• Nenhum resultado encontrado

A GUERRA DO FOGO: A LINGUAGEM COMO ARTEFATO

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A GUERRA DO FOGO: A LINGUAGEM COMO ARTEFATO"

Copied!
10
0
0

Texto

(1)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

A GUERRA DO FOGO: A LINGUAGEM COMO ARTEFATO

Orrico, Evelyn evelynorrico@unirio.br http://lattes.cnpq.br/4299342469360586 Ribeiro, Leila leilabribeiro@ig.com.br http://lattes.cnpq.br/4234602401995614 RESUMO

Discute a relação entre linguagem e tecnologia, objetivando ressaltar as mediações da linguagem e a construção de novos saberes. Utiliza a análise fílmica para identificar marcas fundamentais dessa relação, calcada nos conceitos de intericonicidade, memória discursiva e cultura material. A análise permite sedimentar a importância da memória na construção de estratégias de linguagem e na consequente construção simbólica, que permite a construção de novos conhecimentos. Palavras-chave: Análise Fílmica. Linguagem. Intericonicidade.

INTRODUÇÃO

A experiência em refletir analítica e didaticamente sobre filmes aguça nosso olhar para determinadas cenas que, talvez, do ponto de vista estético ou tecnológico, não merecessem atenção. O que aqui vamos investigar nos permite relacionar linguagem e tecnologia, mais especificamente as mediações que as linguagens empreendem na construção de novos saberes. Tal construção decorre da possibilidade de criar um universo simbólico constituidor da memória do grupo que construiu esse novo conhecimento. Admitimos que semanter afastado do filme, mas, ao mesmo tempo deixar o próprio filme abrir questões para análise, seja bastante produtivo para o analista. Podemos nos perguntar quais seriam as questões que o próprio filme nos instiga a pensar; seriam questões técnicas, teóricas, cenográficas?

Por intermédio de uma análise fílmica, que “não é um fim em si, mas uma prática que precede de um pedido” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 9), iremos analisar cenas do filme A Guerra do Fogo, no intuito de despertar a relação entre a linguagem, constitutiva da memória, e a construção de novos saberes.

(2)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

Para contextualizar essa análise, é preciso dizer que a ideia surgiu no decorrer de disciplinas ministradas em cursos no âmbito da graduação e da pós-graduação em que a estratégia pedagógica é apresentar, discutir e problematizar conceitos teóricos, a partir da análise de diferentes filmes. Os filmes são selecionados pelas docentes de acordo com a temática do tópico conceitual a ser apresentado e em consonância às linhas dos cursos quais sejam, memória, informação e discurso. No filme ora analisado a discussão girou em torno de quatro eixos: informação, conhecimento, cultura material e linguagem.

O escopo contextual, assim como a definição do produto final, em que tal exame acontece é indispensável ao enquadramento da análise, porque, como nos dizem Vanoye e Goliot-Lété (1994, p. 10) permite “esboçar, pelo menos em parte, seus limites, suas formas e seus suportes, seu ou seus eixos […]”.

Neste artigo iremos discutir o papel da linguagem no desenvolvimento humano a partir do filme A Guerra do Fogo (Quest for Fire), dirigido por Jean-Jacques Annaud em 1981. Esse filme é uma proposta de reconstrução da pré-história (80.000 anos), narrando a saga do líder de um grupo, Noah, em busca da recuperação do fogo perdido. Nessa busca ele entra em contato e confronto com outros grupos em diferentes estágios de evolução. Por apresentar em grande parte uma narrativa que se enuncia por meio de linguagem gestual entremeada por sons e grunhidos, o filme sugeriu-nos uma boa oportunidade de problematizar a relação estabelecida pelo contato entre diferentes grupos e suas tecnologias com a linguagem e seus desdobramentos.

A Guerra do Fogo apresenta alguns grupos de humanos, mas interessa-nos focar em três com características e práticas diferentes entre si. O grupo ao qual pertence Noah habita cavernas. Seus membros já conhecem o fogo e utilizam-no tanto para seu próprio aquecimento, quanto para assar suas caças, assim como preparar seus artefatos de guerra e/ou caça, afiando as pontas da madeira com o fogo e lixando pedras. Além disso, sabem que os animais selvagens têm medo do fogo, e por isso lhes serve como defesa.

