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Sequelas do cárcere: discursos e trajetórias além das grades

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Academic year: 2021

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discursos e trajetórias além das grades

Resumo

O presente artigo tem por objetivo levantar reflexões acerca da trajetória e construção da subjetividade de quatro egressos do sistema penitenciário de São Paulo por meio de discursos e problematizações teóricas. Para essa pesquisa foi adotada uma metodologia qualitativa, tendo como proposta dar voz a esses indivíduos por meio de entrevistas semi-estruturadas. Assuntos recorrentes como trabalho, família, religião, estigma e sociedade foram notáveis em suas narrativas. Frente a isso, a pesquisa tem por proposta problematizar e dialogar com a fala dos egressos, no intuito de nos expor a importância de refletirmos suas condições como indivíduos inseridos numa sociedade que muitas vezes os torna invisíveis.

Palavras-chave

Egressos do sistema penal; Prisão; Pós-prisão.

Abstract

The purpose of this article is to reflect on the trajectory and construction of the subjectivity of four graduates of the prison system of São Paulo through theoretical discourses and pro-blematizations. For this research a qualitative methodology was adopted, with the purpose of giving voice to these individuals through semi-structured interviews. Recurrent subjects such as work, family, religion, stigma and society were notable in their narratives. In the face of this, the research proposes to problematize and dialogue with the discourse of the graduates, in order to expose us the importance of reflecting their conditions as individuals inserted in a society that often makes them invisible.

Keywords

Graduates of the penal system; Prison; Post-prison.

Luan Piani Pós-graduado em Sociopsicologia pela FESPSP (contato@luanpiani.com )

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“...A Justiça Criminal é implacável. Tiram sua liberdade, família e moral. Mesmo longe do sistema carcerário, te chamarão para sempre de ex presidiário...” O homem na estrada - Racionais MC’s

Introdução

Historicamente, as prisões têm por papel reprimir e punir aqueles que infringem as normais sociais. Durante a história a respeito do aprisionamento, sempre existiu um esforço para conter a tendência do homem ao crime pela utilização de técnicas intimidativas, como o suplício do corpo e a execução (FOUCAULT, 2014).

Ao longo dos séculos a prática do suplício foi trocada por aquilo que se pode entender como a pena que existe hoje, com propósitos mais corretivos que punitivos, intervindo sobre o corpo humano por meio de uma castração, treinando, tornando obediente, submisso, dócil e útil (FOUCAULT, 2014).

Quando uma regra é imposta dentro de uma sociedade, o indivíduo que venha a infringi-la pode ser visto como alguém desigual, de quem não se espera uma vida de acordo com as regras estipuladas por um grupo social. Esse indivíduo passa a ser encarado como um “marginal desviante”, alguém que está do lado de fora, para além das margens de determinada fronteira ou limite social (BECKER, 2008).

Com isso, a prisão se tornou peça essencial no conjunto das punições a esses desviantes, marcando assim um momento importante para a justiça penal: seu acesso à “humanidade”. A forma como foi constituído esse conjunto de sistema durante os anos, e como ele desenvolveu diversas linguagens subjetivas, nos aponta conflitos não só no sujeito encarcerado,

mas em toda uma sociedade que não soube ratificar maneiras de abordar esse sujeito (LAUERMANN, GUAZINA, 2013).

A sociedade pode classificar um ex-presidiário como um marginal desviante (outsider) mas antes de pensarmos como tal sistema de rotulação foi se constituindo, devemos também avaliar a sociedade que, por diversas formas, estigmatiza o ex-detento, sendo essa a “sociedade para a qual o sujeito retornará marcado por uma vivência que lhe imprimiu certo modo de lidar com a vida cotidiana” (LAUERMANN, GUAZINA, 2013, p.178).

O presente artigo traz como problemática a dificuldade de ser um egresso do sistema penal e suas dificuldades para reinserção na sociedade, sendo assim a pesquisa permeará sobre a trajetória de vida de quatro egressos do sistema penal paulistano, considerando-os não como um grupo jurídico, mais sim social, como indivíduos possuidores de trajetórias de vida marcadas pela passagem na prisão, a qual conseguiram reconstruir suas identidades na sociedade mesmo carregando consigo um rótulo de ex-presidiário (MADEIRA, 2012).

Segundo Ligia Madeira (2012), apesar da imensa quantidade universal de estudos relacionado ao tema prisão e encarceramento, existem poucos estudos que propõem realizar uma análise sobre a trajetória de vida pós-prisional, tendo em vista o processo de ressocialização e reintegração social dos egressos do sistema penal.

Muitos são os desafios que um egresso encontra em seu retorno a sociedade, sendo assim, essa pesquisa busca contribuir com a investigação dessa problemática, analisando suas trajetórias e seus processos de reintegração social, interpretando os pontos de vistas

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desses indivíduos considerados “marginais” por um passado já quitado com a justiça, permitindo aos leitores enxergarem essa grande massa de seres invisíveis à sociedade sob a ótica dos próprios egressos.

Discurso além das grades

A presente pesquisa teve por objetivo trabalhar uma abordagem qualitativa, aprofundando na compreensão dos fenômenos apresentado segundo a perspectiva dos próprios sujeitos, tendo por preocupação todas as significações das ações que envolvem as relações humanas que não se podem quantificar (MINAYO, 1994).

Conforme Elaine Guerra (2014), o objetivo do estudo qualitativo é envolver valores humanos que geram a partir de experiência e sentimentos, criando relações em ambientes versáteis onde particularidades culturais, econômicas, sociais e históricas não estão suscetíveis a controles quantificados, pois o homem é contrário aos objetos, o que reforça uma metodologia que considere essas afirmações.

