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Como o diabo gosta: Cartas de C.S. Lewis

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Guavira Letras (ISSN: 1980-1858), Três Lagoas/MS, v. 15, n. 29, p. 50-65, jan./abr. 2019.

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Como o diabo gosta: Cartas de C.S.

Lewis

As the devil likes: Letters by C.S. Lewis Como el diablo gusta: Cartas del C.S. Lewis

Gabriele GREGGERSEN1 Esdras Alexandre Silva da ROCHA2

RESUMO: O objetivo do artigo é contextualizar e tornar a obra de Lewis mais conhecida no Brasil. Após uma breve abordagem e discussão do diabo e dos demônios ao longo da história, particularmente da cristã, apresentamos o autor, C.S. Lewis e sua obra, Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, The Screwtape Letters, no original. Munidos desses elementos, empreendemos uma análise das coisas de que o diabo gosta nessa obra de ficção em formato epistolar, a fim de nos aproximarmos do sentido mais profundo do livro e sua sabedoria sobre a “lógica” do diabo.

PALAVRAS-CHAVE: Diabo. Corrupção. Extremismo. Manipulação. Preconceito.

ABSTRACT: The aim of the article is to contextualize and let the workmanship of C.S. Lewis be more known in

Brasil. After a brief approach and discussion of the devil and demons throughout history, particularly in the Christian tradition, we present the author, C.S. Lewis and his work, The Screwtape Letters, which was translated to Cartas de um Diabo a seu aprendiz in the Portuguese version. Armed with these elements, we undertake an analysis of the things the devil likes in this work of fiction in epistolary format, in order to approach the deeper meaning of the book and its wisdom about the "logic" of the devil.

KEYWORDS: Devil. Corruption. Extremism. Manipulation. Prejudice.

RESUMEN: O objetivo do artigo é contextualizar e tornar a obra de Lewis mais conhecida no Brasil. Após uma breve abordagem e discussão do diabo e dos demônios ao longo da história, particularmente da cristã, apresentamos o autor, C.S. Lewis e sua obra, Cartas de um Diabo a seu Aprendiz, The Screwtape Letters, no original. Munidos desses elementos, empreendemos uma análise das coisas de que o diabo gosta nessa obra de ficção em formato epistolar, a fim de nos aproximarmos do sentido mais profundo do livro e sua sabedoria sobre a “lógica” do diabo.

PALABRAS CLAVE: Diabo. Corrupção. Extremismo. Manipulação. Preconceito.

1 Faculdade Presbiteriana Gammon – FAGAMMON. Coordenadora e Docente da FAGAMMON. Lavras – MG –

Brasil. CEP: 37200-00. E-mail: ggreggersen@gmail.com

2Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM. Mestre em Letras pela UPM. Professor da Associação Nazarena

Educacional de Campinas e da Educação Básica II da Secretaria de Educação do Es Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM. Mestre em Letras pela UPM. Professor da Associação Nazarena Educacional de Campinas e coordenador da área de Linguagens na Escola Estadual de Ensino Integral Ensino Médio Luiz Campo Dall’Orto Sobrinho. Sumaré – SP – Brasil. CEP 13178-030. E-mail: esdrasalexandre@gmail.prof.educacao.sp.gov.br

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51 Introdução: diabo, demônios e bíblia: substratos cristãos

De acordo com Laurence Gardner (2013), as referências mais recuadas nos registros humanos a respeito de demônios são encontradas em tabuletas da antiga Mesopotâmia, datadas em cerca de três mil anos a. C. Portanto, em tempo pretérito à formação do cânon sagrado do Antigo Testamento, já havia alusão a seres não-humanos de natureza perversa entre povos não semitas, e estes seres, segundo evidências arqueológicas, estariam presentes no folclore e na mitologia daqueles povos antigos do Crescente Fértil. Tais personagens sobre-humanos, segundo Gardner, a respeito de seu comportamento e estética, seriam “[...] travessos ou malvados, de aparência horrenda e com habilidades sobrenaturais” (GARDNER, 2013, p. 20).

