a busca do automatismo psíquico tão praticado pelos surrealistas:

(33)

Transformação, rapidez, caminhos novos, estranhamento e conquista de novos territórios poéticos e inventivos marcarão a década seguinte.

1.2 A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX E A RADICALIDADE PERFORMÁTICA

Imagem 5. Flávio de Carvalho se exibindo para os jornalistas durante o percurso da

Experiência Nº 3, 1956.

Imagem 6. Flávio de Carvalho atuando na sua Experiência Nº 3, nas ruas de São Paulo, 1956.

(34)

homem tropical. Neste mesmo ano, nos Estados Unidos, eclodia a Beat Generation13, também herdeira dos surrealistas, que unia rebeldes e transgressores num movimento de resistência à sociedade capitalista, ao homem pasteurizado e ossificado da vida mergulhada em preconceitos e amarras. O poema Howl, de Allen Ginsberg era lido numa galeria de arte em 1956. O romance On The Road, de Jack Kerouac, é de 1957 e Naked Lunch, deWilliam S. Burroughs,de1959; na esteira da rebeldia e do escândalo estão ainda Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti, Neal Cassady, entre outros, que avolumam o time de rebeldes e detonadores da crítica à “sociedade-morta”. Os existencialistas, sobretudo na França, e ícones da música e do cinema, como James Dean e Elvis Presley, cada um a seu modo, vão alimentar e alicerçar o movimento da contracultura dos anos de 1960 e 1970.

Imagem 7. Foto do espetáculo Bailado Dorinha Costa, com música de Camargo Guarnieri e cenografia de Flávio de Carvalho. Teatro Municipal de São Paulo, 1950-51.

13 Os livros Geração Beat (2009)e Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico (2014), escritos pelo

(35)

Imagem 8. Foto do espetáculo Ritmos de Prokofiev. Cenografia de Flávio de Carvalho, 1956.

Foi no fervor desses acontecimentos que Flávio de Carvalho publicou, no jornal

Diário de São Paulo, uma série de artigos, reunidos em 2010 sob o título de A Moda e o Novo Homem, no qual discute arquitetura, urbanismo, o homem e sua relação com a cidade, a casa e, finalmente, o homem e a vestimenta. Após a escritura, Flávio de Carvalho partiu para a ação. Em 18 de outubro de 1956, saiu pelas ruas de São Paulo vestido de saia, blusão, meia-calça e uma sandália com aberturas nas laterais e no peito do pé. Mais uma vez se faz necessário pontuar todo o caráter preparatório do evento que culminou na sua Experiência Nº 3.

O New Look foi construído e divulgado paulatinamente. São muitas as etapas do novo empreendimento: ele escreve sobre a necessidade de a cidade se confrontar com o “homem nu”; desenha as peças do vestuário que, em sua concepção, melhor se adaptam às necessidades do homem dos trópicos; constrói a indumentária; cria um roteiro específico que inclui visita a redações de jornais e a entrada em um cinema; divulga o acontecimento nos periódicos; e, por fim, realiza o evento, reunindo, sem exageros, uma verdadeira multidão de curiosos.

(36)

Em 1958, encampa mais uma batalha, agora com o olhar debruçado sobre o cinema. Com o objetivo de realizar um filme, que recebe o título de A Deusa Branca, participa de uma expedição do então Serviço de Proteção ao Índio, em direção ao Alto Amazonas. “Um dos objetivos dos expedicionários era localizar os remanescentes da lendária tribo do Cibrei, que, pelas narrativas do Frei Carvajal, são índios louros e de olhos azuis.” (SANGIRARDI JR., 1985, p. 65) A viagem em si se torna digna de roteiro de cinema. Como sempre, para Flávio de Carvalho, o processo e o jogo são mais importantes que a realização da obra. Fez teste de elenco no Rio Grande do Sul, comprou muitos objetos, que pretendia doar aos índios, negociou a sua ida e, claro, fez novo estardalhaço na imprensa, pois, afinal, estava prestes a realizar um filme e localizar a deusa branca, que provém de uma lenda fictícia.