Quatro egressos do sistema penitenciário residentes na cidade de São Paulo foram selecionados para esta pesquisa. Com eles, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com perguntas abrangentes sobre a problemática, no intuito de deixar os entrevistados mais a vontade e livres para expor suas experiências abertamente.

As entrevistas semi-estruturadas propõe perguntas formuladas, porém isso não limita uma abordagem mais livre sobre a problemática proposta (MINAYO, 1994). Sendo

assim, as perguntas se basearam em suas experiências pós-prisional, trabalho formal e a importância da religião e família em suas reintegrações sociais.

Fez-se o uso de um aplicativo digital para envio de mensagens instantâneas, concebendo aos entrevistados flexibilidade no tempo das respostas de acordo suas disponibilidades. As respostas foram enviadas por meio de gravação de áudio, arquivadas e transcritas para análise com o consentimento dos convidados.

Todos os nomes dos entrevistados aqui apresentados são pseudônimos, por ética às suas integridades, além disso algumas informações que tornassem passíveis de identificação foram excluídas. As entrevistas foram concedidas no mês de setembro de 2018 em dias e turnos alternados de acordo a disponibilidade dos convidados.

Os entrevistados tinham entre 25 e 40 anos de idade, sendo três negros e um branco, todos encontram-se morando com suas famílias na cidade de São Paulo. A maioria foi preso uma vez e apenas um deles não tem um emprego formal, o restante todos atuam com carteira assinada.

Abaixo está um quadro com informações características dos entrevistados com seus respectivos nomes fictícios.

QUADRO - Dados relevantes sobre os entrevistados Entrevistados Idade Cor Familia Profissão Tempo

total de reclusão

Nº de vezes preso Marcelo 40 anos Negro Esposa Gestor

ambiental 10 anos 4 Rafael 25 anos Branco Esposa e

filha Pedreiro 3 meses 1

Ricardo 32 anos Negro Pais e

irmãos Ajudante geral 4 anos 1 Samuel 35 anos Negro Esposa e Mecânico 3 anos 1

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Registrado todos os áudios dos entrevistados, foi realizada uma transcrição para análise mais profunda sobre as narrativas, a qual após diversas leituras foram organizados eixos similares dos quatro entrevistados categorizando para um melhor aprofundamento da análise. Entre as categorias percorre temas como, trabalho formal, religião, família, estigma e sociedade, porém esses temas não serão subdivididos, pois eles se articulam o tempo todo.

Marcelo tem 40 anos, foi um dos sobreviventes do massacre na Casa de Detenção de São Paulo, passou por mais de 25 penitenciárias de São Paulo e atualmente é gestor ambiental, casado, e tem como projeto social lecionar aulas de boxe para crianças de baixa renda na cidade de São Paulo. Ele nos revela alguns desafios na vida de um egresso:

Eu acho que a sociedade tem que ser menos preconceituosa por que a pessoa quando chega na porta de uma empresa para procurar emprego e ela tiver alguma coisa na ficha, ela automaticamente não é aceita, e para essas pessoas sobram poucas opções, a opção que lhe resta é retornar ao crime. (Marcelo)

Notamos na fala de Marcelo que quando um egresso não tem uma oportunidade de emprego após sua libertação, o mesmo encontra-se sem capacitação e estrutura para continuar longe do universo criminal. José Pastore nos diz que “não podemos generalizar dizendo que o desemprego é a principal causa do crime; nota-se que, quando um preso é libertado e se vê sem apoio material, o desemprego é um sério agravante” (PASTORE, 2011, p.33).

O apoio material muitas vezes negado pela sociedade é o mesmo privado pelo Estado que tem por comprometimento segundo a Lei n. 9.867, de 10 de novembro de 1999, que é prevê a instituição de cooperativas sociais para inserir as pessoas em desvantagem no mercado econômico através do trabalho,

visando a promoção da dignidade da pessoa humana e a integração social dos cidadãos.

Por essa lei discernimos que os egressos do sistema penal são indivíduos que necessitam de uma obtenção de trabalho como garantia para sua sobrevivência pós-prisão e a partir disso se reintegrar socialmente (CABRAL, SILVA, 2010).

O governo fala que dá todo apoio mas a gente não vê na prática, isso só está no papel, na ideologia. Eu falo por mim por que sou egresso e conheço vários outros que não tem essa oportunidade não, e ela é precisa, por que se não tiver ele não vai ressocializar. Ele vai fazer o que se está sendo excluído? A partir do momento que ele está sendo excluído ele vai meter o pé na porta pois é o que sobrou. (Marcelo)

As experiências vivenciadas pelos detentos durante o encarceramento, acabam não proporcionando nenhum tipo de apoio, utilidade ou integração fora do espaço prisional. Com isso, temos um sério agravante nas taxas de reincidência no Brasil, onde segundo dados do IPEA (2015) cerca de 70% da população carcerária após libertação retornou ao mundo do crime.

Muito dos fatores para esse alto índice de reincidência está vinculado as experiências e especialização ao mundo do crime dentro da própria prisão, o que lhes proporciona uma probabilidade maior de voltar atuar na esfera criminal.