Tradicionalmente, a cosmovisão cristã ancora seu ponto de vista sobre a existência desses seres decaídos na Bíblia Sagrada (Antigo - que pode apresentar variações de acordo com o critério de canonicidade da matriz cristã em voga – e Novo Testamento). Embora a demonologia bíblica utilize substratos de culturas vizinhas, como os mesopotâmicos, na formação do conceito de demônios, ela ressignificou algumas características desses seres, como o fato de terem sido apresentados à condição de criados; o entendimento de que sua perversidade seria resultado de sua liberdade e a subordinação de sua ação à permissividade divina (Cf. LACOSTE, 2004, p. 518).

Antes de propormos uma análise mais profunda, de cunho etimológico acerca do aparecimento desses seres no cânon sagrado cristão, faz-se necessário observar a diferença de significado empregada na Bíblia entre os termos diabo e demônios. Segundo Karl Kertelge, a distinção entre esses termos “[...] refere-se tanto à origem das representações designadas por estas formas linguísticas como ao significado real e funcional que elas assumem nos escritos bíblicos” (KERTELGE, 1992, p. 13-14).

O primeiro termo, diabo, é de origem grega διαβολος [diabolos] e pode ser interpretado de acordo com várias classes de palavras: como adjetivo, significa maledicente, caluniador e detrator; já como substantivo, é empregado no gênero masculino e significa acusador e adversário (Cf. RUSCONI, 2003, p. 122). O uso desse termo pode ser intercambiável com o vocábulo hebraico ָׂ ש ָ֔ טן[satan], cujo significado no Antigo Testamento é adversário, contrário, opositor, contendente, competidor, antagonista, rival, inimigo (Cf. ALONSO-SCHÖKEL, 1997, p. 641). O segundo termo, também de origem grega δαιμόνιον [daimónion] pode ser entendido como demônio, divindade ou mau espírito (Cf. RUSCONI, 2003, p. 114). De acordo com Kertelge, esse termo é mais frequente no Novo Testamento e seu uso quase sempre se dá no plural. A incidência desse termo no Novo Testamento é de 63 vezes. Os demônios estão subordinados a Satanás e seriam seus anjos, pois o próprio Novo Testamento classifica o adversário como “o príncipe dos demônios” (BÍBLIA, Mc 3.22, BJ).3

Se pensarmos nas alusões e usos do termo diabo no Antigo Testamento, percebemos que embora tal expressão ocorra 21 vezes na LXX4, seu uso ipsis litteris ocorreria apenas uma vez na versão do Antigo Testamento reconhecida pelo Vaticano, mais precisamente no livro de Sabedoria 2.245. No entanto, a exegese cristã em diversas matrizes interpreta que várias

3Todas as referências bíblicas, menos as hebraicas, são retiradas da Bíblia de Jerusalém, conforme Referências.

4 Abreviação de Septuaginta, ou a Versão dos Setenta. Trata-se da tradução grega do Antigo Testamento hebraico

originalmente feita por setenta e dois eruditos judeus entre cerca de 200 e 100 a. C., modificada muitas vezes. Cf. STUART, 2008, p. 196.

5 “foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo: experimentam-na aqueles que lhe pertencem” (BÍBLIA,

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52 passagens veterotestamentárias apontam para sua presença, como a narrativa da Queda da humanidade, onde ele é personificado na figura da Serpente6 que seduziu Eva e a convenceu a comer o fruto proibido no Jardim do Éden (BÍBLIA, Gn 3); a narrativa de Jó onde ele logo no início do texto aparece entre os filhos de Deus e dialoga com o criador, mas ali ele não recebe nome próprio, posto que é identificado como “o adversário”, pois o nome “Satã” no texto hebraico, nesse caso, é precedido pelo artigo definido7; em I Cr 21.1, onde esse termo, pela primeira vez, tem valor de nome próprio; por fim em alguns textos proféticos, como os dos livros de Ezequiel 28.11-158 e Isaías 14.12-149, para citar alguns dos mais importantes.

