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O que faço no meio dessa revolução? (O romance português contemporâneo e a (des)construção da realidade)

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Academic year: 2020

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O Q U E F A Ç O N O M E I O D E S S A R E V O L U Ç Ã O ? ( O R O M A N C E P O R T U G U Ê S C O N T E M P O R Â N E O

E A ( D E S ) C O N S T R U Ç Ã O D A R E A L I D A D E )

Márcia V. Zamboni GOBBI

1. O ROMANCE PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO: INVERTENDO O SENTIDO

A ficção portuguesa, hoje, responde n ã o s ó ao momento e s p e c í f i c o de sua c r i a ç ã o , mas t a m b é m aos ecos de um acontecer h i s t ó r i c o e de um fazer artístico anteriores, a partir dos quais se pode aferir o peso das t r a n s f o r m a ç õ e s operadas nos d o m í n i o s da c r i a ç ã o cultural, em c o n s o n â n c i a com novas f o r m u l a ç õ e s no ato de pensar o mundo - d a í a proposta de um exame, ainda que b r e v í s s i m o , de seus antecedentes mais p r ó x i m o s , a f i m de melhor delimitar a contemporaneidade a que nos referimos.

Para tanto, e por n ã o desejarmos estender demasiadamente o campo das nossas i n v e s t i g a ç õ e s , j u l g a m o s n e c e s s á r i o e suficiente retroceder a um significativo momento da ficção portuguesa neste s é c u l o : o Neo-realismo. Baliza para a c o m p r e e n s ã o da realidade e da literatura em Portugal nesses ú l t i m o s c i n q ü e n t a anos, a sua a p r e s e n t a ç ã o poderia iniciar-se com o aval do c r í t i c o M á r i o Sacramento:

' Departamento de Literatura Faculdade de Ciências e Letras UNESP 14.800901 -Araraquara - SP.

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(...) as circunstâncias históricas cm qucsurge o neo-realismo português obrigaram-no a vazar na ficção literária não só os testemunhos de natureza estética, como também os depoimentos ideológicos e morais e os inquéritos sociais. Mas não só as circunstâncias motivaram isso. Com o neo-realismo abria-se o aprendizado dum novo tipo de escritor e a criação duma nova consciência de homem. (Sacramento, 1969, p.12).

Como se v ê , em função de uma necessidade h i s t ó r i c a de atuar de modo urgente sobre a f o r m a ç ã o de uma c o n s c i ê n c i a social - o que, em outras c i r c u n s t â n c i a s , seria papel desempenhado por outras vias que n ã o s ó as literárias -, a literatura neo-realista é concebida como uma forma de r e s i s t ê n c i a : é depoimento, testemunho, documento de uma realidade injusta e opressiva; como tal, busca a e x a t i d ã o descritiva capaz, por sua estreita a p r o x i m a ç ã o com o mundo objetivo, de funcionar como uma forma de d e n ú n c i a . Percebe-se, e n t ã o , que as r e l a ç õ e s entre o texto e o contexto se estabelecem de maneira transparente, evidente: h á um c a r á t e r p e d a g ó g i c o nessa literatura que intenta "transmitir uma mensagem" provocadora de t r a n s f o r m a ç õ e s sociais e p o l í t i c a s . O romance neo-realista instala-se, assim, como porta-voz de propostas concretas de luta na sociedade. Os processos de r e p r e s e n t a ç ã o t o m a m , em c o n s o n â n c i a com essa postura, n ã o o caminho do " p o s s í v e l " , mas o da veracidade, tal a v i n c u l a ç ã o entre a c r i a ç ã o artística e a a ç ã o humana por ela representada, objetivando uma p e r c e p ç ã o imediata da praxis pela mimesis.

Entretanto, temos a ponderar que a arte, ainda que busque intencionalmente esta a p r o x i m a ç ã o m á x i m a com a realidade objetiva, nunca é a vida mesma: é ficção, é artifício - n ã o um real "verdadeiro", mas um discurso que reenvia ao mundo pela p r o b l e m a t i z a ç ã o , pela c o n s i d e r a ç ã o , sempre, da r e l a ç ã o d i a l é t i c a que se estabelece entre texto e contexto, dinamizada por um processo s i m u l t â n e o de r e v e l a ç ã o e t r a n s f o r m a ç ã o do real: sem esta t e n s ã o , n ã o há arte p o s s í v e l .

