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Contribuições à ideia de constituição do processo penal coletivo brasileiro: um estudo sobre o habeas corpus coletivo

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO DEPARTAMENTO DE DIREITO PROCESSUAL

GRAZIELLY SOARES DA SILVA

CONTRIBUIÇÕES À IDEIA DE CONSTITUIÇÃO DO PROCESSO PENAL COLETIVO BRASILEIRO: UM ESTUDO SOBRE O HABEAS CORPUS COLETIVO

FORTALEZA 2020

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GRAZIELLY SOARES DA SILVA

CONTRIBUIÇÕES À IDEIA DE CONSTITUIÇÃO DO PROCESSO PENAL COLETIVO BRASILEIRO: UM ESTUDO ACERCA DO HABEAS CORPUS COLETIVO

Monografia apresentada ao Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito.

Área de concentração: Direito Processual Penal e Direito Constitucional

Orientador: Prof. Dr. Alex Xavier Santiago

FORTALEZA 2020

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GRAZIELLY SOARES DA SILVA

CONTRIBUIÇÕES À IDEIA DE CONSTITUIÇÃO DO PROCESSO PENAL COLETIVO BRASILEIRO: UM ESTUDO ACERCA DO HABEAS CORPUS COLETIVO

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Alex Xavier Santiago (Orientador)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Bruno Araújo Rebouças

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________ Me. Lara Teles Fernandes

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AGRADECIMENTOS

A Deus e à Nossa Senhora, pelo milagre do dom da vida!

Aos meus pais e ao meu irmão Thiago, por tudo, por serem a expressão concreta do significado da palavra amor!

Às minhas amigas de infância, Isa e Sarah, que sempre me incentivam e que estiveram ao meu lado em todos os momentos. Amo e admiro muito vocês, um dos maiores presentes de Deus para mim!

Às amigas que ganhei na caminhada, das quais sinto tanta saudade e que me ensinaram tanto: Karol, Eglem, Fernanda, Ingrid, Cris, Letícia, Euriana, Sarah, Verônica, Carol. Espero ter vocês para sempre em minha vida!

Aos amigos da Faculdade de Direito, pelo companheirismo na jornada de cinco anos, especialmente Letícia, Natan, André, Juliana Carvalho, Ana Katrine, Jeniffer, Juliana Gonçalves, e a todos os colegas da Turma 2020.1!!!

A todos os colegas dos grupos de extensão, especialmente, do Grupo de Pesquisa em Direito e Democracia, sob orientação da profa. Gretha Leite Maia, o qual me introduziu neste mundo tão vasto da pesquisa jurídica; do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais, no qual fui coordenadora da linha de Direito Penal Internacional, possibilitando a organização do Simpósio Internacional em homenagem aos 20 anos do Estatuto de Roma, com a presença da ex-juíza brasileira no Tribunal Penal Internacional, Sylvia Steiner, e a publicação de artigo em livro sobre crimes internacionais; da Simulação da Organização das Nações Unidas, minha primeira experiência com caso jurídico (caso Eichmann), no primeiro semestre, e dos inúmeros casos que me fizeram amar o Direito Internacional dos Direitos Humanos; ao Núcleo de Estudos em Ciências Criminais, pela visão crítica que me ofereceu, tão necessária ao jurista que trabalha no âmbito do Direito Penal.

À Juliana Carvalho, pela parceria no artigo sobre as mulheres encarceradas, publicado na Revista da Escola do Ministério Público.

Aos meus “alunos” da cadeira de Criminologia. Foi uma das experiências de docência mais especiais que tive na Faculdade.

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Aos servidores da Justiça Militar da União, meu primeiro estágio jurídico, pela acolhida e pelo incentivo para que eu seguisse meus sonhos.

Ao Ministério Público Federal, cujos ideais constitucionais quero sempre seguir. Aos servidores, Monica, Glauton, Luciana, Rose, motivos da minha alegria diária, que me ensinaram tanto e que foram mais que colegas de trabalho, verdadeiros amigos!! À Lili, pela parceria de dois anos, com muita alegria e companheirismo.

Ao Dr. Márcio Andrade Torres, que é, além de modelo de profissional ético e dedicado ao serviço público, um exemplo de humanidade e de bondade em todos os aspectos. Não poderia descrever quanto bem fez em minha formação e nem em todo tempo que eu tivesse para agradecer seria suficiente.

Ao professor Alex Xavier Santiago, por aceita orientar esta monografia e por se mostrar sempre aberto e solícito a todos os que o procuram!

À Lara Fernandes Teles, que tão gentilmente aceitou o convite para participar da banca e que é exemplo de profissional vocacionada na defesa dos direitos humanos.

Ao professor Sérgio Rebouças, nosso doutrinador, orgulho de nossa Faculdade, que nos ajudou a pensar o processo penal de modo criativo e profundo.

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“ E se seu objetivo não fosse permanecer vivo, e sim permanecer humano? ” George Orwell, 1984.

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RESUMO

No dia 10 de julho de 2020, o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu) impetrou Habeas Corpus coletivo no Superior Tribunal de Justiça com pedido de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar em benefício de todos os detentos que se encontrem em grupo de risco, em face da pandemia, assim reconhecida pela Organização Mundial de Saúde, ocasionada pelo vírus Covid-19, o qual foi negado liminarmente. No dia anterior, o benefício havia sido concedido pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro João Otávio de Noronha, em favor de Fabrício José Carlos de Queiroz e de sua esposa, a qual se encontrava foragida, uma vez que a situação no cárcere, em meio à pandemia, significava um risco à saúde e à vida dos investigados. Em tal contexto de crises políticas e de saúde global, o habeas corpus coletivo, cuja aplicabilidade no ordenamento jurídico pátrio foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Habeas Corpus Coletivo n° 143.641, está sendo amplamente utilizado pelas defensorias públicas dos estados da federação na salvaguarda dos encarcerados, porém ainda visto com resistência pelos Tribunais de Justiças locais. Assim, problematizou-se o porquê de praticamente todos os Tribunais de Justiça demandados negarem acolhida a estas ações autônomas de impugnação coletivas. A hipótese levantada foi a de que o modelo processual penal comum não é o adequado para a apreciação e o julgamento das ações de caráter coletivo. Assim sendo, foi utilizado o método de pesquisa doutrinária e jurisprudencial a respeito dos direitos coletivos, particularmente dos direitos individuais homogêneos, e do habeas corpus coletivo, aferido também pela análise de caso do writ coletivo impetrado pela Defensoria Pública do Ceará em favor dos presos em situação de risco daquele estado. Concluiu-se, pois, que o habeas corpus coletivo deveria ser apreciado no âmbito de um processo penal coletivo estrutural, com aplicação subsidiária das normas do processo civil coletivo, enquanto não há previsão legal para aquele.

Palavras-chave: habeas corpus coletivo, processo penal coletivo, covid-19, encarceramento em massa.