O texto de Ezequiel 28.11 a 15 é uma elegia fúnebre, cuja forma métrica não se ajusta ao modelo clássico, de onde se percebe a antítese do gênero antes-depois, esplendor-ruína (Cf. ALONSO-SCHÖKEL; SICRE-DIAZ, 2011, p. 811). Na perícope anterior a esse texto, o rei de Tiro, Itobal II, é atacado em um oráculo divino devido ao fato de fazer reivindicação de divindade, esta teria sido a base de sua condenação, pois, o discurso profético lhe lembraria que ele seria homem e não Deus (Cf. TAYLOR, 2011, p. 176). Contudo, embora alguns reconheçam que essa elegia se refira a um monarca humano, mas, num sentido mais profundo descreva a origem de Satanás, B. J. Oropeza afirma que não há uma boa razão para igualar o rei de Tiro ao líder dos demônios (Cf. OROPEZA, 2000, p. 82). Por outro lado, alguns pais da Igreja ao ligar o texto de Isaías 14.12-14 a Lc 10.1810 e Ap 12.8-911, tomaram-na como uma referência à queda de Satanás. A despeito disso, os grandes expositores da Reforma refutaram tal hermenêutica, visto que, segundo eles, tal passagem discutiria o orgulho humano, e este seria o contendedor com o seu Criador (Cf. OSWALT, 2011, p. 393).

Já no Novo Testamento, conforme já mencionado, há maior incidência de personagens espirituais maléficos e suas alusões não se dão apenas no nível retórico. Algumas narrativas apresentam-nos de forma ativa, como é o caso da tentação de Cristo, registrada nos evangelhos sinóticos12. Nessa ocasião, segundo Mt 4.1, Jesus foi levado ao deserto pelo Espírito para ali ser tentado durante quarenta dias, numa referência antitípica à caminhada de Israel no deserto.

6 Por exemplo, a Confissão de Fé de Westminster, símbolo de fé adotado por igrejas reformadas em vários países

e escrita no século XVII, em plena Revolução Inglesa, em seu capítulo VI, intitulado “Da Queda do homem e do seu castigo”, no primeiro parágrafo apresenta o seguinte texto: “I. Nossos primeiros pais, seduzidos pela astúcia e tentação de Satanás, pecaram ao comerem o fruto proibido. Segundo o seu sábio e santo conselho, foi Deus servido permitir este pecado deles, havendo determinado ordená-lo para a sua própria glória” (Confissão de Fé de Westminster, 2005, p. 57).

7 O termo utilizado em hebraico, de acordo com a Biblia Hebraica Stuttgartensia, é ָׂ ה ש ָ֖ טן [hasatan], de onde o

morfema ָׂ ה[ha]deve ser entendido como a forma mais básica do artigo definido, anteposto ao substantivo que determina (Cf. LAMBDIN, 2003, p. 36).

811A palavra de Iahweh me foi dirigida nestes termos: 12 Filho do homem, pronuncia um lamento contra o rei de

Tiro e dize: Assim diz o Senhor Iahweh: Tu eras modelo de perfeição, cheio de sabedoria, de beleza perfeita. 13

Estavas no Éden, jardim de Deus. Engalanavas-te com toda sorte de pedras preciosas: rubi, topázio, diamante, crisólito, cornalina, jaspe, lazulita, turquesa, berilo; de ouro eram feitos teus discos e teus pingentes; 14 Fiz de ti

o querubim cintilante, o protetor; estavas no monte santo de Deus e movias-te por entre brasas ardentes. 15 Desde

o dia da tua criação foste íntegro em todos os teus caminhos até o dia em que se achou maldade em ti”.

912 Como caíste do céu, ó estrela d’alva, filho da aurora! Como foste atirado à terra, vencedor das nações! 13 E,

no entanto, dizias no teu coração: ‘Subirei até o céu, acima das estrelas de Deus colocarei meu trono, estabelecer-me-ei na montanha da Assembleia, nos confins do norte. 14 Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante

ao Altíssimo’”.

1018 Ele lhe disse: ‘Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago!”

118 mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu.9 Foi expulso o grande Dragão, a antiga

Serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada – foi expulso para a terra, e seus Anjos foram expulsos com ele”.

