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Espaço funerário em Alexandria: tumba principal de Kom elShoqafa, séculos I e II d.C

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Academic year: 2021

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ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.

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ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS

LINHA DE PESQUISA: LINGUAGENS, IDENTIDADES E ESPACIALIDADES

ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.

ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

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ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa III, Linguagens, Identidades e Espacialidades, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do(a) Prof(a). Dr(a). Marcia Severina Vasques

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Castro Júnior, Elian Jerônimo de.

Espaço funerário em Alexandria: tumba principal de Kom el-Shoqafa, séculos I e II d.C / Elian Jerônimo de Castro Júnior. - Natal, 2019.

139f.: il. color.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal, 2019.

Orientadora: Profa. Dra. Marcia Severina Vasques.

1. Espaço Funerário - Dissertação. 2. Alexandria - Dissertação. 3. Emaranhamento Cultural - Dissertação. I. Vasques, Marcia Severina. II. Título.

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ELIAN JERÔNIMO DE CASTRO JUNIOR

ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA: TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA, SÉCULOS I E II D.C.

Dissertação aprovada como requisito para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores:

_________________________________________ Nome do Orientador

__________________________________________ Nome do Avaliador Externo

________________________________________ Nome do Avaliador Interno

____________________________________________ Nome do Suplente

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AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente ao meu pai, minha mãe e minha irmã pelo apoio, suporte e estímulo aos estudos. Nos momentos alegres e tristes, fáceis e difíceis, foram eles que mais estiveram presentes, me ouviram, me confortaram e me incentivaram. Muito obrigado por todo o amor e compreensão que recebo de vocês.

Agradeço à minha professora orientadora, Dra. Márcia Vasques. Muito obrigado pela paciência, pela generosidade em compartilhar sua sabedoria (e seus livros!), por acreditar na minha capacidade. Essa dissertação é reflexo do meu fascínio e interesse pela Antiguidade, que surgiu nas suas aulas de História Antiga I, em 2012. Sou completamente grato pela sua orientação desde a minha graduação.

Muito obrigado aos professores Dra. Lyvia Vasconcellos e Dr. Francisco Santiago, pelas contribuições na minha banca de qualificação.

Agradeço à CAPES pela bolsa de pesquisa, auxílio essencial para a confecção deste trabalho.

Agradeço aos amigos do MAAT – Núcleo de História Antiga da UFRN, por ter acompanhado minha trajetória ao longo da graduação e do mestrado. Em específico, sou muito grato à Keidy Matias, pela amizade, suporte e incentivo.

Agradeço aos amigos que me acompanharam de perto nessa jornada:

Jorge, Igor, Gabriel, Nilson e Arthur: nosso time de League of Legends é o melhor, mesmo que tenhamos mais derrotas do que vitórias. As risadas em meio às partidas são o que mais vale a pena.

Famara, Malu, Rafael, João Paulo e Lizandro, sou muito grato pelas conversas, desabafos, e reflexões que tivemos juntos.

Aretuza, Vanessa, Analu e Katy, obrigado pela amizade e pelo carinho. Muitas saudades dos almoços de sábado, mesmo que fosse o dia mais cansativo do trabalho.

Aos demais amigos, sou grato pelo carinho recebido, pela paciência compartilhada e pelos bons momentos vividos juntos.

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RESUMO

Alexandria, centro político do governo dos Ptolomeus e capital da província do Egito no período romano, foi marcada pelo aspecto cosmopolita de sua população e cultura. Apesar de haver uma valorização da cultura grega, a religião egípcia exerceu grande influência nessa cidade. Aspectos religiosos são os mais notáveis, sobretudo no que diz respeito às crenças funerárias. Essa pesquisa busca investigar as interações culturais que aconteceram no espaço funerário, tendo como objeto de estudo uma tumba localizada no sítio arqueológico de Kom el-Shoqafa, situado em Alexandria, cuja construção data entre os séculos I e II d.C. A partir de uma análise da arquitetura e da iconografia presentes nessa tumba, defendemos a ideia de que as culturas egípcia, grega e romana se integraram em um processo de emaranhamento, conceito criado pelo arqueólogo Phillip Stockhammer (2012). Esse processo é reflexo da diversidade cultural e social de Alexandria no período romano, resultado do contato com a cultura egípcia ao longo dos séculos de dominação ptolomaica.

Palavras-chave: Espaço Funerário – Alexandria – Emaranhamento Cultural

ABSTRACT

Alexandria, the political center of the Ptolemies and capital of the province of Egypt during the Roman period, was marked by the cosmopolitan aspect of its population and culture. Although there was an overvaluation of Greek culture, the Egyptian tradition had a great influence in this city. Religious aspects are the most notable, especially regarding to funeral beliefs. This research seeks to investigate the cultural interactions that took place in the funerary space, having as object of study a tomb located in the archaeological site of Kom el-Shoqafa, situated in Alexandria, whose construction dates between the first and second centuries AD. By analyzing the architecture and the iconography present in this tomb, we defend the idea that the Egyptian, Greek and Roman cultures were integrated in a process of entanglement, a concept created by archaeologist Phillip Stockhammer (2012). This process reflects the cultural and social diversity of Alexandria in the Roman period, deriving from the contact with the Egyptian culture throughout the centuries of Ptolemaic domination.

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ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1. Busto do deus Serápis encontrado no Serapeum, datação do século II d.C. ... 32

Figura 2. Planta baixa e reprodução do complexo templário de Serápis... 33

Figura 3. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período ptolomaico ... 53

Figura 4. Mapa de Alexandria com os sítios de necrópole do período romano. ... 53

Figura 5. Mapa atual de Alexandria com todos os sítios de necrópole já escavados ... 54

Figura 6. Alabaster Tomb, visão externa e interna. ... 59

Figura 7. Planta baixa do hipogeu “A”, sítio de Shabti ... 60

Figura 8. Planta baixa do hipogeu Moustafa Pasha 1 ... 60

Figura 9. Fachada sul de Moustafa Pasha 1 ... 61

Figura 10. Planta baixa do sítio de Ras el-Tin, Ilha de Faros ... 62

Figura 11. Tumba 8 de Ras el-Tin, sala contendo o nicho com kliné ... 63

Figura 12. Planta baixa do sítio de Anfushy... 64

Figura 13. Câmara funerária da tumba de Lefkadia, século IV a.C., Macedônia ... 65

Figura 14. Sala I da tumba II em Anfushy ... 65

Figura 15. Naiskos em loculus da tumba Anfushy V ... 66

Figura 16. Desenho de vista áerea do Serapeum e Lageion ... 68

Figura 17. Planta baixa de Kom el-Shoqafa. ... 69

Figura 18. Plano seccional da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa ... 70

Figura 19. Poço e Rotunda ... 71

Figura 20. Triclínio ... 72

Figura 21. Detalhe da concha esculpida na rocha acima da antessala... 73

Figura 22. Kliné da tumba de Isidora, Hermópolis Magna, século II d.C ... 74

Figura 23. Pronaos da Tumba Principal ... 75

Figura 24. Desenho arqueológico da antessala ... 76

Figura 25. Estátua feminina, nicho esquerdo ... 77

Figura 26. Estátua masculina, nicho direito ... 78

Figura 27. Estátua e amuleto do Período Tardio.. ... 79

Figura 28. Parede interna da entrada da câmara mortuária. ... 81

Figura 29. Nicho central ... 82

Figura 30. Detalhe do sarcófago romano do nicho central. ... 83

Figura 31. Desenho arqueológico do sarcófago do nicho central ... 84

Figura 32. Nichos esquerdo e direito da câmara mortuária. ... 85

Figura 33. Sarcófago do nicho esquerdo ... 86

Figura 34. Sarcófago do nicho direito ... 86

Figura 35. As famílias de imagem ... 88

Figura 36. Resumo da teoria imagética de Bruneau e dos conceitos de Bérard ... 103

Figura 37. Relevo escultórico da serpente Agathos Daimon ... 104

Figura 38. Anúbis soldado anguípede ... 107

Figura 39. Anúbis soldado/legionário. ... 108

Figura 40.Anúbis anguípede (a) e Anúbis soldado (b).. ... 109

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Figura 42. Detalhe do sarcófago com a cena da mumificação, Hawara, 100 d.C. ... 111