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RÉSUMÉ

Le 10 juillet 2020, le Human Rights Advocacy Collective (CADHu) a présenté le Superior Tribunal de Justiça de Habeas Corpus coletivo avec une demande de remplacement de la détention préventive par l'assignation à résidence au profit de tous les détenus en danger. , face à la pandémie, ainsi reconnue par l'Organisation mondiale de la santé, causée par le virus Covid-19, ce qui a été démenti. La veille, la prestation avait été accordée par le président de la Cour supérieure de justice, le ministre João Otávio de Noronha, en faveur de Fabrício José Carlos de Queiroz et de son épouse, qui était en fuite, parce que, en raison de la pandémie, cela représentait un risque pour la santé et la vie des enquêtés. Dans un tel contexte de crises politiques et de santé mondiale, l'habeas corpus collectif, dont l'applicabilité dans l'ordre juridique national a été reconnue par le Tribunal fédéral suprême, lorsque l'arrêt Habeas Corpus Coletivo n ° 143.641, est largement utilisé par les défenseurs publics des États du fédération dans la sauvegarde des prisonniers, mais toujours vu avec résistance par les tribunaux locaux. Ainsi, on s'est demandé pourquoi pratiquement toutes les juridictions le refus d'accepter ces actions collectives autonomes de contestation. L'hypothèse soulevée était que le modèle de procédure pénale commun n'est pas adéquat pour l'évaluation et le jugement des actions collectives. Ainsi, la méthode de recherche doctrinale et jurisprudentielle concernant les droits collectifs, en particulier les droits individuels homogènes, et l'habeas corpus collectif, a été utilisée, également appréciée par l'analyse de cas du writ collectif déposé par le Défenseur public du Ceará en faveur des détenus en situation à risque de cet État. Il a donc été conclu que l'habeas corpus collectif devait être apprécié dans le cadre d'une procédure pénale structurelle collective, ou appliqué subsidiairement selon les normes de la procédure civile collective, alors qu'il n'existe aucune disposition légale à cet effet.

Mots-clés: habeas corpus collectif, procédure pénale collective, covid-19, incarcération de masse.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...12 1. EM BUSCA DE UM PROCESSO PENAL COLETIVO: FUNDAMENTOS

TEÓRICOS PARA TUTELA DOS DIREITOS COLETIVOS LATO

SENSU...15

1.1 Conceitos fundamentais acerca do Direito Processual Coletivo...19 1.2 Dois aspectos do processo (penal) coletivo: structural injunctions e ativismo judicial..22

2. IN DUBIO PRO LIBERTATIBUS (NA DÚVIDA, A FAVOR DAS LIBERDADES)....27 2.1 O habeas corpus coletivo na jurisprudência: o caso Verbitskty na Suprema Corte Argentina ...30 2.2 A retomada da teoria do habeas corpus à “brasileira”: o habeas corpus coletivo segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal...32 3. O HABEAS CORPUS COLETIVO COMO ALTERNATIVA PROCESSUAL NOS TEMPOS DE CRISE ...39 3.1 O habeas corpus coletivo impetrado pela defensoria pública do Estado do Ceará...46 4. ART. 5°, INCISO XLVII, ALÍNEA “A” DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: NÃO HAVERÁ PENAS DE MORTE ...54

4.1. Um parêntese criminológico: revisitando a labelling

approach...55 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...62 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...64

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INTRODUÇÃO

Esta monografia foi escrita no auge da pandemia ocasionada pelo vírus Covid-19, popularmente conhecida como coronavírus, no Brasil e em grande parte do mundo. Trata-se de uma crise sanitária, econômico-social, não antes vista em um passado recente no país. Em decorrência desta situação, houve um incremento na utilização da ação autônoma de impugnação em sua modalidade coletiva, o habeas corpus coletivo, especialmente, para salvaguardar aqueles que se encontram presos em condições de vulnerabilidade, como se exporá ao longo deste trabalho.

Estes são, portanto, o pano de fundo e a primeira autocrítica a este trabalho: o afastamento que requer a pesquisa científica restou bastante prejudicado, uma vez que, muito embora se tenha realizado uma análise metodológica, na qual se buscou agregar bibliografias com pontos de vista diversos, há, inegavelmente, um posicionamento a ser defendido.

Partindo desta premissa, definiu-se como objetivos gerais desta pesquisa traçar uma introdução acerca do chamado processo penal coletivo e sua importância na defesa dos direitos transindividuais e coletivos; analisar a (in) aplicabilidade do habeas corpus coletivo segundo os princípios constitucionais e convencionais, estes especialmente previstos nos instrumentos internacionais de proteção aos Direitos Humanos; e, por fim, problematizar a aplicação desta ação autônoma de impugnação, partindo do estudo do habeas corpus coletivo impetrado pela Defensoria Pública do Ceará.

No capítulo 01, Em busca de um processo penal coletivo: fundamentos teóricos para tutela dos direitos coletivos lato sensu, foram estabelecidos pressupostos teóricos básicos que justifiquem o estudo e o estabelecimento no ordenamento jurídico pátrio de um processo penal coletivo, utilizando-se, para este fim, daqueles conceitos processuais estabelecidos no âmbito do direito processual civil e da teoria geral do processo coletivo, sem perder de vista as peculiaridades do processo penal.

Considerando o universo (ainda) desconhecido desta disciplina jurídica, foi proposto um recorte temático, qual seja, o estudo do cabimento do habeas corpus coletivo, sem previsão normativa, fruto de uma construção doutrinária, e muito recentemente admitido na jurisprudência dos Tribunais Superiores, notadamente, quando do julgamento do Habeas Corpus Coletivo n° 143.641, concedido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, para determinar a substituição da prisão preventiva por domiciliar de mulheres presas, em todo o território nacional, que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com

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deficiência, sem prejuízo da aplicação das medidas alternativas previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal.

No capítulo 02, In dubio pro libertatibus, estabeleceu-se um breve exame acerca do habeas corpus e o desenvolvimento do habeas corpus coletivo, em âmbito doutrinário e jurisprudencial. Propôs-se pensar o habeas corpus, a partir da tutela das liberdades, superando a perspectiva individualista, na qual historicamente este instituto foi utilizado e pensado.

Assim sendo, investigou-se se a proposta de ação autônoma de impugnação coletiva estaria em consonância com os princípios constitucionais e convencionais, especialmente previstos nos instrumentos jurídicos de proteção aos direitos humanos. Foi trazida a experiência, como precedente jurisprudencial de direito comparado, do Caso Verbitskty, no qual a Suprema Corte Argentina admitiu a tutela coletiva do remédio constitucional, tendo em vista a situação de condição insalubre a qual estavam submetidas as pessoas presas.

No capítulo 03, O habeas corpus coletivo como alternativa processual nos tempos de crise, tomou-se, para análise, um caso concreto do habeas corpus coletivo da Defensoria Pública do Estado do Ceará, impetrado a fim de que todas as pessoas submetidas à prisão cautelar ou definitiva que estejam gestantes, mais de 60 anos, imunossuprimidos, diabéticos, portadores de doenças crônicas, doenças pulmonares, cardíacos ou acometidas por outras doenças que possam agravar a saúde do paciente sejam postas em prisão domiciliar ou revistas suas penas de prisão.