Conforme Maria Lucia Karam (1995, p.37) “o sistema penal faz destes poucos selecionados pessoas mais descapacitadas ao convívio social e, consequentemente, mais aptas a cometer novos crimes e agressões à sociedade” (apud MADEIRA, 2012, p.29)

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As políticas públicas são uma das soluções importante para esse aporte material e social ao egresso, ela se torna um conjunto de medidas e ações sociais programadas pelo Estado no objetivo de melhorar e integrar diversas classes sociais e econômicas, principalmente de classes excluídas em suas variadas dimensões territoriais, sociais e culturais (VILLALOBOS, 2000 apud, MADEIRA, 2012). Os programas sociais são em sua maioria um favorável facilitador para a redução das desigualdades sociais, e não apenas para a diminuição da reincidência, mas para uma reintegração social legítima.

Samuel, atualmente com 35 anos, ficou recluso por 3 anos no sistema penal paulistano, teve em sua ficha passagens por 7 penitenciárias ao longo dos anos, hoje ele é casado, tem uma filha e trabalha como mecânico industrial em uma empresa na zona norte de São Paulo. Em sua narrativa ele nos aponta que recuperar um lugar no mundo do trabalho lícito é uma tarefa árdua para um ex-detento:

Eu entrei na empresa com muito medo de preconceito, tanto que entrei lá e fiquei 11 meses, pedi pra sair pra entrar em outra na qual eu estou hoje há 4 anos. Quem sabia da minha trajetória de vida era só a pessoa que me colocou lá dentro. (Samuel)

Em sua fala, Samuel revela como o medo e o estigma são algo rotineiro na vida de um egresso, quando este consegue uma oportunidade de emprego. Esse medo está vinculado a sua passagem pela prisão, o que estabeleceu em sua identidade uma marca de ex-presidiário que o acompanhará para toda a vida (MADEIRA, 2012). Erving Goffman (1988) afirma que a própria sociedade cria mecanismos de categorizar os indivíduos, pois os mesmo poderiam ter um fácil aceitamento em outros grupos, porém uma

marca que ele carrega do seu passado pode facilmente desviar atenção dos atributos que eles possuem hoje.

De modo geral, ao sentirem o preconceito que existe na sociedade, devido seus passados, os mesmos não se sentem confortáveis em relatarem a verdade a qualquer pessoa, muitos por medo de retaliações e sempre com questionamentos sobre “exibi-los ou ocultá-los?”, “mentir ou não mentir?”. Segundo Goffman (1988, p.52) “ao invés de encarar o preconceito contra si mesmo, ele deve considerar a sua aceitação involuntária pelos indivíduos que têm preconceitos contra o tipo de pessoa que ele pode revelar ser.

Dos 35 funcionários, só três pessoas sabem, e essas foram pessoas que viram meu dia a dia, viram meu pensamento, conhecem meu jeito de ser, conhecem a minha ideologia, então, na verdade, quando eles souberam da minha situação de ex-detento eles se espantaram: “não, mentira!”. Mas depois se alegraram em saber do ser humano que eu consegui me transformar em relação a esse sofrimento que eu passei. (Samuel)

Em seu primeiro trabalho pós-prisão, Samuel acabou não relatando para ninguém sobre sua trajetória, exceto à pessoa que o ajudou a colocá-lo lá dentro. Em sua passagem pela segunda empresa (na qual ele está hoje), se sentiu à vontade em compartilhar seu passado com três amigos de confiança, sendo bem aceito por eles, que presenciaram sua mudança.

Samuel em sua narrativa nos leva ao conceito de subjetividade devido ao seu ganho de humanidade e transformação pós período encarcerado. Sobre subjetividade nos apoiamos naquilo que cada um pensa, reflete, sente, e age com o mundo. As particularidades de cada sujeito trará sentido aos seus processos de sociabilidade ao decorrer de suas trajetórias, podendo

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ser interrompida e reconstruídas criando novas subjetividades ao longo do tempo (COMISSÃO, DE FORMAÇÃO TEÓRICA E. PRÁTICA, 2013).

Segundo Baratta (1999), durante o período de prizionização o detento sofre uma “desculturação, responsável pela sua desadaptação às condições de vida em liberdade, pela absorção de uma subcultura carcerária (apud MADEIRA, 2012, p.42). Ao dar acesso ao sistema prisional, uma subjetividade se rompe e outra se cria, abrindo assim uma nova subjetividade em seu ser, caracterizado pela submissão (FOCAULT, 2014). E após o cumprimento da pena, toda essa subjetividade está impregnada em seu corpo e na sua morla estigmatizadora.

Com o relato de Samuel de transformação conseguimos nos apoiar que a transformação de um sujeito após um processo de fragmentação de sua identidade pode estar relacionado a sua trajetória de vida em seu cotidiano, muito vinculado a sua maneira de ser, observar e responder de acordo suas experiências criada ao longo de sua história.

Pois conforme Bourdieu (2005), a trajetória demonstra uma série de posições sucessivamente ocupadas por uma mesmo agente num espaço social, “sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações que uniram o agente considerado” (apud MADEIRA, 2012, p.36).

Me mudei para essa empresa e continuei na vida com medo, com muito medo, pensamentos, medo de preconceito, medo do amanhã. Eu mesmo quando entrei nas empresas não me pediram antecedentes criminais, mas meu medo era esse: “poxa se eles pedirem antecedentes criminais, e aí, o que vai acontecer?” Nossa eram muitos e muitos medos, muitos monstros criados por mim. (Samuel)

A vida pós cárcere traz muitas sequelas sociais e psicológicas ao egresso, pois ao retornar ao convívio social, esses indivíduos enfrentam uma “infinidade de dificuldades e misto de sentimentos como angústias e anseios, além de queixas, dúvidas e demandas; e tendo ainda como um entrave a falta de referências para enfrentar todas estas situações” (LOPES, 2013, p.65)

Além da probabilidade de o interno se tornar mais violento a partir da sua experiência no complexo carcerário, ele vivencia opressões morais após a sua libertação, o egresso sofre dificuldades em desempenhar novos papéis sociais. Muitas vezes, há o afastamento dos amigos, dos familiares e da vida laboral, pois poucas são as pessoas que confiam nos indivíduos que se submeteram às experiências carcerárias (BITENCOURT, 1993).