Figura 43. Encantamento 151 do Livro dos Mortos. ... 112

Figura 44.Desenho arqueológico da cena de mumificação ... 113

Figura 45. Nicho central – Parede direita.. ... 116

Figura 46. Hieróglifo Mehyt/moita de papiro e pilar djed. ... 117

Figura 47. Nicho central – Parede esquerda. ... 118

Figura 48. Nicho esquerdo – Parede central. ... 119

Figura 49. Estela de Ptolomeu II e estela de Diocleciano ... 121

Figura 50. Nicho esquerdo - Parede direita.. ... 122

Figura 51. Nicho esquerdo – Parede esquerda. ... 123

Figura 52. Nicho direito – Parede direita ... 124

(10)

SUMÁRIO

MAPA ... 11

CRONOLOGIA ... 12

INTRODUÇÃO ... 15

CAPÍTULO 1 – EGITO GRECO-ROMANO E ALEXANDRIA ... 22

1.1. UMA PROPOSTA TEÓRICA PARA O HIBRIDISMO CULTURAL: EMARANHAMENTO ... 38

CAPÍTULO 2 – ESPAÇO FUNERÁRIO EM ALEXANDRIA ... 43

2. 1. ESPAÇO FUNERÁRIO: PREMISSAS, REFLEXÕES E DEFINIÇÕES ... 43

2.2. TUMBAS ALEXANDRINAS: CARACTERÍSTICAS GERAIS E CLASSIFICAÇÕES ... 52

2.3. TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA: ANÁLISES E INTERPRETAÇÕES ... 67

2.3.1 ANTESSALA OU PRONAOS ... 72

2.3.2 – CÂMARA MORTUÁRIA ... 81

CAPÍTULO 3 – RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL DE KOM EL-SHOQAFA ... 88

3.1 – QUESTÕES CONCEITUAIS SOBRE IMAGEM ... 88

3.2 - PROPOSIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: O PARADIGMA SEMIOLÓGICO ... 96

3.3 – ANÁLISE ICONOGRÁFICA DOS RELEVOS DA TUMBA PRINCIPAL ... 104

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS ... 127

(11)

11 MAPA1

(12)

12 CRONOLOGIA

PERÍODO GRECO-ROMANO ATÉ 395 d.C. 2

DINASTIA MACEDÔNICA 332-305 a.C.

Alexandre III O Grande 332-323

Filipe Arrideu 323-316

Alexandre IV 316-305

DINASTIA PTOLOMAICA 305-30 a.C.

Ptolomeu I Sóter 305-282

Ptolomeu II Filadélfo 285-246

Ptolomeu III Evérgeta I 246-221

Ptolomeu IV Filópator 221-205

Ptolomeu V Epifânio 205-180

Ptolomeu VI Filómetor 180-164, 163-145

Ptolomeu VIII Evérgeta II (Fiscão) 170-163, 145-116

Ptolomeu VII Neo Filópator 145

Cleópatra III e Ptolomeu IX Sóter II (Látiro) 116-107 Cleópatra III e Ptolomeu X Alexandre I 107-88

Ptolomeu IX Sóter II 88-81

Cleópatra Berenice 81-80

Ptolomeu XI Alexandre II 80

Ptolomeu XII Neo Dioniso (Auleta) 80-58, 55-51

Berenice IV 58-55

Cleópatra VII Filópator 51-30

Ptolomeu XIII 51-47

Ptolomeu XIV 47-44

Ptolomeu XV Cesário 44-30

DOMÍNIO ROMANO

Júlio César 48-44 a.C.

Dinastia Julio-Claudiana

Caio Otávio César (Otaviano) Augusto 30 a.C. – 14 d.C.

d.C.

Tibério Cláudio Nero César 14-37

2 Cronologia baseada em McKenzie (2007). Recorte temporal proposto por Vasques (2006), em que se

(13)

13

Caio Júlio César Calígula 34-41

Tibério Cláudio César Augusto Germânico 41-54

Nero Cláudio César Augusto Germânico 54-68

Galba 68-69

Otão 69

Vitélio 69

Dinastia Flaviana

Tito Flávio Vespasiano 69-79

Tito Flávio Sabino Vespasiano 79-81

Tito Flávio Domiciano 81-96

Marco Coceio Nerva 96-98

Marco Úlpio Trajano 98-117

Públio Élio Adriano 117-138

Dinastia Antonina

Tito Aurélio Antonino Pio 138-161

Marco Aurélio Antonino (com Lúcio Aurélio Vero) 161-180 (161-169 )

Lúcio Aurélio Cômodo 180-192

Públio Hélvio Pertinax 193

Marcos Dídio Severo Juliano 193

Pescênio Níger 193

Dinastia Severa

Lúcio Septímio Severo 193-211

Marco Aurélio Antonino Caracala 211-217

Públio Sétimo Geta 211

Opélio Severo Macrino 217-218

Marco Opélio Diadumeniano 218

Marco Aurélio Antonino Heliogábalo 218-222

Marco Aurélio Severo Alexandre 222-235

Caio Júlio Vero Maximino 235-238

Marco Antônio Giordano Semproniano (Giordano I) 238 Marco Antônio Giordano Semproniano (Giordano II) 238

Marco Clódio Pupieno 238

Décimo Célio Calvino Balbino 238

Marco Antônio Giordano (Giordano III) 238-244

Marco Júlio Felipe, “o Árabe” 244-249

(14)

14

Caio Víbio Treboniano Galo 251-253

Marco Emílio Emiliano 253

Públio Licínio Valeriano 253-260

Públio Licínio Inácio Galiano 253-268

Marco Aurélio Cláudio II 268-270

Marco Aurélio Quintilo 270

Lúcio Domicio Aureliano 270-275

Marco Cláudio Tácito 275-276

Marco Ânio Floriano 276

Marco Aurélio Probo 276-282

Marco Aurélio Caro 282-283

Marco Aurélio Numeriano 283-284

Marco Aurélio Carino 283-285

Caio Aurélio Valério Diocleciano 284-305

Marco Aurélio Valério Maximiano 286-310

Caio Flávio Valéio Constâncio I 305-306

Galério Valério Maximiano 305-311

Tetrarquia (Diocleciano, Maximiano, Constâncio, Galério)

293-305

Severo II 306-307

Marco Aurélio Valério Magêncio 306-312

Galério Valério Maximino Daia 310-313

Flávio Constantino 306-337

Caio Valério Liciniano Lincínio 308-324

Dinastia de Constantino

Constantino II 337-340

Constante I 337-350

Constâncio II 337-361

Juliano (“O Apóstata”) 361-363

Joviano 363-364 Dinastia Valentiniana Valente (Leste) 364-378 Valentiniano I (Oeste) 364-375 Graciano (Oeste) 367-383 Valentiniano II (Oeste) 375-392

Eugênio (Oeste, usurpador) 392-394

(15)

15 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa versa sobre a diversidade cultural da cidade de Alexandria durante a época de dominação romana no Egito. Fundada em 331 a.C. com uma forte matriz helênica, a cidade manteve contato com diversos povos e culturas que transitavam pelo Mar Mediterrâneo, assim como também interagiu com a tradição milenar egípcia. Nosso principal interesse de investigação é compreender tais interações que acontecem no espaço funerário, tomando como objeto análise uma tumba alexandrina do século I e II d.C. A evidência material encontrada nesse espaço é capaz de indicar a complexidade nas relações culturais e sociais de Alexandria, cidade que nasceu em um diversificado feixe de culturas.

A invasão de Alexandre no Egito, em 332 a.C. resultou na expulsão dos governantes persas, provocando mudanças radicais na sociedade egípcia, principalmente no que diz respeito à política, administração, economia e nas várias esferas culturais. Em 305 a.C., quando o general Ptolomeu assumiu o posto de rei e fundou a dinastia ptolomaica, já era visível a legitimidade dada pelo clero egípcio da cidade de Mênfis a esses novos governantes, que se associaram à figura do faraó e se investiram de símbolos egípcios ligados à realeza. O novo governo fez uso da tradição religiosa egípcia para se manter no poder, mas introduziu também uma máquina administrativa e burocrática nova para controlar as riquezas e expandir seus domínios.

