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O HABEAS CORPUS COLETIVO COMO ALTERNATIVA PROCESSUAL NOS TEMPOS DE CRISE

98 HABEAS CORPUS Nº 568.021 CE (2020/0072810-3) RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO IMPETRANTE : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ ADVOGADOS :

4.1 Um parêntese criminológico: revisitando a labelling approach

Desse modo, parte-se das seguintes reflexões (sem a pretensão de serem suficientemente respondidas): por que não se acolhe habeas corpus coletivo de presos provisórios, por exemplo, em situações de vulnerabilidade, os quais vivem em celas superlotadas, e concede-se habeas corpus a Fabrício José Carlos de Queiroz e sua esposa, a qual se encontrava foragida, potencialmente expostos às mesmas condições objetivas? A quem esses habeas corpus são negados? Qual o perfil dos mortos no sistema carcerário pelo Covid-19?

Ora, a pergunta acerca do porquê de algumas pessoas serem tratadas como criminosas ao invés de o porquê de os criminosos cometerem crimes foi o grande marco trazido pela Teoria da Labeling Approach, de modo a romper com as teorias criminológicas do consenso e inaugurar de modo irreversível o panorama para o surgimento das chamadas teorias do conflito. Em outras palavras, segundo Sérgio Salomão Shecaira, o movimento criminológico do Labeling Approach, surgido nos anos 60, nos Estados Unidos, significou um abandono do

107 BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Tradução de João Ferreira, revisão técnica Gilson César Cardoso. 4. ed. Brasília. Editora Universidade de Brasília. 1999, pgs. 96-7.

paradigma etiológico-determinista e a substituição de um modelo estático e monolítico de análise social por uma perspectiva dinâmica e contínua do corte democrático. Conforme o autor, abandonou-se a ideia de sociedade como um todo pacífico e baseada no consenso, o qual motivaria a manutenção da coesão social para uma ideia de referência que aponta para as relações conflitivas existentes dentro da sociedade.108

Se na criminologia dita clássica, a ação do criminoso era o ponto alto da reflexão criminológica, na Labeling Approach será a reação social (dos bad actors para os powerful reactors) o fator preponderante para explicar a estigmatização (o etiquetamento) de alguns indivíduos, os quais seriam classificados como ‘delinquentes’, ‘drogados’, ‘bandidos’, entre outras denominações.

Nas palavras de Alfonso Serrano Maíllo, para a teoria em questão, não existe quase nenhum ato que seja delitivo em si mesmo, mas delitivo ou desviado é aquilo que se define como tal pela comunidade ou pelos órgãos do sistema de Administração da Justiça. A chave para que algo seja delitivo, portanto, não reside tanto em suas características intrínsecas, mas no etiquetamento que dele se faça109. Assim se percebe como a reação que provoca um fato na

comunidade ou no grupo é decisiva para que algo seja definido como delitivo, desviado, criminoso.

Continua Maíllo discorrendo que esses atos de desviação, chamados de criminalização primária, podem ter diversas origens etiológicas e tendem a ser bastante divulgados. Contudo, o autor aponta que nem todos são descobertos quando incorrem em alguma infração e, no caso de serem descobertos, uma boa parte não são perseguidos pela prática do fato de que se trata.

Para a teoria da Labeling Approach, quando alguém (sobretudo um jovem) é descoberto e perseguido pelos meios de persecução penal, é possível que isso provoque uma série de mudanças em sua forma de ver o mundo e de ver a si mesmo que o leve a definir-se também como um indivíduo desviado, e que isso o leve a continuar infringindo as leis. Esta é a chamada criminalização secundária. Esta última é mais provável que ocorra quando o indivíduo é etiquetado formalmente como delinquente, isto é, quando é detido pela polícia, julgado e preso em um centro de privação de liberdade110.

Uma vez rotulado como criminoso, o indivíduo, o qual é formalmente perseguido pelos órgãos de controle institucionais, passa a se entender e a se reconhecer a si mesmo como tal

108 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 241.

109 MAÍLLO, Alfonso Serrano; PRADO, Luís Regis. Curso de Criminologia. 3 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2016.

identidade. A aproximação com outras pessoas igualmente etiquetadas, o conhecimento das técnicas e a reiteração das condutas levariam o indivíduo às chamadas carreiras criminais. Nas palavras de Alessandro Baratta:

A constituição de uma população criminosa como minoria marginalizada pressupõe a real assunção, a nível de comportamento, de papéis criminosos por parte de um certo número de indivíduos, e a sua consolidação em verdadeiras e próprias carreiras criminosas. E já vimos que isto se verifica, sobretudo, como tem sido colocado em evidência por alguns teóricos americanos do labeling approach, mediante os efeitos da estigmatização penal sobre a identidade social do indivíduo, ou seja, sobre a definição que ele dá de si mesmo e que os outros dão dele111.