Sentimentos como os de insegurança, medo e submissão são revivenciados; a sociedade torna a excluir aquele que já fora excluído, e diante isso se instaura seus medos particulares, já que o indivíduo não se percebe mais como parte de um grupo social (LEONESY, 2006).

Já Ricardo com 32 anos, ficou preso durante 4 anos no sistema penitenciário de São Paulo, hoje trabalha registrado como ajudante geral, solteiro e realizado com seu momento profissional e pessoal. Em seu relato ele conta um pouco sobre a falta de confiança que a sociedade tem com um egresso.

Quando você sai da prisão é muito difícil as coisas, por que são poucas as pessoas que confiam em você, são poucas as portas que se abrem para você, ou seja, a tendência de você voltar para o crime é bem mais fácil do que você arrumar um emprego, por que é muito difícil você reconquistar tudo de novo, entendeu? Ainda mais tendo passagem. (Ricardo)

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Superar a desconfiança social é um desafio marcante na vida de um egresso pois o maior e pior obstáculo de quem passou pelo cárcere está no preconceito e nas dúvidas que o indivíduo gera para aqueles que estão ao seu derredor . Por ter um passado reconhecido por erros dentro das normas da sociedade, e não pelos seus adjetivos e potencialidade, o egresso do sistema penal se torna excluído (LOPES, 2013).

Por exclusão definimos um indivíduo que teve sua cidadania negada, atribuída as condições inferiores de sujeito. “O excluído é posto numa categoria de ‘não integrante’ de ‘não fazendo parte’ da sociedade, enfatizando o estigma e discriminação para com este sujeito banido socialmente. (LOPES, 2013, p.75).

No começo, quando eu sai, até então eu fiquei meio perdido, eu não sabia no que ia trabalhar, eu não tinha uma profissão definida, até mesmo porque eu tinha acabado de sair, eu tinha que me adaptar novamente à sociedade. Então difícil é, mas nada é impossível. Eu já trabalhei com pintura, com jardinagem, então essas coisas assim eu já sabia.... (Ricardo)

Quando um egresso tem em sua trajetória experiência com alguma profissão, isso vem a contribuir com futuras oportunidades que não sejam no trabalho formal, muitos deles acabam conseguindo algum trabalho como autônomo para se sobreviver.

Por mais que o trabalho possa a ser informal, ele é fundamental na reintegração do sujeito, pois ele supre suas necessidades sociais como moradia, alimentação, vestuário, locomoção. Acaba de certa maneira elevando a autoestima do indivíduo, sendo um amplo incentivador a inclusão dentro das redes sociais que ele estiver.

(LOPES, 2013).

Curiosamente, os egressos possuem uma trajetória de vida muito atrelada ao trabalho, pois para

muitos, o seu início ao universo criminal é fruto de um abandono e frustração ao ideal de trabalho, muito em prol da simbolização de uma vida de consumo mais bem sucedida. Após a liberdade, o ideal de trabalho volta a tona, pois para reconquistarem suas dignidades perante a sociedade, o fator trabalho se torna peça chave. Segundo Antunes (2006, p. 175) citado por Madeira (2012, p.239) “uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho”.

A gente tem que pensar o seguinte, se a gente está com mais de 13 milhões de desempregados, pais de família, quem vai querer empregar um ex-presidiário? A não ser o crime organizado, por que para eles essa mão de obra é o que eles querem. (Marcelo)

Toda estratégia para diminuir a reincidência pela inserção no mercado de trabalho tem muita importância, pois o trabalho tornou-se um dos fatores preponderantes na reconstrução da dignidade e reingresso na sociedade. (PASTORE, 2011).

Um tema importante levantado por Marcelo em sua narrativa é sobre o problema atual do desemprego no país, calculado em 12,7% (IBGE, 2019) em média no período de abril de 2019, o que faz com que muitos egressos que não tiveram oportunidades no mercado de trabalho sejam aliciados pelas vantajosas propostas do crime organizado.

Outro fator importante a ser levantado a cerca da inserção dos egressos no mercado de trabalho está vinculado a pouca escolaridade e a rara qualificação profissional, que é comum a essa classe. (LOPES, 2013). Muitos egressos sequer completaram o ensino médio, conforme dados do INFOPEN (2016, p.33) 51% da massa carcerária no Brasil não completou o ensino fundamental, 17, 75% ainda não acessou o

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ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino fundamental, e apenas 9% da população prisional brasileira concluiu o ensino médio.

Esses são números que entravam completamente a inserção dessa classe no mercado de trabalho com carteira assinada, e como citou Marcelo, essa classe se torna uma presa intrigante ao crime organizado que cada vez mais busca suas expansões territoriais (BIONDI, 2010).

Para Rafael de 25 anos, que atualmente trabalha como pedreiro e teve uma passagem de três meses no Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Paulo, nos relata a importância que a família teve em sua vida.