A entrada de imigrantes greco-macedônicos no território egípcio aumentou o contato da tradição helênica com a cultura milenar do período faraônico. A língua grega foi estabelecida como oficial; a capital do país, fundada com o status de pólis, Alexandria, dispunha de instituições gregas que garantiram a disseminação da educação e do estilo de vida helênico. O território da chôra3, adentrando no Médio e Alto Egito, também contou com o estabelecimento de população de origem helênica. A partir disso, os indivíduos de origem greco-macedônica passaram a ter privilégios ligados ao status grego, em detrimento dos nativos, principalmente na questão da participação política e administrativa, em que os egípcios se encontravam excluídos das decisões.

Contudo, as instituições religiosas ligadas à tradição egípcia continuaram existindo e exercendo papel político importante, como é o caso do clero menfita e da sua ação legitimadora

3 Original em grego “χώρα”, o termo pode significar espaço, território, campo ou interior. No caso de

(16)

16 na sucessão real dos Ptolomeus; os deuses egípcios mantiveram-se cultuados nos templos e os costumes funerários também persistiram conjuntamente aos costumes de origem grega e macedônica. A diferenciação de status social entre gregos e egípcios coexistiu com momentos de contato e troca cultural entre esses dois grupos. Atualmente, prefere-se evitar ideias extremas: não é possível afirmar uma forte separação ou isolamento, mas também não podemos assumir uma ideia de completa mistura ou fusão de tradições culturais tão distintas e em certos aspectos excludentes. Tanto a administração ptolomaica quanto a romana distinguiam o status dos indivíduos por meio de genealogias e categorias identitárias. Essas divisões foram se tornando permeáveis, devido à miscigenação e à própria temporalidade, acumulando séculos de trocas culturais.

O contato do Egito Ptolomaico com Roma já datava desde o fim do período republicano. César já havia criado laços políticos com a rainha Cleópatra VII, sucedido por Marco Antônio após a morte do general em 44 a.C. A derrota de Cleópatra e Marco Antônio para as tropas de Otávio significaram o fim da soberania do Egito enquanto região independente. A partir de 30 a.C., o Egito se tornou uma província romana; Alexandrea ad Aegyptum é a denominação romana que aparece nos documentos escritos da época. O governo da província estava a cargo de um prefeito nomeado diretamente pelo imperador; a divisão administrativa tomou forma de acordo com as regras e políticas romanas. O período romano no Egito se estendeu até 395 d.C., quando o imperador Teodósio dividiu o território entre Império Romano do Ocidente e Império Romano do Oriente4. O Egito integrou a porção oriental do império.

O campo religioso se mostra de forma interessante em meio ao contexto de dominação. Apesar das inovações políticas e administrativas provenientes da hegemonia romana, os templos tradicionais continuaram suas atividades de culto aos deuses egípcios. Os costumes funerários do Egito faraônico também sobreviveram e ganharam novos adeptos no período romano, sobretudo nas póleis do Médio e Baixo Egito que possuíam população grega miscigenada. Essa dinâmica atesta uma realidade muito mais complexa do que podemos imaginar. Em Alexandria, a investigação das interações culturais possui grande potencial na análise dos espaços funerários, tendo em vista o grau de preservação desses locais. Dessa forma, podemos indagar: como o espaço funerário é capaz de registrar a interação das culturas greco-romana e egípcia? Em que medida isso é reflexo da diversidade cultural da sociedade alexandrina do período romano?

(17)

17 A evidência material nos traz diferentes aspectos sobre como as culturas podem interagir entre si. Por exemplo, os retratos dos reis da dinastia ptolomaica ilustram o aspecto dual entre a cultura clássica e egípcia, visto a produção de bustos no estilo clássico e de estátuas que seguem o padrão egípcio. A literatura acadêmica sobre as interações culturais de Alexandria costuma privilegiar o componente grego, em detrimento das contribuições egípcias e romanas. Buscamos nessa pesquisa reavaliar essa questão, trazendo à tona a importância da religião egípcia e as inovações arquitetônicas romanas que são visíveis nas tumbas dessa cidade. Dessa forma, a dimensão espacial possui grande destaque e protagonismo nesse trabalho.

O espaço funerário, entendido enquanto um artefato, nos evidencia a interação cultural: a tradição egípcia de deuses e rituais coexiste, interage e eventualmente se mescla com traços e temas gregos e romanos. Sustentamos a ideia de que as culturas presentes em Alexandria passaram por processos de trocas, assimilações e interpretações que culminaram na criação de um espaço funerário distinto, de caráter notavelmente mesclado na sua arquitetura e iconografia. Nossa hipótese é de que esses processos se iniciam no período ptolomaico, se intensificam no último século a.C. e é amplamente observado no período romano. Podemos inferir, a partir disso, que a sociedade alexandrina nos séculos I e II d.C. se aproximava e se apropriava de forma intensa da cultura egípcia, mantendo ainda o seu substrato cultural clássico presente. As inovações arquitetônicas de caráter romano diversificam ainda mais o contexto funerário trabalhado nessa pesquisa.

Nossa pesquisa toma como objeto de investigação o espaço funerário da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, sítio arqueológico localizado na cidade de Alexandria, datando da época de dominação romana no Egito. Escavado no início do século XX, o sítio arqueológico nomeado em árabe por Kom el-Shoqafa abriga o maior sítio de necrópole de Alexandria. A datação é estimada entre a segunda metade do primeiro século d.C. até a primeira metade do segundo século, a partir das associações de datas aos motivos arquitetônicos e decorativos presentes no local. A hipótese de datação mais aceita é que a tumba foi construída por volta de 69-79 d.C, defendida por autores como Susan Venit (2002, 2015) e Anne-Marie Guimier Sorbets (2017). Em contrapartida, os sarcófagos encontrados na câmara funerária sugerem uma datação posterior, indo até a segunda metade do século II d.C. A simplicidade desses elementos em comparação com sarcófagos romanos impede que essa datação seja posta como definitiva. Daí justifica-se a datação variar entre o final do século I até a primeira metade do século II.

(18)

18 O local possui três pisos escavados na rocha. O primeiro nível apresenta corredores e estruturas arquitetônicas greco-romanas. O segundo nível abriga a Tumba Principal, denominada Great Tomb/Main Tomb nas produções científicas estrangeiras. Ela consiste em um grande hipogeu (tumba subterrânea cavada diretamente na rocha), assumindo a forma de templo funerário subterrâneo. O terceiro nível abriga pequenas tumbas e nichos funerários adjacentes, que se encontram no nível de um lençol freático. A tumba estudada por nós está no segundo piso, onde se localizam esculturas, relevos de cenas egípcias e sarcófagos de pedra de estilo romano.

A arquitetura da Tumba Principal, bem como o seu esquema decorativo, tem chamado atenção dos arqueólogos e historiadores pela sua singularidade na combinação de temas e formas das tradições egípcias e greco-romanas. Friedrich Wilhelm von Bissing, egiptólogo alemão responsável pelas primeiras escavações em Kom el-Shoqafa, utilizou da palavra alemã mischkunst (“arte misturada” em uma tradução livre) para definir a Tumba Principal (RIGGS, 2005, p. 5). Susan Venit (2002, 2015), autora de ampla produção sobre as tumbas alexandrinas, considera que houve uma integração singular em torno das tradições egípcias e greco-romanas que é observada na Tumba Principal, desembocando na ideia de bilinguismo cultural. Anne-Marie Guimier Sorbets e Mervat Seif el-Din (2017) definem as tradições artísticas vistas na tumba como justapostas, em que elementos egípcios coexistem com os elementos clássicos. A partir das nossas escolhas conceituais e teóricas, chamaremos de emaranhamento cultural o processo de interação cultural presente no espaço já referido. Esse conceito é recente, proposto pelo arqueólogo Phillip Stockhammer em 2012 e permite análises da cultura material de caráter híbrido, oriunda de contextos históricos e geográficos de contato entre povos. Ao propormos o uso desse conceito, o objetivo não é tomá-lo de forma definitiva ou superior, mas sim diversificar e oferecer uma interpretação diferenciada do que se observa nas produções sobre esse objeto de pesquisa.

