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A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX E A RADICALIDADE PERFORMÁTICA

CAPÍTULO I FLÁVIO DE CARVALHO – O ARREBOL DE UM TEMPO E AS TEMPESTADES

1.2 A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX E A RADICALIDADE PERFORMÁTICA

Imagem 5. Flávio de Carvalho se exibindo para os jornalistas durante o percurso da

Experiência Nº 3, 1956.

Imagem 6. Flávio de Carvalho atuando na sua Experiência Nº 3, nas ruas de São Paulo, 1956.

Em 1956, Flávio de Carvalho apresentou a sua Experiência Nº 3, o chamado New Look, que vai mostrar um modelo de vestimenta em consonância com o clima e com a vida do

homem tropical. Neste mesmo ano, nos Estados Unidos, eclodia a Beat Generation13, também herdeira dos surrealistas, que unia rebeldes e transgressores num movimento de resistência à sociedade capitalista, ao homem pasteurizado e ossificado da vida mergulhada em preconceitos e amarras. O poema Howl, de Allen Ginsberg era lido numa galeria de arte em 1956. O romance On The Road, de Jack Kerouac, é de 1957 e Naked Lunch, deWilliam S. Burroughs,de1959; na esteira da rebeldia e do escândalo estão ainda Gregory Corso, Lawrence Ferlinghetti, Neal Cassady, entre outros, que avolumam o time de rebeldes e detonadores da crítica à “sociedade-morta”. Os existencialistas, sobretudo na França, e ícones da música e do cinema, como James Dean e Elvis Presley, cada um a seu modo, vão alimentar e alicerçar o movimento da contracultura dos anos de 1960 e 1970.

Imagem 7. Foto do espetáculo Bailado Dorinha Costa, com música de Camargo Guarnieri e cenografia de Flávio de Carvalho. Teatro Municipal de São Paulo, 1950-51.

13 Os livros Geração Beat (2009)e Os rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico (2014), escritos pelo

poeta e tradutor Claudio Willer, consistem em um rigoroso estudo deste movimento e são leituras fundamentais para se compreender e aprofundar a extensão da vanguardas, sobretudo do Surrealismo, nos anos de 1960 e 1970.

Imagem 8. Foto do espetáculo Ritmos de Prokofiev. Cenografia de Flávio de Carvalho, 1956.

Foi no fervor desses acontecimentos que Flávio de Carvalho publicou, no jornal

Diário de São Paulo, uma série de artigos, reunidos em 2010 sob o título de A Moda e o Novo Homem, no qual discute arquitetura, urbanismo, o homem e sua relação com a cidade, a casa e, finalmente, o homem e a vestimenta. Após a escritura, Flávio de Carvalho partiu para a ação. Em 18 de outubro de 1956, saiu pelas ruas de São Paulo vestido de saia, blusão, meia-calça e uma sandália com aberturas nas laterais e no peito do pé. Mais uma vez se faz necessário pontuar todo o caráter preparatório do evento que culminou na sua Experiência Nº 3.

O New Look foi construído e divulgado paulatinamente. São muitas as etapas do novo empreendimento: ele escreve sobre a necessidade de a cidade se confrontar com o “homem nu”; desenha as peças do vestuário que, em sua concepção, melhor se adaptam às necessidades do homem dos trópicos; constrói a indumentária; cria um roteiro específico que inclui visita a redações de jornais e a entrada em um cinema; divulga o acontecimento nos periódicos; e, por fim, realiza o evento, reunindo, sem exageros, uma verdadeira multidão de curiosos.

A intervenção de 1956 se fundamenta num ato de consciência cênica e ultrapassa o caráter crítico dos modos como o homem paulistano se veste em plena primavera tropical. É evidente o caráter de espetáculo, já que Flávio de Carvalho prepara a cidade para receber sua nova invenção. No processamento e no desencadeamento da ação, propõe um jogo com a cidade e vai fazendo das ruas e dos prédios o cenário para que o jogo comece. Como já havia feito em sua Experiência Nº 2, calcula seu itinerário e convoca os espectadores para ocupar a cidade. Em novembro do mesmo ano, faz “exposição individual na Galeria L’Obelisco, em Roma, onde também lança o seu New Look, com a adesão de Giuseppe Ungaretti e Alberto Moravia.” (TOLEDO, 1994, p. 760) A repetição do evento, em outro país, reafirma o caráter representacional de sua ação.

Em 1958, encampa mais uma batalha, agora com o olhar debruçado sobre o cinema. Com o objetivo de realizar um filme, que recebe o título de A Deusa Branca, participa de uma expedição do então Serviço de Proteção ao Índio, em direção ao Alto Amazonas. “Um dos objetivos dos expedicionários era localizar os remanescentes da lendária tribo do Cibrei, que, pelas narrativas do Frei Carvajal, são índios louros e de olhos azuis.” (SANGIRARDI JR., 1985, p. 65) A viagem em si se torna digna de roteiro de cinema. Como sempre, para Flávio de Carvalho, o processo e o jogo são mais importantes que a realização da obra. Fez teste de elenco no Rio Grande do Sul, comprou muitos objetos, que pretendia doar aos índios, negociou a sua ida e, claro, fez novo estardalhaço na imprensa, pois, afinal, estava prestes a realizar um filme e localizar a deusa branca, que provém de uma lenda fictícia.