O que mais me ajudou nessa minha recuperação foi minha família, a peça chave disso tudo foi a minha esposa, logo em seguida ela engravidou e veio minha filha e hoje eu sou o homem mais feliz do mundo pelo fato de eu ter caído na real e visto que as coisas que eu fazia não eram boas para mim e nem para as pessoas que estavam a minha volta. (Rafael)

A influência de sua esposa e a vinda de uma herdeira ao mundo, foram alguns dos fatores marcantes que o fizeram repensar atos que faziam mal não só a ele, mas às pessoas que o amavam, inclusive o amadurecimento que o nascimento de sua filha lhe trouxe e que lhe fez se questionar sobre qual futuro ele gostaria que ela tivesse ao seu lado.

Pierre Bourdieu (1999) define o capital social como um meio de pertencimento a redes de relações sociais, se representando como um grande conjunto de riquezas em função desse pertencimento desse intercambio de relações. Entendemos que um dos valores do capital social na vida de um egresso

é o acolhimento e bom relacionamento com seus familiares (apud MADEIRA, 2012).

Para Bourdieu (1999, p.67-68), conforme citado por Madeira (2012, p.237) “o capital social não é uma dado natural, mas sim, produto de um trabalho de instauração e de manutenção do que é necessário para produzir e reproduzir relações duráveis e úteis, aptas a proporcionar lucros materiais e simbólicos.

Assim como aconteceu com Rafael, a esposa de Samuel foi fundamental e peça chave em sua reabilitação. Ela não desistiu dele e esteve presente em todas as visitas, acreditando que ele sairia de lá apto a se reintegrar ao convívio social.

Um dia ela foi me visitar e eu tinha feito uma besteira, uma das piores besteiras da minha vida, que foi entrar para o Primeiro Comando da Capital, e ela ia me visitar no intuito de que um dia eu pudesse voltar para sociedade, voltaria para os braços dela, que quando eu voltasse pra rua, eu voltasse com a cabeça fundamentada, do jeito que hoje eu me encontro. Não tenho dúvidas que o pensamento dela era esse, aí fiquei com vergonha de falar para ela, fiquei com receio de falar para ela que eu entrei para a ‘caminhada’ - essa é a linguagem do crime. Então eu estava meio assim de falar para ela, mas o inevitável aconteceu, muitas pessoas iam me requisitar, me chamar no meio da visita, “oh, irmão, resolve essa situação” e ela falou “poxa, você está muito requisitado” e ai eu tive que falar para ela. Foi quando eu falei para ela todo o acontecido, que eu entrei para caminhada, assim e assim. Eu lembro como se fosse hoje, ela olhou para mim, chorou, chorou bastante obviamente, e falou “o que você está fazendo da sua vida? e tal”, aí no final da visita eu falei para ela, “poxa, mas fica à vontade se você quiser ir, eu não vejo muita perspectiva para mim”. Ela olhou dentro dos meus olhos e falou bem assim: “eu não vou desistir de você, eu te amo! Estou com você e você há de voltar para a sociedade”.

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Sabe, aquilo me deu um choque de ânimo e depois outros acontecidos e diversos apoios dela, diversos apoios de amigos, familiares e isso me fez pensar de forma diferente, então se a família tem um peso? Nossa, indiscutivelmente tem um enorme peso, o fator amigos e família é preponderante na mudança, ressocialização e reeducação de um criminoso. (Samuel)

Samuel em sua narrativa conta como após alguns acontecimentos delicados, a insistência e crença em sua reabilitação foram fundamentais para que ele voltasse à sociedade transformado, e como sua esposa teve papel crucial em sua transformação, mesmo após ele ter desistido de si mesmo. Além disso, vemos em sua narrativa como o apoio de amigos também foi determinante para sua reabilitação e reingresso na sociedade.

Essa relação positiva entre família e amigos influencia na quantidade e qualidade de suas redes de relações, aumentando assim seu volume de capital social que pode influenciar no acréscimo do volume de diferentes formas de capitais a quem o indivíduo está ligado, seja econômico, cultural ou simbólico (BONAMINO, 2010).

Coleman (1988) define “o capital social pela sua função, considerando-o como uma variedade de diferentes entidades que compartilham aspectos das estruturas sociais que facilitam certas ações dos atores

(pessoas ou grupos)” (apud BONAMINO, 2010,

p.490). O capital social não é um atributo pessoal do indivíduo, pois ele se insere em um contexto de estrutura social, característico das relações em redes entre as pessoas por meio de trocas que visam facilitar ações do indivíduo ou grupos.

Eu acredito que família é a coisa mais importante que a gente tem nessa vida. Sem a família a gente não é nada. Até mesmo com os meus erros e com as coisas que eu fiz e por ter passado lá dentro, as únicas pessoas que não me abandonaram foram meu pai e minha mãe. Até hoje eu agradeço a Deus por eles nunca terem me abandonado. Então, assim, enquanto eu tive lá dentro meu pai foi me visitar. Meu pai que ia me visitar, por que minha mãe não tinha condições de ir, por que cara, imagina para uma mãe ir visitar seu filho que está preso, chegar lá e além do constrangimento de abrir as pernas para seguir as normas da casa, que é a revista, se deparar com seu filho naquela situação que é o inferno, sair e se despedir e voltar sem seu filho. Não é que ela não gostava de mim, não me amava, pelo contrário, se ela entrasse lá e me visse naquela situação quem ia ficar mal seria ela, então lógico que eu entendi essa situação, eu mesmo quis poupar ela dessa situação. Quando eu sai da prisão, para conquistar minha família foi fácil, por que já de cara eles me deram oportunidade, então eu tenho muito a agradecer a eles. Minha família me acolheu e foi a única que foi me visitar, foi a única que me ajudou. Agora referente aos amigos um ou outro que me ajudou, que me mandou uma carta de incentivo e de ideias positivas. Então assim cara, a família da gente é muito importante, família em primeiro lugar. (Ricardo)

Para Ricardo, o carinho de seus pais e familiares foram essenciais para sua reabilitação, principalmente após sua liberdade. Ele destaca que em primeiro lugar vem a família com o qual todo esse apoio foi fundamental para que ele tivesse paciência e estrutura para lidar com as adversidades após prisão. Em sua narrativa podemos notar a sensibilidade que ele teve em entender o estado emocional de sua mãe, além de todo sofrimento que era passar pelo ‘inferno’ do cárcere, como ele mesmo disse. Ele se utilizou da empatia e compaixão para respeitar o lado emocional e de saúde da sua mãe.