Enquanto categoria de nossa investigação, o espaço funerário será entendido pela sua materialidade e pelos seus elementos simbólicos; daremos atenção ao visível e ao invisível. A dimensão material, inerente a qualquer sítio de necrópole, é investida de significados e símbolos sagrados ligados ao mundo do além. A sacralização do espaço ocorre também a partir da realização de rituais, em que a ação humana é capaz de estabelecer pontes com o mundo que não se vê, mas se faz presente a partir da experiência religiosa. Essa experiência acontece em um espaço específico, consagrado a partir dos rituais e símbolos investidos nele. Uma tumba pode ser vista tanto quanto a última moradia dos mortos ali depositados, quanto um limiar entre

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19 o mundo dos vivos e o mundo do além. Dedicado à morte, o espaço funerário é planejado, pensado e também praticado em vida.

Uma análise das estruturas arquitetônicas e da iconografia presentes na câmara funerária será capaz de nos indicar como as tradições culturais tão distintas foram amalgamadas e resultaram em uma arte diferenciada. A dimensão espacial é, portanto, intrínseca: em sua materialidade, o espaço físico dessa tumba apresenta as evidências para o nosso problema de investigação. Os relevos não apenas retratam cenas religiosas e de rituais funerários, como também evidenciam um processo de apropriação e criação singular. Esse espaço material reflete, também, uma concepção abstrata, ligada a preceitos religiosos de vida após a morte.

Nossas fontes compõem um conjunto de fotografias, desenhos arqueológicos e plantas arquitetônicas. As fotografias e plantas arquitetônicas foram retiradas das seguintes obras: Repertorio d'arte dell'Egitto greco-romano (1961), de Achille Adriani, um dos principais arqueólogos que escavou Alexandria; Alexandria Rediscovered (1998), de Jean-Yves Empereur; Monumental Tombs in ancient Alexandria: The Theater of the Dead (2002) e Visualizing the Afterlife in the tombs of Graeco-Roman Egypt (2015), da autora Marjorie Susan Venit; e Resurrection in Alexandria: The Painted Greco-Roman Tombs of Kom al-Shuqafa de Anne Marie Guimier-Sorbets, André Pelle, Mervat Seif el-Din (2017). As descrições e análises das fotografias se deram a partir da contribuição de informações presentes nessas obras. Infelizmente, não há menção sobre as dimensões do sítio arqueológico e de seus elementos, como paredes, colunas e corredores.

Os desenhos arqueológicos são dedicados a grande parte dos relevos presentes na tumba. Essas imagens foram retiradas de um banco de imagens da Universidade de Viena5, responsável

pela digitalização das pranchas da obra Les Bas-reliefs de Kom el Chougafa: La catacombe nouvellement découverte de Kom el Chougafa, publicada em 1901 pelo arqueólogo alemão Friedrich Wilhelm von Bissing. A obra conta com o trabalho técnico e artístico de Émile Gilliéron, desenhista de origem sueca. Ressaltamos que nem todos os relevos possuem desenhos correspondentes.

A dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro deles, Egito Greco-romano e Alexandria, é composto por um panorama de informações históricas e características gerais do

5 Phaidra. Universität Wien – University of Viena. Disponível em:

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20 período ptolomaico e romano. Dedicamos também essa parte da pesquisa para apresentar as interpretações mais recorrentes sobre o tema que abordamos. Veremos que não há consenso sobre a arte e arquitetura alexandrinas, por exemplo; mas há uma tendência relativamente nova, que enxerga a interação cultural capaz de mesclar elementos egípcios, gregos e romanos na criação de algo novo. Por fim, o capítulo conta com uma discussão sobre o conceito de emaranhamento cultural, no qual nos referimos anteriormente. Consideramos pertinente apresentar essa ideia desde o início, visto que ela perpassará a análise espacial e iconográfica dos demais capítulos.

O segundo capítulo, Espaço funerário em Alexandria, traz inicialmente uma discussão teórica sobre espaço, seguindo a premissa já mencionada anteriormente de se pensar na materialidade e no aspecto simbólico inerente ao contexto funerário. Procuramos articular ideias de autores das ciências humanas, variando entre obras da Arqueologia, Antropologia, Arquitetura, Geografia, entre outros. Essa discussão teórica nos fornece conceitos importantes na análise espacial da tumba a ser estudada aqui. Nossa premissa, em linhas gerais, consiste em ver o espaço funerário associado à prática dos rituais, possibilitada pelos elementos da sua arquitetura, planejada para receber os mortos. Analisar os componentes materiais é indissociável da reflexão sobre a prática que ali se exercia, mas que não deixa, infelizmente, registros suficientes para avançarmos além de inferências. Uma exposição breve das características gerais das tumbas alexandrinas do período ptolomaico, constando nesse capítulo, nos permitirá que se observe, ao longo do tempo, as assimilações de elementos egípcios à arquitetura greco-macedônica. Por fim, descreveremos e analisaremos a Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, utilizando as fotografias do nosso conjunto de imagens. Faremos a identificação o processo de emaranhamento junto aos elementos constituintes desse espaço, aplicando os conceitos discutidos na primeira parte do capítulo.

O terceiro e último capítulo, Relevos da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, consiste na análise iconográfica dos relevos presentes na antessala e câmara funerária da tumba. Esse capítulo contém uma seleção das fotografias e desenhos arqueológicos que trazem mais detalhes das cenas presentes nos relevos. A priori, propomos uma reflexão teórica sobre Imagem, atentando para a complexa natureza desse elemento e função que ele exerce no espaço. Fazemos uso das ideias de autores da Antropologia, História da Arte e Arqueologia para compor um quadro teórico articulado e diversificado. Em seguida, apresentaremos o nosso referencial metodológico de análise iconográfica, baseado nos preceitos da Arqueologia da Imagem. Essa análise iconográfica decompõe e recompõe a imagem de forma descritiva e

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21 analítica, interpretando os detalhes constituintes das cenas. Conceitos discutidos nos capítulos anteriores, ligados ao espaço funerário e ao emaranhamento serão retomados de forma conjunta nessa análise.

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22 CAPÍTULO 1 – EGITO GRECO-ROMANO E ALEXANDRIA

Segundo Mendoza (2015, p. 399-400), as sociedades das ilhas Egeias do terceiro milênio, como Creta e as Cíclades (c. 2600 a.C.) apresentam indícios de comércio indireto com o Egito, havendo presença de cerâmica e faiança oriundas do Vale do Nilo6. Esse contato a partir de trocas indiretas se acentuou no último milênio a.C., com a emergência das sociedades gregas a partir do século IX e VIII a.C., que comercializavam com o Egito durante sua época Tardia. Colônias gregas foram fundadas no Baixo Egito durante o reinado do faraó Psamético I, na 26ª Dinastia, por volta do século VII a.C. Náucratis é um bom exemplo de colônia grega em território egípcio, onde ocupava uma região estratégica para as atividades comerciais do Egito com o Mediterrâneo. O apoio militar de mercenários contra as investidas assírias no Delta garantiu uma maior presença de população estrangeira oriunda de Miletos, Cária, Iônia.

As investidas persas do Império Aquemênida, sob o comando de Cambises II, chegaram ao Egito por volta de 529-22 a.C., derrotando o faraó Psamético III, último da dinastia saíta. Alexandre, nascido na família real da Macedônia nos meados do século IV a.C., foi responsável pelo avanço bem-sucedido contra o Império Persa. Para Alan K. Bowman (1997, p. 22) Alexandre encontrou pouca resistência dos dirigentes persas ao entrar no Egito, e foi aclamado pelos nativos, que o agraciaram como um faraó legítimo. Ao chegar em Mênfis, o general macedônico fez sacrifícios aos deuses egípcios, recebendo os títulos de realeza tradicionais. Antes de partir rumo à Babilônia, Alexandre fundou uma cidade no Delta, próximo ao povoado nativo de Rhakotis: Alexandria.