Poder-se-ia considerar, ainda, que a função crítica do romance n ã o implica necessariamente a sua i n s t r u m e n t a l i z a ç ã o : meio para que se atinja um " f i m " exterior aos d o m í n i o s da obra como c r i a ç ã o . Mas n ã o h á c o m o negar que pesa sobre o discurso neo-realista a gravidade, o referencial do transitivo, e que lhe falta, muitas vezes, a plena m a n i f e s t a ç ã o daquela atitude de gratuidade,"tanto do criador, no momento de conceber e executar, quanto do

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receptor, no momento de sentir e apreciar" (Candido, 1985, p.53), i n d i s p e n s á v e l à c o n f i g u r a ç ã o do trabalho artístico.

E a estafa do discurso talvez tenha sido o sinal inicial da crise do romance neo-realista e, de forma extensiva, do romance dito tradicional; tanto é assim que as primeiras t r a n s g r e s s õ e s deram-se mais amplamente no d o m í n i o das d i s c u s s õ e s sobre a linguagem, as quais correspondiam à e x p e r i m e n t a ç ã o da d e s a g r e g a ç ã o e do desmoronamento do mundo ocidental, reconhecidamente em crise pela perda dos lastros referenciais e pelas i n v e r s õ e s bruscas na ordem de valores anteriormente cristalizada.

Esse descontentamento com as coisas do mundo c o n t e m p o r â n e o reflete a "impossibilidade t e ó r i c a e prática na qual nos encontramos, hoje, de viver ainda a h i s t ó r i a como uma linha unitária que teria um sentido e no horizonte da qual p o d e r í a m o s definir va!ores"(Vattimo, 1987, p. 17), o que descaracteriza a "imagem do mundo" e coloca o homem em confronto com as r u í n a s do sentido. Diante disso, como poderia a literatura ser e x p r e s s ã o de um mundo, p r o b l e m á t i c o , sim, mas ainda inteiro, se esse mundo s ã o s ó fragmentos desconjuntados diante dos quais n ã o se pode divisar qualquer perspectiva de unidade, ainda que c o n t r a d i t ó r i a ? Que "conceitos t e ó r i c o s " a literatura poderia ter por finalidade "ilustrar", se o mundo beira o deserto do sem-sentido? De que " m a t é r i a " se comporia o romance, e n t ã o ? De que forma manteria sua c o r r e s p o n d ê n c i a com o real?

A p r o b l e m á t i c a das r e l a ç õ e s entre arte e realidade, diante disso, inverte-se, e a arte passa a ser fecundadora dos significados do mundo: "o l i v r o faz o sentido, o sentido faz a vida", diria Roland Barthes (1983, p. 77). A o criar uma realidade i m a g i n á r i a , o romance engendra um sentido do mundo, sentido este secretado pela escrita, c o n s t i t u í d o à medida que se constitui a realidade ficcional; n ã o mais e x p r e s s ã o de c o n t e ú d o s concebidos a priori, o romance assume-se plenamente como mundo inventado, num processo de " d e s r e a l i z a ç ã o " que aponta para uma d e s m i s t i f i c a ç ã o da pretensa a s c e n d ê n c i a da vida sobre a arte:

A tensão entre a vida e a arte resolve-se, esteticamente, a favor desta, assumindo-seplenamente a arte, para metaforizar a vida.(Santilli, 1979, p. 164)

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De qualquer forma, n ã o há como contestar a impossibilidade de d i s j u n ç ã o entre vida e arte. A o assumir-se como gerador de sentidos, o discurso literário refunde-se à realidade de forma ainda mais plena, pois ativa as m ã o s e c o n t r a m ã o s de t r â n s i t o entre uma e outra i n s t â n c i a s .