E aqui existe um ponto a ser discorrido com atenção. Flávio de Carvalho sabe que a narrativa que fala sobre Umbelina Valéria ‒ a mulher loura que, ainda na infância, foi capturada e passou a viver na selva com os índios aderindo às suas linguagens e aos seus costumes ‒ não passava de ficção. No entanto, a história representa um ato antropofágico pleno e está em sintonia com as proposições do nosso Modernismo, sobretudo a turma que gravitava em torno de Oswald de Andrade, porque não se faz necessário apenas deglutir a cultura europeia, adaptá-la e fugir da cópia da cópia, mas também buscar a nossa imanência ancestral, isto é, a pedra fundamental da nossa identidade civilizatória; mais que entender os ritos indígenas, Flávio de Carvalho pareceu estar nos dizendo que é preciso ser índio. Não há como não admitir o caráter representacional da empreitada, já que o ponto de partida é uma ficção. Mais uma vez o artista está apontando que está apontando maior interesse no processo que no produto propriamente dito.

Então ele contrata atores, compra equipamento cinematográfico, enfrenta a burocracia para levar toda a equipe, constrói caixas específicas para resguardar os rolos de fitas da umidade e parte em comboio rumo ao rio Negro. Como se pode supor, nada ocorreu como o previsto: o filme não saiu, mas o evento não passaria sem episódios dignos da sétima arte:

Durante a incursão pela floresta, Flávio de Carvalho teve vários desentendimentos com o comandante da expedição, um coronel da SPI (Não sei se vocês já repararam, mas tem sempre um coronel na jogada). O coronel interferia nos trabalhos, perturbando. Queria que, a cada parada, filmassem o hasteamento da bandeira, com discursos etc. Dizem, ainda, que dava em cima das mulheres do grupo e uma delas, por haver recusado as propostas amorosas, foi deixada sozinha numa ilha, até anoitecer. Então Flávio de Carvalho, que vinha sofrendo atos de sabotagem e ameaças de abandono, acabou explodindo. Amotinado, entrincheirou- se num dos barcos e abriu fogo contra os demais navios da expedição, que

desciam o rio Demini; ao mesmo tempo, desafiou o coronel para um duelo a bala, mas ele não aceitou e foi se refugiar, trancado, no porão de seu barco. (SANGIRARDI JR., 1985, p. 68-69)

No entanto, a viagem não foi em vão, porque o filme era o pretexto necessário para novas pesquisas e aventuras. Volta da viagem com anotações etnológicas e observações antropológicas. Analisa e participa de ritos indígenas. Num desses ritos se integra à nudez da tribo e age como um verdadeiro arqueólogo que deseja construir uma cartografia plena e integrada ao objeto de sua análise.

Vêm os anos de 1960, e com eles a instauração da Ditadura Militar no Brasil e em outros países da América Latina; o Concretismo brasileiro dos irmãos Campos e de Décio Pignatari ganha corpo e se solidifica; o Tropicalismo nasce; a contracultura ganha força; Sartre está no auge; surge Herbert Marcuse; a França vive o maio de 1968. No teatro, Os Comediantes já haviam se tornado um marco histórico, em 1943, com a montagem de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues; o Teatro de Arena já está prestes a completar duas décadas; o Teatro Oficina surge e se afasta um pouco dos ideários políticos, marca característica do Teatro de Arena, e caminha para outra espécie de rebeldia, a rebeldia estética e poética.

Curiosamente, esses anos são mais calmos para Flávio de Carvalho, mas o artista continua inquieto, pintando, fazendo cenários para teatro e decoração para Carnaval. Ilustrou, em 1964, a nova edição do livro Memórias Sentimentais de João Miramar e, em 1966, Poesia Reunida, ambos de Oswald de Andrade. Participou de todas as Bienais de São Paulo, evento que ajudou, ao lado de Ciccillo Matarazzo, a criar. A montagem do espetáculo O Rei da Vela, empreendida em 1967, pelo Teatro Oficina, mexeu com a sua vocação teatral e reaviva a necessidade de remontar a sua dramaturgia O Bailado do Deus Morto. Começa a discutir, com o Teatro de Arena, a possibilidade da montagem de sua peça. Até que, em 1972, o grupo aceitou a empreitada que teria direção de Luís Carlos Arutin, música de Walter Franco e cenografia de Helena Vilar. Ainda neste ano, organiza o livro A Origem Animal de Deus, onde publica, também, a sua peça O Bailado do Deus Morto e notícias sobre o Teatro Experiência, além de um manifesto teatral. Morreu em 1973, após publicar o livro. O Teatro de Arena, que já vem sofrendo com as ações da censura, aborta a montagem que estava em andamento.