Como eles conhecem as vantagens do fogo, mas não sabem como produzi-lo, esse grupo de humanos determina que um de seus membros exerça o papel de guardião do fogo, e para tal ele mantém a chama dentro de um recipiente cuja proteção reveste-se de grande cuidado, algo merecedor de reverências, como um objeto sagrado.

(3)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

O segundo grupo apresenta como característica principal a prática do canibalismo e seus traços físicos denotam uma aparência mais “feroz e animalesca”: são mais peludos e atarracados, aparentemente nômades, mas já utilizam alguns artefatos sem, entretanto, qualquer tratamento, como por exemplo, pedaços de paus grandes, pedras, etc.

O terceiro e último grupo é notadamente o mais avançado e se diferencia pelo domínio do fogo, já que sabe como produzi-lo. Seus membros conhecem também suas consequentes utilidades como o cozimento do barro para o preparo de alimentos. Fabricam artefatos de guerra e de caça (um tipo de zarabatana; lanças afiadas etc.) e utensílios variados (cerâmicas pintadas com incrustações; cabaças para alimentos e bebidas). Esse grupo apresenta habitações construídas com gravetos, palha e barro cozido; conhece determinadas plantas e seu uso medicinal; possui determinados ritos e uma estrutura hierárquica, além de, sobretudo, ter desenvolvido uma linguagem verbal.

A aparência de seus membros também se diferencia da dos demais: são magros, cabelos lisos e emplastrados, usam pinturas corporais, máscaras, colares, calçados rústicos, ausência de pelos nos corpos seminus e vestem uma espécie de tanga. Em que pese algum descompasso defendido pela História, calcamo-nos nesta análise no desenvolvimento sugerido pela linha dramatúrgica de A Guerra do Fogo. Desse modo, nossos comentários analíticos estão calcados no que nos é apresentado no filme, sem preocupação com as possíveis licenças poéticas que obras dessa natureza podem apresentar.

Para relacionar linguagem como artefato, é fundamental considerar as implicações informacionais e discursivas que a análise fílmica propõe.

Tais implicações calcam-se nos conceitos de intericonicidade e cultura material pelos quais problematizamos alguns aspectos da origem e do aprendizado da linguagem e da cultura material, considerando que são constitutivos dos atributos informacionais de registro e de memória de diversas culturas. Nesse passeio teórico o auxílio de autores como Milanez Correio, Pacheco, Bucaille e Pesez é fundamental.

A FALA E ALGUNS DOS SEUS DESDOBRAMENTOS

A narrativa dramatúrgica mostra o protagonista Noah e dois outros membros de seu grupo saindo em busca do fogo, já que o lume em poder do grupo extinguiu-se após terem

(4)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

sofrido um ataque. Noah é escolhido para sair em busca do fogo; essa escolha se faz quando outro membro do grupo coloca o recipiente “sagrado” aos seus pés. O resto do grupo permanece em uma ilhota.

Os três personagens passam por diversas situações inusitadas. A primeira é serem perseguidos por tigres dentes de sabre, o que os faz permanecer longo tempo sobre uma árvore, esperando os animais desistirem de esperar que eles descessem.

Após descerem da árvore, veem bandos de caça e salivam fortemente imaginando uma possibilidade de alimento. Alimentam-se de ovos de aves e utilizam-se de pele de abutres para disfarçar o seu próprio cheiro, no intuito de poderem se aproximar desse outro grupo (grupo 2) sem despertar atenção e roubar o fogo, já que uma fogueira havia sido acesa. Ao se aproximarem da fogueira, descobrem ossos e um crânio humano. Rejeitam os restos do que seria a carne humana, e assim dão a entender que já conheceriam a estrutura humana e que abominariam a prática do canibalismo.

Noah acaba por alçar destaque na narrativa fílmica quando, por um surto de genialidade ou instinto, oferece um pouco de grama ao líder de uma manada de mamute, o que parece provocar o início de uma relação de confiança entre os animais e os humanos. Essa relação faz com que os animais protejam seus novos parceiros de um ataque dos membros do grupo 2, os que haviam deixado vestígios de canibalismo na fogueira.