Esse tema da identidade criminal, inclusive, é muito caro a Eugenio Raul Zaffaroni, em seus estudos sobre criminologia midiática. A mídia seria uma das formas de agência de controle na qual se cria a realidade de um mundo de pessoas decentes, diante de uma massa de criminosos, identificada através de estereótipos, que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de ‘diferentes e maus’.112

Mas quem são, na prática, esses indivíduos? Uma pista estaria na análise dos dados oficiais a respeito dos encarcerados nos presídios brasileiros. Segundo o Banco de Monitoramento das Prisões do Conselho Nacional de Justiça, a população carcerária é formada por 95% de homens, dos quais majoritariamente são jovens, pretos ou pardos, não tendo concluído o ensino médio nas instituições de ensino113. Eis, justamente, a grande parte da “clientela” dos habeas corpus coletivo.

No contexto da pandemia ocasionada pelo Covid-19, são, portanto, esses indivíduos os quais mais sofrerão as consequências advindas pelo vírus.

Uma interessante constatação advinda dos dados do boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo do dia 30 de abril aponta que o risco de morte de negros por covid-19 é 62% maior em relação aos brancos114.

Estima-se que, na realidade dos presídios, os efeitos da pandemia sejam especialmente letais em indivíduos negros, como expõe Palloma Menezes, professora do departamento de

111 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Revan, 4ª ed., setembro de 2017, p. 179.

112 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, A questão criminal. 1. ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2013, p. 144.

113 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Banco Nacional de Monitoramento das Prisões (BNMP)/ Cadastro Nacional de Presos do Conselho Nacional de Justiça, divulgado em 6 de agosto de 2018.

114 Dados do boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo do dia 30 de abril apontam que o risco de morte de negros por covid-19 é 62% maior em relação aos brancos.

Ciências Sociais da Universidade Federal de Fluminense, em entrevista ao Centro de Estudos Estratégicos da Fio Cruz:

Os dados indicam que a Covid-19 tem sido mais letal entre os negros do que entre os brancos. Um ponto de partida essencial para debater essa vulnerabilidade maior é reconhecer a desigualdade estrutural presente na sociedade brasileira. (...) Outras dimensões relevantes da questão racial no Brasil estão associadas ao debate sobre violência. De modo geral, a violência, principalmente a estatal, é muito mais letal para os negros no Brasil: 80% dos mortos por policiais no primeiro semestre de 2019 eram negros e pardos. Durante a pandemia vemos, então, uma sobreposição de fatores que levam ao adoecimento e à letalidade da população negra: a questão socioeconômica já mencionada, e, além dela, a violência, que agrava a situação. Vale sempre se lembrar demuitos jovens mortos nesse período, o João Pedro é um caso emblemático por ter sido assassinado por um agente estatal dentro de casa. Outro ponto, ainda, incontornável ao se pensar nas desigualdades raciais no Brasil refere-se ao cárcere, às prisões no Brasil. Os presídios apresentam contaminação por Covid-19, e não existe uma política mais estruturada, séria para o combate à doença. E sabemos que a maior parte da população carcerária é composta por pessoas negras, o que ajuda a explicar o fato de a letalidade ser muito maior entre elas. (...)

A questão das desigualdades étnico-raciais, bem como seus reflexos no ambiente carcerário, tema de discussão acadêmico-criminológica há algumas décadas115, foi

potencializada pelos protestos desencadeados pelo assassinato de George Perry Floyd Jr., em Minneapolis, Estados Unidos, no dia 25 de maio de 2020, estrangulado por um policial que se ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem por supostamente usar uma nota falsificada de vinte dólares em um supermercado. Sob o signo de “I can't breathe”, última frase dita por George Floyd, o tema do racismo estrutural116 foi pauta de debate em inúmeros setores da sociedade, em diversos lugares do mundo117.

115 Destaco os seguintes estudos: Alves, D. (2017). Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Revista CS, 21, pp. 97-120. Cali, Colombia: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Icesi.; Batista, Vera Malaguti. Introdução Crítica à Criminologia Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

116 “O racismo não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é, sobretudo, um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados é estruturalmente reproduzida” ALMEIDA, Silvio. O que é o racismo

estrutural?. Coleção Feminismos Plurais, org. Djamila Ribeiro. Belo Horizonte: Ed. Letramento, 2018.

117 Concomitantemente no Brasil, em 18 de maio de 2020, João Pedro recebia um tiro de fuzil na barriga enquanto brincava com os primos na casa da família. Policiais que estavam no local removeram o corpo do garoto da cena do crime, porém não teriam avisado o paradeiro para a família, que só foi encontrado 17 horas depois, no Instituto Médico Legal, já sem vida.

Sobre o tema do racismo estrutural nos Estados Unidos, em sua obra “A nova segregação: racismo e encarceramento em massa”118, Michele Alexander faz um paralelo entre a escravidão norte-americana, a era Jim Crow (o regime de segregação racial que durou de 1876 a 1965), e a atual política de encarceramento em massa como a continuidade de sistemas baseados na mesma lógica: o racismo histórico arraigado no país. O racismo, para a autora, seria altamente adaptável, notadamente quanto à facilidade de se esconder sob a forma de uma pretensa “neutralidade racial” (colorblindness).