O pleito defensorial fundamentou o writ coletivo na Recomendação n° 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça, a qual propôs medidas preventivas à propagação da infecção pelo Covid-19, no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo, bem como em face do reconhecimento do “estado de coisas inconstitucional”, assim denominada a situação do sistema carcerário brasileiro pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF nº 347/DF.

O objetivo especifico deste capítulo é o de ressaltar a importância do desenvolvimento teórico do habeas corpus coletivo e de sua importância prática, submetido à “prova de fogo”, em momento de crise, propondo-se o modelo de processo penal coletivo para julgamento das demandas coletivas, in casu, na perspectiva estrutural.

Por fim, no capítulo 04, Art. 5°, inciso XLVII, alínea “a” da Constituição Federal de 1988: Não haverá penas de morte, propõe-se, por meio da reflexão da teoria criminológica da labelling approach ( cujo conhecimento, por esta autora, fora adquirido quando de sua experiência como monitora da disciplina de Criminologia), indagar o motivo dos

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indeferimentos dos Tribunais de Justiça aos habeas corpus coletivos impetrados pelas diversas defensorias públicas no país e quais eram os perfis dos presos acobertados pelas medidas, dessa vez sob a perspectiva da Criminologia.

Esta teoria criminológica foi escolhida por representar uma nova forma de pensar a Criminologia em contraposição à perspectiva clássica, abrindo espaço a uma abordagem crítica do sistema justiça criminal e expondo quem seriam aqueles perseguidos (ius persequendi) pelo aparato estatal.

O questionamento criminológico pareceu oportuno, pois que os problemas que envolvem o sistema carcerário e a própria aplicação do Direito Processual Penal são constantemente atravessados por questões das mais diversas ordens: excessos midiáticos, mentalidade inquisitorial e punitivista do Direito Penal, racismo estrutural, dentre outros.

Analisar o habeas corpus sob estes pontos de vista parece emblemático. Representada como uma das expressões civilizatórias do Estado Moderno, conquista iluminista do direito fundamental de primeira dimensão, denominada remédio heroico, marco processual do Estado Democrático de Direito, a ação autônoma de impugnação é, curiosamente, vista, nos tempos atuais, como uma ameaça à sociedade e ao sistema de justiça1.

Portanto, a fim de promover o resgate e a valorização desta garantia fundamental, coletivamente pensada, conclui-se esta monografia pela necessidade do desenvolvimento do processo penal coletivo no ordenamento jurídico, de modo a assegurar a correta tutela dos direitos fundamentais coletivos, urgente e sensivelmente presentes na seara criminal.

1 Ou nas palavras de Januário Eduardo Newton, “ no país da cloroquina, o habeas corpus virou veneno”. NEWTON, Januário Eduardo. No país da cloroquina, o habeas corpus virou veneno. Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2020. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-jul-26/eduardo-januario-newton-pais-cloroquina-hc-virou-veneno>. Acesso em 27 de julho de 2020.

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Capítulo 1

EM BUSCA DE UM PROCESSO PENAL COLETIVO: FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA TUTELA DOS DIREITOS COLETIVOS LATO SENSU

A reflexão acerca do processo penal coletivo parece ser um correspondente lógico às indagações propostas pelos estudiosos do Direito Penal, os quais se debruçam a respeito da tutela penal supraindividual. Isso porque, como disciplina essencialmente instrumental2, ou seja, “o processo deve ser compreendido, estudado e estruturado tendo em vista a situação jurídica material para o qual serve de instrumento de tutela”3, o direito processual coletivo emergiria como necessidade doutrinária, legal e prática a fim de garantir a tutela penal supraindividual.

Entende-se por tutela penal supraindividual a proteção dada pelo Direito Penal aos direitos difusos e coletivos, em consonância com os vetores axiológicos previstos na Constituição Federal de 1988.

Neste sentido, defende-se um alargamento da tutela penal, classicamente pensada para tutelar os direitos individuais, tais como a vida, a integridade física, liberdade do patrimônio, liberdade sexual, para abarcar, por exemplo, a proteção da ordem econômica, do meio ambiente, das relações de consumo e do sistema financeiro.

A doutrina costuma denominar este movimento como “espiritualização” do Direito Penal4, cuja fundamentação fora atribuída a Claus Roxin. Em verdade, os delitos de bem jurídico “espiritualizado” são apenas uma categoria de crimes5, as quais compõe a chamada

2 Neste ponto, considera-se a tradicional evolução histórica do direito processual, na qual se dividem as fases do processo em praxismo ou sincretismo, na qual não havia distinção entre o processo e o direito material; o processualismo, momento em que se demarcava o desenvolvimento científico do direito processual; e o instrumentalismo, no qual embora sejam reconhecidos o direito material e o direito processual como disciplinas jurídicas distintas, traça-se uma relação de interdependência e de circularidade entre estas. Não obstante, muito se fala em uma atual fase do direito processual denominada neoprocessualismo, que se propõe a repensar as categorias processuais a partir do Estado Constitucional e dos direitos fundamentais. Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006.

3 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, vol. 01. Salvador: Ed. Juspodivm, 2017, p. 45. 4 Segundo Cleber Masson, “a crescente incursão pela seara dos interesses metaindividuais e dos crimes de perigo, especialmente de índole abstrata – definidos como os delitos em que a lei presume, de forma absoluta a situação de risco ao bem jurídico penalmente tutelado tem sido chamado de espiritualização, desmaterialização ou liquefação dos bens jurídicos no Direito Penal. ” MASSON, Cléber. Direito Penal: parte geral (arts. 1° ao 120) -vol. 1. 13° ed. São Paulo: Método, 2019, p. 50.

5 Segundo Gerciane Oliveira Alpes, Roxin acredita que a “legitimidade dos delitos de perigo abstrato está necessariamente ligada à proteção do bem jurídico. A partir dessa premissa, Roxin desenvolve diferentes formas de perceber os delitos de perigo abstrato: clássicos delitos de perigo abstrato; ações pedagógicas massivas; delitos de bem jurídico espiritualizado; delitos de aptidão abstrata. ”ALPES, Kalina Gerciane Oliveira. A Teoria

Dialética Unificadora de Claus Roxin e a justificação da tutela penal de bens jurídicos transindividuais sujeitos a perigo abstrato de lesão. 2010. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Direito,

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Teoria Dialética Unificadora, na qual Roxin procurou justificar e fundamentar a existência dos delitos de perigo abstrato, por meio da antecipação de tutela penal, cuja legitimidade depende de uma reformulação da teoria do bem jurídico, de modo a abranger estas novas demandas para as quais a precaução constitui a medida mais adequada.

A Teoria Dialética Unificadora de Roxin dialoga com a Teoria da Sociedade do Risco, elaborada pelo sociólogo Ulrich Beck em seu livro “A sociedade do risco a caminho de uma nova modernidade”. Ulrich Beck apresenta, em sua obra, a problemática dos novos riscos que advieram com o desenvolvimento e a sua relação com as sociedades pós-industriais. Tais riscos

(...) exsurgem em tom de alerta global, pesando sobre toda a humanidade, como o risco atômico, a diminuição da camada de ozônio e o aquecimento global, a destruição dos ecossistemas, a engenharia e manipulação genéticas, a produção de produtos perigosos ou nocivos à saúde humana e animal, entre tantos outros. São riscos que podem proporcionar catástrofes e desastres globais, desconhecidos a longo prazo e que, quando descobertos, apresentam-se com alta probabilidade de apresentam-serem irreversíveis6.