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Eu já vi cara ter visita e depois a pessoa não visitar mais, entrar em depressão, parar de comer, começar a ficar louco, falar nada com nada, e depois morrer. Eu vi, ninguém me contou, entendeu? Eu vi pessoas no dia de visita, eu junto com a minha família e ele com a família dele, e no decorrer do tempo a família dele, não sei por qual motivo, parar de visitá-lo. A mulher dele parou de visitar ele, acho que terminou o relacionamento, não sei, e durante esse tempo que ela parou de ir aconteceram algumas coisas. Ele entrou para a igreja, mas mesmo assim veio a entrar em óbito. Então assim, a família tem muita importância nessa fase que as pessoas se encontram, a família é muito importante. (Ricardo)

A ausência da família resulta numa exclusão imperceptível que gera atributos negativos ao detento, classificando numa categoria estigmatizante, conforme Xiberras (1996, p.19) “existem, assim, formas de exclusão visíveis e outras apenas perceptíveis porque não excluem nem materialmente , nem simbolicamente: os excluídos estão simplesmente ausentes ou invisíveis’ (apud MADEIRA, 2012, p.44).

Essa exclusão quando reconhecida pelo indivíduo impacta diretamente em sua identidade, onde ele tem por meio afastar-se dos demais ao seu redor de tal modo que ele mesmo concorde em ser uma pessoa desacreditada em relação ao seu mundo social não recepctivo (GOFFMAN, 1988).

Eu sofri preconceitos sim, da parte de pessoas que me conheciam, principalmente as pessoas da parte da minha esposa. Eles me olhavam com um olhar diferente, me olhavam como vamos dizer... assim, com um olhar de “esse é o pior dos seres humanos” e eu sofri muito com isso. Então eu tive que provar, e também não tiro a razão deles...é difícil tirar a razão da pessoa, quando ela olha a televisão e só vê crime, gente matando, gente assaltando e matando, é difícil você

olhar para as pessoas e falar “poxa, eu sou um ser humano”, ou seja, você tem que provar que está reabilitado, e foi o que aconteceu. Essas pessoas tiveram preconceito, mas eu com o tempo fui provando e mostrei que não era daquela forma que eles pensavam. Até hoje eu escondo minha identidade de ex-detento, até hoje tenho vergonha disso, eu falo do meu passado só para as pessoas mais próximas. (Samuel)

Mesmo com o apoio familiar, um egresso sempre conviverá com o preconceito de pessoas próximas, sejam amigos ou parentes. Como Samuel cita, é difícil discordar deles, o único caminho a se seguir é provar com o tempo o resultado da mudança em sua vida.

Os indivíduos possuidores de um estigma particular acabam obtendo algumas experiências de aprendizagem a sua condição, sofrendo mudanças em sua concepção do eu, se incluindo em uma condição de normais, construindo assim uma carreira moral. Conforme Goffman (1988, p.41) “uma das fases desse processo de socialização é aquela na qual a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, adquirindo, portanto, as crenças da sociedade mais ampla em relação a identidade”.

Eu acredito que fora a família, religião é algo que todo mundo precisa, todo mundo um dia foi por algum motivo em sua vida buscar a Deus. Existe aquele ditado, quando você não procura Deus por amor, você procura pela dor. (Ricardo)

O cárcere, por suas características reclusivas, pode ser considerado como um ambiente de arrependimento e conversão. Conforme pontua Ligia Madeira (2012, p. 235), “paradoxalmente, é interessante notar também que, se em vários momentos a prisão é equiparada ao inferno, é através dela e da religião, via

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conversão, que se chega ao paraíso”. Tal visão tornou-se relevante entre os entrevistados nessa pesquisa conforme a narrativa de Ricardo.

As pessoas têm uma propensão maior em procurar Deus quando sentem a necessidade de aliviar sua dor. A vida dentro do cárcere para alguns é sustentada pela sua fé, pois isso os fazem se sentirem resistentes em suportar suas angústias.

A religião é muito importante por que Deus realmente existe. Se tem alguém para você se apegar lá dentro é Deus. Então tem os momentos de você ler a palavra, tem os cultos lá dentro, então você vai e participa e Deus te ouve, por que ali é um lugar de sofrimento, então você não está totalmente abandonado. Se você crê e busca Deus, parece que ele desce para a terra e te dá um alívio necessário, te dá uma paz necessária lá dentro, por que não é fácil, cara. Então sem Deus a gente não é nada, o cara que tem Deus pelo menos lá dentro ele tem tudo. (Ricardo)

Existe um papel inclusivo das religiões que é a de aproximação com a realidade social, pois acabam dando explicações aos atos humanos através do sobrenatural, extraindo uma responsabilização das práticas criminais. Em contrapartida ao distanciamento da sociedade perante os encarcerados, existe um movimento que vem em sentido oposto que tem sido dos grupos religiosos, vistos como um campo fértil a suas missões de conversões e evangelização. (QUIROGA, 2005).