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53 Também nos evangelhos há narrativas de exorcismos feitos por Jesus, cujos espíritos malignos infligiam moléstias a suas vítimas que eram curadas com sua expulsão. Os evangelhos registram casos semelhantes à epilepsia (Mt 17.14-21; Mc 9. 14-29; Lc 9. 37-43); de pessoas que eram cegas e mudas (Mt 9.32-34; 12.22; Lc 11.14-15); de pessoas que apresentavam insanidade mental (Mt 8.28-34; Mc 5.1-20; Lc 8.26-39); entre outros, apenas para citarmos alguns. No livro de Atos dos Apóstolos o Adversário aparece mormente no mundo não-cristão, onde a magia é a ele relacionada (At 13.10 e 26.18). Nos textos paulinos o vocábulo diabolos ocorre poucas vezes. Encontramo-lo em Ef 4.27, 6.11, I Tm 3.6-7, II Tm 2.26; II Tm 3.3 e Tt 2.313. Por outro lado, o vocábulo satana [Satanás] é mais recorrente, conforme I Tm 1.20; 5.15; I Co 5.5 e outras dez ocorrências (Cf. BROWN; COENEN, 2000, p. 2274).

As epístolas gerais também fazem alusão ao diabo em várias ocasiões. Em Hb 2.14 ele é qualificado como “dominador da morte”14. Em Tg 4.7 o autor sacro dirige-se aos seus interlocutores com duas frases no modo imperativo: “sujeitai-vos a Deus” e “resisti ao diabo”, posto que a sujeição a Deus, aliada à resistência ao personagem infernal, traria como consequência o afugentamento deste último. Um discurso semelhante é observado em I Pe 5.8-915, onde o autor compara o diabo a um leão que rodeia os fiéis com o intuito de devorá-los; logo, a postura dos iniciados deveria ser a de resistência contra essa fera, utilizando-se de sua fé como ferramenta dissuasória. Depois, num único versículo, em I Jo 3.816, vemos que o vocábulo diabo é apresentado três vezes. Nele, o autor sacro apresenta uma perspectiva pragmática acerca dos fiéis que praticassem o pecado: estes pertenceriam ao diabo, posto que ele peca desde o princípio. De forma objetiva o texto justifica por que o Filho de Deus veio ao mundo: para destruir as obras do diabo. Na Epístola de São Judas há considerável espaço que trata de anjos decaídos, pois, para exemplificar, podemos citar o versículo 6 que faz alusão aos anjos que estão presos em “cadeias eternas, sob trevas, para o julgamento do grande Dia” e o versículo 9 que alude a disputa do corpo de Moisés protagonizada pelo arcanjo Miguel e o diabo.

Por fim, o Apocalipse canônico faz inúmeras referências ao diabo e/ou Satanás e seu séquito. O livro, de linguagem hermética e alegórica, apresenta uma trama de conflitos, cujo confronto fundamental, estabelece-se entre Deus e Satanás, que recebe vários epítetos (Dragão e Serpente). Apenas Deus seria digno de adoração, mas Satanás, segundo Frank Matera, “[...] utiliza-se de seus servos (as duas bestas) para enganar a humanidade levando-a a adorá-lo adorando a besta, que representa Roma, a Babilônia prostituta” (MATERA, 2003, p. 313). Há ainda a descrição da vitória do exército comandado por Miguel sobre o do Dragão (Ap 12.7-9), na ocasião de sua expulsão do céu. Caído, Satanás travaria outra guerra contra os descendentes

13 Nestes dois últimos textos paulinos, os vocábulos diabolous e diaboloi não se referem a um ser específico, antes,

são traduzidos com o sentido do adjetivo “caluniadoras” nas versões em português, como ocorre em outras ocasiões: I Tm 3.11 e em Et 8.1 utilizado na LXX para qualificar o personagem Hamã.