Formalizando as perplexidades, as suspeitas, a complexidade e o ilogismo que permeiam as r e l a ç õ e s entre o homem c o n t e m p o r â n e o e seu universo desconjuntado, deslocando os sentidos, empunhando a bandeira da liberdade absoluta que nela reside, refletindo incessantemente sobre o seu p r ó p r i o fazer, a literatura resiste, e reenvia-nos ao homem e ao mundo de forma extremamente significativa: despojada de c o n v e n ç õ e s falseadoras, a v i d a se revela, pela arte, em toda a sua plenitude.

2. LUSITÂNIA: HISTÓRIA, IDEOLOGIA E RESISTÊNCIA

A partir das c o g i t a ç õ e s anteriores sobre as r e l a ç õ e s entre o romance c o n t e m p o r â n e o e a complexa realidade de que constitui a r e p r e s e n t a ç ã o , cremos ser p o s s í v e l caracterizar o objeto deste estudo e justificar à medida que o entendemos como resistência.

O romance Lusitânia, de A l m e i d a Faria, foi publicado em 1982. Apresenta, no entanto, um suporte h i s t ó r i c o objetivamente configurado e claramente referido : a R e v o l u ç ã o dos Cravos. Os cinquenta c a p í t u l o s que o c o m p õ e m - em grande parte, cartas trocadas entre os personagens - s ã o datadas e abrangem um p e r í o d o que vai de 14 de abril de 1974 a 30 de m a r ç o de 1975.

O lastro referencial dos acontecimentos que fundam a f á b u l a romanesca, portanto, é definido e significativo. A relativa contemporaneidade da escrita n ã o evitaria, de todo, que a abordagem de tais referentes salpicasse o universo romanesco com os matizes de leituras j á "consagradas"do real, em função mesmo da i m p o r t â n c i a decisiva desses acontecimentos como r e s p o n s á v e i s pela virada histórica em que se empenhou a n a ç ã o portuguesa h á pouco mais de vinte anos. Entretanto, ao conceber o romance como algo que e s t á por m o n t a r , deslocando constantemente os focos de p e r c e p ç ã o e de i n t e r p r e t a ç ã o da realidade, o autor resiste aos sentidos preconcebidos e c o n s t r ó i o universo romanesco a partir da d i v e r g ê n c i a , da ruptura e da f r a g m e n t a ç ã o .

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Quer-se com isso dizer que a p r ó p r i a forma de o r g a n i z a ç ã o do romance configura uma m u l t i f a c e t a ç ã o do real, impedindo, ou resistindo à a d e r ê n c i a i d e o l ó g i c a p r e v i s í v e l num texto dessa natureza. A l m e i d a Faria monta

Lusitânia como uma c o l e ç ã o de fragmentos representativos de diferentes ó t i c a s

do mundo. Fundamentalmente, a c o m p o s i ç ã o literária retoma uma velha estrutura: a do romance epistolar. A efetiva troca de cartas entre os personagens é, vez ou outra, interrompida, na estrutura narrativa, por outras formas de "entrada em cena": m o n ó l o g o s n ã o pronunciados, sonhos e fantasias objetivadas, a n o t a ç õ e s de d i á r i o . De qualquer maneira, todas essas m a n i f e s t a ç õ e s prendem-se a um mesmo e ú n i c o processo: isolada e alternadamente, cada personagem assume a palavra literária e toma o p r o s c ê n i o . O e s p a ç o textual c o n s t r ó i - s e , assim, como uma superfície onde se cruzam vozes diversas, numa d i n â m i c a de a b s o r ç ã o e réplica à s outras vozes textuais que d á à escritura o c a r á t e r de um amplo e permanente d i á l o g o .

A s s i m , a t e n s ã o narrativa estabelece-se j á a partir do confronto entre as idéias-força que fundamentam a atitude de cada um dos personagens em face do mundo: os diferentes pontos de vista tendem n ã o para a u n i f i c a ç ã o , mas para a c o e x i s t ê n c i a , vivendo "em t e n s ã o na fronteira com a idéia de outros, com a c o n s c i ê n c i a de outros." (Bakhtin, 1981, p.26)

Este d i á l o g o , evidentemente, n ã o se l i m i t a ao e s p a ç o positivamente textual. Pelo, c o n t r á r i o , estabelece-se fundamentalmente em d i r e ç ã o à realidade: é com o seu tempo, com a c o n f o r m a ç ã o da sociedade em que vive, com a sua história, enfim, que o escritor, por i n t e r m é d i o das vozes independentes e singulares de seus h e r ó i s , dialoga. A história e a sociedade s ã o "textos que o escritor lê e nos quais se insere ao r e e s c r e v ê - l o s . " (Kristeva, 1967, p.439) Dessa perspectiva, o real deixa de ser tomado como pano de fundo da a ç ã o romanesca: é texto e, como tal, é lido, absorvido e transformado por outro texto - o literário, dinamizando o processo de i n s e r ç ã o da história no texto e do texto na história.