Nesse sentido, a resposta penal para proteção dos bens jurídicos coletivos, transindividuais, teria que se reinventar em relação aos pressupostos do Direito Penal Clássico. Para tanto, Claus Roxin parte da ponderação entre o risco permitido e risco não permitido, categorias conceituais desenvolvidas para delimitar aquilo que seria apto à tutela do Direito Penal, para explicar a prevenção geral e para conferir proteção aos referidos bens jurídicos.

Qual seria, no entanto, a diferença entre uma conduta de risco permitido e uma conduta de risco permitido? Roxin explica a diferença exemplificando o caso da criminalização das condutas no trânsito: o ato de dirigir cria riscos irrelevantes e relevantes para vida e para a saúde de outras pessoas, de modo que a “solução do conflito consiste em formular regras de trânsito que, por um lado, minimizem o risco, por outro garantam tanto quanto possível a liberdade de dirigir”7.

Ora, a solução apontada, portanto, tem origem na própria norma, a qual irá decidir os limites entre a intervenção prévia do Estado e a ocorrência do resultado para consumação delitiva. Porém, Roxin acrescenta que o posicionamento normativo deve ser dado com base em conhecimentos empíricos a respeito da situação de trânsito, como no exemplo dado. Desse modo,

6 SERRA, Carlos Eduardo da Silva. Bem jurídico: uma reflexão sobre seu papel como limite à legitimidade da intervenção penal no âmbito da “sociedade do risco”. Revista Liberdades, São Paulo, v. 25, n. 030405, p. 51-64,

jan. 2018. Disponível em:

http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=318. Acesso em: 17 mar. 2020.

7 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Tradução: André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 72.

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o sistema do direito penal não deve fornecer uma dedução a partir de conceitos normativos abstratos ou um reflexo de regularidades ontológicas. Ele é, muito mais, uma combinação de ideias reitoras político-criminais, que penetram na matéria jurídica, a estruturam e possibilitam resultados adequados às peculiaridades desta8.

Em síntese, Roxin propõe um normativismo moderado e de referência constitucional. Moderado, pois, “tem na proteção subsidária do bem jurídico a legitimação da força interventiva do Estado e, de referência constitucional, pois constrói o seu sistema jurídico tendo por base princípios democraticamente previstos na Lei Maior”9.

Portanto, adotando o entendimento de Roxin como referência teórica10, elenca-se os seguintes pressupostos: a) a função do Direito Penal é tutelar os bens jurídicos; b) os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal seriam aqueles mais relevantes para a vida social; c) a contemporaneidade revelou a necessidade de proteção de “novos” bens jurídicos, que ultrapassem a esfera individual, como aqueles atrelados aos direitos transindividuais, coletivos e individuais homogêneos; d) no caso destes bens jurídicos, a sua proteção seria antecipada, uma vez que o dano é potencial e não efetivo, definição a qual caracteriza os crimes de perigo abstrato; e) estes delitos teriam sua fonte de legitimidade na Carta constitucional (Constituição Federal de 1988) e estariam dispostos em lei específica11.

Há quem defenda, por sua vez, a inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, posição, atualmente, não dominante nos Tribunais Superiores pátrios, como exemplificado no julgamento do Habeas Corpus n° 102.087/MG no Supremo Tribunal Federal12, no qual se

8 Ibidem, p. 75.

9 ALPES, Kalina Gerciane Oliveira. A Teoria Dialética Unificadora de Claus Roxin e a justificação da tutela

penal de bens jurídicos transindividuais sujeitos a perigo abstrato de lesão. 2010. Dissertação (Mestrado).

Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010, p. 156-7.

10 É preciso que se diga que esta posição teórica, a qual defende a possibilidade de sustentação penal e constitucional dos crimes de perigo abstrato não é unânime na doutrina. Isto porque muitos afirmam que os delitos de perigo abstrato não são compatíveis com um Estado Democrático de Direito, pois, a ausência de um resultado externo afronta o princípio da lesividade.

11 A título de exemplo a proteção ao meio ambiente está prevista no art. 225 da Constituição Federal de 1988: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. (...) § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. A lei que disciplina o mandamento de criminalização é a lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998.

12 HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. (A) TIPICIDADE DA CONDUTA. CONTROLE DECONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS PENAIS. MANDATOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO E MODELO EXIGENTE DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS EM MATÉRIA PENAL. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO EM FACE DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMADESMUNICIADA. ORDEM DENEGADA.1. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS

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decidiu que acriação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal.

Encerrada esta breve exposição temática a respeito da tutela penal dos direitos supraindividuais, passa-se à discussão teórica a respeito da necessidade de um processo penal coletivo, como instrumento de efetivação destes direitos.

LEIS PENAIS. 1.1. Mandatos constitucionais de criminalização: A Constituição de 1988 contém significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. 1.2.Modelo exigente de controle de constitucionalidade das leis em matéria penal, baseado em níveis de intensidade: Podem ser distinguidos 3 (três) níveis ou graus de intensidade do controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as diretrizes elaboradas pela doutrina e jurisprudência constitucional alemã: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); b)controle de sustentabilidade ou justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle);c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle). O Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador amplas margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens. Porém, uma vez que se ateste que as medidas legislativas adotadas transbordam os limites impostos pela Constituição – o que poderá ser verificado com base no princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) –, deverá o Tribunal exercer um rígido controle sobre a atividade legislativa, declarando a inconstitucionalidade de leis penais transgressoras de princípios constitucionais. 2. CRIMES DE PERIGO ABSTRATO. PORTE DE ARMA.PRINCÍPIO DA PROPORCIONALDIADE. A Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) tipifica o porte de arma como crime de perigo abstrato. De acordo com a lei, constituem crimes as meras condutas de possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo. Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão ou o perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados empíricos, o legislador seleciona grupos ou classes de ações que geralmente levam consigo o indesejado perigo ao bem jurídico. A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias paraa efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de inconstitucional. 3. LEGITIMIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE ARMA. Há, no contexto empírico legitimador da veiculação da norma, aparente lesividade da conduta, porquanto se tutela a segurança pública (art. 6º e 144, CF) e indiretamente a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica do indivíduo etc. Há inequívoco interesse público e social na proscrição da conduta. É que a arma de fogo, diferentemente de outros objetos e artefatos (faca, vidro etc.) tem, inerente à sua natureza, a característica da lesividade. A danosidade é intrínseca ao objeto. A questão, portanto, de possíveis injustiças pontuais, de absoluta ausência de significado lesivo deve ser aferida concretamente e não em linha diretiva de ilegitimidade normativa. (...). BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 102.087/MG, 0011918-19.2017.1.00.0000. Trata-se de habeas corpus com pedido de medida liminar, impetrado por Bruno Cesar Gonçalves da Silva e outro, em favor de Adilson Gonçalves de Oliveira Paganelli, contra acórdão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou provimento ao RHC 56.303/MG. Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 27/10/2017, Data de Publicação: DJe-252 07/11/2017.