A morte de Alexandre em 323 a.C. deixou uma vacância no comando de um vasto império, que se encontrava dividido em satrapias. No Egito, Cleômenes de Náucratis ficou responsável pela região até Ptolomeu, general ligado a Alexandre, ter subido ao poder em 305 a.C.. A partir desta data também se iniciava o período de governo da dinastia Ptolomaica7, com o seu primeiro monarca intitulado Ptolomeu I Sóter (“salvador”). Essa dinastia se manteve no controle do Egito até 30 a.C., sendo Cleópatra VII Filopátor a última regente descendente dos Ptolomeus.

6 Em seu artigo de título Egyptian Connections with the Larger World, a autora discorre sobre as mútuas influências

artísticas das culturas egípcia, egeia/grega e romana em diferentes períodos, como no segundo milênio a.C., Época Tardia no Egito e durante a ascensão do helenismo e do Império Romano. Está presente na coletânea de trabalhos organizada por Melinda K. Hartwig, A companion to Ancient Egyptian Art, publicado pela editora Blackwell no ano de 2015.

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23 Os laços familiares da dinastia ptolomaica eram cada vez mais reforçados por meio dos casamentos consanguíneos, estratégia adotada com o intuito de preservar a linhagem dinástica. As conquistas e a expansão territorial na região da Cirenaica, atual Líbia, e à leste, na região do Levante, são bons exemplos dos sucessos militares de Ptolomeu III. Economicamente, o período ptolomaico atingiu altos níveis de riqueza, muito derivada do comércio marítimo por meio do Mediterrâneo. Alexandria tinha posição privilegiada para essa atividade, dispondo de dois portos, um a leste e outro a oeste. Muito se comercializava com as ilhas gregas e adjacências; Alexandria assim se tornou uma cidade de alto status econômico e intelectual. O território do Egito estava dividido entre a capital, Alexandria e a chôra, palavra grega atribuída à área rural próxima à pólis. No contexto em que estamos nos referindo, tratava-se de todo o restante do país, incluindo as cidades. No período romano, a denominação da província foi de Alexandrea ad Aegyptum, “Alexandria próxima ao Egito”. Havia, portanto, uma diferenciação da pólis com o restante do território. Existiram ainda algumas outras póleis no Egito: Náucratis e Ptolemais, para o período ptolomaico; e Antinoópolis, fundada pelo imperador romano Adriano no ano de 130 d.C.

A prosperidade econômica e militar dos Ptolomeus foi abalada em alguns momentos. Os conflitos com a monarquia selêucida, na região do Levante e da Síria, que aconteceram a partir da segunda metade do século III a.C., resultaram em grandes perdas territoriais para o reinado ptolomaico, principalmente no início do século II a.C. Demais mudanças políticas também ocorreram a partir desses conflitos. Ptolomeu IV batalhou contra Antíoco III utilizando tropas egípcias em meio ao exército, na batalha de Ráfia, acontecida no ano de 217 a.C. Bowman (1997, p. 31) argumenta que pouco tempo depois, entre o ano de 207 e 206 a.C., a região de Tebas testemunhou revoltas nativas, que culminaram na proclamação de dois faraós nativos, Haronnophris e Chaonnophris, situação que persistiu até por volta de 186 a.C. Vasques (2006, p. 14) nos informa que no reinado de Ptolomeu IX Sóter II, a região da Tebaída também atestou novos episódios de revolta, no ano de 88 a.C.; já durante a dominação romana, no controle do prefeito Cornellus Galius, em 29 d.C., a região apresentou sua última revolta. Apesar da prosperidade econômica no início do período ptolomaico, houve também momentos de crise de abastecimento e reivindicações, principalmente pelos nativos.

Antes da metade do século II a.C., a monarquia ptolomaica já mostrava sinais de turbulência política, processo gradativo ao longo das décadas do século II e I a.C. até o momento de transição da dominação macedônica para a romana. O casamento com rainhas estrangeiras foi uma estratégia encontrada pelos monarcas Ptolomeus para garantir alguma

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24 estabilidade em meio aos conflitos dinásticos e políticos. Um bom exemplo dessa tática política foi o casamento de Ptolomeu V Epifânio com Cleópatra I, filha de Antíoco III, monarca selêucida. Os filhos dos casamentos entre monarquias ficavam responsáveis pelo governo das regiões conquistadas, reafirmando as alianças políticas e mantendo os laços dinásticos relativamente próximos. Entretanto, as monarquias helenísticas – na qual se insere o Egito Ptolomaico – passaram por momentos de crise política e instabilidade, tanto por questões geopolíticas externas ou por problemas administrativos internos.

Segundo Livia Capponi (2005, p. 5), a diplomacia entre Roma e o Egito data desde o reinado de Ptolomeu II Filadelfo, que no ano de 273 a.C. estabeleceu acordos diplomáticos com Roma em Alexandria. Essa relação se acentuou nos fins do século III a.C., nos reinados de Ptolomeu IV, Ptolomeu VI e Ptolomeu VIII Evérgeta, cujo reinado se viu em uma forte crise no ano de 155 a.C. A mediação da crise foi encabeçada por Roma, que criava laços diplomáticos cada vez maiores com o Egito. Ptolomeu XII Neo Dioniso (ou Auletes) também protagonizou uma crise em seu reinado, cuja resolução se deu através do senado romano, no ano de 67 a.C. O maior exemplo das estreitas relações entre Roma e a monarquia ptolomaica se deu com Cleópatra VII, a última regente dessa dinastia. Ela já havia se relacionado com Júlio César, que a colocou no trono do Egito em 48 a.C., após travar batalhas com Ptolomeu XIII, seu irmão. Posteriormente à morte de César, as alianças aconteceram entre Cleópatra e Marco Antônio, que estava na disputa com Otávio sobre o controle das posses romanas.

A expansão dos domínios romanos, encabeçada por Otávio, encontrou seu último episódio de oposição na aliança entre Cleópatra e Marco Antônio, que foram derrotados na Batalha de Áccio no ano de 30 a.C. Dali em diante, o Egito foi anexado às posses territoriais romanas. Estavam sob domínio político e militar romano diversas regiões do Mediterrâneo oriental e ocidental, se estendendo do norte do continente africano até localidades da Ásia Menor.

O Egito Ptolomaico foi marcado por um estado burocrático bastante presente. A corte, situada na capital Alexandria, era responsável pela manutenção da máquina de governo, composta por oficiais encarregados de regulamentação e fiscalização da produção econômica, espalhada ao longo do território. A produção de papiro, óleo e trigo, o carro-chefe da economia egípcia desde os tempos faraônicos, manteve o seu controle e distribuição pelas mãos do Estado. A terra também era de propriedade estatal, podendo ser concedida (denominada de clerúquia) aos soldados de origem helênica e macedônica que imigravam para o Egito, se

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25 estabelecendo principalmente nas póleis (Alexandria, Náucratis e Ptolemais) e também na região do Fayum. Outro tipo de concessão existente era a doreai, destinada aos membros da alta corte ligada ao rei (VASQUES, 2006, p. 12).

Em termos demográficos e populacionais, o período ptolomaico foi responsável pela introdução massiva de populações oriundas de várias partes do Mediterrâneo, falantes da língua grega, dentro do Egito. Além da nova elite governante ser estrangeira, contingentes populacionais provenientes da Grécia continental, Ilhas Egéias, Trácia e colônias gregas da Ásia Menor adentraram no território egípcio, destinando-se principalmente para Alexandria e as demais póleis. A partir do século II a.C., judeus também passaram a imigrar para a região, se concentrando principalmente na capital. Os egípcios nativos ainda eram a maioria e estavam concentrados no Vale do Nilo, nas aldeias e unidades administrativas denominadas de nomos, organização oriunda dos tempos faraônicos. Segundo Bowman (1997, p. 141), existiram cerca de 30 a 40 nomos, havendo maior preservação documental nos nomos de Oxirrinco e Hermópolis. A língua oficial do governo ptolomaico era o grego, falado e usado na escrita também nas póleis e demais regiões ocupadas pela população grega. A língua egípcia, mais especificamente o demótico, também é observada na documentação.