E aqui existe um ponto a ser discorrido com atenção. Flávio de Carvalho sabe que a narrativa que fala sobre Umbelina Valéria ‒ a mulher loura que, ainda na infância, foi capturada e passou a viver na selva com os índios aderindo às suas linguagens e aos seus costumes ‒ não passava de ficção. No entanto, a história representa um ato antropofágico pleno e está em sintonia com as proposições do nosso Modernismo, sobretudo a turma que gravitava em torno de Oswald de Andrade, porque não se faz necessário apenas deglutir a cultura europeia, adaptá-la e fugir da cópia da cópia, mas também buscar a nossa imanência ancestral, isto é, a pedra fundamental da nossa identidade civilizatória; mais que entender os ritos indígenas, Flávio de Carvalho pareceu estar nos dizendo que é preciso ser índio. Não há como não admitir o caráter representacional da empreitada, já que o ponto de partida é uma ficção. Mais uma vez o artista está apontando que está apontando maior interesse no processo que no produto propriamente dito.

Então ele contrata atores, compra equipamento cinematográfico, enfrenta a burocracia para levar toda a equipe, constrói caixas específicas para resguardar os rolos de fitas da umidade e parte em comboio rumo ao rio Negro. Como se pode supor, nada ocorreu como o previsto: o filme não saiu, mas o evento não passaria sem episódios dignos da sétima arte:

(37)

desciam o rio Demini; ao mesmo tempo, desafiou o coronel para um duelo a bala, mas ele não aceitou e foi se refugiar, trancado, no porão de seu barco. (SANGIRARDI JR., 1985, p. 68-69)

No entanto, a viagem não foi em vão, porque o filme era o pretexto necessário para novas pesquisas e aventuras. Volta da viagem com anotações etnológicas e observações antropológicas. Analisa e participa de ritos indígenas. Num desses ritos se integra à nudez da tribo e age como um verdadeiro arqueólogo que deseja construir uma cartografia plena e integrada ao objeto de sua análise.

Vêm os anos de 1960, e com eles a instauração da Ditadura Militar no Brasil e em outros países da América Latina; o Concretismo brasileiro dos irmãos Campos e de Décio Pignatari ganha corpo e se solidifica; o Tropicalismo nasce; a contracultura ganha força; Sartre está no auge; surge Herbert Marcuse; a França vive o maio de 1968. No teatro, Os Comediantes já haviam se tornado um marco histórico, em 1943, com a montagem de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues; o Teatro de Arena já está prestes a completar duas décadas; o Teatro Oficina surge e se afasta um pouco dos ideários políticos, marca característica do Teatro de Arena, e caminha para outra espécie de rebeldia, a rebeldia estética e poética.

Curiosamente, esses anos são mais calmos para Flávio de Carvalho, mas o artista continua inquieto, pintando, fazendo cenários para teatro e decoração para Carnaval. Ilustrou, em 1964, a nova edição do livro Memórias Sentimentais de João Miramar e, em 1966, Poesia Reunida, ambos de Oswald de Andrade. Participou de todas as Bienais de São Paulo, evento que ajudou, ao lado de Ciccillo Matarazzo, a criar. A montagem do espetáculo O Rei da Vela, empreendida em 1967, pelo Teatro Oficina, mexeu com a sua vocação teatral e reaviva a necessidade de remontar a sua dramaturgia O Bailado do Deus Morto. Começa a discutir, com o Teatro de Arena, a possibilidade da montagem de sua peça. Até que, em 1972, o grupo aceitou a empreitada que teria direção de Luís Carlos Arutin, música de Walter Franco e cenografia de Helena Vilar. Ainda neste ano, organiza o livro A Origem Animal de Deus, onde publica, também, a sua peça O Bailado do Deus Morto e notícias sobre o Teatro Experiência, além de um manifesto teatral. Morreu em 1973, após publicar o livro. O Teatro de Arena, que já vem sofrendo com as ações da censura, aborta a montagem que estava em andamento.

(38)

1.3 PARA ALÉM DAS NOTAS DE RODAPÉ

Se por um lado Flávio de Carvalho alcançou, ainda vivo, reconhecimento ímpar nas artes visuais, sua atuação na arquitetura, como asseverou o arquiteto Rui Moreira Leite, dependeria da existência de um fluxo de gerações:

[...] tudo leva a crer que seu nome não deixará as notas de rodapé a que a historiografia da arquitetura moderna o condena. Pelo menos até que uma nova geração de profissionais abandone o racionalismo frio, de fórmulas acabadas, peço livre exercício da imaginação criadora, que tem em Flávio de Carvalho um precursor. (LEITE, apud SANGIRARDI JR., 1985, p.28)

O mesmo se pode afirmar no que concerne à historiografia do teatro brasileiro. Porque uma das lacunas no processo de construção da História Teatral no Brasil é a não atualização das ideias e práticas teatrais de Flávio de Carvalho. Não se trata, em hipótese alguma, de buscar um lugar estanque para ele, mas de jogar luzes em cantos obscurecidos, ou, como prefere Agamben, buscar na escuridão o seu rastro de luz. Flávio de Carvalho contribuiu sobremaneira para o desenvolvimento e a modernização do teatro brasileiro. Sob essa questão, é importante retomar as próprias falas do artista, o que farei no segundo capítulo desta dissertação, pois sempre que chamado para se manifestar sobre o teatro brasileiro foi crítico incansável dos modelos vigentes e exigia um processo de transformação urgente.

O pensador italiano Giorgio Agamben, no seu ensaio O que é o contemporâneo? chega à afirmação que ao poeta contemporâneo cabe manter os olhos fixados em seu tempo; no entanto, ele amplia a noção desse olhar. Não basta a fixação pura e simples.

Faz-se necessário um mergulho nas entranhas do tempo:

Mas o que vê quem vê o seu tempo, o sorriso demente do seu século? Neste ponto gostaria de lhes propor uma segunda definição da contemporaneidade: contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas presentes. (AGAMBEN, 2009, p. 62)

Flávio de Carvalho escreveu, arquitetou, pensou e pintou sobre os escuros de sua época. No teatro, trouxe o corpo negro, que era “a carne mais barata do mercado”14, para a cena; trouxe inovações na iluminação e a retomada da máscara, recuperando a vocação

14 A cantora Elza Soares dá vida vocal à letra A carne, composição de Marcelo Yuka, Ulisses Cappelletti e

(39)

ancestral do teatro à vocalidade e ao rito – vocalidade e rito são aspectos que abordaremos no quarto capítulo deste trabalho. É com ele que os loucos e as crianças entram em galerias de arte, ainda na década de 1930. Foi Flávio de Carvalho, também, quem viu, nos andrajos dos andarilhos, dos abandonados das cidades, conforme texto publicado no jornal Diário de São Paulo, os profetas da imaginação, do sonho e da moda:

Encontramos pateticamente nas ruas de toda a parte exemplares de homens e mulheres que perderam o controle de seus desejos e das suas angústias e que se apresentam vagando pela rua, discursando histericamente pra o público, às vezes imaginários. Exibem profundo aparato e ornamento, cobrem-se com flores e fitas e cores e panos diversos, que se desdobram, agradavelmente. Marginais descontrolados que falam a um mundo próprio, o mundo da loucura e do sonho. São estes os detentores da grande imaginação e da grande moda. São os supremos criadores da fantasia humana... e tão desprezados pelo povo que passa. (Diário de São Paulo, p. 1956)

É justamente na moda que Agamben, ainda no ensaio citado, vai apontar o caráter inapreensível do contemporâneo sob o ponto de vista temporal, isto é, ser contemporâneo não está diretamente relacionado, como muito se quer fazer acreditar, com o estar no mesmo tempo, não quando estamos nos referindo à estética, à arte. Para afirmar que o contemporâneo e o intempestivo não estão vinculados, necessariamente, à questão cronológica. A moda, aponta Agamben (2009), vive num paradoxo constante, pois as manequins, que desfilarão as vestimentas, parecem estar à frente de seu tempo; no entanto, por ambiguidade, estão sempre atrasadas em relação ao cotidiano, o que as coloca, em certo sentido, na zona do inapreensível. Agamben corre para um lugar, para localizar o contemporâneo, que poderia ser chamado de entretempo. O que Agamben está nos dizendo com isso? Que o contemporâneo, o intempestivo cria “outros tempos”. É neste entre o solar e a escuridão, mais que isso, é no mergulho do olhar nos cantos escuros de onde emerge um ponto de luz – não a luz irradiadora e excessiva da qual nos acostumamos e da qual nos apropriamos para pasteurizar o homem que vive aprisionado no clarão inócuo das verdades petrificadas, por uma vida social amorfa e controlada. É na fratura do tempo, nesta espécie de ranhura, de fissura que o contemporâneo fará “o lugar de um compromisso e de um encontro entre os tempos e as gerações.” (AGAMBEN, 2009, p.71)

(40)

sua época. E é neste ponto que as reflexões do pensador italiano se aplicam a Flávio de Carvalho, que vai fustigar, em todas as áreas em que atuou, os escuros e os escombros ancestrais, para, daí sim, buscar alguma reverberação no seu tempo e em outros tempos. É evidente que Gilberto Freyre, ao chamar Flávio de Carvalho de “pós-moderno legítimo”, ainda na década de 1930, ao prefaciar o livro Os Ossos do Mundo, está comparando os feitos e os escritos do artista em relação aos modernistas, sobretudo Oswald de Andrade e os artistas que operam em sua constelação. Perceba-se, apenas a título de curiosidade, que Gilles Deleuze (1925-1995) e Jacques Derrida (1930-2004) estavam na primeira infância, e Jean-Luc Nancy sequer havia nascido, isso para ficarmos apenas em alguns dos pensadores que fundamentam os conceitos e se debruçam sobre o que conhecemos como pós-moderno. A máquina do tempo tem suas façanhas e suas extemporaneidades.

Navegar no dorso fraturado do tempo e buscar entender as fustigações teatrais feitas por Flávio de Carvalho requer cuidado e atenção, pois é fato, e tratarei disso adiante, que tanto a arte quanto a vida do artista, ambas intempestivas, sobretudo na arte teatral, ainda não foram devidamente investigadas. Em todas as invenções e incinerações poéticas praticadas pelo artista é possível verificar que predomina a noção do estudo corpóreo vinculado à ideia de transgressão, de ruptura e fissura com as manifestações vigentes, tanto as sociais quanto as artísticas.Seja na pintura, na arquitetura, nos desenhos ou em suas intervenções, o corpo e sua presença como ato poético está sempre sendo observado e discutido. Não cabem catalogações ou encaixotamento, pois como bem observou Luiz Camillo Osorio, “ele optou por uma marginalidade e uma dispersão criativa que dificultam sua inserção histórica.” (OSÓRIO, 2005, p. 10)

(41)
(42)

CAPÍTULO II - REFORMAR, DEMOLIR: AS IDEIAS TEATRAIS DE FLÁVIO DE CARVALHO

O REI (para o ministro) – Já deste as providências que te recomendei ontem sobre os indigitados para a nova conspiração que contra mim se forja!?15

Neste capítulo, tenho por propósito estabelecer aproximações das ideias teatrais de Flávio de Carvalho com alguns dos principais pensadores e renovadores da arte teatral, notadamente com Meyerhold, Artaud, Craig e Appia. O objetivo aqui não é o de fazer paralelos históricos ou comparações de época, mas adentrar nos textos teóricos desses autores e relacioná-los com os escritos de Flávio de Carvalho. Sejam os escritosmanifesto presentes no livro A Origem Animal de Deus ou aqueles publicados em jornais. O que faz com que um discurso ou pensamento se cristalize e passe a ser referência de época? Quais os critérios que o dispositivo histórico elenca para conferir a esta ou aquela corrente de ideias a condição de pensamento matricial? A serviço de que/quem a estrutura dos conceitos erigidos como sólidos e válidos se colocam? Como incorporar no meio social, sem perder a referência crítica, o discurso dissonante?

Tanto Pierre Bourdieu, em A Distinção, publicado na França no final dos anos de 1970, quanto Zygmunt Bauman, em A Cultura no Mundo Líquido Moderno, impresso no início da segunda década do século XXI, exploram os modelos e as apropriações dos discursos culturais a serviço da ordem social que, em sua grande maioria, não toleram a dissonância.

No livro A Cultura no Mundo Líquido Moderno,o pensador polonês Zygmunt Bauman (2011), em diálogo com Pierre Bordieu, analisa o que considera uma questão fundamental a ser pensada no processo de afirmação dos discursos e das estéticas culturais. Trata-se da legitimação do que vem ou não a ser erigido ao estatuto de cultura. Afinal, como e por que se determina o que é e o que não é cultura e arte? Pierre Bourdieu (1987) fez longa análise sobre o papel de coerção social exercido sob o pretexto da defesa de um homem esclarecido, culto, isto é, a defesa de um homem iluminado. Bourdieu defende a tese de que no decorrer da história muitas diásporas foram criadas sob as garras da cultura — a maior delas é o uso da cultura como espaço de afirmação de fronteiras, além de “assinalar diferenças de classe e salvaguardá-las: como tecnologia

(43)

inventada para a criação e proteção das divisões de classe e hierarquias sociais.” (BAUMAN, 2011, p. 10)

Bauman vem defendendo a tese de que cada vez mais a fronteira entre “alta cultura” e “baixa cultura” está borrada e diluída, embora seja evidente a coexistência de grupos defensores da hegemonia dos que sabem, dos que conhecem e dos que apreciam cultura e arte sobre os filisteus e a plebe ignara sem gosto e sem senso estético. O caráter de nobreza atribuído a tudo o que é cultural a entronou num pedestal celeste e a distanciou do cotidiano das pessoas; por isso, só alguns eleitos podem alcançar a musa. O conceito de cultura vinculado a algo solene e nobre, mesmo com todos os argumentos apontados pelo pensador polonês, ainda permeia os nossos dias. Pautada pela “existência de uma divisão entre os educadores, relativamente poucos, chamados a cultivar as almas, e os muitos que deveriam ser objeto de cultivo.” (BAUMAN, 2011, p. 13) Agora, defende Bauman, a vida está imersa no mundo líquido que ignora por completo a ideia de doutrinar as multidões, pois “a cultura hoje se assemelha a uma das seções de um mundo moldado como uma gigantesca loja de departamento em que vivem, acima de tudo, pessoas transformadas em consumidores”. A “fantasia” não é mais a de cultivar espíritos, mas a de arregimentar público que tenha interesse múltiplo, pois o que importa agora é retirar da prateleira, o mais rápido possível, o sucesso vigente, para que ele abra espaço para seu antecessor. No caso de Bourdieu, o que se pode afirmar é que ele capturou a cultura no “seu estágio homeostático.” Isso equivale a dizer, como detectou Bauman (2011), que ela “foi transformada de estimulante em tranquilizante” (p. 16). É contra este estado de homeostasia da cultura e da arte, contra este efeito tranquilizante e apascentador que Flávio de Carvalho (1899-1973) vai insurgir na cena do teatro brasileiro. Ele propôs mudanças radicais que se distanciaram, na época, da moeda corrente no campo cultural. O crítico de teatro Sábato Magaldi, na apresentação do seu livro Panorama do Teatro Brasileiro, já expõe, de forma acertada, que “talvez apenas uma verdadeira História do Teatro Brasileiro, realizada por vários estudiosos, possa satisfazer a legítima curiosidade dos leitores” (1997, p. 7). De um modo geral, as histórias do teatro brasileiro transitam por faixas hegemônicas e por discursos solidificados. Quando o assunto é a chamada modernização do teatro brasileiro, os experimentos de Álvaro Moreyra e de Renato Vianna figuraram como militantes na transformação estética da cena, ainda que tenham mantido alguns princípios do teatro que combatiam, tais como exercer a prática teatral de modo empresarial e ver no texto o eixo central do teatro.