Nesse momento da ação fílmica, Noah e seus amigos encontram uma mulher que apresenta características diferentes das deles. Os três homens e mais essa moça foram salvos dos canibais (grupo 2) pelos mamutes e passam a conviver. Essa convivência é inovadora em vários sentidos: a moça torna-se parceira sexual do protagonista e os faz conhecer o riso, já que dá uma gargalhada quando um dos membros do grupo é ferido acidentalmente na cabeça.

A ação dramatúrgica nos faz perceber a novidade da descoberta da comicidade e de sua expressão ao nos mostrar que eles não se dão conta do significado da gargalhada porque, para repetir a gargalhada, eles jogam novamente uma pedra no parceiro. Eles estabelecem uma relação direta entre a pedrada e o riso, sem conseguir, entretanto, abstrair que a comicidade advém de uma situação inusitada.

(5)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

A mulher, do ponto de vista evolutivo, é superior ao protagonista porque também conhece a função terapêutica das ervas, já que faz uso medicinal de um emplastro de folhas para curar uma ferida de Noah. Tal superioridade pode ser compreendida tanto pela evolução da linguagem — como propiciadora de transmissão de informação —, quanto nos remeteria ao campo mitológico da superioridade da mulher na sagacidade e conhecimento, já que foi Eva quem induziu Adão a comer o fruto proibido, a maçã do conhecimento. Essa personagem apresenta mais uma característica evolutiva, já que conhece diferentes formas de relação sexual, quando se posiciona de frente para o parceiro, mostrando assim um outro tipo de coito. É a linguagem corporal tornando-se cada vez mais complexa.

Essa personagem ainda demonstra que conhece alguns indícios da natureza, porque consegue decifrar o voo dos pássaros, o que lhe permite inferir o caminho de volta para o seu acampamento. Por intermédio de gestos ordenados em um tipo de linguagem, ela indica aos companheiros o caminho por onde eles deveriam seguir. Como os três homens não aparentam ter intenção de obedecê-la, ignorando suas orientações, a mulher segue solitariamente o seu caminho. Noah inconformado abandona seus dois companheiros e de posse ainda do objeto “sagrado” para guardar o fogo vai em busca de sua companheira.

A jovem mora em uma aldeia de cabanas de palha trançada e com enchimento de barro, habitada por seres (grupo 3) que detêm diversos conhecimentos como já descritos anteriormente.

Sendo capturado e tornando-se um “hóspede” desse grupo, Noah é colocado em uma cabana, sendo alimentando e tendo à sua disposição diversas mulheres mais velhas do grupo para parceria sexual.

Nesse ínterim nosso protagonista vivencia uma experiência sem igual: ao sair com membros do grupo 3, presencia um deles pegar uma vareta bem lixada, colocá-la em um orifício de uma madeira e friccioná-la com as mãos até conseguir tirar daí algumas faíscas que, ao ser aproximada de palha seca, acabam por fazer surgir uma fogueira.

Enquanto isso, os dois companheiros de Noah vão à sua procura e tornam-se também prisioneiros do grupo 3, mas durante a noite conseguem se libertar e carregam desacordado seu líder de volta para o local onde estava o seu grupo, o grupo 1. A mocinha,

(6)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

quando percebe que o seu companheiro não está mais no acampamento, vai atrás dele, sugerindo que seu grupo conhece a relação monogâmica.

De volta ao seu grupo, que ainda se encontra no meio da ilhota onde ele os deixou, Noah tenta mostrar como é possível fazer o fogo a partir do que viu, mas essa técnica ainda precisa ser melhor dominada por ele. A jovem, então, mais experiente na técnica de friccionar a madeira, mostra como o fogo pode ser produzido.

Após ter vivenciado essas novas experiências, Noah narra, para os membros de seu grupo, a história sobre os mamutes utilizando-se de uma linguagem gestual e de um artefato material: um par de presas do animal. A narrativa gestual demanda uma certa ordenação dos movimentos, aproximando-os de uma sintaxe linguística, que por si só não é suficiente para compor o universo simbólico necessário para a transmissão de uma mensagem. É preciso ainda lançar mão de artefatos que os aproximem do seu universo real; para isso, o uso das presas do animal serve como recurso icônico imprescindível para a construção de sentidos, o que para nós é também transmissão de informação.