Segundo Livia Capponi (2011, p. 17), existiu ao longo do século XX um amplo debate sobre as mudanças e impactos da dominação romana no Egito. Joana Clímaco (2007) discutiu de forma abrangente e clara as ideias acerca das inovações ou manutenções que se sucederam a partir de Augusto. Atualmente, entende-se que a dominação romana foi habilidosa em utilizar as estruturas burocráticas existentes dos reinos helenísticos que subjugava, mas que houve também estratégias únicas e diferenciadas para cada contexto específico de dominação. No caso do Egito, a vasta documentação em papiro já foi a razão pela qual se acreditou que a província se diferenciava das demais regiões tomadas por Roma; hoje em dia não existem razões contundentes para acreditar que o tratamento dado ao Egito foi muito diferenciado das demais províncias espalhadas ao longo do Mediterrâneo. Na verdade, o estudo da dominação romana no Egito tem servido de base para entender as formas de administração de outras províncias.

Obviamente, a tomada de poder por Augusto trouxe impactos notáveis na administração política e econômica no Egito. Ele confiscou as terras de posse de Cleópatra VII e Marco Antônio, assim como as terras dos templos egípcios tradicionais, instituições de grande poder político, perpassando o período faraônico e o ptolomaico. Esse confisco se deu em prol da distribuição que o imperador realizou aos seus mais próximos. Reformas foram feitas no

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26 sistema de irrigação derivado das cheias do Nilo, aumentando a produtividade – é preciso relembrar o papel crucial do Egito como “celeiro” do Império. Augusto também foi responsável pela regulamentação de atividades e serviços compulsórios: as chamadas liturgias.

A peculiaridade na administração romana no Egito se deu pelo cargo de prefeito, responsável por todas as questões administrativas, financeiras e de magistraturas da província. O território egípcio passou por uma nova divisão: Baixo Egito (na região do Delta), Heptanômia (região do Médio Egito) e a Tebaída (região do Alto Egito). Para ajudar na administração, havia o cargo de epistratego, oriundo dos tempos ptolomaicos e que possuía responsabilidades civis e militares, estando restrito à esfera civil no período romano. O cargo administrativo de estratego também deriva do período ptolomaico, estando concentrado nos nomos. Os censos foram a principal ferramenta de controle e captação de impostos, sendo implantados desde o governo de Augusto e estabelecidos em intervalos de 14 anos.

Os critérios de classificação e hierarquização social determinados nos censos vieram a acirrar as questões identitárias e étnicas, a fim de promover um maior controle sobre a sociedade. Os cidadãos romanos residentes no Egito (legionários, imigrantes, cúpula burocrática) e cidadãos alexandrinos estavam isentos dos impostos. Em segundo plano, os gregos helenizados, que poderiam incluir judeus e egípcios que receberam educação distintiva grega, geralmente habitantes das póleis e das capitais distritais dos nomos. Eles pagavam taxas menores ao fisco romano, variando de região para região. Por fim, estavam os egípcios nativos, o estrato basal dessa pirâmide social: pagavam as maiores taxas de impostos e não possuíam nenhum tipo de privilégio; estavam impossibilitados de ocupar cargos administrativos.

Destacamos brevemente alguns imperadores que tiveram suas histórias marcadas pelo Egito. Em 69 d.C., o general Vespasiano, envolvido na guerra da Judeia, buscou apoio político do então prefeito de Alexandria, Tibério Julio Alexandre. Após visitar o Serapeum e participar de rituais, ele foi aclamado como imperador pelas tropas que se encontravam em Alexandria. Veremos mais adiante que a datação da tumba de Kom el-Shoqafa é comumente atribuída ao período de governo de Vespasiano, ainda que não sejam encontradas inscrições ou nomes8. De acordo com Susan Venit (2002, p.143), Vespasiano visitou o templo de Serápis e sob as bênçãos

8 A datação da tumba de Kom el-Shoqafa é imprecisa. Por meio da análise estilística dos retratos esculpidos

presentes nesse lugar, autores como Susan Venit (2002) mesclam essas informações com o contexto histórico de Vespasiano em Alexandria. Todavia, existem outras linhas de datação, baseadas nos sarcófagos da câmara funerária, que se assemelham aos sarcófagos romanos típicos do período de Adriano, nas primeiras décadas do século II d.C..

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27 do deus realizou milagres de cura em dois homens deficientes. Em contrapartida, Joana Clímaco (2007, p. 101) citando Dion Cássio (História Romana, 65.8-9), afirmou que os alexandrinos ficaram decepcionados e revoltados com Vespasiano, após o imperador retomar impostos e aumentar cobranças. Livia Capponi (2011, p. 30) acrescenta que o imperador havia bloqueado o suprimento de grãos do Egito para Roma para chantagear o Senado em prol de sua ratificação como imperador. Isso colocaria em xeque a datação da Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, algo que permanece ainda sem uma precisão cronológica.

Demais revoltas foram observadas em Alexandria9, havendo relativa estabilidade apenas com as ações do imperador Adriano, a partir de 117 d.C.. O imperador visitou o Egito e Alexandria nesse mesmo ano, assumindo o papel de benfeitor e estabilizador: restaurou templos, construiu novos edifícios e fortaleceu os cultos egípcios, gregos e romanos. A princípio, seus atos foram concentrados em Alexandria. De volta a Roma, o imperador iniciou as construções de sua vila em Tibur (Tivoli), onde havia imagens de inspiração egípcia. Adriano retornou ao Egito em 130 d.C., visitando cidades da chôra, como Mênfis. A morte de Antinoo no rio Nilo, amante atribuído ao imperador, resultou na fundação de uma pólis com o seu nome: Antinoopolis. As revoltas voltariam a acontecer no território egípcio a partir da segunda metade do século II d.C., motivadas por problemas de epidemias e pelo assassinato do prefeito Lucius Munatius Felix, em 153 d.C. (CAPPONI, 2011, p. 32).

Na transição do século II para III d.C., destacamos a ação do imperador Caracala, que seguindo os passos do seu pai Septímio Severo, estendeu a cidadania romana para toda a população masculina do império, por meio do edito Constitutio Antoniniana de 212. A visita do imperador à cidade de Alexandria, no entanto, foi extremamente negativa: houve repressão e perseguição por parte das forças imperiais à população nativa e aos cristãos que residiam em Alexandria.10 Para Capponi (2011, p. 35), isso marcou o declínio político e cultural da cidade.

A religiosidade no Egito se demonstrava receptiva desde os tempos faraônicos. Os Textos das Pirâmides, que datam do Antigo Império, atestam a presença de uma divindade da Núbia, Dedun. Deuses orientais, provenientes da região da Síria e Palestina como Reshep, Baal

9 Cf. a dissertação de mestrado de Joana Campos Clímaco, Cultura e Poder na Alexandria Romana, defendida na

USP no ano de 2007. Nesse trabalho, a autora analisa um conjunto de papiros encontrados em Alexandria, Acta

Alexandrinorum, em meio ao contexto de reivindicações políticas e conturbações sociais entre judeus e gregos,

nos dois primeiros séculos do Império Romano.

10 Especula-se que uma área adjacente à Tumba Principal de Kom el-Shoqafa serviu de refúgio para os perseguidos

do imperador, que foram encurralados pelas tropas imperiais. Trata-se do “corredor de Caracala” (Hall of

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28 e Astarte possuem evidências de culto durante o reinado de Amenhotep II, na 18ª Dinastia, durante o Novo Império. Eles eram reconhecidos em seu status divino, chamados de ntjer, que na língua egípcia significava “deus”. A iconografia e o culto a esses deuses se dava à moda egípcia. Tallet e Zivie Coche (2012, p. 437) atentam para o fato de que a entrada dessas divindades não necessariamente indicou o estabelecimento de assentamentos estrangeiros no Egito, sendo muito mais uma característica da religiosidade politeísta.