Conforme estudo, Quiroga (2015, p.16) nos mostra que existe uma aceitação por parte das instituições “o que se observa é uma certa aprovação à presença dos agentes, por suas contribuições no apoio social aos presos e pela colaboração no próprio processo de disciplinarização, uma vez que “preso convertido é preso mais calmo”.

Na fala de Ricardo, a vivência num lugar onde nada lhe supre e o sofrimento impera, faz o indivíduo crer que a sua fé em um ser superior venha amenizar todo o sofrimento que estão acostumados a enfrentar no interior do cárcere.

Não adianta eu querer me vitimizar, me passando por vítima da sociedade. Entrei sim, por diversos fatores. Não alguns, mas todos fundamentados em cima de ilusões. Saí dessa vida graças a Deus, com as muitas ajudas... ajudas familiares, ajudas espirituais e isso - o fator religião, me ajudou muito. Digo nem o fator religião, mas o fator fé. Eu sou um cara que não tem uma religião, creio no evangelho, creio em Jesus Cristo, em Deus, porém ressalvo algumas coisas, pensamentos. Então hoje eu não tenho isso de que a religião certa é essa ou a errada é aquela lá. Eu vejo que Deus opera da forma que ele quer, que ele bem entende, no coração daquele que consegue enxergar. Então isso foi fundamental sim, na minha volta à sociedade, na minha reeducação, me ajudou muito. (Samuel)

A vida do crime, para Samuel, é ilusória e só existe um caminho, o da morte. A religião para ele teve um papel fundamental nessa conversão do inferno (crime) para um possível paraíso (ressocialização). Por mais que ele não seguisse uma religião específica, sua fé lhe deu forças para superar todos os tipos de pensamentos negativos, dentro e fora da prisão - uma força maior que o carregou em dias de angustia.

O ser humano recluso possui em si muitas esperanças e desejos de se obter a liberdade, pois há sempre uma nova possibilidade de um novo recomeço com dignidade, e nisso existe um amplo trabalho na área religiosa através de agentes religiosos (NASCIMENTO, 2005).

Quais as consequências da vida do crime? É sempre bom você estar lembrando, sempre tocando no assunto, que se eu contar um pouco mesmo da minha história, da minha

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trajetória eu cheguei um dia e pedi para Deus tirar a minha alma e me levar dessa vida, que era muita humilhação, muita humilhação mesmo. (Samuel)

A falta de fé pode trazer consequências lastimáveis àqueles que sofrem preconceito pelo seu passado, a humilhação faz com que a pessoa que não tenha fé em algo maior sinta-se fragilizada espiritualmente, a ponto de para ela não fazer mais sentido estar nesse mundo.

Samuel em sua narrativa cita o termo “humilhação” afim de exemplificar um pouco de sua trajetória, muitas das posturas da sociedade para um indivíduo com estigma é de tratá-los como se não fosse humanos, com base nisso sucede-se diversos tipo de discriminações, além disso são construídos teorias estigmatizando inconscientemente para explicar sua inferioridade com termos específicos como bandido, vagabundo e ex-detento (GOFFMAN, 1988).

Tendo em vista isso, o indivíduo que está sendo estigmatizado pode se sentir inseguro em relação de como as pessoas o identificarão e como os receberão, causando humilhação e frustação como citado por Samuel.

Sistema prisional brasileiro: alguns dados

Desenvolver um trabalho tendo por foco sujeitos que, em algum momento de suas vidas, foram encarcerados, passa, portanto, pela compreensão de alguns fatos e dados sobre o universo institucional prisional. Dito de outro modo, compreender os discursos dos egressos do sistema prisional sobre a sua condição requer um entendimento sobre a instituição prisão, pois foram nela que esses

sujeitos ficaram inseridos por um determinado período, onde se deu parte do seu processo de subjetivação.

Como a maioria dos países latino-americanos, o Brasil acaba assistindo estagnado a uma crise crônica em seu atual sistema carcerário, principalmente nos últimos anos, em que os indicadores disponíveis apontam um agravamento de problemas já muito antigos, como o encarceramento em massa, a escalada de violência entre os internos, as práticas de abusos, maus tratos e torturas sobre eles, a inexistência de garantias mínimas aos condenados e o desrespeito aos princípios dos Direitos Humanos (ROLIM, 2003).

Segundo dados de junho de 2016 do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), a população carcerária masculina no Brasil gira em torno de 726.712 presos. Desse total, cerca de 40% são presos provisórios, que não possuem condenação judicial, sendo mais da metade dessa população formada por jovens de 18 a 29 anos, de classes menos favorecidas, com 64% de negros. Com isso conseguimos afirmar que a população carcerária brasileira tem classe e cor.

De acordo com a mesma pesquisa, 89% da população prisional está em unidades superlotadas: 78% dos estabelecimentos penais têm mais presos que o número de vagas. Entre os anos de 2000 a 2016 houve um aumento de 157% na taxa de aprisionamento no país, em 2000 existiam 137 pessoas presas para cada grupo de 100 mil habitantes, em junho de 2016, eram 352,6 pessoas presas para cada 100 mil habitantes conforme dados do INFOPEN (2016).