3. O Q U E FAÇO NO M E I O DESSA REVOLUÇÃO?

Dentre os personagens de Lusitânia, A r m i n d a , A n d r é e Sonia parecem ser aqueles a t r a v é s dos quais melhor se evidenciam as duas linhas de força que

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norteiam essas r e f l e x õ e s : a a p r o p r i a ç ã o do contexto pelo texto literário e a t r a n s g r e s s ã o , pelo discurso, aos sentidos aprioristicamente cristalizados desse contexto. Entre eles estabelece-se o que p o d e r í a m o s chamar, de forma bastante redutora, de " d i á l o g o r e v o l u c i o n á r i o " : a constante das cartas que trocam s ã o as q u e s t õ e s políticas e sociais que circundam o movimento de 25 de abril. Tomadas sob o ponto de vista da interferência efetiva nas c o n c e p ç õ e s e atitudes de cada u m , reorientando as a ç õ e s e r e a ç õ e s que d a í adviriam, tais c i r c u n s t â n c i a s h i s t ó r i c a s atuam n ã o como pano de fundo diante do qual se movimentam os h e r ó i s , mas como fator fundamental na c o n s t i t u i ç ã o de sua v i s ã o de mundo.

Mais do que em qualquer outro momento do romance, é na c o n f l u ê n c i a dos discursos desses três personagens que se manifesta a r e l a ç ã o mais imediata entre o texto e seu contexto, de forma que tais discursos tendem, por vezes, a uma t r a n s p a r ê n c i a excessiva, comprometendo, em certa medida, o c a r á t e r ficcional da obra.

A narrativa encontra relativo e q u i l í b r i o , no entanto, pela i n t e r a ç ã o entre as s i t u a ç õ e s objetivas, históricas, e a forma como s ã o subjetivamente apreendidas pelos personagens, que j á as submetem a um processo de releitura, como faz, por exemplo, A n d r é :

O meu fraco talento escriturário não vai conseguir descrever o que foi este 1. de maio com milhares de pessoas desfilando nas ruas. gente de todas as idades, de quase todas as classes, coisa que a nossa geração e as anteriores já desisitiam de sonhar. Assistir nem é o termo, havia uma participação espontânea até daqueles como eu, não alinhados. Impossível ficar a olhar de fora, esta movimentação de massas não tinha fora. (Faria, 1982, p.309)

T a m b é m a a n t e c i p a ç ã o m e t a f ó r i c a do real objetivo pela ficção é um procedimento capaz de conter a t e n d ê n c i a do não-ficcional a ocupar demasiadamente os e s p a ç o s do texto; é o caso, por exemplo, da " d e s c r i ç ã o " da r e v o l u ç ã o , que é dada a partir de uma " v i s ã o " ( e s p é c i e de sonho ou p r e s s á g i o ) de A r m i n d a - portanto, a t r a v é s de um processo de analogia, como r e f e r ê n c i a indireta, mediatizada:

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Estava a ler Montale quando " v i " aproximar-se uma borrasca, furacão ou tempestade em que era Miranda sem Próspero, perdida no meio dum imenso ribombar de trovões vindo por montes e matos, ao longe, com um ruído de pelo menos quatro pistas da melhor estereofonia. É o fim, disse de mim para mim (...). (Faria, 1982, p.294)

A s s i m , a i n t e r - r e l a ç ã o das c i r c u n s t â n c i a s h i s t ó r i c a s com as s i t u a ç õ e s ficcionais faz os discursos dos t r ê s personagens; como determinantes das a l t e r a ç õ e s , por vezes bruscas, no c e n á r i o das r e l a ç õ e s entre eles, tais c i r c u n s t â n c i a s provocam, por exemplo, o abalo no envolvimento afetivo entre A n d r é e Sonia, que parte para a luta armada em Angola. D i z A n d r é :

Temo este corte de repente, sem dar tempo ao edifício difícil das nossas relações às escondidas, na minha casa então feliz, sem as deixar enraizar o necessário para não serem abaladas, arrancadas pelos ventos ditos da história, por enquanto comuns e conjuntos, porém ameaçados pelas geopolíticas entre nós tão debatidas. Nada pior que a política para dar cabo duma carta de amor ainda que não pareça à primeira vista; quando à política se junta a geografia, então caímos sob a garra do destino que dominava até deuses antigos. (Faria, 1982, p.310).

Alfredo Margarido diz, no p o s f á c i o à Teoria do romance, de L u k á c s , que o romance se alimenta da s i t u a ç ã o do homem; ou seja: o homem, "posto em s i t u a ç ã o " , é concebido e experimentado em interação com as c i r c u n s t â n c i a s concretas de sua realidade, e a partir dessa d i n â m i c a vivenciada é que se configuram os sentidos que d á ao mundo, processo, como v i m o s , que faz o romance. D i z ainda o crítico p o r t u g u ê s que, nessa i n t e r a ç ã o , se d á conta o homem de que o mundo é m a t é r i a feita de m u d a n ç a , o que o obriga a um reposicionamento constante e exige dele uma permanente r e o r g a n i z a ç ã o dos sentidos. O u seja: a c o n s c i ê n c i a da m u d a n ç a transforma a s e g u r a n ç a do homem numa i n q u i e t a ç ã o que o leva a procurar investigar a r a z ã o da sua p r ó p r i a p r e s e n ç a .

É nesse processo de repensar profundamente o seu papel no mundo que se situam A r m i n d a , A n d r é e Sonia. Envolvidos n ã o s ó pela e f e r v e s c ê n c i a das t r a n s f o r m a ç õ e s que revolucionam a realidade histórica em que se movem,

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mas t a m b é m por aquelas que, em escala reduzida, mas igualmente significativas, alteram o quadro familiar, v ê e m - s e l a n ç a d o s em meio à crise dos sentidos, pois o novo c e n á r i o que se lhes apresenta é ainda um e s p a ç o desfigurado, desconhecido - privado, portanto, de uma o r g a n i z a ç ã o que torne p o s s í v e l a sua leitura.

T a m b é m aqui o texto retoma o tema do choque entre "o mundo que era" e "o mundo que é " , redesenhando, pela c o m p a r a ç ã o , a imagem da crise c o n t e m p o r â n e a . A o refletir sobre a morte de M o i s é s , A r m i n d a identifica-o como sobrevivente de um mundo perdido, onde a vida se cumpria plenamente, como um c í r c u l o perfeito:

No mundo dele a morte não foi v i l e vazia. Em romances de viagens, livros de linhagens, crónicas antigas, páginas inteiras eramdedicadas a esses trespassares cheios de dignidade, duma certa grandeza, dum sabor asabedoria resumida em momentos mágicos demorte no mar, na selva, no leito onde as personagens encerravam a circunferência perfeita, cumpriam até o fim o ciclo da sua vida. (Faria, 1982, p.343)

N o mundo fechado do passado, o e s p í r i t o limitava-se a acolher passivamente na sua v i s ã o um sentido j á acabado: o mundo da s i g n i f i c a ç ã o podia ser compreendido e abrangido com um ú n i c o olhar. Diferentemente, o mundo c o n t e m p o r â n e o n ã o permite que os sentidos se cristalizem; antes, torna-os imperitorna-osamente inconsistentes, disperstorna-os.

