• Nenhum resultado encontrado

O HABEAS CORPUS COLETIVO COMO ALTERNATIVA PROCESSUAL NOS TEMPOS DE CRISE

84 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA RECOMENDAÇÃO N° 62, DE 17 DE MARÇO DE 2020 recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo

3.1 O habeas corpus coletivo impetrado pela defensoria pública do Ceará

Em 17 de março de 2020, a Defensoria Pública do Estado do Ceará apresentou um Habeas Corpus Coletivo perante o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará em favor de todas as pessoas presas no estado do Ceará que se enquadram nas diretrizes da Recomendação nº 62/2020 e na decisão na tutela provisória incidental na ADPF nº 34794. Além disso, o Núcleo de Atendimento aos Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei (Nuaja) entrou com outro pedido de liminar junto à 5a Vara da Infância da Juventude de Fortaleza para suspender, em prazo inicial de 30 dias, todas as medidas de semiliberdade nas unidades socioeducativas do Estado.

Em síntese, a Defensoria Pública alegou que todas as Unidades Prisionais do Estado do Ceará estão com capacidade ultrapassada, algumas chegando a 267% (duzentos e sessenta e sete por cento) de lotação, com o excedente, em média, de 222% (duzentos e vinte e dois por cento); e que os levantamentos Penitenciários oficiais, mostram que quase a metade das pessoas privadas de liberdade se encontram em unidades sem módulo de saúde.

Com relação a eficácia de instrumento do Habeas Corpus coletivo, aduz a Defensoria Pública em sua petição:

Além disso, para a demonstração da competência do TJCE deflui da lógica de que são os magistrados de 1ª grau os responsáveis, quase à unanimidade, pelas decisões de prisão preventiva exaradas no Estado do Ceará, não sendo possível individualizar à entrada todos os processos, todos os pacientes e todas as decisões, tal como ocorrera no HC 143.641, devendo tal identificação ocorrer por ocasião do cumprimento da decisão do writ por cada magistrado com competência criminal. Ademais, a própria população carcerária provisória é rotativa, e o elenco de hoje pode não ser o mesmo da data do cumprimento95. Essa questão da identificação dos presos foi de extrema importância, inclusive, para o indeferimento da liminar e do não conhecimento do writ pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Segundo o Tribunal de Justiça, no julgamento final da questão:

94 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ. HC n° 0623025-53.2020.8.06.0000. Disponível em:<

https://www.conjur.com.br/dl/defensoria-ce-soltura-presos-conter.pdf>. Acesso em 4 de maio de 2020. 95 Ibidem, pg. 12.

(...) no caso em apreço afigura-se descabida a concessão da ordem na forma pretendida, tendo em vista que o deferimento do benefício almejado exige a realização de um exame detalhado da situação de cada um dos pacientes, pois conforme tem estabelecido o Superior Tribunal de Justiça, é fundamental que em ação constitucional coletiva, os pacientes estejam inseridos em idêntico contexto fático-jurídico, para que assim seja possível a análise da situação de cada um (...)96.

Veja-se, portanto, que a controvérsia principal do caso gira em torno da determinação dos presos: por um lado, haveria uma enorme dificuldade na identificação de todos os presos pelos defensores públicos, ao passo que, por outro lado, seria justamente essa falta de individualização que impediria a concessão do habeas corpus de ofício pelo Tribunal de Justiça, conforme disciplina o artigo 654 do Código de Processo Penal.

Levado o caso ao Superior Tribunal de Justiça, o writ coletivo, dessa vez protocolado sob número n° 567779 / CE, este foi liminarmente negado, em decisão do ministro João Otávio de Noronha, porque o mérito do caso não foi apreciado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, uma vez que haveria violação à súmula 691 do Supremo Tribunal Federal. In verbis:

Trata-se de habeas corpus com pedido de liminar impetrado em favor de TODAS AS PESSOAS PRESAS NO ESTADO DO CEARÁ QUE SE ENQUADRAM NAS DIRETRIZES DA RECOMENDAÇÃO Nº 62/2020 DO CNJ em que se aponta como autoridade coatora o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ. Os pacientes são todas as pessoas que se enquadrem nas categorias expostas da Recomendação n. 62/2020 do CNJ.O impetrante requer a concessão da ordem liminar, a fim de que todas as pessoas sejam postas em liberdade, ante o risco eminente de contágio pelo COVID- 19.

É o relatório. Decido.

A matéria não pode ser apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça, pois não foi examinada pelo Tribunal de origem, que ainda não julgou o mérito do writ originário. A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que não cabe habeas corpus contra indeferimento de pedido liminar em outro writ, salvo no caso de flagrante ilegalidade, conforme demonstra o seguinte precedente: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. SÚMULA 691/STF. FLAGRANTE ILEGALIDADE. SUPERAÇÃO. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO PREVENTIVA DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA. NECESSIDADE DE GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. PRISÃO DOMICILIAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO. Nos termos do Enunciado n. 691 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, não é cabível habeas corpus contra indeferimento de pedido de liminar em outro writ, salvo em casos de flagrante ilegalidade ou teratologia da decisão singular, sob pena de indevida supressão de instância. [...] (HC n.

96 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Habeas Corpus n° 06231961020208060000 CE 0623196- 10.2020.8.06.0000, Relator: LIGIA ANDRADE DE ALENCAR MAGALHÃES, Data de Julgamento: 12/05/2020, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 12/05/2020.

486.900/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, DJe de 26/2/2019.)

Confira-se também a Súmula n. 691 do STF:

Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.

No caso, não visualizo, em juízo sumário, manifesta ilegalidade que autorize o afastamento da aplicação do mencionado verbete sumular.

Ante o exposto, com fundamento no art. 21-E, IV, c/c o art. 210 do RISTJ, indefiro liminarmente o presente habeas corpus.

Cientifique-se o Ministério Público Federal. Publique-se.

Intimem-se.

Brasília, 20 de março de 2020.

MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA (Presidente)97

Curiosamente, a mesma Defensoria Pública do Estado do Ceará havia protocolado writ coletivo em favor de todos os presos civis no Estado, igualmente não conhecido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, porém, dessa vez, conhecido e parcialmente provido pelo Superior Tribunal de Justiça (5 dias depois da decisão no HC n° 567779 / CE), em decisão de relatoria do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, afastando o óbice ocasionado pela súmula n° 691 do Supremo Tribunal Federal, em razão da gravidade da pandemia.98

97 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. HC nº 567779 / CE (2020/0072189-9). Julgado em 20 de março de 2020. Decisão Monocrática Rel. João Otávio de Noronha. Disponível em<

https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo= HC%20567779>. Acesso em 01 de junho de 2020.

98 HABEAS CORPUS Nº 568.021 - CE (2020/0072810-3) RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO