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CAPÍTULO IV ASPECTOS INOVADORES DA MONTAGEM DE O BAILADO DO DEUS

4.1 VOZ E VOCALIDADE

Imagem 14. Montagem de O Bailado do Deus Morto, 1933, direção de Flávio de Carvalho.

Em O Bailado do Deus Morto, como já apresentei, o que está em questão não é o texto literário e nem o propósito de erigir uma dramaturgia sólida e que resista para além do corpo e da voz. É uma dramaturgia construída para o corpo da voz, para o corpo sonoro. Corpo este muito já teorizado por Paul Zumthor, sobretudo nos livros Escritura e

nomadismo e Performance, recepção, leitura. A palavra ataca o outro, ela se corporifica no canto, na fala. Os ritos tribais e mesmo os transes vocais religiosos, por exemplo, costumam entrar em outra estrutura da linguagem.

Estrutura essa que suplanta ou suprime a própria língua e enterra a gramática. Paul Zumthor vai chamar esse processo de “indiferença relativa à palavra” (2005), que é característica do corpo poético e da voz no canto. A palavra e a fala, neste contexto, perdem por completo o seu uso referencial. A fala ordinária, comunicativa é abandonada para que resida na voz uma potência poética. Aqui cabe lembrar que é na voz que a poesia encontra sua primeira manifestação. A genuína estrutura da poesia é a voz.

A tríade corpo, voz e presença vai permear grande parte dos estudos de Paul Zumthor, que ao começar sua pesquisa tem por objetivo construir o conceito de vocalidade, isto é, buscar o corpo da voz e a sua relação com a recepção da palavra e do canto no âmbito puramente sonoro. Mas não apenas isso, analisar como o impacto vocal do emissor reverbera no receptor. É a partir desses fundamentos que ele irá sedimentar a sua teoria da performance e, paradoxalmente, identificar a presença da voz.

As regras da performance – com efeito, regendo simultaneamente o tempo, o lugar, a finalidade da transmissão, a ação do locutor e, em ampla medida, a resposta do público – importam para comunicação tanto ou ainda mais do que as regras textuais postas na obra na sequência das frases: destas, elas engendram o contexto real e determinam finalmente o alcance. Habituados como somos, nos estudos literários, a só tratar do escrito, somos levados a retirar, da forma global da obra performatizada, o texto e nos concentrar sobre ele. A noção de performance e o exemplo dos folcloristas nos obrigam a reintegrar o texto no conjunto dos elementos formais, para cuja finalidade ela contribui, sem ser enquanto tal e em princípio privilegiada. (ZUMTHOR, 2007, p. 34)

O corpo não transmissor da linguagem escrita está no centro do debate para Zumthor. Ao fazer da palavra um objeto fixado nas páginas, a tradição literária impõe um novo modo de percepção, porque mais que a presença do corpo e da respiração do falante, agora o leitor estará diante de signos, de espaços vazios que oferecem e exigem à experiência tátil e visual outra perspectiva que a imposta pela tradição oral. No caso d'OBailado do Deus Morto, enquanto estrutura gráfica, é importante não perder de perspectiva que é o próprio Flávio de Carvalho quem vai dimensionar o caráter oral de sua dramaturgia já que ele cria, com o livro A Origem Animal de Deus, todo o arcabouço teórico que sustenta a peça e alguns aspectos da montagem. A foto anterior permite analisar a busca de uma expressão vocal diferente. Saliento que, ao fundo, um ator toca o bumbo, enquanto à frente, com movimentos ampliados, os atores utilizam níveis distintos do palco (chão, meio e alto). A expressão do corpo, o figurino branco e a iluminação refletida nas máscaras de alumínio ‒ muito parecidas com as máscaras tribais que tanto

influenciaram Pablo Picasso, bem como a presença espacial do corpo na cena, pois muitos dos atores estão com os corpos direcionados para o totem de alumínio ao centro do palco e não dirigidos aos espectadores ‒ mostram que a voz parece estar no centro da cena. Não se trata da voz lapidada, da oratória limpa, mas sim de grunhidos esparsos de nítida lamentação. É o som das vísceras que precisa preencher o espaço.

É relevante pontuar que o livro A Origem Animal de Deus parte do argumento de que deus é a imagem do homem, pois foi pelo homem criado. Uma vez detectado isso, passo a analisar o caráter antropomórfico e antropofágico da existência e do nascimento de deus. Sua tese principal é a de que é “no aparelho digestivo onde nascem os deuses do mundo”. (CARVALHO, 1973, p. 9) Primeiro o homem, em combate constante com os animais, passa a venerá-lo, porque o embate constante à luta pelo alimento e a necessidade de sanar a fome levam o homem a divinizar o seu objeto de caça. O mesmo ocorrerá com os vegetais, num momento posterior. Nisso há um dado importante que é a evocação da importância da boca e do som emitido por ela. Para Flávio de Carvalho é nesse momento que os rituais se sedimentam. Por isso, em parte, na dramaturgia construída por ele tanto a voz quanto a devoração ocupam espaço fundamental:

O orifício de ingestão de alimentos, a boca, assume grande importância na eclosão social. A boca é usada para o beijo, a fala, a careta e o gesto oral. Observa-se que os mamíferos subumanos e a criança usam a boca para examinar, atacar e manipular. (CARVALHO, 1973, p. 21)

Não por acaso o autor d'O Bailado do Deus Morto fala em gesto oral, pois sua dramaturgia e montagem estão voltadas para o gesto oral, para o rito, para o coro e para a importância da corporeidade da voz. Nesse sentido, conforme já explorei anteriormente, sua dramaturgia se apresenta como uma escritura que está na contramão do texto literário e da dramaturgia vigente. O que está em jogo é a ideia, o pensamento, a palavravirgem a serviço da cena. Isso é também afirmado por ele no seu livro-manifesto:

Só após ter controlado a amnésia, a paramnésia e a hiperamnésia teria ele capacidade de perceber em forma de ciclo as alterações climáticas e suas consequências. Após esse controle, ele estaria então apto a executar o seu bailado mínico representando as estações e o surto da vida que libertaria da fome. É o seu primeiro teatro. (CARVALHO, 1973, p. 23)

A paramnésia é a faculdade de ampliar o uso da palavra e obtê-la com repetições; no entanto, com flutuações de significações, muitas vezes, consiste na lembrança ou na

memorização apenas do signo gráfico ou do som sem que haja na emissão um significado apreendido pelo emissor. Algo como se a palavra, ou o “gesto oral”, figurasse no inconsciente. Apesar disso, a hiperamnésia consiste em uma espécie de recobro coletivo de uma vivência ancestral que permite ao homem reconstruir o seu “bailado mínico”. Flávio de Carvalho propõe tanto no texto como na sua montagem uma busca do homem em sua margem gutural, em sua presença vocal, o que o coloca em plena consonância com as pesquisas de Zumthor:

A voz é uma coisa. Ela possui plena materialidade. Seus traços físicos são descritíveis e, como todo traço do real, interpretáveis. Daí os múltiplos simbolismos, pessoais e mitológicos, fundados nela em seu órgão, a boca, "cavidade primal" como escreveu René Arpad Spitz: temática oralidadeincorporação, beber-comer- amar-possuir, todas as manifestações orais da relação criança com sua mãe. A voz, índice erótico. (ZUMTHOR, 2014, p. 83)

As máscaras, os instrumentos de percussão e a presença do corpo ‒ note-se que o corpo que Flávio coloca em cena é o corpo negro ‒ são elementos que funcionarão, na montagem de 1933, como ato de transgressão, mas sobretudo porque estão no palco sob o signo erótico e ritualístico, pois é o rito da devoração, da antropofagia e a quedaretorno de deus à condição de homem que estão em questão n'O Bailado dirigido por Flávio de Carvalho, que também assina o vestuário, o cenário e a coreografia. A música foi pensada por Henrique Costa, Nonê de Andrade, filho de Oswald de Andrade, e pelo próprio Flávio, que fez questão de supervisionar cada detalhe da encenação.

O aspecto vocal está o tempo todo presente e no centro da questão. Importa projetar o corpo em seu estado de expressão primitivo, em que a voz tem estatuto de materialidade, ou, como afirma Zumthor, vocalidade e expressão física. E Flávio de Carvalho não deixa de analisar este corpo-primitivo à luz dos primeiros bailados, nos quais a presença “circular e ondulante do corpo e das imagens, surge como substituto o monotonal no som e no movimento.” (CARVALHO, 1973, p. 25)

Tudo isso torna evidente que a escritura da dramaturgia e a montagem d'O Bailado do Deus Morto diferem, em muito, da dramaturgia e dos espetáculos predominantes em sua época e, em certo sentido, de grande parte da produção atual. Porque a partitura textual e sua gramática são motivos para o corpo, a voz, a imagem e a teatralidade. Um outro aspecto de meu interesse, ao verificar que a vocalidade ocupa espaço decisivo na montagem, é a percepção que Flávio de Carvalho estabelece entre o homem, os ritos e a linguagem, aqui no sentido cognitivo de articular o pensamento e

poder espelhar-se e pensar dentro do mundo a partir da expressão verbal. Ao rever as fotos, é possível imaginar o peso das máscaras de alumínio e as dificuldades que elas devem ter imprimido à articulação da fala e, claro, pode-se imaginar que elas tenham efeitos modificadores da expressão vocal, já que algumas delas possuem um espécie de abertura similar aos alto-falantes ou cones, que ampliam as ondas sonoras. Flávio de Carvalho aponta para a busca da palavra poética em estado original, tal qual fez Paul Zumthor em seus estudos, e, com isso, joga o homem em seu estado expressivo bailante.