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OS IMPACTOS DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE NAS RELAÇÕES AMOROSAS DE MULHERES APENADAS

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Academic year: 2021

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OS IMPACTOS DA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE NAS RELAÇÕES AMOROSAS DE MULHERES APENADAS

THE IMPACTS OF PRIVACY OF FREEDOM ON THE LOVE OF RELATED WOMEN

Tauane Leal1

Fabíola Langaro2

Resumo: As relações amorosas compõem um aspecto importante na vida dos sujeitos estejam eles livres, ou não. O presente artigo teve como objetivo compreender os impactos da privação de liberdade nas relações amorosas de mulheres apenadas. A pesquisa caracteriza-se como uma revisão narrativa, tendo sido realizada análise da literatura publicada em livros, artigos de revista impressas e/ou eletrônicas com a finalidade de responder ao objetivo do estudo. Os resultados apontam que a privação de liberdade interfere de forma significativa nas relações amorosas das mulheres apenadas, visto que há um estigma social relacionado à mulher presa que age diferente do que é esperado socialmente dela. Em uma cultura patriarcal, as mulheres presas são taxadas de irresponsáveis e inconsequentes, pois ao praticarem os delitos ou crimes, não teriam pensado nos filhos e na família. Assim, as mulheres recebem menos visitas e em geral são abandonadas pelo companheiro e muitas vezes também pela família se relacionando amorosamente na maioria das vezes, com colegas de cela ou pessoas que conheceram no cárcere. Diante deste cenário muitas pesquisas ainda podem ser realizadas, ampliando os conhecimentos sobre o tema e as possibilidades de atuação dos psicólogos com a população carcerária.

Palavras-chave: Prisão; Presídio Feminino; Relações amorosas; Psicologia.

Abstract

Love relationships make up an important aspect in the lives of individuals subject to freedom, not ones. This article aims to understand the effects of deprivation of liberty on the love relationships of imprisoned women. One research described it as a narrative review, after an analysis of literature published in books, journal articles, and / or electronic journals using responses to the study objective. The results indicate that a deprivation of liberty significantly interferes with women's love relationships, as there is a social stigma related to a woman who is a different age from what is socially expected of her. In a patriarchal culture, as women are called irresponsible and inconsequential, because they commit crimes or crimes, they are not considered thought for children and family. Thus, as women receive fewer visits and are usually abandoned by their partner and often also by their family, they most often relate lovingly with family members or people they do not know. Given this scenario, many researches can still be carried out, expanding the

1 Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. E-mail:

tauaneleal.sc@gmail.com.

2 Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Titular na Universidade do

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knowledge on the subject and the possibilities of action of psychologists with prison population.

Keywords: Prison; Female Prison; Love relationships; Psychology.

1 INTRODUÇÃO

A organização dos presídios e celas por gênero nem sempre fez parte do sistema prisional no Brasil. No período colonial as mulheres eram encarceradas junto com homens e raramente havia espaços destinados especificamente a elas. Era frequente a divisão de celas entre homens e mulheres que, em sua maioria, eram escravas ou prostitutas. Esse sistema facilitava diversos tipos de violências, sendo comuns os abusos sexuais e doenças (ANDRADE, 2011).

De acordo com Freitas (2012), o baixo índice de criminalidade feminino contribuiu para que o Estado pouco se preocupasse com a situação das mulheres infratoras. Somente após 1920, com o aumento no número de mulheres envolvidas com violação à lei é que o Estado passa, aos poucos, a se voltar para a questão das mulheres encarceradas.

Entre os anos de 1923 e 1924, o penitenciarista José Gabriel de Lemos Britto percorreu o Brasil analisando os presídios e a situação dos encarcerados nos principais estados brasileiros. O relatório produzido por ele gerou o livro que se intitula ”Os Systemas Penitenciários do Brasil”, publicado em 1924, que traz dados sobre legislação e encarceramento no período. Porém, as mulheres aparecem pouco em seus relatos, visto que a maioria dos encarcerados eram homens. Nos anos de 1926 e 1927 novos estudos foram realizados sobre o tema, porém não houve grandes modificações no que se conhecia a respeito do encarceramento feminino. As mulheres permaneceram como minorias no sistema prisional, que continuava precário e precisando de maior atenção do Estado. Em 1934, nas capitais dos estados brasileiros, havia 46 mulheres presas para 4.633 homens sentenciados, ou seja, apenas 1% da população carcerária das capitais era composto por mulheres (ANDRADE, 2011).

Mesmo discutindo-se sobre os presídios femininos e o encarceramento de mulheres desde o final do século XIX, somente a partir da década de 1940 é que os presídios femininos foram criados em alguns dos estados brasileiros, apesar das tentativas anteriores de criação destes espaços. Dentre elas,

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destaca-se a criação do “patronato das presas” em 1921. Inspirado em outros paídestaca-ses latino-americanos que já tinham presídios femininos estruturados nesta época, como a Argentina e o Uruguai, o patronato era “composto por senhoras da sociedade carioca e Irmãs da Congregação de Nossa Senhora do Bom Pastor d´Angers, presididas pela Condessa de Cândido Mendes, esposa do (...) presidente do Conselho Penitenciário do Distrito Federal” (ANDRADE, 2011, p 19). O patronato visava conseguir uma solução para o problema das mulheres que cometeram crimes ou infrações, de preferência com a criação de um estabelecimento especializado em mulheres e tinha como lema “amparar, regenerando” (ANDRADE, 2011).

Entre as décadas de 1940 e 1950, o patronato esteve à frente das principais penitenciárias femininas e cabia às freiras cuidar da moral e bons costumes das presas. Estas eram ensinadas a realizar trabalhos domésticos e eram constantemente vigiadas pelas freiras, que tinham por objetivo transformar as mulheres apenadas em “mulheres discretas, honestas, recatadas e piedosas, aptas para retornar à convivência social. Trabalho, disciplina, amor à família, saberes domésticos, arrumação na medida certa, discrição e caridade” eram alguns dos ideais almejados pelas organizadoras destas instituições, marcadas por um viés moral, assistencialista e religioso.(FRANCO, 2015, p 14).

Com o apoio do Conselho Penitenciário do Distrito Federal, o Patronato das Presas trouxe a ideia de implementar uma penitenciária agrícola para as mulheres, onde elas mesmas produziriam roupas, alimentos e outros itens necessários para sua subsistência. Como a população carcerária feminina era pequena, estimava-se que o governo teria poucos gastos para a manutenção do local. Além disso, a pequena quantidade de pessoas facilitava o trabalho das encarregadas pelo estabelecimento. Porém o presídio idealizado pelo Patronato das Presas demorou a ser implementado, saindo do papel somente no final da década de 1930 e com diversas alterações (ANDRADE, 2011).

Em relação aos países europeus, o Brasil estava bastante atrasado, visto que o primeiro presídio feminino que se tem notícia no mundo data de 1645. Localizado em Amsterdã, na Holanda, abrigava não somente mulheres que cometiam crimes, mas também mulheres pobres, bêbadas, prostitutas, “desrespeitosas” e “meninas malcomportadas” que desobedeciam aos pais e maridos. O local, que era considerado instituição modelo, era pautado no trabalho

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como forma de correção, onde as mulheres realizavam trabalhos na indústria têxtil e outros serviços como limpeza e organização do próprio local (ANDRADE, 2011). A partir do final do final do século XX, o Estado brasileiro começa a preocupar-se com a situação das presas, que a essa altura já haviam aumentado consideravelmente em número. Em 1984 foi aprovada a Lei nº 7.210/84 que segurava às mulheres os mesmos direitos que aos demais presos, como celas individuais e salubres (BRASIL, 1984). A partir de 2009, foram inseridas duas modificações na Lei de Execução Penal, através das Leis nº11.942/09 e nº12.121/09 que garantem os direitos das mulheres gestantes e lactantes, como seção para gestantes e parturientes e inserção de berçários, onde as mulheres poderão cuidar e amamentar seus filhos de até seis meses de idade. Além disso, a Lei determina que nos estabelecimentos penais destinados a mulheres, as agentes penitenciárias sejam exclusivamente do sexo feminino (BRASIL, 2009a) (BRASIL, 2009b). Recentemente, no ano de 2018, novas alterações foram acrescentadas através da Lei nº 13.769, como o direito à prisão domiciliar a mulheres gestantes ou que foram mães ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência, salvo nos casos de crimes graves ou contra os próprios dependentes (BRASIL, 2018).