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1.1 Conceitos fundamentais acerca do Direito Processual Coletivo

Embora haja uma vasta possibilidade de temas dentro desta (futura) disciplina jurídica, há raríssima bibliografia no país, dentre as quais, merece destaque a obra Direito Penal Coletivo- A tutela penal dos bens jurídicos coletivos13, de autoria de Gregório Assagra de Almeida e Rafael de Oliveira Costa, publicada em 2019, pela sistematização dos fundamentos do processo penal coletivo, bem como seu método e aplicação, inclusive com proposta de anteprojeto de lei acerca do tema.

De antemão, é preciso estabelecer alguns conceitos atinentes ao Direito Processual Coletivo. O referencial teórico adotado será aquele desenvolvido por Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr14, situando, no entanto, a discussão jurídica não no âmbito do Direito Processual Civil,

o qual inegavelmente oferece rico modelo comparativo, mas na Teoria Geral do Processo Coletivo, ao delimitar os seus conceitos jurídicos fundamentais, inclusive aplicáveis ao Direito Processual Penal Coletivo.

Assim sendo, processo coletivo é aquele em que “se postula um direito coletivo lato sensu (situação jurídica coletiva ativa) ou que se afirme a existência de uma situação jurídica coletiva passiva (deveres individuais homogêneos, p. ex.) de titularidade de um grupo de pessoas”15. Essa proposta de processo coletivo destaca, portanto, o objeto litigioso (o direito

coletivo) e a sua titularidade por um grupo de pessoas ativa ou passivamente em um pleito, o qual tem origem com determinada ação coletiva16.

Neste ponto, poder-se-ia indagar se o processo penal comum, ou melhor, a ação penal condenatória não seria também uma espécie de ação coletiva, devido ao interesse público nela envolvido. A resposta é negativa. O interesse público na aplicação da lei penal não pode ser considerado um direito difuso, uma vez que não há direito subjetivo à pena por parte do cidadão17. Além disso, é da natureza do processo ter sua estrutura fundada no interesse público, tanto no ponto de vista da persecução penal quanto classicamente entendido como garantia do cidadão perante o Estado.

13 ALMEIDA, Gregório Assagra de; COSTA, Rafael de Oliveira. Direito Penal Coletivo- A tutela penal dos bens jurídicos coletivos. Belo Horizonte: Ed. D’ Plácido, 2019.

14 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo. Salvador: Ed. Juspodivm, 2018.

15 Ibidem, p. 32.

16 “É a demanda que dá origem a um processo coletivo, pela qual se afirme a existência de uma situação jurídica coletiva ativa ou passiva exigida para a tutela de um grupo de pessoas. ” Ibidem, p. 34.

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Por outro lado, há ações penais de conteúdo coletivo, como aquele que será objeto neste trabalho, o habeas corpus coletivo. Para melhor esclarecer o que seria o conteúdo coletivo, é preciso que se analise o objeto litigioso e titularidade nas demandas dos processos coletivos.

Entendem-se como situações jurídicas coletivas os direitos coletivos lato sensu, gênero do qual são espécies os direitos coletivos stricto sensu, os direitos difusos e os direitos individuais homogêneos. Esta classificação é retirada do artigo 8118 do Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/1990), microssistema jurídico elaborado a partir de imposição expressa do artigo 5°, XXXII da Constituição Federal de 1988 e do artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual contém inclusive as infrações penais, a fim de proteger os direitos dos consumidores.

Pode-se dizer que os direitos difusos são aqueles transindividuais (metaindividuais, supraindividuais), de natureza indivisível (só poderia ser considerado como um todo), titularizado por um grupo composto de pessoas indeterminadas, ligadas por uma circunstância de fato. Didier exemplifica como direito difuso o caso da publicidade enganosa ou abusiva, veiculada por meio de imprensa falada, escrita ou televisionada, a afetar número incalculável de pessoas, sem que entre elas haja uma relação jurídica base. Assim também em relação à proteção do meio ambiente e a preservação da moralidade administrativa.

Quanto aos direitos coletivos stricto sensu, estes são definidos como direitos transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular um grupo, categoria ou classe de pessoas indeterminadas, mas determináveis, ligadas entre si, ou com a parte contrária da lide, por uma relação jurídica base. Veja-se que o elemento diferenciador entre o direito difuso e o direito coletivo “é a determinabilidade e a decorrente coesão como grupo, categoria ou classe anterior à lesão, fenômeno que se verifica nos direitos coletivos stricto sensu e não ocorre nos direitos difusos. ”19

Nos direitos individuais homogêneos, por sua vez, têm-se aqueles direitos decorrentes de uma origem comum, ou seja, os direitos nascidos em consequência da própria lesão, em que

18 Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.

BRASIL. Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, 1990.

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a relação jurídica é post factum. A origem dessa garantia coletiva tem origem nas class actions for damages, ações de reparações de danos à coletividade do direito norte-americano.20

Didier esclarece a importância prática do surgimento dos direitos individuais homogêneos:

Sem sua criação pelo Direito positivo nacional, não existiria possibilidade de tutela coletiva dos direitos individuais com natural dimensão coletiva em razão de sua homogeneidade, decorrente da massificação/padronização das relações jurídicas e das lesões daí decorrentes. A ‘ficção jurídica’ atende a um imperativo do direito: realizar a efetividade da justiça frente aos reclamos da vida contemporânea. Assim tal categoria de direitos representa uma ficção criada pelo direito positivo brasileiro com a finalidade única e exclusiva de possibilitar a proteção coletiva (molecular) de direitos individuais com dimensão coletiva (em massa).21

Segundo Luiz Paulo da Silva Araújo Filho, uma ação coletiva para a defesa dos direitos individuais homogêneos não significa a soma das ações individuais, mas ao contrário “(...) caracteriza-se como ação coletiva (...) porque a pretensão do legitimado concentra-se no acolhimento da tese jurídica geral, referente a determinados fatos, que pode aproveitar a inúmeras pessoas.”22

O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 103, inc. III, dispõe que a sentença terá eficácia erga omnes, no qual os titulares dos direitos individuais serão abstrata e genericamente beneficiados. Os direitos individuais homogêneos são indivisíveis e indisponíveis até o momento de sua liquidação e execução.

Tendo em vista a dimensão do tema apresentado, e a impossibilidade de seu tratamento aprofundado (os princípios, garantias, regras e instrumentos do direito processual penal) delimitou-se o objeto desta monografia ao estudo do habeas corpus coletivo e da tutela dos direitos individuais homogêneos, de modo particular, analisado no caso concreto, dos presidiários, no contexto de pandemia do Covid-19.

Antes de partir para a análise do objeto desta pesquisa, propõe-se uma reflexão acerca do structural injunctions (ou modelo experimentalista de reparação) no processo coletivo e do ativismo judicial, os quais, na verdade, serão consideradas premissas para a hipótese, a qual posteriormente será levantada.