O estado de São Paulo se mostra um “case” bastante apropriado a indagações quanto à dinâmica da expansão carcerária, suas causas, seu funcionamento, seus efeitos. Em 1986, a população carcerária paulista

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era de 24.091 presos e a taxa de encarceramento era de 85,1/100 habitantes; em 1996, a população carcerária saltava para 66.278 e a taxa de encarceramento, para 194,5/100 mil habitantes (SALLA, 2007). Segundo o INFOPEN, em junho de 2016, São Paulo já contabilizava uma população de 240.061 presos e uma taxa de encarceramento de 536,5/100 mil habitantes2. Em relação ao número de instituições penais, em 1983 o sistema penitenciário paulista dispunha de apenas quatorze unidades; em 1994, já eram 43, e, em maio de 2019 contabilizava um total de 173 unidades prisionais, sendo 154 unidades masculinas, segundo levantamento da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do Estado de São Paulo.

Trata-se com efeito, do maior sistema penitenciário do Brasil e um dos maiores do mundo. O estado de São Paulo, portanto, concentra cerca de 33,1% dos presos de todo o país e apresenta uma taxa de encarceramento aproximadamente 60% maior que a nacional. Se fosse um país, São Paulo estaria entre os dez que mais enclausuram no mundo, em população absoluta e índice carcerário. Exclua-se a Rússia (terceiro país que mais encarcera) e a população prisional paulista é maior que a de qualquer outro país europeu. Em termos relativos, São Paulo apresenta uma taxa de encarceramento três vezes superior à do Reino Unido e da Espanha, e quase cinco vezes superior à taxa da Françasegundo dados da ICPS (2018) (GODOI, 2017).

O funcionamento do sistema carcerário não fornece recursos adequados aos internos, pensando-se em sua ressocialização. Muito ouvimos a respeito das alimentações precárias, alto comércio de drogas que ronda os presídios de maneira natural. Assim como celas são superlotadas, o número de reclusos é

superior à capacidade de acomodação. Direitos básicos relacionados à dignidade humana, como a possibilidade de higiene, são frontalmente desrespeitados, havendo carência até mesmo de sabonetes, escovas e pastas de dente, o que acaba contribuindo para a disseminação de diversas doenças (BIONDI, 2010).

Dessa forma conseguimos definir que a vivência nos presídios traz consequências irreparáveis na vida do indivíduo, o que acaba não somente se limitando à vida existente no interior da prisão, mas também após a sua libertação. O recluso sofre dificuldades em se adaptar à nova realidade, isso em virtude da incorporação da cultura prisional em sua identidade, que muito se diversifica da sociedade liberta; a maior das consequências disso é o alto índice de reincidência criminal no país. Segundo dados realizado pela IPEA (2015) cerca de 70% da população carcerária após libertação retornou ao mundo do crime.

Ter uma adaptação ao cárcere, significa o mesmo que obter qualificações e atitudes do criminoso habitual, pois na prisão o detento mais desenvolverá uma habilidade criminosa do que a suavizará.

Reflexões finais

Conforme analisado nas declarações dos egressos do sistema penal aqui entrevistados, podemos discernir que muito além da privação de liberdade, a punição do cárcere acabou violentando o indivíduo de diversas maneiras mesmo após a sua liberdade.

Após esse processo de prisionização e desculturação dentro do cárcere, é imensa a probabilidade do indivíduo se tornar mais fragmentado

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por meio de várias identidades, que em sua maioria são contraditórias em relação a sua subjetividade. Essa fragmentação de identidade está vinculada às diversas formas de relações culturais a que o ser humano é submetido no ambiente que o rodeia (HALL, 2006).

Além disso, por meio dos discursos apresentados, foi possível refletirmos como a sociedade tem recebido e acolhido esse indivíduo, nos levando a questionar sobre o estigma que eles carregam em suas trajetórias, além das próprias dificuldades vivenciadas fora e dentro do universo prisional.

Em todas as trajetórias de vida apresentadas, notamos dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal, tendo em vista a falta de oportunidade para egressos, medo de preconceitos, falta de confiança e o alto índice de desemprego no país, porém ao mesmo tempo em que existiam certos estigmas sofridos pelos entrevistados, os mesmos encontraram amparo em seus laços familiares, os quais foram fundamentais em suas reintegrações sociais.

Suas narrativas nos levam a ponderar que muito mais que importantes ações nas áreas das políticas públicas e oportunidade de trabalho formal, o amparo e o acolhimento das pessoas em suas redes de contato são fundamentais para que os egressos tenham uma vida longe do universo criminal.

Porém essas são narrativas raras, já que o histórico de muitos egressos é de desestrutura familiar, baixa escolaridade e condições econômicas precárias, o que vem a contribuir facilmente com o envolvimento criminal, causado, muitas vezes, pela falta de oportunidades e a sedução de uma vida com fácil acesso a bens de consumo.

Este trabalho teve como principal objetivo analisar as consequências do sistema prisional na vida

dos reclusos mesmo após a sua libertação, abrindo um diálogo sobre a trajetória de um egresso que acaba tornando-se invisível aos olhos da sociedade, que por muitas vezes vira as costas para aqueles que perderam sua identidade por um sistema prisional falho em sua estrutura.

Embora os egressos entrevistados permaneçam como sujeitos estigmatizados vivendo na precariedade social, após o acolhimento e o retorno ao mundo externo, os mesmos voltaram a ter esperança e oportunidades, diminuindo seus rótulos negativos de ex-presidiários.

Por fim, a proposta dessa pesquisa foi problematizar e dialogar com a trajetória de vida dos egressos do sistema penal por meio de seus discursos, apresentando a importância em refletirmos suas condições como indivíduos inseridos numa sociedade que muitas vezes os torna invisíveis.

Que esta pesquisa venha contribuir e servir de instrumento para novas pesquisas relacionadas à temática do sistema prisional brasileiro.

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