A chegada de imigrantes gregos em território egípcio, a partir do século VII a.C., permitiu também a entrada de divindades helênicas a receberem cultos, santuários e templos, como pode ser observado na colônia grega de Náucratis, inserida no Egito. A priori, tais divindades atendiam às necessidades religiosas dessa população estrangeira. Do século V a.C., a obra de Heródoto, Histórias, especificamente o segundo volume, traz importantes informações sobre a geografia, a população, a história, os costumes e a religião egípcia, sob o olhar de um homem grego. Para o nosso interesse específico, destacamos a tradução que Heródoto faz sobre o nome de alguns deuses egípcios, empregando nomes de divindades gregas11:

Desde então, os egípcios moldam suas estátuas de Zeus com a cabeça de um carneiro, e os amônios fazem-na graças aos egípcios e aos que são colonos dos egípcios e etíopes, e que falam uma língua que está entre ambas. Parece-me que também o noParece-me que os amônios têm vem disso, eles o colocaram como o seu epônimo; pois os egípcios chamam Zeus de Ámon (HERÓDOTO, Histórias, v. II, 47).

Ainda os nomes dos deuses, quase todos, vieram do Egito para a Hélade. Por esse motivo, eles vieram dos bárbaros, assim eu descobri que eram, após ter sido informado; penso que vieram especialmente do Egito (HERÓDOTO, Histórias, II, 50).

Mas, antes desses homens, os deuses governavam no Egito e eles habitavam junto aos homens, também sempre um deles era o mais poderoso. E que o último deus que reinou no Egito foi Hórus, o filho de Osíris, o qual os helenos nomearam Apolo; ele pôs fim ao reinado de Tífon e foi o último deus que reinou sobre o Egito. E Osíris é Dioniso, conforme a língua Hélade (HERÓDOTO, Histórias, II, 144).

Não é possível compreender se essa tradução helênica dos nomes foi uma maneira de aproximar seus leitores ao universo religioso egípcio, visto que o autor, às vezes, emprega os nomes egípcios para tais divindades. Concordamos com o ponto de vista da autora Françoise

11 Gaëlle Tallet e Christiane Zivie-Coche (2012) empregam o termo interpretatio graeca para o processo de

tradução e compreensão da cultura do outro a partir de elementos gregos. Isso também acontece do lado egípcio, culminando no que seria a interpretatio aegyptiaca.

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29 Dunand, ao afirmar que provavelmente as correspondências entre os nomes gregos e egípcios eram característica comum do tempo de Heródoto (DUNAND, 2004, p. 241). Demais associações e traduções são observadas ao longo do período helenístico e romano: Afrodite e Hathor; Hermes e Thot; Tífon e Seth; Hefesto e Ptah; Deméter e Ísis, dentre outros. No século I d.C., Plutarco produziu uma vasta reflexão filosófica em torno do mito de Ísis e Osíris, presente em um tratado do sétimo volume da sua obra Moralia. Em Iside et Osiris também encontramos essas associações de deuses egípcios e gregos por meio da tradução dos nomes. A evidência literária, seja por Heródoto ou por Plutarco, corroboram as evidências materiais de coexistência religiosa entre essas sociedades.

Para o período ptolomaico e romano, as circunstâncias políticas mudaram consideravelmente em comparação com o período faraônico. Os estrangeiros se tornaram responsáveis pela administração política e econômica do Estado. Do ponto de vista egípcio, não houve integração dos deuses de origem helênica ao panteão da religião tradicional nativa. A interação da religião egípcia e helênica se deu muitas vezes de forma contraditória, como afirmam as autoras Gallet e Zivie-Coche (2012, p. 440): ao mesmo tempo em que a população grega se restringia aos seus deuses, também houve contato e interação com o universo religioso egípcio, havendo interpretações e associações entre as divindades. Essas situações aconteceram em diferentes regiões dentro do território egípcio. Os principais centros de culto da religião egípcia tradicional no período helenístico e romano são os templos de Dendera, Esna, Edfu, Kom Ombo e Philae, localizados na chôra. Em Alexandria, centro difusor da cultura helênica para o restante do Egito e para as áreas adjacentes do Mediterrâneo, os cultos helênicos foram mais presentes. Contudo, a interação com a religião egípcia foi presente e se deu de forma paulatina e mais voltada a uma interpretatio graeca. Em nossa perspectiva, essa interação se mostra intensa no final do período ptolomaico e no período romano, como se atesta nos sítios de necrópole dessa cidade.

Fundada em 331 a.C. por Alexandre, o Grande, Alexandria se tornou um importante centro cultural e econômico durante o período helenístico, quando também era a capital do Egito durante o governo da dinastia ptolomaica. A partir de 30 a.C., quando da dominação romana, Alexandria ainda ocupou uma posição de destaque no comércio do Mar Mediterrâneo, permanecendo como um grande centro populacional, econômico, intelectual e uma região estratégica de articulação do Império Romano com as províncias orientais. A fundação de Constantinopla, nos meados do século IV d.C., reduziu consideravelmente a importância política e comercial de Alexandria para o Império Romano da porção oriental.

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30 Apesar do esplendor e da grandiosidade alcançados na Antiguidade, a cidade de Alexandria não preservou a maioria dos seus monumentos, como palácios, a Biblioteca e o Museu, conhecidos apenas por fontes literárias da época. Os locais de enterramento dos monarcas da dinastia ptolomaica, bem como a tumba de Alexandre, o Grande, permanecem desconhecidos. Capponi (2011, p. 53-56) cita o volume 17 da obra Geografia de Estrabão, que visitou Alexandria por volta de 20 d.C.:

Estrabão descreve o porto e os prédios vizinhos: o teatro; o templo de Poseidon; o Cesareum, templo construído a mando de Cleópatra VII e dedicado a Júlio César; a praça de comércio, os armazéns de estocagem de grãos e o cais. Ele também descreve as duas principais artérias de Alexandria, avenidas de grande proporção (30m de largura); a Necrópolis ou o cemitério da população grega; o santuário de Serápis ou Serapeum; o anfiteatro, o estádio e o complexo do gymnasium que incluía pistas, banhos, pórticos e jardins. Segundo Estrabão, o palácio real se mostrava como um grande complexo, cobrindo quase um terço da cidade, visto que cada monarca da dinastia lágida acrescentava novos prédios ao palácio.

A cidade foi originalmente organizada seguindo os padrões urbanísticos gregos: uma rede de ruas retilíneas, dividida em cinco quarteirões que seguiam a sequência das cinco primeiras letras do alfabeto grego (alpha, bêta, gamma, delta e épsilon). A população de Alexandria era, sobretudo, cosmopolita: havia habitantes nativos do Egito, como também havia grupos populacionais provenientes da península itálica, Chipre, Trácia, Gália, Líbia, Judeia, Fenícia, Pérsia, Arábia, Índia e entre outras localidades do Mediterrâneo. A comunidade judaica era bastante expressiva em Alexandria, desde o início do período ptolomaico.

A cidadania das póleis era estritamente controlada, havendo a princípio a proibição de casamentos inter-raciais. Essas cidades possuíam as instituições civis conhecidas no mundo helênico, como os conselhos, assembleias e o ginásio. Dessa forma, é possível perceber uma busca por elementos da identidade grega que fizesse distinção com o elemento nativo egípcio, visto que havia privilégios jurídicos (acesso a cortes de justiça diferenciadas) e econômicos (redução ou isenção de impostos) àqueles que eram reconhecidos pelo Estado como gregos. É sabido, todavia, que a partir da segunda metade do século II e ao longo do século I a.C., as identidades se tornam menos restritas, havendo a possibilidade de trocas e fluências entre o status grego e os elementos egípcios, comumente associados a questões religiosas e funerárias.