20 Lawrence J. Ball, Comment, Damages in Class Actions: Determinations and Allocation, 10B.C.L. Rev.615 (1969). Disponível em < http://lawdigitalcommons.bc.edu/bclr/vol10/iss3/12>. Acesso em: 10 de março de 2020. 21 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op.cit., p. 78-9.

22 ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações Coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 114.

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1.2 Dois aspectos do processo (penal) coletivo: structural injunctions e ativismo judicial

Há um dado essencial que desde já deve ser enunciado e enfrentando: não há legislação acerca do processo penal coletivo e nem do que seriam os seus múltiplos instrumentos de atuação23. Portanto, não há aqui um estudo sobre direito processual penal coletivo, propriamente dito.

A partir deste dado, surge, por outro lado, o protagonismo do Poder Judiciário, expressão a qual se costuma denominar de ativismo judicial24. Sobre o ativismo judicial, muito se tem discutido e há inúmeras críticas25 sobre sua recepção no contexto brasileiro do modelo norte-americano, no âmbito do sistema de commom law.

Se o debate no Direito Constitucional a respeito do ativismo judicial é um tema sensível, no âmbito do Direito Processual Penal, demonstra-se como característica bastante problemática, tendo em vista que a parcialidade do juiz é verdadeira garantia do acusado e pilar do sistema acusatório26.

Não obstante, defende-se aqui sua utilização no processo penal, mediante três condicionantes, quais sejam, somente será admitida em prol do réu; em situações relacionadas aos processos coletivos estruturantes; e, por fim, limitando-se ao conteúdo da lei e da Constituição.

Sobre o último ponto, explica o ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça:

(...) No Brasil, o juiz não cria obrigações de proteção do meio ambiente. Elas jorram da lei, após terem passado pelo crivo do Poder Legislativo. Daí não precisarmos de juízes ativistas, pois o ativismo é da lei e do texto

23Defendem Gregório Assagra e Rafael Costa a possibilidade de utilização da ação penal coletiva, do acordo de não-persecução penal coletivo, da coisa julgada coletiva, dos recursos cabíveis, das ações autônomas de impugnação em âmbito coletivo. ALMEIDA, Gregório Assagra de; COSTA, Rafael de Oliveira. Direito Penal

Coletivo- A tutela penal dos bens jurídicos coletivos. Belo Horizonte: Ed. D’ Plácido, 2019, pgs. 179-273. 24 Entende-se como ativismo judicial a “uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas”. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e legitimidade democrática. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, núm. 13, Madrid (2009), págs. 17-32.

25 A título de exemplo ver: STRECK, L. L. O Panprincipiologismo e a “Refundação Positivista” In: COUTINHO, J. N. de M.; FRAGALE FILHO, R.; LOBÃO, R. (Orgs.). Constituição & Ativismo Judicial: limites e possibilidades da norma constitucional e da decisão judicial. Rio de Janeiro/RJ: Lumen Juris, 2011, p. 221-242. 26 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2- ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 518.

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constitucional. Ao contrário de outros países, nosso Judiciário não é assombrado por um oceano de lacunas ou um festival de meias-palavras legislativas. Se lacuna existe, não é por falta de lei, nem mesmo por defeito na lei; é por ausência ou deficiência de implementação administrativa e judicial dos inequívocos deveres ambientais estabelecidos pelo legislador. (...)27 Em outras palavras, é possível ao julgador, assumindo uma postura interpretativa realista, a aplicação dos princípios e normas constitucionais no caso concreto. A título de exemplo, em sede de Repercussão Geral, o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese, com força vinculante: É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral, nos termos do que preceitua o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal, não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes28.

Veja-se que o caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal teve origem em uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, tendo em vista as condições degradantes a que estavam submetidos os presos, os quais estavam expostos à fiação elétrica que poderia causar a morte dos apenados. Há, portanto, um reconhecimento dos direitos fundamentais dos presos coletivamente considerados e da atuação proativa do Poder Judiciário em matérias de políticas públicas.

Ora, se é verdade que das situações degradantes dos presídios surge a necessidade de garantia de proteção à integridade do preso, previsto no texto constitucional, e se, por meio da ação civil pública é possível tutelar coletivamente essas garantias impondo ao Poder Público obrigações de fazer; o que se deve fazer quando o Poder Público não consegue assegurar esses direitos (por exemplo, em um contexto de pandemia, no qual os recursos públicos são prioritariamente deslocados para a área da saúde)?

Acredita-se, que, nesta situação de extrema necessidade, “nasce” para os detentos a pretensão à liberdade, coletivamente considerada. Mas como assegurá-la? Essa seria, portanto, a função do habeas corpus coletivo, fruto, até o momento de construção jurisprudencial.

27 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n° 650.728/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 23/10/2007, DJE 02/12/2009.

28BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 592581/RS. EMENTA: CONSTITUCIONAL. INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL DOS PRESOS. DETERMINAÇÃO AO PODER EXECUTIVO DE REALIZAÇÃO DE OBRAS EM PRESÍDIO. LIMITES DE ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. RELEVÂNCIA JURÍDICA, ECONÔMICA E SOCIAL DA QUESTÃO CONSTITUCIONAL. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. Relator: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Data de Julgamento: 18/03/2010, Data de Publicação: DJe-059 DIVULG 05/04/2010 PUBLIC 06/04/2010.

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Em favor desta construção jurisprudencial, cita-se o princípio da atipicidade da ação e do processo coletivo, assim descrito por Gregório Assagra de Almeida:

(...) pelo princípio da não taxatividade da ação coletiva, qualquer tipo de direito coletivo em sentido amplo poderá ser tutelado por intermédio das ações coletivas. Essa assertiva também é reforçada pelo princípio da máxima amplitude da tutela jurisdicional coletiva, previsto no art. 83 do CDC e aplicável a todo o direito processual coletivo, por força do art. 21 da LACP. Limitações levadas a efeito pela jurisprudência e pela legislação infraconstitucional são inconstitucionais, já que ferem disposições expressas do texto constitucional (arts. 5°, XXXV, e 129, III, CF)29.

Assim sendo, o habeas corpus coletivo, como ação coletiva atípica, poderia ser aceito e aplicado, em consonância à Carta constitucional, independentemente de manifestação do legislador ordinário.

Mas é preciso ir além. Alguns processos coletivos exibem o confronto de interesses sociais múltiplos, complexos, e, muitas vezes, divergentes, exigindo-se a reformulação do processo, de modo que este seja aberto à cooperação e à participação social, ampliando-se, assim, o conhecimento da demanda.

São os chamados processos coletivos estruturais, oriundos de “violações estruturais de direitos, que, para cessarem, exigem reformas institucionais, na estrutura, não medidas pontuais ou que se trabalhem com fatos isolados”30.