(44)

propostas e pensamentos tangenciam as de Craig, Artaud, Appia, Meyerhold e de Tadeuz Kantor.16Seus experimentos teatrais e culturais, sendo que os principais são a Experiência Nº 2 (1931); a criação do Teatro Experiência e a montagem da dramaturgia O Bailado do Deus Morto (1933), a fundação do Clube de Arte Moderna (1932-1933) e a sua Experiência Nº 3 (1956), somados à escritura dos livros Experiência Nº 2, Os Ossos do Mundo, A Origem Animal de Deus e A Moda e o Novo Homem, que serão analisados no decorrer desta dissertação, comprovam seu programa e sua convicção da necessidade de transformar a arte cênica brasileira, de dar a ela um destino mais vivo.

Pretende-se arrancar Flávio de Carvalho, no que diz respeito ao teatro, do campo do exotismo em que ele foi encaixotado.17Por isso, neste capítulo, apresento as principais ideias teatrais de Flávio de Carvalho, fazendo conexões necessárias e possíveis com os pensadores anteriormente mencionados, demonstrando a constante insatisfação dele com o teatro vigente em sua época, tão somente pelas suas proposições.

Importante dizer, como primeiro passo, que não se pretende, com este trabalho, demolir, pontuar acusações ou justificativas para o esquecimento de Flávio de Carvalho na história do teatro brasileiro. O que interessa, em essência, é a força de seus ideais e experimentos. Jacó Guinsburg e Rosângela Patriota, no livro Teatro Brasileiro: Ideias de uma História, trabalham com a perspectiva de “ideias-força”, que ganham hegemonia num certo período, e acabam por ampliar modos e práticas teatrais. Antes de tudo, o que importa aqui é capturar a força contida nos trabalhos de Flávio de Carvalho. Também não se trata de buscar um lugar, uma caixa, um modelo, mas sim de comprovar a força matricial de sua obra.

O teatro encontra-se fechado, o palco vazio, as cortinas cerradas. Vai-se ao jogo. Embora, como afirmam Bourdieu e Bauman, a petrificação de um discurso passe por uma sucessão de códigos e jogos de poder, sempre há um ponto de luz distando, um segundo sol se mostrando entre uma e outra teoria. O final do século XIX e o início do século XX

16 Vou, no decorrer deste trabalho, relacionar as ideias e realizações de Flávio de Carvalho a estes

pensadores, com ênfase nos seguintes livros Da arte do teatro, de Craig; O teatro e seu duplo, de Artaud; A obra de arte viva, de Appia; Do teatro, de Meyerhold e O teatro da morte, de Kantor.

17 Flávio de Carvalho é praticamente excluído das histórias do teatro brasileiro e, quando analisado, não

ultrapassa a casa de duas páginas. Exemplificando: em História do Teatro Brasileiro, de Anchieta a Nelson Rodrigues, de Edwaldo Cafezeiro e Carmem Gadelha; Panorama do Teatro Brasileiro, de Sábato Magaldi;

História do Teatro Brasileiro, de José Galante de Souza; Teatro no Brasil, de Ruggero Jacobbi e Pequena História do Teatro no Brasil (quatro séculos de teatro no Brasil),ele sequer é citado. Já Gustavo Dória, em

Referências

Documentos relacionados