A pandemia do Covid-19 aprofundou, pois, estas contradições, ou nas palavras do filósofo Achille Mbembe: a pandemia democratizou o poder de matar. Achille Mbembe foi o criador da chamada teoria da necropolítica (poder de matar), na qual partindo dos estudos de Michael Foucault acerca da biopolítica, o autor propõe analisar as políticas da morte como uma macroestrutura operante em países colonizados, e seu funcionamento através da soberania que gerencia a morte

A reflexão de Mbembe parece pertinente neste momento especialmente para ressaltar algo que é comum à pandemia e à realidade carcerária: a banalização da morte e a investigação acerca da “maneira como governos decidem quem viverá e quem morrerá”119, especialmente

quanto aos corpos das pessoas negras, seu lugar de fala, visto ser um professor negro analisando as consequências do processo colonizador na África:

As maneiras de matar não variam muito. No caso particular dos massacres, corpos sem vida são rapidamente reduzidos à condição de simples esqueletos. Sua morfologia doravante os inscreve no registo de generalidade indiferenciada: simples relíquias de uma dor inexaurível, corporeidades vazias, sem sentido, formas estranhas mergulhadas em estupor cruel. (...) Nesses pedaços insensíveis de osso, não parece haver nenhum vestígio de “ataraxia”: nada mais que a rejeição ilusória de uma morte que já ocorreu. Em outros casos, em que a amputação física substitui a morte imediata, cortar os membros abre caminho para a implantação das técnicas de incisão, ablação e excisão que também têm os ossos como seu alvo. Os vestígios dessa cirurgia demiúrgica persistem por um longo tempo, sob a forma de configurações humanas vivas, mas cuja integridade física foi substituída por pedaços, fragmentos, dobras, até mesmo imensas feridas difíceis de fechar. Sua função

118 ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2018.

119MBEMBE, Achille. Pandemia democratizou o poder de matar, diz o autor da teoria da ‘necropolítica’. Folha

de São Paulo. 30 de março de 2020. Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia- democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml>. Acesso em 22 de junho de 2020.

é manter diante dos olhos da vítima – e das pessoas a seu redor – o espetáculo mórbido do seccionamento120.

Outrossim, pensar a necropolítica e o racismo estrutural é (re) pensar também penar o papel do poder judiciário, o qual tem participação fundamental, diagnosticado ainda na teoria da Labeling Approach, e aprofundado nas teorias críticas, na identificação destas pessoas como criminosas, como “perigosas” à ordem pública (esse “guarda-chuva” conceitual que fundamenta tantas prisões preventivas), por meio da institucionalização das cerimônias degradantes, processos ritualizados a que se submetem os envolvidos no processo criminal, em que o indivíduo é despojado de sua identidade, recebendo uma outra degradada121.

Essa identidade degradada é constantemente firmada e afirmada no imaginário popular, mesmo carecendo de materialidade científica. Um dado importante constatado pelo Conselho Nacional de Justiça é que a taxa de pessoas que voltaram a ser presas após deixarem os presídios em razão da pandemia do novo coronavírus é inferior a 2,5%122. Os números do Ceará mostram

que, das 2.139 pessoas retiradas das prisões em razão da pandemia, apenas 39 voltaram a ser presas, uma taxa de 1,82%, desconstruindo-se o “mito popular” de que a soltura das pessoas do grupo de risco aumentaria o número de crimes.

O fato de sermos uma sociedade de “rés negras, juízes brancos”, demanda que o “poder judiciário possa reconhecer a existência do racismo institucional como um passo fundamental, pois mesmo na igualdade formal, em que todos e todas são iguais perante a lei, existem mecanismos ‘invisíveis’ de discriminação que fazem com que algumas pessoas sejam menos iguais ou menos humanas, ou não humanas”123.

Nesse sentido, o processo penal não seria um fim em si mesmo, a mera aplicação das normas do Código de Processo Penal, mas verdadeiramente um instrumento para efetivação dos direitos previstos na Constituição Federal de 1988 e dos instrumentos jurídicos internacionais de direitos humanos.

120 MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, PPGAV, EBA, UFRJ, n.32, dez. 2016, p. 142. 121 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pgs. 261-262. 122 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judiciário registra baixos índices de reentrada de pessoas soltas

em razão da pandemia. 22 de junho de 2020. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/judiciario-registra-baixos- indices-de-reentrada-de-pessoas-soltas-em-razao-da-pandemia/> Acesso em 23 de junho de 2020.

123 ALVES, Dina. Rés negras, juízes brancos: uma análise da interseccionalidade de gênero, raça e classe na produção da punição em uma prisão paulistana. Revista CS, 21, pp. 97-120. Cali, Colombia: Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Icesi, 2017.

Na ideia aqui exposta, estas discussões teriam lugar justamente no momento de discussão público, no âmbito dos processos estruturantes, de modo a adaptá-las à realidade local de cada estado.