Um exemplo recente são as violações aos direitos difusos relacionados aos desastres ambientais decorrentes da barragem em Brumadinho (Minas Gerais). Neste caso, houve, não somente um impacto ambiental, mas um desastre humanitário, social e econômico no município. Veja-se, portanto, que a estrutura tradicional do processo para reparação e para indenização dos atingidos não é suficiente para amparar, como afirma José Joaquim Gomes Canotilho, as “relações jurídicas poligonais (ou multipolares), ou seja, relações que não são binárias: ao lado dos particulares (um particular ou um conjunto deles), há um complexo multipolar de interesses diferentes, que podem ser até contrapostos”31.

Define-se como marco do processo estrutural a experiência norte-americana advinda do caso Brown v. Board of Education32, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1954,

29 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo, Saraiva, 2003, p. 575.

30 FERRARO, Marcella Pereira. Do Processo Bipolar a um Processo Coletivo-Estrutural. 2015. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná, pg. 14.

31CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo. Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente ,n.1,p.55-66, jun.1994 ,p.55-56.

32 Kluger, Richard. Simple Justice: The History of Brown v. Board of Education and Black America's Struggle for Equality. New York: Knopf, 1975.

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determinando o fim da segregação racial no sistema educacional público, cuja implementação estaria a cargo dos tribunais locais.

Fredie Didier denomina-o de modelo experimentalista de reparação dentro de um processo estrutural (structural injunctions), por meio do qual o juiz abre mão da centralidade do processo, “reconhecendo a complexidade do problema da escolha das medidas necessárias, trazendo para o processo ampla participação de todos os envolvidos, inclusive da sociedade civil, para o programa de resolução do conflito”33

Exemplos interessantes de intervenção no processo são as audiências públicas e a intervenção do amicus curiae, previstos no Código de Processo Civil.

No caso analisado neste trabalho, no qual há clara comoção social e a presença de situações complexas, como o encarceramento em massa, é necessário que o julgador, ao analisar o habeas corpus coletivo, abra espaço para aqueles que conhecem a realidade dos estabelecimentos prisionais locais (organizações de proteção aos direitos humanos; membros do sistema prisional; comitês estaduais de combate à tortura; etc.) antes de proferir a decisão.

Dentre as principais marcas do processo estrutural, Marcella Pereira Ferraro cita34:

Participação dos interessados e negociação entre eles (não é topdown, comum a autoridade central): o processo não é hierarquizado nem fechado, permitindo que nele atuem diferentes participantes, conforme as circunstâncias exijam, mesmo que não sejam formalmente partes, havendo assim uma “colaboração produtiva”;

Objetivos gerais e critérios avaliativos (outputs, mais que inputs): em vez de específicas, são elaboradas normas gerais, como standards que pauta mas condutas ao indicar os objetivos a serem atingidos, cabendo às partes determinar como serão atendidos. São estabelecidos procedimentos e critérios para avaliar o desempenho da instituição desestabilizada, comparando-se também sua performance com a de outras instituições exitosas, aprendendo com elas;

 Flexibilidade e revisão contínua (em vez de normas rígidas): as metas e os critérios avaliativos são provisórios e sujeitos a contínua revisão, à luz da experiência. A incompletude do conhecimento se refere também aos resultados, por isso eles mesmos não são imutáveis;

 Transparência (nem sempre presente no outro modelo): as normas, ainda que gerais e provisórias, devem ser explícitas e públicas, por um lado; por outro, os critérios e

33 DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Op.cit., pg. 40.

34 FERRARO, Marcella Pereira. Do Processo Bipolar a um Processo Coletivo-Estrutural. 2015. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Paraná, pgs. 114-116.

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procedimentos de avaliação do cumprimento devem ser não apenas acordados, mas publicizados, servindo, assim, como mecanismos de accountability, em relação aos diferentes participantes, bem como de aprendizagem.

Tais propostas serão retomadas no capítulo 03, quando da análise do caso concreto. Antes, porém, é preciso descrever os aspectos gerais relacionados ao habeas corpus e ao habeas corpus coletivo.

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Capítulo 2

IN DUBIO, PRO LIBERTATIBUS (NA DÚVIDA, PELAS LIBERDADES)

O habeas corpus é conceituado como ação autônoma de impugnação, destinada a assegurar a liberdade de locomoção. Etimologicamente, a expressão habeas corpus traduz-se do latim, literalmente, como “ter o corpo, apresente o corpo”. Segundo Tourinho Filho, a expressão é ‘ writ of habeas corpus’, ou seja, ordem para apresentar a pessoa que está sofrendo o constrangimento35.

Tal a importância desta ação autônoma de impugnação que a Constituição Federal de 1988 a prevê como garantia fundamental, prevista no artigo 5°, inciso LXVIII, o qual dispõe que “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”36. Do mesmo modo, o Código de Processo Penal, em seu artigo 647, assegura que “dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar”37.

É preciso dizer que, muito embora esteja disciplinado no Código de Processo Penal no capítulo reservado aos recursos, sua natureza jurídica é de ação autônoma de impugnação. Renato Brasileiro de Lima, elenca os vários motivos pelos quais o habeas corpus não se trata de recurso:

(...) a) o recurso pressupõe um processo, ao passo que o habeas corpus pode ser impetrado independentemente da existência de processo penal em curso; b) o recurso é um instrumento de impugnação de decisões judiciais; c) o

habeas corpus pode ser impetrado contra decisões judiciais e contra atos

administrativos ou de particulares; o recurso funciona como instrumento de impugnação de decisões judiciais não definitivas, ao passo que o habeas corpus pode ser utilizado inclusive após o trânsito em julgado, objetivando a rescisão da coisa julgada, desde que ainda subsista constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, d) dentre vários pressupostos de admissibilidade recursal, deve ser aferida a tempestividade do recurso, sendo certo que, operada a preclusão temporal, tal impugnação não poderá ser conhecida. Em sentido diverso, desde que subsista constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, o habeas corpus poderá ser utilizado a qualquer momento, inclusive após o trânsito em julgado de sentença condenatória ou absolutória imprópria. Nesse ponto, o habeas corpus também se diferencia do mandado de segurança, que está sujeito ao prazo decadencial de 120 (cento e vinte) dias, contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado (Lei n° 12.016/09,

35 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 31a ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 610.

36 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.

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art. 23); e) dentre vários pressupostos de admissibilidade recursal, deve ser aferida a legitimidade do recurso, sendo certo que, interposto por parte ilegítima, tal impugnação não poderá ser conhecida. Por outro lado, embora sua finalidade seja beneficiar o paciente, ou seja, aquele que sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, uma ordem de habeas corpus pode ser requerida por ele mesmo ou por qualquer do povo (CPP, art. 654, caput)38.

Quanto ao interesse de agir, a necessidade da tutela é evidenciada quando haja violência ou coação decorrente de ilegalidade ou abuso de poder. Por violência, entende-se a vis corporalis, violência física ou material, com emprego de força indispensável para que a pessoa não tenha liberdade de ir e vir. Coação, por sua vez, implica violência moral, vis compulsiva, e o abuso de poder, como o exercício irregular do poder, caracterizado pela incompetência do agente coator para a prática do ato ou quando, sendo este, sendo competente, extrapola os limites impostos pela lei.