A r m i n d a é parte deste outro mundo: a p e r f e i ç ã o , a previsibilidade, a c o n s i s t ê n c i a , nada disso está presente nele; o d i á l o g o se faz como o e s p a ç o das i n t e r r o g a ç õ e s permanentes, da d ú v i d a suspensa, das respostas indefinidamente adiadas:

Comigo não abundam certezas, as coisas complicam-se, ignoro porquê. (Faria, 1982, p.363)

A c o n s c i ê n c i a do p r o v i s ó r i o estado das coisas fundamenta a sua v i s ã o de mundo, bem como a de A n d r é e a de Sonia, e a c o n s t a t a ç ã o de que o discurso sobre os acontecimentos recentemente vividos é j á o discurso sobre um passado d á - l h e s conta da diversidade fundamental do mundo c o n t e m p o r â n e o ,

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intermitentemente bombardeado pelo r i t m o frenético dos contecimentos que se atropelam, desfocando-lhe a imagem e diluindo a t é mesmo a p e r c e p ç ã o da d u r a ç ã o histórica. D i z S ó n i a :

Gostei do teu relatório acerca do 1. 1. de maio, que na colónia quase não se fez sentir, e me trouxe já saudades daquela leda madrugada, hoje legendária, em que Samuel me telefonou cedo avisando que a coisa começara... (Faria, 1982, p.327)

A s s i m , a c o r r e s p o n d ê n c i a entre a crise do homem e a crise do mundo é reduplicada dentro do universo do texto.

A r m i n d a , A n d r é e S ó n i a , pela busca ou pelo adiamento, pela i n q u i e t a ç ã o ou pelo conformismo, no r i t m o da luta ou em compasso de espera, formulam suas p r o v i s ó r i a s respostas a um mundo t a m b é m p r o v i s ó r i o , que procura "..o r i t m o certo desta festa ainda indecisa acerca de qual dos caminhos a seguir." (Faria, 1982, p.325) A permanente e inevitável m u d a n ç a encarregar-se-á de reformular os sentidos, uma vez que a realidade

se compõe de fatos que registram rápidas e drásticas transformações, implicando, por decorrência, solicitações de contínua mobilidade dos agentes, sujeitos de novas atitudes, enquanto sujeitos a vicissitudes sociais, político-econômicas, cujos ecos abalam a própria estrutura doméstica, como um "simile"do "real"contemporâneo: o sistema do chamado mundo ocidental em crise. (Santilli, 1979, p. 119)

5. CONCLUSÃO

Essas breves o b s e r v a ç õ e s sobre o romance Lusitânia tiveram o intuito primeiro de apresentar, ou de reapresentar, à comunidade a c a d ê m i c a , o trabalho de um dos mais significativos romancistas portugueses c o n t e m p o r â n e o s . Por outra parte, é t a m b é m objetivo deste estudo levantar a r e f l e x ã o , uma vez mais, sobre as r e l a ç õ e s que o texto estabelece com o contexto em que se produz -portanto, o dimensionamento entre Literatura e História. Perspectivado a partir do tema deste C o l ó q u i o - Narrar e resistir -, o dimensionamento pretendido

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determinou que a a n á l i s e incidisse sobre os seguintes aspectos: a literatura enquanto r e s i s t ê n c i a ; o romance neo-realista como r e s i s t ê n c i a à uma c o n f i g u r a ç ã o social injusta e i n d e s e j á v e l ; o romance p o r t u g u ê s c o n t e m p o r â n e o como t r a n s g r e s s ã o ao neo-realismo a partir da d e s a g r e g a ç ã o da linguagem referencial; Lusitânia como resistência ao lastro i d e o l ó g i c o de seu suporte h i s t ó r i c o a partir de sua p r ó p r i a c o n f i g u r a ç ã o discursiva; a a n á l i s e das falas dos personagens como i l u s t r a ç ã o dessas t e n s õ e s : a que se establece entre o texto e o contexto, e a que se estabelece, dentro do texto, entre os sentidos que tais personagens c o n s t r ó e m face ao transe r e v o l u c i o n á r i o e à crise de valores que o antecedem e que dele decorrem.

Lusitânia, portanto, registra, a seu modo, o m o v i m e n t o p o l í t i c o - s o c i a l

de um p e r í o d o fundamental da história portuguesa c o n t e m p o r â n e a , mas n ã o se encerra nisso; organiza-se, significativamente, como um discurso plural revestido daquela que parece ser a função maior da literatura desde sempre: a de buscar u m sentido para o mundo e para o homem dentro dele.

R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S

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