Em nossa sociedade contemporânea, a população carcerária feminina tem crescido de forma alarmante. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), em um relatório emitido em 2017, até junho de 2016 havia 726.712 pessoas presas no Brasil. Destas, a população prisional feminina era de 42.355 mulheres, sendo que 41.087 estavam no sistema penitenciário e 1.268 nas secretarias de segurança, carceragens e delegacias. Para cada 100 mil mulheres no Brasil, 40 estavam presas. Ainda de acordo com o INFOPEN, no ano de 2016 havia no sistema prisional 27.029 vagas disponíveis para as mulheres, totalizando um déficit de 15.326 vagas (BRASIL, 2017). O Brasil é o país com a quarta maior população carcerária feminina do mundo, ficando atrás dos Estados Unidos, China e Rússia que ocupam o primeiro, segundo e terceiro lugar, respectivamente (BRASIL, 2018b)

Apesar dos avanços nas leis que têm por objetivo proteger as mulheres encarceradas, a realidade dos presídios femininos no Brasil é dura e desumana. De acordo com Queiroz (2015), o sistema carcerário feminino trata as mulheres da mesma forma que trata os homens, desconsiderando que, por serem mulheres,

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precisam de exames para prevenção de doenças específicas como câncer de cólon de útero, de exames pré-natais e de absorventes, o que leva muitas presas a improvisam absorventes internos com miolos de pão. Ainda de acordo com Queiroz (2015), que entrevistou diversas mulheres para compor o livro “Presos que Menstruam”, diversos direitos humanos são violados neste ambiente, onde não é incomum que as presas encontrem cabelos e fezes de ratos na comida, durmam no chão com seus bebês ou sejam agredidas psicológica e fisicamente, muitas vezes pelos próprios agentes penitenciários.

De acordo com Borges e Colombaroli (2011), o tratamento dispensado às mulheres presas é ainda pior que o tratamento que é dado aos homens na mesma situação. Essa desigualdade decorre das questões culturais e de gênero e da maneira como a mulher é vista socialmente, como um ser submisso e com menos tendência à prática de violência. Assim, as mulheres em cárcere carregam diversos estigmas como o da própria condição feminina e, por serem, em sua maioria, negras, de baixas renda e escolaridade, carregam ainda o estigma da delinquência, que se mantém mesmo após a liberdade. Por estarem em um sistema feito pelos homens e para os homens, as mulheres presas vivem na invisibilidade, na maioria das vezes não têm suas necessidades básicas atendidas e têm sua dignidade constantemente violada.

Nesse sentido, uma das questões marcantes de desigualdade entre homens e mulheres em cárcere é a visita íntima, aspecto importante para a manutenção dos relacionamentos amorosos e do elo familiar das presas. Conforme Borges e Colombaroli (2011), as visitas íntimas para os homens foram consentidas no Brasil pela primeira vez em 1924, enquanto as mulheres só adquiriram esse direito em 1999. Mesmo com o Direito Constitucional de igualdade entre homens e mulheres, em muitos presídios brasileiros, as mulheres, diferente dos homens, são autorizadas a receber somente visitas de cônjuges legalmente comprovados, o que dificulta a manutenção do vínculo afetivo com parceiros. Com a burocratização do processo de acesso aos presídios, as mulheres que tem parceiros comprovados, recebem cerca de duas visitas por mês, enquanto os homens recebem cerca de oito. Visitas de parceiras do mesmo sexo não são permitidas em muito presídios. Além disso, as mulheres são vistas como tendo poucas necessidades sexuais e, ao mesmo tempo, tendo “risco” de

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engravidar, discurso que é utilizado para justificar a desigualdade no tratamento de homens e mulheres encarcerados (BORGES; COLOMBAROLI, 2011).

Reconhecer que mulheres têm necessidades sexuais e direito sobre o próprio corpo é romper com o estereótipo patriarcal e sexista que insiste em tentar manter a mulher submissa e sem direitos sobre si mesma. Apesar da negativa do Estado em reconhecer as necessidades sexuais e afetivas das mulheres, as reclusas não deixam de se preocupar com as relações amorosas, seja dentro ou fora da prisão. Nos relatos colhidos por Queiroz (2015), as presas descrevem que se relacionam com homens que conhecem por meio de mensagens de celular, apesar de os aparelhos serem proibidos dentro do presídio, por meio de fotos ou por indicação de amigas. A grande maioria se relaciona com outras presas, mesmo as que se consideram heterossexuais, ou com pessoas que conhecem após a reclusão, visto que a grande maioria é abandonada pelo parceiro após o encarceramento.

Para Ricotta (2002, p. 27), o amor romântico compõe um importante aspecto na vida dos sujeitos, para ela

[...] amar e ser amado é uma das prioridades da nossa escala de necessidades que precisamos suprir para sentirmos realizados e satisfeitos depois da sobrevivência, das necessidades básicas [...]. [...] toda a nossa vida é constantemente permeada por vínculos e relações, e estas podem ser amorosas, familiares [...].

A autora também cita que os vínculos compõem a estrutura psíquica de uma pessoa, sendo os primeiros vínculos significativos serão estabelecidos na família e relação conjugal, que pode ser hétero ou homoafetiva.

A manutenção de relacionamentos conjugais e amorosos auxilia as presas a se inserirem novamente no meio social, visto que a maioria por abandono da família e cônjuge, encontra dificuldades em recomeçar a vida sozinha após o período de cárcere e acaba voltando para o presídio (QUEIROZ, 2015). Conforme Borges e Colombaroli (2011, p 72), “a imposição da abstinência sexual contraria a finalidade da pena privativa de liberdade, já que é impossível pretender a readaptação social da pessoa e, ao mesmo tempo, reprimir uma de suas expressões mais valiosas”. Além de cruel, a privação de relações sexuais é uma punição excessiva e sem justificativa legal, perpassa pela dificuldade de reconhecer o direito da mulher sobre seu próprio corpo, sobre sua sexualidade e reprodução. Além disso, as mulheres tendem a ser mais submissas às normas

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das prisões, tendo receio de lutar pelo direito à visita íntima, temendo serem consideradas promíscuas (BORGES; COLOMBAROLI, 2011).

Porém, cabe ao Estado o reconhecimento quanto aos direitos à vida amorosa e sexual das apenadas, como os de qualquer outra pessoa que não está em cárcere, enxergar a humanidade, reconhecer que existe subjetividade naquele sujeito padronizado pelo sistema, que perde sua individualidade quando passa a ser um número, uma matrícula. Considerando o aumento crescente da população carcerária feminina e o aparente descaso do Estado com a situação das presas, e considerando também que os relacionamentos amorosos são elos facilitadores da ressocialização, buscou-se com essa pesquisa, investigar e compreender os impactos da privação de liberdade nas relações amorosas de mulheres apenadas. O interesse da pesquisadora em estudar e se aprofundar no tema deu-se, devido ao incômodo gerado em saber que existem mulheres em situações tão desumanas e degradantes. Apesar de reconhecer que muitas cometeram graves crimes, a pesquisadora acredita que os presídios são espaços para ressocialização e não para tortura e que o acesso ao direito de se relacionar contribui para a ressocialização, para reinserção social e como estratégia de enfrentamento para o sofrimento de estar privada de liberdade.

Considerando as questões abordadas anteriormente, tem-se como objetivo neste artigo compreender os impactos da privação de liberdade nas relações amorosas de mulheres apenadas. E como objetivos específicos, busca-se conhecer as principais características das experiências de privação de liberdade de mulheres apenadas; conhecer as possibilidades de manutenção e construção de relações amorosas de mulheres privadas de liberdade e verificar as condições institucionais para manutenção e construção de relações amorosas de mulheres privadas de liberdade.

2 MÉTODO

A seguir, estão descritas a caracterização da pesquisa, a fonte de dados e o método utilizado nas análises.

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2.1 CARACTERIZAÇÃO DA PESQUISA

Quanto à natureza da pesquisa, a mesma busca compreender conceitos subjetivos, sendo assim de abordagem qualitativa. A abordagem qualitativa tem como objetivo analisar e mensurar dados subjetivos, que não podem ser mensurados numericamente. Conforme Gil (2007, p 31), “pesquisa qualitativa não se preocupa com representatividade numérica, mas, sim, com o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização, etc.”.

Quanto aos objetivos, o estudo pode ser caracterizado como tendo cunho exploratório. De acordo com Gil (1994, p.44) a pesquisa exploratória “(...) tem como principal objetivo a finalidade de desenvolver, esclarecer e modificar conceitos e ideias, com vistas à formulação de problemas mais precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores”. Neste sentido, é de caráter exploratório também por possibilitar alteração de ideias viabilizando a produção de novos conhecimentos científicos, visto que não se encontrou informações acerca de relacionamentos amorosos dentro de presídios femininos.

Quanto aos procedimentos adotados, a pesquisa se caracteriza como uma revisão bibliográfica. Este método de pesquisa busca recolher informações por meio de referências teóricas publicadas. De acordo com Fonseca (2002, p. 32), “pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites”.

Optou-se por utilizar a revisão narrativa, que é um dos tipos de revisão de literatura, pela possibilidade de acesso à experiência de autores que já pesquisaram sobre o assunto. Segundo Rother (2007), os artigos de revisão narrativa são publicações amplas, apropriadas para descrever e discutir o desenvolvimento de determinado assunto, sob ponto de vista teórico ou contextual. Constituem, basicamente, de análise produzida pelo pesquisador acerca da literatura publicada em livros, artigos de revista impressas e/ou eletrônicas.

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Para a coleta de dados foram utilizados artigos localizados no Google Scholar, considerando-se apenas os artigos publicados em revistas científicas. Foram utilizadas também as bases de dados SCIELO (Scientific Eletronic Library Online), PEPSIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia) e livros publicados a partir dos seguintes descritores: Relações amorosas; presídios femininos; relações amorosas presídios.

Os artigos foram selecionados a partir da relevância para o tema da pesquisa, totalizando 29 artigos. A seleção foi realizada a partir da leitura criteriosa dos artigos, teses, dissertações e livros. Foram incluídas publicações, publicadas entre 1987 e 2019, em português. Todos os tipos de delineamento metodológico foram aceitos.

2.3 ANÁLISE DOS DADOS

Após a coleta de dados, foi feita a leitura de todo o material e as informações principais foram compiladas. Posteriormente, foi realizada uma análise descritiva das mesmas buscando estabelecer uma compreensão e ampliar o conhecimento sobre o tema pesquisado.

Para exposição e análise do conteúdo a seguir, foram criadas três categorias: O Sistema Prisional Brasileiro que faz uma breve discussão sobre a história das prisões no Brasil. Mulheres Encarceradas, que discute a situação atual das mulheres em cárcere no Brasil e Relações Amorosas no Contexto Prisional, que aborda a forma que as mulheres em cárcere encontram para se relacionar amorosamente com outras pessoas.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

A seguir os resultados e discussões, onde se discutiu as raízes dos presídios brasileiros e sua história até o momento presente, as dificuldades estruturais dos presídios e celas e a dificuldade encontrada pelas mulheres, que além dos problemas vivenciados pelos presos de um modo geral, ainda enfrentam as questões de gênero. Também são discutidas as formas de relacionan-se das mulheres em cárcere e como essas relações contribuem para o enfrentamento de uma experiência complexa e dolorosa, a prisão.

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3.1 O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Nem sempre as punições no Brasil estiveram ligadas à perda de liberdade. Por volta dos anos 1830, as punições eram físicas, violentas e em geral feitas publicamente. Não era incomum chicotadas, queimaduras, mutilações e a pena de morte. De acordo com Mameluque (2006, p. 625), nesse período, havia “onze classes de penas: morte, galés, prisão com trabalho, prisão simples, banimento, degredo, desterro, multa, suspensão do emprego, perda do emprego e açoites (...)”. O intuito não era privar o sujeito de liberdade ou obrigá-lo a cumprir pena, e sim aplicar-lhe um suplício; não havia a intenção de ressocializar o sujeito, mas de puni-lo pelos seus erros (ALTOMAR; SANCHES, 2018.)

No ano de 1850 surge o primeiro sistema prisional brasileiro, conhecido como Casa de Correição, que tinha como finalidade mudar o cumprimento da pena, privando os sujeitos de liberdade. Nesses espaços eram agrupadas pessoas que cometeram qualquer tipo de crime, independente do sexo, assim como deficientes físicos, mentais e crianças, possibilitando diversas violências e violações (ALTOMAR; SANCHES, 2018). Foucault (1987), explica que o processo punitivo, até então associado ao castigo, transforma-se com a evolução do sistema carcerário em técnica penitenciária, passando a utilizar-se do adestramento de pessoas. As Casas de Correição vinculavam a punição à educação, obrigando os internos a cumprirem trabalhos forçados e lhes dando instruções primárias e religiosas. Todavia, apesar da mudança na forma de punição, ainda mantinham-se as características cruéis e desumanas no tratamento dos apenados.

Em 1889 com a Proclamação da República e a elaboração de um novo Código Penal, o Sistema Penal sofre transformações significativas e os castigos físicos são abolidos, permanecendo como punição a privação de liberdade. Conforme Mameluque (2006, p. 625), “o Código de 1890 previa as seguintes modalidades: prisão celular, reclusão em fortalezas, prisão com trabalho obrigatório e prisão disciplinar para menores”. Em 1940, o Código Penal é reformulado e a pena de reclusão passa a ser aplicada por, no máximo, trinta anos enquanto a detenção pode ser aplicada por, no máximo, três anos.

No ano de 1924 com a nova Constituição, os presos passam a ser divididos nas celas pelos crimes cometidos. Nessa mesma época, começa-se a

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pensar no trabalho como forma de reabilitação. Porém, o conceito de dignidade ainda não estava incorporado na sociedade e a forma degradante com que os presos eram tratados, além do espaço físico inadequado, permaneciam presentes. Apesar de alguns grupos se preocuparem com o bem-estar dos presos, a maioria das pessoas não via esse como um problema a ser debatido (ALTOMAR; SANCHES, 2018).

Cabe destacar que não houve planejamento prévio para a construção dos presídios, que foram surgindo como uma forma imediata de resolver o problema da criminalidade. Além disso, já se tinha uma ideia de que essa não era a solução mais adequada para tratar as questões de justiça no país. De acordo com Foucault (1987, p. 2240), “[...] conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução de que não se pode abrir mão”.

Atualmente, o Brasil é o quarto país com a maior população carcerária do mundo. Com cerca de 726.712 pessoas presas e contando com 368.049 vagas nos presídios, o sistema prisional opera com praticamente o dobro de sua capacidade (BRASIL, 2018b). Outro fator importante a se destacar, é que de acordo com Borges (2018), a população carcerária não é multicultural. 64% da população carcerária é negra, sendo que os negros compõem 53% da população brasileira, ou seja, a cada três presos no Brasil, dois são negros. Além disso, 55% dos presos são jovens, enquanto somente 21,5% da população brasileira compõem essa categoria. Dentre as mulheres 67% são negras e 50% tem idade entre 18 e 29 anos. Para Borges (2018, p 16) “o sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o racismo, sendo o funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por essa estrutura de opressão, mas o aparato reordenado para garantir a manutenção do racismo e, portanto, das desigualdades baseadas na hierarquização racial. ”

Apesar de o estatuto executivo-penal brasileiro ser considerado um dos mais avançados e democráticos que existe, na prática, ocorrem constantes violações de direitos e violação das garantias legais previstas na execução das penas. De acordo com Assis (2007, p. 75),

A partir do momento em que o preso passa à tutela do Estado, ele não perde apenas o seu direito de liberdade, mas também todos os outros direitos fundamentais que não foram atingidos pela sentença, passando a

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ter um tratamento execrável e a sofrer os mais variados tipos de castigos, que acarretam a degradação de sua personalidade e a perda de sua dignidade, num processo que não oferece quaisquer condições de preparar o seu retorno útil à sociedade.

Ainda de acordo com Assis (2007), não é incomum que nas prisões, além de outras garantias desrespeitadas, os presos sofram com torturas e agressões físicas, tanto por parte de outros presos, como por parte dos próprios agentes penitenciários.

A morosidade na concessão de benefícios como progressão de regime, aos que fazem jus, ou em soltar presos que já cumpriram sua pena, é outro exemplo de violação, infelizmente comum, nos presídios brasileiros. Essa situação é decorrente da ineficiência e negligência dos órgãos responsáveis pela execução penal. Além disso, ainda há os presos que estão cumprindo pena nos distritos policiais, devido à falta de vagas nas penitenciárias, o que lhes causa a perda de diversos direitos, como o de trabalhar, a fim de ter renda e remissão de pena (ASSIS, 2007). Essas violações, contribuem para que haja rebeliões e fugas, além de não garantir que o propósito das casas de detenção seja atingido, ou seja, que os presos tenham a possibilidade de ressocialização.

Segundo Dotti (1998, p. 104 apud Mameluque, 2006), nos últimos séculos a prisão tem sido a esperança para o combate da criminalidade, porém, o inaceitável nível de degradação do Sistema Penitenciário comprova que no Brasil os presídios são depósitos de pessoas. Além do excesso de população, a violação da intimidade dos presos e os danos físicos e morais cometidos contra os mesmos demonstram que a situação atual não destoa muito do passado.

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário, publicada em 2009 com a finalidade de investigar a realidade do Sistema Carcerário e buscar soluções dentro da Lei de Execução Penal, constatou que a maioria dos presídios não cumpre as condições mínimas para que os presos vivam de forma adequada. “A CPI constatou, no ambiente carcerário, uma realidade cruel, desumana, animalesca, ilegal, em que presos são tratados como lixo humano” (BRASIL, 2009c). Nesses ambientes é comum a tensão, o medo, a repressão, violência e tortura, que atingem não somente os presos, mas também as suas famílias quando visitam as unidades.

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As condições de vida nos presídios, com instalações de qualidade, estruturas adequadas, higiene, alimentação, lazer, trabalho e estudo são determinantes na constituição da subjetividade e dignidade dos presos. A situação constatada nos presídios brasileiros vai de encontro com a Lei de Execução Penal, que determina, no Art. 10, que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. E prevê no Art. 11, que a assistência será material, jurídica, educacional, social, religiosa e à saúde (BRASIL, 2009b).

Muitos presos que estão nas penitenciárias cometeram graves crimes, lesaram pessoas de diversas maneiras e enlutaram famílias, mas muitos cometeram pequenos delitos e têm a possibilidade de serem reinseridos socialmente. De qualquer maneira, a tortura e a forma degradante com que são tratados não contribui de nenhuma forma para que essa ressocialização, prevista na Lei, aconteça na prática. “Independentemente dos delitos que cometeram, os presos perderam apenas a liberdade e não a alma, a dignidade e a vida” (BRASIL, 2009c). As condições dos presídios, de um modo geral, violam diversos direitos humanos, mas quando se trata da população carcerária feminina, há ainda outros direitos violados, e, portanto, questões específicas a serem discutidas.

3.2 MULHERES ENCARCERADAS

Os presídios femininos, assim como os masculinos, enfrentam problemas com superlotação, falta de higiene, estrutura precária e condições de vida degradantes. Porém, para as mulheres a situação do cárcere é ainda pior, pois além da violência comum a todos os presos, enfrentam dificuldades relacionadas às questões de gênero, desconsideradas em um espaço que não foi pensado para atender suas especificidades. Conforme Lemgruber (1999, p 83 apud GUIMARÃES, 2015, p. 12) “ser mulher presa implica uma série de dificuldades adicionais nem sempre detectadas em prisões masculinas com a mesma intensidade”. Maria Aparecida, citada no livro Presos que Menstruam de Nana Queiroz (2015), relata que o kit para higiene fornecido ao presídio é insuficiente. Segundo ela, em alguns dias precisa recolher jornais velhos do chão para conseguir realizar sua higiene íntima. Outra presa entrevistada por Queiroz (2015, p. 102), relata: “todo mês eles dão um kit. No Butantã, dão dois papel

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higiênico, um sabonete, uma pasta de dente da pior qualidade e um (pacote de) absorvente. Falta, né? E ninguém dá nada de graça pra ninguém”.

Na falta de produtos de necessidade básica, as mulheres que não recebem visitas precisam comprar os produtos de outras presas. Segundo Queiroz (2015 p 104), “algumas (presas) fazem faxina, lavam roupa ou oferecem serviços de manicure para barganhar xampu, absorvente, sabão e peças de roupa. No regime semiaberto, só recebem o kit aquelas que não têm visita”. Os produtos que as presas podem trazer das “saidinhas” do regime semiaberto são limitados, para evitar que a venda crie uma espécie de elite na cadeia.

O cigarro é a moeda de troca nos presídios, já que é proibido que as presas circulem com dinheiro sob pena de apreensão e agravo da sentença. São utilizados como meio de troca para obter os itens que o Estado não fornece ou fornece em quantidade insuficiente. “Com o valor de um maço podem ser comprados: quatro rolos de papel higiênico ou um pacote de biscoito mais um pacote de salgadinho ou dois sabonetes ou um frasco de xampu ou de condicionador” (VARELA, 2017, p. 59).

Em Prisioneiras, terceiro livro da trilogia do Dr. Dráuzio Varela sobre sua experiência voluntária como médico em presídios, o autor relata que a vida nos presídios não sai de graça. “Às que não conseguem emprego nas firmas nem nos setores, resta ganhar a vida por conta própria. Sem carteira assinada, como elas dizem. A livre-iniciativa é respeitada em todas as atividades, desde o tráfico das drogas que burlam a vigilância à prestação de serviços domésticos” (VARELA, 2017, p. 59). Nair, ex-usuária de crack que ficou em situação de rua aos dez anos de idade, após fugir de casa para escapar das surras do pai violento, relata que se mantém no presídio através da faxina que realiza nas celas de outras presas: “arrumo as camas, limpo o banheiro, tiro pó, bato os tapetes, lavo a louça. Às sextas-feiras arrasto os móveis e esfrego tudo com água e sabão, para receber as visitas no domingo” (VARELA, 2017, p. 59). Pelos serviços, recebe trinta maços de cigarro da marca Derby, que atualmente, custa em média sete reais cada.

Outra mulher de nome Vera, presa por diversos assaltos, encontrou no crochê uma forma de se manter no presídio. Faz jogos de cela, que são peças feitas à mão para embelezar o ambiente e torná-lo mais agradável.

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O jogo de cela é um conjunto de nove peças tecidas com barbante. São três tapetes brancos entremeados com fios coloridos para serem colocados na porta de entrada, junto ao banheiro e no meio da cela; duas colchinhas protetoras, estendidas sobre as duas camas para que possam sentar-se sem sujar os lençóis; três peças para o banheiro, uma das quais para cobrir a tampa do vaso sanitário, outra para rodear o pé do vaso e a terceira sobre o piso, para não pisar no chão frio na saída do banho; além da “boqueta de guichê”, a toalha de crochê com dois bolsos que pende na porta das celas para que as boieiras deixem os pães do café da manhã (VARELA, 2017 p 61).

Pela confecção do jogo de cela, cobra 280 reais ou quarenta maços de cigarro Derby. As colchas de cama são mais caras, custam 450 reais ou setenta maços de cigarro Derby.

Joniza, presa por esfaquear a ex-mulher do namorado, que de acordo com ela, “não dava sossego”, se tornou manicure no presídio. Para fazer as unhas da mão cobra 28 reais ou dois maços de cigarro. Segundo ela, “no fim de semana, as companheiras que vão receber visita íntima ficam loucas atrás de mim”. Nos dias de movimento contrata uma ajudante, que recebe um maço de cigarro a cada quatro recebido por Joniza. Além de atender as outras presas, atende também as funcionárias do presídio. Porém, até construir sua fama de boa manicure passou algumas dificuldades. Relata: “quando vim para cá, cheguei a vender meu cabelo, a última coisa que uma mulher vende”. Vender os cabelos é uma alternativa para as mais necessitadas. Os cabelos são utilizados para fazer apliques e custam entre duzentos e quinhentos reais, dependendo do tamanho e quantidade (QUEIROZ, 2017, p. 62).

Apesar dos avanços e conquistas em direção à igualdade de gênero, as mulheres ainda são vistas como naturalmente dóceis, movidas pela emoção, passivas e cuidadoras o que aumenta ainda mais o estigma da mulher presa. As representações sociais de masculino e feminino, do que é ser homem e do que é ser mulher, quais seus papéis e espaços na sociedade não são dados naturalmente, mas sim construções históricas e culturais. As instituições sociais, como a família, a igreja e até mesmo o Direito, ajudaram a construir e a reproduzir estereótipos das mulheres como seres domésticos, destinadas ao espaço privado (GUIMARÃES, 2015).

Assim como as identidades de gênero e os papéis sociais, a necessidade de controle sobre os corpos de homens e mulheres são construídas socialmente. É no âmbito cultural que são formados os padrões de normalidade e

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desvio, assim como o controle institucional. Paralela à história do direito de punir, construiu-se uma história de punir mulheres, punição essa, diferente da masculina em alguns aspectos (GUIMARÃES, 2015). As mulheres em situação de cárcere são duplamente punidas: são privadas de liberdade, assim como os outros encarcerados, e são submetidas a níveis de controle e observação muito mais rígidos, com intuito de estimular nessas mulheres a passividade, docilidade, subordinação e dependência. Isso faz com que a direção dos presídios femininos, muitas vezes, sinta-se investida de uma missão moral de enquadrar as mulheres no que se espera delas socialmente (GUIMARÃES, 2015).

As mulheres que cometem crimes são vistas, para além da transgressão da lei, também como transgressoras da ordem social e familiar, já que abandonaram o papel de mãe, esposa e cuidadora que lhes é supostamente destinado. Tornam-se estigmatizadas pela inadequação ao comportamento social que é esperado de uma mulher (GUIMARÃES, 2015). De acordo com Minzon, Danner e Barreto (2010), as características de gênero atribuídas ao feminino geram um estranhamento social quando a mulher relaciona-se ao crime. Assim, a mulher é com frequência associada como cúmplice de um homem, geralmente o parceiro, crimes de maus tratos contra criança ou crimes passionais.

Além disso, em uma cultura patriarcal, as mulheres são taxadas de irresponsáveis e inconsequentes, pois ao praticarem os delitos ou crimes, não teriam pensado nos filhos e na família. Segundo Guimarães (2015), não é incomum as mulheres presas se sentirem inadequadas por não estarem cumprindo o papel social que é atribuído às mulheres e até mesmo merecedoras do abandono familiar, pois sentem-se destruidoras do próprio lar. Muitas sofrem com a ausência dos filhos e da família, mas preferem que eles não sejam submetidos a um ambiente tão hostil como o presídio.

Sobre as visitas às presas, a Lei de Execução Penal prevê, no Art. 41, que os presos, independente do gênero, possuem o direito de receber visitas do cônjuge, companheira, de parentes e amigos em dias determinados pela autoridade responsável (BRASIL, 2009b). Para isso, é necessário que as unidades prisionais contem com ambiente destinado a realização de visitas e outras atividades sociais, não limitando-se somente ao pátio de sol e as celas. Entretanto, boa parte dos presídios femininos brasileiros não conta com essa estrutura, o que compromete o vínculo social das apenadas (BRASIL, 2017). De

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acordo com o INFOPEN em 2016, nas unidades femininas que abrigam as mulheres, 1 em cada 2 unidades não contam com espaços adequados e nas penitenciárias mistas, que abrigam homens e mulheres, a cada 10, somente 3 estabelecimentos contam com infraestrutura adequada para o exercício do direito a visita social. Já nos presídios masculinos, a média nacional é de que 34% dos estabelecimentos conte com esses espaços (BRASIL, 2017).

A Lei de Execução Penal prevê também o direito à visitação íntima para presos de ambos os sexos, garantindo a privacidade e inviolabilidade, pelo parceiro ou cônjuge, independente da orientação sexual, contemplando também a população carcerária LGBT (BRASIL, 2009b). Porém, apesar de ser um direito garantido, a visita íntima feminina encontra limitações determinadas pela infraestrutura dos estabelecimentos penais. Em 2016, constatou-se que somente 41% dos presídios femininos contam com espaços adequados, enquanto nos presídios mistos, esse número cai para 34% (BRASIL, 2017).

Além das dificuldades estruturais das penitenciárias, as mulheres ainda se deparam com outro problema: o abandono. Boa parte das mulheres que se encontram em situação de cárcere não recebe hoje nenhum tipo de visita, nem da família e nem do parceiro (BECKER, 2016). Conforme Queiroz (2015, p. 46),

(...) quando um homem é preso, comumente sua família continua em casa, aguardando seu regresso. Quando uma mulher é presa, a história corriqueira é: ela perde o marido e a casa, os filhos são distribuídos entre familiares e abrigos. Enquanto o homem volta para um mundo que já o espera, ela sai e tem que reconstruir seu mundo.

De acordo com Queiroz (2015, p 135), ao visitar a Penitenciária Madre Pelletier, em Porto Alegre, uma carcereira conduziu o “tour” pelas dependências do presídio até chegar ao quarto da visita íntima. Ao abrir a porta uma surpresa: o “ninho de amor”, virou ninho de gatos. A carcereira constrangida explica “quase ninguém usa isso aqui, os homens não vêm visitar”

O relato de Varela (2017) vai ao encontro do que diz Queiroz (2015). Conforme Varela, as filas para as visitas nos presídios masculinos são longas e cheias de mulheres e crianças com sacolas abarrotadas de alimentos. Algumas mulheres chegam até mesmo a passar a noite, que antecede a visita, em barracas em frente ao presídio para garantir a prioridade no atendimento e na revista, tendo mais tempo para desfrutar com o ente querido que está apenado. Já nos presídios femininos a realidade é outra:

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Em onze anos de trabalho voluntário na Penitenciária Feminina, nunca vi nem soube de alguém que tivesse passado uma noite em vigília, à espera do horário de visita. As filas são pequenas, com o mesmo predomínio de mulheres e crianças; a minoria masculina é constituída por homens mais velhos, geralmente pais ou avôs. A minguada ala mais jovem se restringe a maridos e namorados registrados no Programa de Visitas Íntimas (...) (VARELA, 2017 p 27).

Ainda de acordo com o autor, o número não aumenta muito nem mesmo nas épocas sazonais como Natal, Páscoa, Dia das Mães e Dia dos Pais. No presídio masculino Carandiru, em épocas festivas, chegavam a entrar entre 10 e 15 mil pessoas para visitas. Nos presídios femininos o número é muito menor. Na penitenciária do Estado de São Paulo, nessa mesma época do ano o número de visitantes não passa de 800 pessoas. Considerando que muitas presas recebem mais de uma visita, muitas passam as datas comemorativas sem receber visita alguma (VARELA, 2017).

Para Becker (2016), esse fenômeno ocorre por dois motivos. O primeiro relaciona-se com a quantidade relativamente baixa de mulheres presas, em comparação com os homens, o que resulta em uma quantidade menor de presídios femininos e, muitas vezes, obriga as mulheres a ficarem distantes de suas cidades de origem. Consequentemente, as famílias precisam se deslocar por grandes distâncias e muitas não têm condições financeiras para tal. Além do mais, algumas unidades impõem obstáculos para as visitas, limitando, por exemplo, o número de crianças por visita, o que para Queiroz (2016, p 103), “ (...) além de impedir que os filhos encontrem a mãe todos juntos, em algumas situações a visita nem sequer acontece porque o responsável pelas crianças não tem com quem deixar os filhos que não entrarão”.

O segundo motivo está relacionado às questões de gênero. Conforme já mencionado anteriormente, a mulher transgressora é vista como merecedora de dupla punição, “(...) o delito em si e o crime de não cumprir seu papel social” (BECKER, 2016, p 149). Assim, a mulher presa continua estigmatizada, socialmente e até mesmo pela família (BECKER, 2016). Varela (2017, p 28) relata: “Vi casos de irmãos detidos por tráfico, em que a mãe viajava horas para visitar o filho preso no interior do estado, mas não se dava ao trabalho de pegar o metrô para ir ver a filha na Penitenciária da Capital”. O autor relata, que o caso mais marcante foi de um rapaz, usuário e traficante de drogas que escondeu um malote de cocaína atrás do guarda-roupas da irmã, que segundo a família, tinha “conduta

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exemplar”, trabalhava em uma confecção no Brás, na cidade de São Paulo e nunca se envolveu com o tráfico. Mesmo o irmão assumindo a culpa sozinho e a mãe reafirmando a inocência da filha, a moça foi presa.

Numa das raras visitas que recebeu, a filha perguntou por que razão a mãe visitava todos os fins de semana, em Iaras, a 280 quilômetros de São Paulo, o filho causador de tantos desgostos, enquanto ela cumpria, solitária, uma pena injusta. — Você tem juízo; ele precisa mais de mim — foi a resposta (VARELA, 2017, p 29).

O abandono também acontece por parte dos parceiros, que muitas vezes não se dispõem a passar pelas revistas íntimas vexatórias, obrigatórias para entrada nos presídios. Nos primeiros dias de visita, logo após a prisão da parceira, é comum grandes filas de homens aguardando para entrar, porém conforme vão passando as semanas as filas diminuem, os homens simplesmente param de vir. Não hesitam em abandonar nem mesmo as mulheres presas por causa deles, levando drogas nas visitas por exemplo. Dona Encarnação de sessenta anos que começou a ser presa aos dezenove, segundo ela por motivos econômicos relata: “Mulher tem menos dinheiro do que o homem; na cadeia, então, fica mais pobre ainda. A família se desinteressa. Aqui ela engorda e se cuida mal, perde o encanto. O homem arranja outra numa boa” (VARELLA, 2017 p 183). Já o contrário raramente acontece, até mesmo porque as mulheres são ameaçadas de morte caso abandonem o parceiro preso ou arrumem um outro parceiro (VARELA, 2017).

Quando se coloca a questão de gênero em pauta, não se pode deixar de destacar a situação das mulheres transexuais nos presídios brasileiros. É evidente a invisibilidade das mulheres no presídio, de um modo geral, porém é importante destacar que algumas são ainda mais invisíveis que outras. É difícil até mesmo contabilizar a população transexual em situação de cárcere, visto que os registros são feitos de acordo com os registros civis dos presos (BECKER, 2016). A avaliação de para onde será enviado cada preso é feita com base na genitália, apesar da medicina e até mesmo o Estado já terem reconhecido que os fatores que determinam a sexualidade humana vão além do órgão sexual (QUEIROZ, 2016). Para Queiroz (2016, p. 141) “o sistema carcerário brasileiro comete graves erros ao colocar homens trans em presídios femininos e mulheres trans em

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presídios masculinos, desrespeitando seus direitos à identidade sexual e sujeitando-os a situações de assédio, prostituição e até estupro. ”

Apesar dos esforços da militância LGBT em propor medidas que reflitam as questões de gênero e sexualidade de maneira mais profunda, a invisibilidade trans ainda está longe de uma melhor compreensão. O binarismo homem/mulher dificulta o modo como se compreendem a transexualidade, acabando por negligenciar o impacto desses problemas para a recuperação desses grupos dentro do sistema prisional brasileiro (BECKER, 2016). As questões de gênero, também refletem na forma como os relacionamentos amorosos são vivenciados, pelas mulheres, no contexto prisional.

3.3 AS RELAÇÕES AMOROSAS NO CONTEXTO PRISIONAL

Ao longo da história da humanidade, existiram diversas maneiras de se compreender e experienciar o amor e a sexualidade. Na Idade Média os cristãos separaram o amor do sexo, sendo o amor atribuído a Deus e o sexo ao Diabo. As pessoas deveriam amar exclusivamente a Deus. O que chamamos atualmente de amor, foi ignorado e visto como paixão irracional e destrutiva. Nessa época histórica, o amor romântico não se aplicava ao casamento, onde o que existia era uma mistura de ternura e amizade. “O sentimento amoroso, a relação entre dois indivíduos da qual fazia parte a atração sexual e a igualdade entre os parceiros estava totalmente ausente na concepção cristã de amor conjugal”. O casamento era visto como a administração de um negócio. A união conjugal consistia basicamente em reunião de terras, produção de herdeiros e alianças de lealdade (LINS, 2012, p 144).

Ainda nesse período, de grande repressão sexual, se acreditava que as doenças como lepra, peste negra e peste bubônica, grandes problemas sanitários da época, eram castigos divinos atribuídos a pessoas que praticavam sexo ou deixavam-se dominar pelos prazeres e desejos da carne. O cristianismo, reforça a associação do sexo ao pecado quando vincula o pecado original de Adão e Eva ao ato sexual e não mais a tentação de igualar-se a Deus, como citado na Bíblia, no velho testamento. “(...) Foi também a sexualização do pecado original que estimulou a imagem diabolizada da mulher, em oposição à imagem do ‘homem

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espiritual’, mais infenso ao pecado, embora responsável por ele sempre que agisse como Adão” (LINS, 2012, p 149).

De acordo com Pretto, Maheirie e Toneli (2009, p 396) o amor como algo sagrado, extramundano e inato ganha força com o cristianismo. “Submetido a preceitos de fé, o amor cristão transcende a vida pela filiação divina comum, ligado a Deus e negado aos homens, e busca assegurar a salvação e o paraíso aos sujeitos. ” Desse modo, o amor se configura como incondicional, relacionado a sacrifício, abdicação e dedicação. O casamento caracteriza-se como o espaço ideal para se realizar esse modo de amor, onde o principal objetivo é cumprir o mandamento bíblico de constituir família e multiplicar-se e não de realização pessoal.

Assim como as práticas sexuais entre homens e mulheres, a homossexualidade, que até então fora valorizada por algumas culturas, passa a ser condenada pelo cristianismo. No século VI se acreditava que a homossexualidade, assim como a blasfêmia e a heresia, eram as responsáveis pelo surgimento da fome, terremotos e pestilências. “O homossexual foi transformado em um perigo para a Igreja, um vivo repúdio à moralidade cristã” e a homossexualidade passa a ser severamente punida com castração seguida pela exposição pública do agressor e muitas vezes a morte (LINS, 2012, p 152).

Umas das grandes mudanças da Idade Média, foi a passagem do amor unilateral, aquele que deveria ser dirigido somente a Deus, para o amor recíproco. Essa passagem começa a dar ao amor um outro sentido. O que ficou conhecido como amor cortês, exigia do homem sacrifício e servidão em prol do amor da mulher que jamais seria sua esposa. A “dama”, que só aceitaria o amor do cavalheiro que a merecesse, sujeitava-o a grandes provas de amor, que incluíam grandes viagens, longas cavalgadas e até mesmo lutas.

Acreditava-se que

(...) a verdadeira felicidade e a verdadeira honra só poderiam ser conseguidas por intermédio do serviço em prol de uma mulher nobre e digna de ser amada. (...) era claro que tal serviço, pedra fundamental do amor cortês, só poderia ser por uma mulher com a qual nunca pudesse se casar. O amor verdadeiro tinha de ser clandestino, agridoce, perturbado por dificuldades sem fim e também por infinitas frustrações. Por conta disso, o amor verdadeiro consistia em elevação espiritual, transformando o cavaleiro num homem melhor e num guerreiro maior (LINS, 2012, p 152).

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Embora o amor não fosse preceito para o casamento, um homem que não fosse casado não tinha nenhum valor. Assim, era comum que homens casados proclamassem sem nenhum constrangimento o seu amor cortês por outra mulher (LINS, 2012).

O amor cortês chega contrariando o cenário cristão, onde o amor deveria ser dirigido somente a Deus. Essa nova concepção de amor, surge como uma recusa em seguir as normas e padrões ditados pela Igreja e sociedade. Ao mesmo tempo que enfatiza o amor como sofrimento e desejo insatisfeito, estando seu prazer na renúncia carnal, laiciza o objeto do amor que passa a ser a mulher, objeto do amor inalcançável (PRETTO, MAHEIRIE E TONELI, 2009).

A partir disso, o amor entre homens e mulheres, que até então era considerado vulgar e pecador, passa a ser retratado como um “sentimento majestoso, um ideal a ser buscado”. Começa-se a aceitar que o “desejo sexual podia ser parte natural do amor, mas que o sentimento total era mais espiritual, uma unidade intensa (...)” (LINS, 2012, p 158). É importante destacar, que esse amor inicialmente atingia apenas uma pequena camada da população feminina, ou seja a nobreza. A posição sublime da pessoa amada não refletia a vida das esposas de verdade. O amor e submissão de jovens cavaleiros proporcionavam as mulheres nobres, geralmente casadas com homens mais velhos por motivos sociais e econômicos, uma saída para a imaginação erótica. Após um tempo, essa visão fantasiosa migra da nobreza para a população geral e se mantém até os dias de hoje (LINS, 2012)

No final do século XVIII e início do século XIX, surge o amor romântico ou amor paixão, reunindo vários elementos do amor cristão unilateral e do amor cortês. Desta forma, o amor ganha a centralidade na vida dos sujeitos, deixa de ser uma possibilidade e passa a ser um dever, o que justifica a sua existência. (...)”A função desse amor é libertar o sujeito da moral e das convenções sociais, uma vez que salienta a cisão entre o indivíduo e a cultura quando pretende a absorção de um parceiro no outro, exigindo exclusividade e, com isso, priorizando a esfera do casal” (PRETTO, MAHEIRIE E TONELI, 2009, p 396).

O amor romântico idealista e fortemente marcado por características ocidentais, tem como preceitos básicos:

(...) o amor como universal e natural, pré-requisito de auto-realização pessoal; o amor como um sentimento que vem a nós e não de nós; o fato de que sem amor não existe felicidade, sendo que os sujeitos são

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estritamente responsáveis pelo seu desempenho e felicidade amorosa independentemente da conjectura social, política e econômica imposta (negação da contingência); amor como uma experiência marcada pela forte tensão entre o dever e o amor, amor e razão, amor e destino, amor e liberdade; o amor que subtende a não diferenciação entre amor, paixão e atração (PRETTO, MAHEIRIE E TONELI, 2009 p 396)

Para Costa (1999, p 147, apud PRETTO, MAHEIRIE E TONELI, 2009, p 396), “o amor romântico só frutificou onde a cultura burguesa impôs as regras da satisfação emocional individualista” e estabeleceu uma vivência contraditória para esta concepção de amor, visto que a vivência real é divergente da proposta amorosa, que se tornou fundamental para os amantes, aumentando suas exigências e frustações com relação ao outro.

Assim fica claro que o amor romântico e a forma de vivenciar o amor e os relacionamento amorosos, como vivenciado hoje, não é algo dado naturalmente, mas sim uma construção social, que foi se modificando ao longo dos séculos e continua em constante transformação. Nem sempre o amor paixão romântico foi contemplado como algo que vem de “‘dentro de nós’ ou que é ‘intrínseco’ à vida mental de todo sujeito. O amor é uma emoção, ou melhor, um complexo emocional feito de crenças, julgamentos, sensações e sentimentos “ (COSTA, 1998, p 04). Além disso, não existe uma única forma possível de experienciar o amor, o modo de amar do romantismo amoroso é só um modo entre outros possíveis

Apesar de não estar intrinsicamente enraizado na estrutura do nosso psiquismo e nem ser uma necessidade natural, o amor romântico é um complexo emocional arraigado em nossa cultura (COSTA, 1998) e, portanto, viver histórias de amor romântico, faz parte do imaginário e do desejo de boa parte dos sujeitos. Para Oliveira (2007), a busca pelo amor não se restringe a uma época ou século, em nosso cotidiano atual o amor romântico ainda é procurado pelas pessoas. Além disso, para o autor, o amor é capaz de aproximar as pessoas e propiciar o desenvolvimento de relações sociais.

Apesar de existirem diversos motivadores para a busca por um relacionamento amoroso, como sexo, estabilidade financeira ou status social, em geral, as pessoas buscam o amor como alicerce para um relacionamento. Logo, o amor e os relacionamentos amorosos são áreas importantes na vida das pessoas. Quando esse aspecto da vida é negligenciado ou não anda bem, outras

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dimensões da vida podem ser afetadas, como o humor, capacidade de concentração, energia, trabalho e até mesmo saúde (OLIVEIRA, 2007).

Se para as pessoas em liberdade o amor é um aspecto importante da vida, para as pessoas privadas de liberdade não é diferente, afinal, o cárcere não é capaz de suprimir as necessidades humanas de amor e afetividade. De acordo com Minzon, Danner e Barreto (2010) as mulheres, ao serem inseridas no cárcere, precisam criar estratégias de enfrentamento, a fim de suportar o encarceramento. Uma das estratégias, dentre várias, é o relacionamento amoroso. Minzon, Danner e Barreto (2010) destacam que a visita masculina de cônjuges ou parceiros é escassa, além de só ser permitida quando o parceiro é fixo e legalmente comprovado. Queiroz (2015) também cita que há poucos homens interessados em manter o relacionamento com suas parceiras presas. Quando o relacionamento é homoafetivo, além das questões burocráticas, as presas precisam enfrentar também o preconceito por parte da instituição.

Diante destas dificuldades em se relacionar com pessoas que estão fora do cárcere e da possibilidade de expressar sua sexualidade de modo mais livre, muitas mulheres se envolvem em relacionamentos homoafetivos com outras detentas. Conforme relato de Queiroz (2015, p. 143) a homossexualidade nos presídios femininos é consideravelmente maior que nos presídios masculinos. Isso não significa que as mulheres homossexuais cometem mais crimes, mas sim que o período em cárcere impacta na maneira como as mulheres passam a viver sua sexualidade. A maioria das mulheres entrevistadas por Queiroz, que estava em um relacionamento dentro do presídio com outras presas se considerava heterossexual antes da detenção e afirmou ter se envolvido com outras mulheres em busca de proteção e cuidado e pelo “companheirismo, o apoio na depressão e medo” (QUEIROZ, 2015, p 143) e nessa parceria descobriu novos desejos e até mesmo o amor. Indo ao encontro de Queiroz (2015), Varela (2017) também cita que os relacionamentos homossexuais são muito frequentes nos presídios femininos, sendo evitados em geral somente pelas senhoras idosas e pelas presas que fazem parte do Primeiro Comando da Capital (PCC)3.

3 O Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa bastante conhecida e presente na maior parte

dos presídios brasileiros, proíbe o relacionamento homossexual entre os seus membros, que são chamados de irmãos e irmãs. O não cumprimento da norma, de só se envolver em relações amorosas heterossexuais, pode acarretar na morte do membro (VARELA, 2015).

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Marcela, condenada há nove anos de prisão por participar de um homicídio, encontrou no relacionamento com Iara o companheirismo e segurança que precisava. Quando foi presa, o amparo que recebeu da família por meio de Sedex com produtos de necessidade básica e visitas todos os domingos, gerou inveja em outras presas, que começaram a ameaça-la. Quando conheceu Iara, teve uma forte identificação, que virou amizade, que virou afeto, que virou paixão. “As noites vazias foram preenchidas por confidências, risinhos abafados entre cobertas. Iara a libertou de sua prisão interna e Marcela, que havia por toda sua vida se relacionado com homens, se apaixonou por ela” (QUEIROZ, 2015 p 143).

Algumas detentas afirmam que “não são, mas estão lésbicas” (QUEIROZ, 2015, p 143) e que após o período de cárcere voltariam a se relacionar heterossexualmente. Apesar da possível transitoriedade desses laços para algumas presas, muitas mulheres que se envolvem dentro dos presídios costumam construir relações sólidas e laços emocionais intensos. Muitas até mesmo pedem transferência para a mesma cela e passam a dividir tudo o que possuem.

Para Varela (2017, p 184)

O casamento homossexual torna mais suportável o cumprimento da pena não só por causa dos laços afetivos, dos carinhos, das massagens nas costas e dos prazeres sexuais, mas pela parceria: repartem os mantimentos que chegam no jumbo, as comidas que a família traz, os produtos de beleza, emprestam roupas uma à outra, cuidam da que está doente, dividem as tarefas domésticas e os momentos de tristeza. A cela com duas mulheres casadas uma com a outra é a unidade funcional dos presídios femininos a partir da qual as relações comunitárias se consolidam. Sem levar em consideração esse fenômeno, impossível fazer ideia do que se passa na cadeia.

Julinha, condenada há 4 anos por tráfico de drogas, atividade que só exerceu para que os filhos pequenos não passassem fome após a prisão do marido, foi presa na mesma cela que Pati. Assim como Julinha, Pati era ré primaria, tinha filhos e estava presa por conta de um antigo namorado. Ambas tinham uma excelente convivência “Eram generosas na divisão das tarefas na cela e dos alimentos que as famílias traziam, respeitosas com o espaço individual e o descanso da outra, e não usavam cocaína, a qualidade de convivência valiosa. ” Andavam tanto juntas pelos corredores do presídio que foram apelidadas de “Cosma e Damiã”. Aos poucos foram tornando-se cada vez mais íntimas e da amizade iniciou-se uma relação amorosa (VARELA, 2017 p 111).

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Segundo Julinha, aconteceu pela primeira vez na noite de um sábado em que desabava um temporal no telhado da penitenciária.

— Comecei a pensar se as crianças estariam bem, e tive uma crise de choro. A Pati sentou na minha cama, pegou minha mão, enxugou minhas lágrimas e acariciou meu rosto. Cheguei para o lado e ela deitou. Quando dei por mim estávamos abraçadas (VARELA, 2017 p 111).

De acordo com Varela (2017), ambas diziam nunca mais querer relacionar-se com homens e quando questionadas sobre o futuro, visto que estavam próximas de ganhar o benefício do regime semiaberto, disseram que tinham planos de morar juntas e criar os filhos todos juntos.

Outra presa de nome Dannyella tem uma história semelhante, mas com outro desfecho. Dannyella procurou o médico voluntário do presídio febril e bastante debilitada, com fortes sintomas de tuberculose, sintomas esses que haviam voltado após um ano de tratamento incompleto. O médico a encaminha para internação no Centro de Observação Criminológica, unidade hospitalar que faz parte do complexo do Presídio Estadual de São Paulo, a fim de garantir que o tratamento não seja interrompido e que a doença não cause sua morte. A paciente concorda, porém, antes de sair, se diz muito preocupada com a colega de cela, que apresenta os mesmos sintomas. A colega, de nome Vanusa, que entrou com as mesmas queixas da companheira, não apresentava nenhum sintoma da doença e a internação foi barrada pelo médico, que observou que o real motivo de querer internação era se manterem juntas. Dannyella se explica: (...) “O problema, doutor, é que não sabemos viver uma sem a outra” (VARELLA, 2017 p 109).

Alguns meses depois Dannyella estava desolada. A companheira Vanusa, tinha recebido o benefício do semiaberto de onde evadiu, voltando a se prostituir até ser presa novamente em um assalto junto ao namorado. Para Varela (2017, p 110), essa não é uma exceção “maior parte das relações termina quando uma das companheiras é libertada e retoma a vida heterossexual. Para ela, a homossexualidade não passou de uma fase transitória, restrita ao ambiente prisional, segredo que jamais chegará aos ouvidos dos homens com quem vier a se relacionar”.

Porém, apesar de ser frequente, nem sempre os relacionamentos acabam com o fim do cárcere. Vera, presa por participar em um sequestro, conheceu Stéfani em cárcere, onde dividiram a cela por dois anos. Quando Stéfani saiu em liberdade, prometeu conseguir um trabalho legal e ajudar Vera, até que ela também deixasse o presídio e as duas pudessem viver juntas. Já havia três

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anos que Stéfani havia saído do presídio e a promessa ainda estava sendo cumprida. O maior problema enfrentado pelas duas é a impossibilidade da visita. A instituição alega que pelos seus antecedentes criminais, Stéfani não pode entrar no presídio, porém Vera suspeita que o preconceito seja o único motivo. Como as duas não podem comprovar legalmente a união, o sistema não é obrigado a permitir as visitas. Para matar a saudade, as duas se comunicam por cartas e telefone quase que diariamente e aguardam as “saidinhas” que acontecem cinco vezes ao ano, quando algumas presas, inclusive Vera, têm o direito de ir para casa (QUEIROZ, 2015).

Marcela passa por um problema bem semelhante ao de Vera. Conheceu sua namorada dentro do presídio, na fila do telefone. Um mês depois ela foi solta e Marcela permaneceu presa. A namorada foi proibida de retornar ao presídio para visitas e as duas se encontram no intervalo do almoço de Vera, que tem o benefício do regime semiaberto e pode trabalhar durante em uma empresa durante o dia. As duas se encontram uma vez por semana (QUEIROZ, 2015).

O relacionamento entre as presas não acontece se não houver consentimento. De acordo com Sueli, condenada há mais de trinta anos de prisão por diversos crimes diferentes, é preciso “química” para que os relacionamentos aconteçam. A mesma, relata que certa vez golpeou com um estilete uma colega de cela que tentava forçar uma novata a lhe fazer sexo oral: “se homem que estupra deve morrer, mulher estupradora também merece”, diz Sueli. Quando a “química” acontece, as parceiras solicitam mudança de cela para que possam ficar juntas, o que nem sempre é fácil, visto que depende da boa vontade das outras colegas que dividem a cela. Para a administração, do presídio Estadual de São Paulo, onde se deu a pesquisa, não há problema na troca desde que as todas as envolvidas estejam de acordo (VARELA, 2017 p 108).

A Penitenciaria Madre Pelletier, em Porto Alegre, não só permitiu a divisão das celas pelas presas, como também sediou a primeira união civil entre duas mulheres presas no Brasil. A união aconteceu entre Fabrícia e Fabiana. Ao ver Fabiana pela primeira vez, Fabrícia conta que tremeu e sentiu o coração acelerar. Tentou chamar a atenção de Fabiana, mas sem sucesso. Precisou de um tempo e muitas conversas para se aproximar, mas a aproximação aconteceu de fato quando apresentou seu bebê de poucos meses de vida a Fabiana que ficou encantada com o pequeno. Após isso, Fabiana começou a ajudar Fabrícia

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com o bebê, com a proximidade aconteceu o primeiro beijo. O amor das presas que estavam instaladas em pavilhões diferentes, e sempre sofriam com a separação no fim do dia, comoveu as demais detentas que fizeram um abaixo-assinado pedindo a administração do presídio para que deixassem as duas morarem na mesma cela. Fabrícia, percebeu que era momento de iniciar uma família com a Fabiana e a pediu em casamento. A cerimonia ocorreu dentro do presídio, e foi organizada – com direito a decoração e “lembrancinhas” – por duas funcionárias com o apoio da direção do presídio. A cerimônia que foi presidida por um mestre umbandista, contou com a presença da família e de outras detentas. A relação servia de apoio mútuo para o enfrentamento de uma penitenciária com a estrutura longe do ideal e cheia de ratos. Além disso, Fabrícia estava quase perdendo a guarda do filho mais velho e sua mãe estava muito doente (QUEIROZ, 2015).

Conforme Santana (2017), em contrapartida, muitas mulheres mesmo não tendo parceiros do sexo oposto, não desejam se envolver sexualmente e afetivamente com outras mulheres, demonstrando até mesmo falta de interesse em se relacionar amorosamente e em manter relações sexuais. Varela (2017, p 109) relata que durante as consultas médicas, algumas presas falam com desprezo das que namoram outras mulheres, porém o fazem em voz baixa, visto que posturas moralistas não são bem-vindas em um ambiente onde homossexualidade é praticada livremente e aceita com naturalidade. Apesar da liberdade para viver os romances homoafetivos, beijos na boca e carícias sensuais são proibidos nas galerias e o cuidado redobrado nos dias de visita “não pode nem pegar na mão”.

Para Varela (2017, p 114)

É pouco provável que a restrição do espaço físico, o confinamento com pessoas do mesmo sexo, a falta de carinho e da presença masculina e o abandono afetivo imponham de forma autocrática a homossexualidade no repertório sexual das mulheres presas.

É mais razoável pensar que esse conjunto de fatores apenas cria as condições socioambientais para que a mulher ouse realizar suas fantasias e desejos mais íntimos, reprimidos na vida em sociedade. No universo prisional, (...) (as mulheres) podem viver sua sexualidade da forma que lhes aprouver, sem enfrentar repressão social.

Paradoxalmente, talvez a cadeia seja o único ambiente em que a mulher conta com essa liberdade.

Apesar de mais difícil, as relações com pessoas que estão fora do cárcere, não são impossíveis. Elaine, presa por tráfico de drogas, teve sua foto

Referências

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