Segundo Renato Brasileiro de Lima, em se tratando de tutela da liberdade de locomoção, “deve se atribuir à violência e à coação uma interpretação abrangente, colocando-se em sua esfera de incidência qualquer tipo ou modalidade de conduta positiva ou negativa que seja capaz e suficiente de acarretar constrangimento ilegal à liberdade de locomoção”39.

Dentre as hipóteses de impetração do habeas corpus, o artigo 648 do Código de Processo Penal estabelece as ocasiões em que a coação é tida como constrangimento ilegal à liberdade de locomoção, em rol não taxativo: quando não houver justa causa; quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei; quando quem ordenar a coação não tiver competência para fazê-lo; quando houver cessado o motivo que autorizou a coação; quando não for alguém admitido a prestar fiança, nos casos em que a lei a autoriza; quando o processo for manifestamente nulo; quando extinta a punibilidade.

Estabelece-se tradicionalmente a classificação do habeas corpus, em habeas corpus preventivo e liberatório. Nas palavras de Aury Lopes Jr., quando se destina a atacar uma ilegalidade já consumada, um constrangimento ilegal já praticado, denomina-se habeas corpus liberatório (sua função é de liberar da coação ilegal), e quando o writ é empregado para evitar a violência ou coação ilegal em uma situação de iminência ou ameaça, trata-se do habeas corpus preventivo40.

Sérgio Rebouças propõe uma nova classificação, na qual há aquele habeas corpus destinado à impugnação direta de medida de constrição pessoal (o habeas corpus preventivo e

38 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Ed. Jvspodium, 2018, pg. 1800. 39 Ibidem., pg. 1773.

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o habeas corpus liberatório), e aquele destinado à impugnação de procedimento ou de ação penal, com intuito de trancar ou declarar a nulidade de procedimento investigativo ou ação penal, não importando sequer se há prisão atual ou sua iminência41.

Quanto ao procedimento, o habeas corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa, independentemente de qualquer habilitação profissional. Trata-se de legitimação ampla e irrestrita, do polo ativo. Nesse sentido, o polo ativo, leia-se, impetrante, é aquele que pede a concessão da ordem de habeas corpus, ao passo que paciente é aquele que sofre ou que está ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder, os quais podem ser a mesma pessoa. O polo passivo (autoridade coatora ou coator) é a pessoa responsável pela violência ou coação ilegal à liberdade de locomoção do paciente, seja autoridade pública ou particular.

Ademais, ressalta Eugenio Pacelli que, de modo a permitir o socorro à liberdade de locomoção atingida ou ameaçada, o rito deve ser célere, impondo-se, como regra, que toda a matéria de prova nela suscitada já acompanhe a petição que a vincula.42

A respeito das formalidades relacionadas à apreciação do habeas corpus, pertinente a crítica de Aury Lopes Jr.:

Daí por que é censurável o formalismo às avessas apregoado por muitos juízes e tribunais para cercear a eficácia e o alcance do habeas corpus, quando deveria ser todo o oposto. É preocupante o desprezo com que, muitas vezes, os tribunais lidam com o tempo do outro, tardando semanas (quando não meses) em decidir sobre a liberdade alheia, como se o tempo intramuros não fosse demasiado doloroso e cruel; assusta quando nos deparamos com julgadores que afirmam “ter por princípio não conceder liminares” (!!) ou, ainda, que, “sempre pede informações para estabelecer um contraditório com o juiz da causa” [...]; quando se opera uma verdadeira inversão probatória, exigindo que o réu (preso!) faça prova (ou melhor, alivie a carga probatória do Ministério Público, ao arrepio da presunção de inocência). Enfim, há que se ter plena consciência da função, do alcance e do papel que o habeas corpus desempenha em um Estado Democrático de Direito, para não tolerar retrocessos civilizatórios como, infelizmente, às vezes ocorre43.

Sem adentrar às demais especificidades deste instituto, veja-se, portanto, que este remédio constitucional, tal como disposto no ordenamento jurídico, visa tutelar o ius libertatis da pessoa. Para a afirmação do habeas corpus coletivo, é necessário entender o ius libertatis, como ius libertatum, em outras palavras, como já dito no Capítulo 01, como tutela dos direitos individuais homogêneos. Há que se falar aqui, portanto, em liberdade no plural.

41 REBOUÇAS, Sérgio. Curso de direito processual penal. Salvador: Editora Juspodivm, 2017, pg. 1399. 42 PACELLI, Eugenio. Curso de Processo Penal. 21 ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 446.

(30)

2.1 O habeas corpus coletivo na jurisprudência: o caso Verbitskty na Suprema Corte Argentina

Um precedente jurisprudencial importante se refere ao caso Verbitskty, julgado pela Suprema Corte Argentina. Neste julgamento paradigmático, El Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS) impetrou habeas corpus coletivo em favor de todas as pessoas detidas em instalações policiais superlotadas e em condições precárias na cidade de Buenos Aires44.

Discutia-se, na ocasião, a possibilidade de aplicação do writ coletivo, visto que não há previsão desta ação no ordenamento jurídico argentino. Fora argumentado que, se a Carta Constitucional garante os direitos a serem tutelados coletivos, também possibilita o reconhecimento de instrumentos processuais a fim de garanti-los, in verbis:

Que pese a que la Constitución no menciona em forma expressa el habeas corpus como instrumento deducible también en forma colectiva, tratandose de pretensiones como las esgrimidas por el recurrente, es lógico suponer que si se reconoce la tutela colectiva de los derechos citados en el párrafo segundo, con igual o mayor razón la Constitución otorga las mismas herramientas a un bien jurídico de valor prioritário y de que se ocupa en especial, no precisamente para reducir o acotar su tutela sino para privilegiarla.

Que debido a la condición de los sujetos afectados y a la categoría de derecho infringido, la defensa de derechos de incidencia colectiva puede tener lugar más allá del nomen juris específico de la acción intentada, conforme lo sostenido reiteradamente por esta Corte en matéria de interpretación jurídica,en el sentido de que debe tener se encuenta, además de la letra de la norma, la finalidade perseguida y la dinámica de la realidade. (...)45

A Suprema Corte Argentina considerou que a situação a qual estavam submetidos os detentos, em condições de superlotação e de vulnerabilidade, ensejava a violação dos tratados internacionais sobre direitos humanos, notadamente da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), os quais obrigam os Estados partes a estabelecer instrumentos processuais para salvaguarda dos direitos à dignidade da pessoa humana e à integridade física dos encarcerados.

Comentando a decisão referida, Hugo Omar Frontalini et. al afirmam que, se o remédio de amparo coletivo se encontra disponível para proteger direitos vinculados ao meio ambiente, direitos do consumidor e direito de incidência coletiva em geral, com maior razão deveria estar

44 ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. Recurso de Hecho: Verbitsky, Horacio s/

habeascorpus.Disponívelem:<http://sjconsulta.csjn.gov.ar/sjconsulta/documentos/verDocumentoSumario.html?i

dDocumentoSumario=11602>. Acesso em: 16 de abril de 2020.

45 ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. Recurso de Hecho: Verbitsky, Horacio s/ habeas

Referências

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