A busca pelo status da cultura grega estava associada ao grupo que ocupava o poder, não somente em relação à dinastia ptolomaica, mas também aos cargos administrativos do Estado. A língua falada na cidade era o grego, assim como se difundia o pensamento e a filosofia

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31 helênica na cidade. Algumas instituições típicas de uma pólis existiram em Alexandria, como o Conselho de cidadãos (demos), a Assembleia (ecclesia), o Conselho municipal (boule), o Conselho de magistrados (prytaneis) e o Conselho de anciãos (gerousia). A cidade ainda contava com uma ágora, fóruns, ginásios, anfiteatros e outras localidades de uma típica pólis (VENIT, 2002, p. 9). O farol da cidade, localizado na ilha de Faros, foi planejado pelo arquiteto Sostratos de Cnidos, erguido entre 297 e 283/3 a.C., ligado à cidade por meio de um dique construído chamado Heptastadeion.12 A construção se tornou símbolo da grandiosidade alexandrina, sendo motivo iconográfico de moedas encontradas ao longo do Mediterrâneo. O farol se encontrava em franca deterioração durante a Conquista Árabe; estando grande parte da ilha de Faros submersa hoje em dia. O Lago Mareótis, localizado ao sul da cidade, integrava parte do comércio fluvial do Nilo por meio de canais.

Alexandria contava com duas importantes instituições de formação intelectual, traço de status grego por excelência: o Museu e as duas Bibliotecas. O primeiro foi fundado por Ptolomeu I Sóter e finalizado por Ptolomeu II Filadélfo, próximo ao templo das Musas. O Museu se tornou rapidamente um centro notável de produção intelectual em diversas áreas, da medicina à literatura e astronomia, passando pela matemática e geografia. As bibliotecas, por sua vez, estavam localizadas dentro do Museu (a mais conhecida pela magnitude de seu acervo) e do Serapeum, templo dedicado ao deus Serápis. As estimativas sobre a quantidade de livros vão de 50 a 60 mil exemplares, sendo um reduto importantíssimo para o conhecimento da Antiguidade. Os episódios de incêndio são relatados durante a época de Júlio César e Cleópatra, por volta de 48/47 a.C., que resultou na queima de uma pequena parte do acervo da biblioteca do Museu. Ela foi destruída por volta de 272 d.C., durante a invasão de Alexandria por tropas da cidade de Palmira (CAPPONI, 2011, p. 60). A biblioteca do Serapeum, que também contava com um grande acervo de obras, foi destruída pelos cristãos no século IV d.C.

A monarquia ptolomaica carecia, no início, de bases legitimadoras que se alinhassem à ideologia política e religiosa egípcia. Nesse sentido, teve papel fundamental o culto dinástico do deus Serápis, comumente atribuído como uma criação do próprio Ptolomeu I Sóter. A divindade apresentava características físicas de um deus grego (homem de barba, provavelmente ligado à imagem de Hades, Asclépio e Zeus), mas tinha um nome de inspiração

12 Segundo Capponi (2011, p. 53), a palavra grega significa “sete stadias”, stadion sendo uma medida de

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32 egípcia, proveniente de Osor-Hapi, deidade adorada em Mênfis e que se tratava da junção de Ápis a Osíris após a morte.

Figura 1. Busto do deus Serápis encontrado no Serapeum, datação do século II d.C.

Fonte: BIANCHI; SAVVAPOULOS, 2012, p.131

Dunand (2004, p. 215) argumenta que a divindade egípcia muito provavelmente já era conhecida pelos gregos que residiam no Egito antes do período ptolomaico; a imagem helenizada e o culto tomado pela dinastia ptolomaica foram estratégias de legitimação do poder e de criação de templos e locais de adoração da divindade. Sua associação com Ísis, divindade amplamente conhecida no mundo helenístico e que ganhou versões helenizadas, satisfez os preceitos religiosos e ideológicos da realeza egípcia. Aspectos ligados à fertilidade e à cura foram largamente atribuídos a Serápis, sendo considerado também como patrono da cidade de Alexandria. A figura 1 traz a iconografia mais conhecida: o deus possui cabelos ondulados e barba encaracolada. Um pequeno cesto, chamado em grego de kalathos, é adornado com um motivo iconográfico floral, ligado ao sentido de fertilidade.

O principal templo da cidade e dedicado a Serápis, o Serapeum, foi construído entre os reinados de Ptolomeu I Sóter, Ptolomeu II Filadélfo e Ptolomeu III Evérgeta, passando por reformas também no período romano. Localizado ao sul da cidade, o complexo templário o

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33 contava com um grande pátio cercado por colunas, salas de leitura e uma biblioteca; com o templo dedicado a Serápis ao centro.

Figura 2. Planta baixa e reprodução do complexo templário de Serápis, o Serapeum, em

Alexandria

Fonte: MCKENZIE, 2007, p. 201; CAPPONI, 2011, p. 57

Escavações nesse sítio arqueológico revelaram a presença de esculturas em estilo clássico e egípcio, que provavelmente faziam parte dos altares e locais de culto de divindades que também eram cultuadas nesse lugar. Por volta de 181 d.C., o templo passou por um grande incêndio, sendo reconstruído em 215/16 d.C. (MCKENZIE, 2007, p. 195). Em 298 d.C., em comemoração à vitória do imperador Diocleciano sobre o usurpador Domício Domiciano, o prefeito de Alexandria à época, Públio, ergueu uma coluna com capitel em estilo coríntio, estrutura visível até os dias atuais. O Serapeum funcionou como importante centro religioso e intelectual até meados de 391 d.C., quando o imperador Teodósio II decretou o fechamento de todos os templos pagãos. A Tumba Principal de Kom el-Shoqafa, construída entre os séculos I e II d.C., se situa próximo ao sítio arqueológico do Serapeum.

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34 Pela sua matriz helênica, a capital apresentava uma variedade de cultos de origem grega, coexistentes com as divindades egípcias. Destacamos o culto do Agathos Daimon13, denominado como o gênio protetor da cidade. Sua representação mais comum consistia em uma serpente barbada e coroada; houve provavelmente conexões com a divindade egípcia Shai, também uma serpente. Ísis foi a divindade egípcia que passou por maiores transformações: o aspecto de fortuna foi incorporado à deusa egípcia, na forma de Ísis-Tyche; a associação à deusa Afrodite, observada em figuras de terracota do segundo século d.C., trouxe o aspecto da fertilidade junto aos atributos de Ísis; em Alexandria, a deusa egípcia ganhou um aspecto universalizante. Os primeiros monarcas lágidas endossaram o culto do deus Dioniso, assim como instituíram o culto dinástico da realeza, como pode ser visto com Ptolomeu I e Berenice I (DUNAND, 2004, p. 274-273). Infelizmente, não há registro arqueológico de santuários de divindades helênicas, restando as evidências textuais de Estrabão, Políbio e Suetônio, como nos informa Susan Venit (2012, p. 88). A partir dessas fontes, sabe-se da presença de culto de deuses gregos como Zeus, Dioniso, Deméter, havendo um apelo ao aspecto ctônico, quando possível, atribuído às divindades.

É importante perceber que a maior presença da religiosidade grega está acompanhada com o contingente populacional que imigrou para o Egito e povoou as póleis, locais onde mais evidências são vistas ligadas aos cultos helênicos. Nas regiões pouco afetadas pela população grega, a tradição egípcia preservou sua hegemonia. É sabido também que, diferentemente dos colonizadores helênicos, a dominação romana não significou um deslocamento populacional em massa de romanos adentrando no Egito, o que pode explicar a presença menor – em comparação com a tradição helênica - de divindades romanas associadas aos deuses egípcios. No caso de Alexandria, a cidade passou por um processo gradual de permeabilidade à cultura egípcia, como poderemos observar, sobretudo no último século do período ptolomaico. Observaremos esse fenômeno quando tratarmos das tumbas alexandrinas, no segundo capítulo. Os costumes funerários são aspectos religiosos de grande importância, pela preservação documental e pela possibilidade de se perceber as interações culturais. No caso do Egito Ptolomaico e Romano, mediante as variações locais, os costumes funerários trazem a matriz egípcia atrelada à mumificação e ao culto de Osíris, principal divindade funerária desde os tempos faraônicos. Ao tratarmos de Alexandria (e também das demais póleis), as evidências

13 Trataremos sobre o Agathos Daimon na análise iconográfica da tumba pesquisada nessa dissertação (terceiro

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