A INTERICONICIDADE E A CONSTRUÇÃO DA INFORMAÇÃO

A noção de intericonicidade foi desenvolvida por Jean-Jacques Courtine, na França nos final dos anos 1960, no seio de um efervescente período de estudos sobre discurso. Essa noção faz parte de uma rede de conceitos que pressupõe a existência de algo que é apreendido por meio do interdiscurso, considerando que a própria formulação enunciativa põe em conexão elementos discursivos pré-construídos que não só fazem parte do enunciado, mas também fornecem a matéria prima que constitui o sujeito como falante. Assim, os estudiosos dessa corrente teórica, a Análise do Discurso de vertente francesa, defendem que nas enunciações existe sempre um “já lá”, que pode ser apreendido por meio do interdiscurso. Essa transversalidade deixa vestígios “nos dizeres dos sujeitos e afeta, de certo modo, o próprio sentido das palavras”. (MILANEZ CORREIO, 2013, p. 346).

Estamos aqui nos utilizando de uma noção claramente calcada nas marcas de linguagem para discutir um filme que retrata um período pré-histórico, portanto anterior à constituição da língua. O que nos instiga, na verdade, é que, em se considerando o caráter ficcional da obra analisada, e que certamente traz inúmeras licenças poéticas sobre

(7)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

possíveis ocorrências ao longo da história da humanidade, assumimos que, mesmo sem a linguagem constituída como a concebemos hodiernamente, havia forma de transmissão de saberes que permitiu aos homens evoluírem seu estágio de desenvolvimento.

Além disso, em um período em que a possibilidade de registrar os fatos era muito difícil e ainda não muito desenvolvida, nosso pressuposto é que as trocas de saberes calcavam-se na memória para estabelecer relação entre fenômenos anteriores e posteriores, cuja transmissão calcava-se fortemente no uso de objetos que, pela iconicidade, permitiam melhor compreensão do que estava sendo narrado. A cena recém descrita, em que o protagonista narra suas aventuras utilizando um par de presas do animal, nos parece bem ilustrar o que dizemos, porque ele lança mão de um artefato familiar à realidade circundante, já que não possuem linguagem que lhes permitiria simbolizar.

Para compreendermos a noção de intericonicidade, retomemos a fala de Courtine, (apud MILANEZ CORREIO, 2013, p.346) quando em uma entrevista que deu ao autor ele diz que

[...] a intericonicidade supõe as relações das imagens exteriores ao sujeito como quando uma imagem pode ser inscrita em uma série de imagens, uma genealogia como o enunciado em uma rede de formulação, segundo Foucault. Mas isso supõe também levar em consideração todos os catálogos de memória da imagem do indivíduo. Eu tenho a tendência de dar a essa noção de intericonidade.[…] uma dimensão suplementar, indo de um lado mais antropológico para situar o indivíduo, o sujeito, não só como produtor, mas também como intérprete, e de certa maneira como suporte das imagens dessa cultura. Ao ilustrar sua proposição, Milanez Correio (2013) se aprofunda na análise de um quadro de Guignard, As Gêmeas, datado de 1940, para fazê-lo dialogar com outras imagens, como a formar uma sintaxe que foge ao linguístico. Nesse sentido, o autor aproxima sua análise ao que propõe Foucault (2008, p. 96), ao considerar o enunciado como uma “função que é preciso descrever agora como tal, ou seja, em seu exercício, em suas condições, nas regras que a controlam e no campo em que se realiza”. Para Foucault, o importante é considerar o que regularia a construção dos enunciados, em última instância, ele quer saber como surgiu aquele determinado enunciado, e não, outro.

Para estabelecer a relação com o filme, diríamos que, mais do que relacionar a cena da narrativa do protagonista com outras imagens que lhes estabelecessem uma genealogia,

(8)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

preferimos olhar a cena por si mesma e pensar de que forma aquele grupo de humanos conseguia se fazer entender: nesse sentido, o uso de um recurso como as presas do animal estabelece um diálogo com o “já lá” previsto em todo e qualquer discurso. Era preciso já ter visto um animal com essas presas para conseguir construir sentido convergente ao que estava sendo narrado. Mais do que realizar análise aprofundada na imagem fílmica propriamente dita, preferimos optar por pensar no uso das estratégias, como, por exemplo, o uso de parte de um animal, suas presas, para tentar pensar no modo como os nossos antepassados construíam saberes. Nesse sentido, concebemos que, ao lado de estratégias de iconicidade, o substrato da memória, e do que se poderia chamar de memória discursiva, já poderia estar presente no ambiente cultural.

MEMÓRIA, INTERICONICIDADE E CULTURA MATERIAL

A narrativa fílmica termina com uma cena emblemática que mostra o casal deitado apreciando a lua e a jovem grávida tendo sua barriga acariciada pelo companheiro, o que nos aponta para, pelo menos, duas etapas do processo evolutivo humano: a percepção de que existe causalidade entre a relação sexual e a procriação; e ainda, do estabelecimento da monogamia para garantir a paternidade.

Ancoradas primeiramente no modelo de Milanez Coreio (2013), levamos em conta alguns conceitos e aspectos de que o autor trata: 1) o de memória discursiva; 2) o conceito de intericonicidade; 3) o lugar do sujeito analista como um arquivo.

Foi com base nesses itens que analisamos o filme e o utilizamos como um armazenador de imagens em confronto com o “catálogo de imagens de [nossas] memórias visuais” (MILANEZ CORREIO, 2013, p. 351).

Tal construção decorre do pressuposto de que o universo simbólico é constituidor da memória do grupo, com base no conhecimento que o grupo produz.

Essa representação simbólica também pode ser analisada à luz de algumas discussões acerca da cultura material trazida pelas ciências sociais que descrevem e discutem aspectos coletivos de uma história da cultura, considerando a constituição de uma sociedade ou grupo a partir de seus membros e seus objetos [coisas] (BUCAILLE; PESEZ, 1989).

(9)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

Em consonância com o filme analisado utilizamos dois aspectos apresentados pelos autores que são a coletividade e a repetição. O primeiro diz respeito ao fato de que os homens mantêm uma relação com quaisquer tipos de artefatos de forma coletiva, ou seja, o uso, o conhecimento, o aprendizado, a transmissão, etc. da interferência do sujeito em relação à natureza (e suas transformações), o que pressupõe uma negociação entre sujeitos de um mesmo ou de diferentes grupos. Assim, no filme A Guerra do Fogo, temos alguns exemplos desse aspecto. Ao ver como se produz fogo e como se dá uma gargalhada, essas tecnologias e conhecimentos são apropriados (de forma consentida) e levados para outro grupo. Ao reproduzi-los, utilizam-se de uma estratégia de repetição com vistas ao uso e à transmissão desses saberes.

Esse segundo aspecto, o da repetição, é bem ilustrado nos exemplos citados anteriormente, evidenciando que a incorporação de determinadas práticas demandam o caráter repetível para serem apreendidas, aceitas e incorporadas pelo próprio grupo.

Em Pacheco pautamo-nos no conceito de artefato “como os arqueólogos o compreendem, seria qualquer objeto confeccionado [intencionalmente] pelo homem.” (1995, p. 21). Por essa característica, e não sendo obra de um acaso (pertencem ao coletivo e são repetidos) é capaz de registrar o conhecimento humano, e por ser um “registro de vários conteúdos, e incorporar diferentes registros. Ele é fruto e formador de contextos.” (PACHECO, 1995, p. 23). Esses contextos realçam o tipo de informação transmitida permitindo a construção do conhecimento de forma espacial, temporal e morfológica reforçando mais uma vez que não é obra de um acaso. (PACHECO,1995). Mais um exemplo do uso como artefato é a presença da presa de mamute para narrar ao grupo como dominou a manada. Tal artefato é proveniente da cultura material, e serve de elemento legitimador da narrativa e constituidor da linguagem.

Nesse sentido, a linguagem, inicialmente utilizando artefatos de iconicidade mais próxima da realidade circundante, vai se transformando ela própria em mais um artefato produzido pelo homem, permitindo que o homem abstraia cada vez mais, tendo a oportunidade de construir universos simbólicos cada vez mais complexos. Sem a compreensão de uma memória discursiva, constituidora e ao mesmo tempo constituinte da linguagem, acreditamos que esse desenvolvimento não seria possível.

(10)

ARTEFACTUM – REVISTA DE ESTUDOS EM LINGUAGEM E TECNOLOGIA ANO VII – N° 2/2015

REFERÊNCIAS

A GUERRA do Fogo (Quest for Fire). Dirigido por Jean-Jacques Annaud, 1981. 110min., son., color.

BUCAILLE, Richard; PESEZ, Jean-Marie. Cultura material. In: GIL, Fernando (Coord.). Enciclopédia Einaudi: homo-domesticação, cultura material. v. 16. Porto: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1989. p. 11-47.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

MILANEZ CORREIO, Nilton. Intericonicidade: funcionamento discursivo da memória das imagens. Acta Scientiarum. Langauge and Culture. Maringá, v.35, n.4, p. 345-355, Oct.-Dec., 2013.

PACHECO, Leila Maria Serafim. A informação enquanto artefato. INFORMARE – Caderno do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.20-24, jan./jun. 1995.

VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre análise fílmica. 3a ed. Campinas, SP: Papirus, 1994.

SOBRE AS AUTORAS: Evelyn Orrico

Médica (1978), Bacharel em Letras Português-Francês (1990) e Mestre em Linguística (1995) pela UFRJ. Doutora em Ciência da Informação (2001) pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), no convênio estabelecido com a UFRJ. Atualmente é professora Associado II da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), atuando há 13 anos no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS). Vice-coordenadora do Programa (2001-2004), assumindo a coordenação no período 2004-2006. Atualmente coordena o Curso de Mestrado em Memória Social. Re-eleita para a atual diretoria da ISKO-Brasil (2013-2015), como tesoureira, coordena dois projetos de pesquisa financiados pelo CNPq e é colaboradora de projeto financiado pela FAPERJ, no âmbito do edital Pensa Rio. Atua nas áreas de Estudos Sociais e Ciência da Informação com enfoque na relação entre Memória-Discurso-Ciência-Divulgação científica. Suas áreas de interesse de pesquisa são as relações entre memória, linguagem e informação, assim como os seus variados meios de criação, validação e divulgação por diferentes mídias.

Leila Ribeiro

Graduação em História (1981) e Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1982), mestrado (1992) e doutorado (2005) em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), no convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professora Adjunta IV da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) do Departamento de Processos Técnico-Documentais e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS). Tem experiência na área de Ciência da Informação, atuando principalmente nos seguintes temas: informação, patrimônio, narrativas, coleções e imagens.

Referências

Documentos relacionados

A combinação dessas dimensões resulta em quatro classes de abordagem comunicativa, que podem ser exemplificadas da seguinte forma: interativo/dialógico: professor e

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

Considera-se que a interdisciplinaridade contribui para uma visão mais ampla do fenômeno a ser pesquisado. Esse diálogo entre diferentes áreas do conhecimento sobre

001 375731 LUIZ SEVERO BEM JUNIOR ACESSO DIRETO (SEM PRÉ-REQUISITO) - NEUROCIRURGIA 002 375826 CLAUDIONOR NOGUEIRA COSTA SEGUNDO ACESSO DIRETO (SEM PRÉ-REQUISITO) - NEUROCIRURGIA

Conforme as Tabelas 2 e 3, os valores médios de resistên- cia e módulo de elasticidade a compressão paralela às fibras, a resistência ao fendilhamento, e a resistência ao

Fita 1 Lado A - O entrevistado faz um resumo sobre o histórico da relação entre sua família e a região na qual está localizada a Fazenda Santo Inácio; diz que a Fazenda

b) ACRESCENTE 36 unidades de milhar, 90 dezenas e 5 unidades ao número que corresponde à capacidade de pessoas desse estádio. Observe os calendários a seguir. a)

Ao longo do livro, você poderá notar que a maioria das receitas leva ou azeite de oliva ou manteiga como gordura para cozinhar - e estas são excelentes fontes de gordura.. Porém,