1414 Essa é a tradução da Bíblia de Jerusalém, preferida no meio acadêmico, enquanto na versão Almeida Revista

Atualizada, a mais utilizada nas comunidades protestantes brasileiras, a tradução é “aquele que tem poder da morte”. Se consultarmos uma edição crítica do Novo Testamento como a 4ª edição da UBS, editada pela Deutsche Bibelgesellschaft (Sociedade Bíblica Alemã), leremos a expressão τὸ κράτος ἔχοντα τοῦ θανάτου [tô krátos échonta tou thanátou], cuja tradução, segundo a versão interlinear editada pela Sociedade Bíblica do Brasil, literalmente conservando sua apresentação morfossintática do texto original é “o poder que tem da morte”. “8Sede sóbrios e vigilantes! Eis que o vosso adversário, o diabo, vos rodeia como leão a rugir, procurando a quem

devorar. 9Resisti-lhe, firmes na fé, sabendo que a mesma espécie de sofrimento atinge os vossos irmãos

espalhados pelo mundo”.

16 “Aquele que comete o pecado é do diabo, porque o diabo é pecador desde o princípio. Para isto é que o Filho de

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54 da mulher que deu à luz o Messias. Entretanto, Cristo, entronizado no céu, abre o livro de sete selos que narra a vitória de Deus em meio a outras peripécias narradas no último livro do cânone cristão.

Nessa breve apresentação de referências bíblicas sobre o diabo e seus asseclas, que não se pretende exaustiva, observamos que esse tema é recorrente na Bíblia. Portanto, não deve causar estranheza que autores, sobretudo ocidentais, oriundos de nações de cultura eminentemente cristã com engenho e arte desenvolvam personagens que povoem seus textos que apresentam características advindas do testemunho bíblico. Tal é o caso de Gil Vicente, na construção do personagem diabo em seu texto dramatúrgico Auto da Barca do Inferno (1517); de J. W. Goethe na construção do personagem Mefistófeles no também teatral Fausto (1806-1832); de John Milton na composição do personagem Satanás em sua epopeia Paraíso Perdido (1667) apenas para citar alguns. C. S. Lewis figura entre esses autores criadores de diabos, cuja importância literária tem sido lembrada ao longo das décadas, como atesta a p. 678 da

Merriam-Webster’s Encyclopedia of Literature, além da também conhecida série de contos infantis The Chronicles of Narnia, Lewis é conhecido ao redor do mundo pela escrita do texto The Screwtape Letters (1942).

Quem foi C. S. Lewis

C. S. Lewis, nasceu em 29 de novembro de 1898, em Belfast, Irlanda do Norte. Seu pai, Albert, era natural do País de Gales e sua mãe, Florence da Escócia. Depois da morte de Flora, Albert Lewis decidiu enviar seus filhos a internatos na Inglaterra. Albert Lewis, ao perceber a infelicidade do filho mais novo nessas instituições, contratou o professor William Thompson Kirkpatrick, e enviou Lewis para Great Bookham, residência do preceptor, onde este redimiu a educação formal do jovem Lewis, orientando-o em alemão, francês, italiano, latim e grego clássico (Cf. DURIEZ, 2005, p. 167). No período em que estudou com Kirkpatrick eclodiu a Primeira Guerra Mundial e C. S. Lewis chegou ao cenário de guerra no noroeste da França no dia em que completava dezenove anos (Cf. LEWIS, 2015, p. 168).

Com o fim da guerra, Lewis retoma seus estudos e vai a Oxford onde estuda História e Literatura. Depois de várias tentativas, ele é aceito como professor adjunto de Língua e Literatura Inglesa no Magdalen College, em Oxford. Sua nomeação foi noticiada pela Times de Londres em 22 de maio (Cf. MCGRATH, 2013, p. 131). Juntamente com a carreira acadêmica, Lewis teve a oportunidade de estreitar relações com outros eruditos que já haviam conquistado prestígio dentro e fora do mundo intelectual, dentre os quais J. R. R. Tolkien, autor da trilogia O Senhor dos Anéis. De acordo com Alister McGrath (2013, p. 170), “Tolkien permitiu a Lewis religar o mundo da razão com o mundo da imaginação”. A imersão de Lewis no universo do discurso religioso foi fundamental para a maturação de sua obra literária. A partir daí temos um cidadão que apresenta uma dupla estilística temática, navegando ora pelas destemperadas águas da teologia, ora pelas águas melindrosas da fruição literária e, às vezes, fundindo ambas. Lewis deixou de lecionar em Oxford e, em 1954, assumiu a cátedra de Língua e Literatura Inglesa Medieval e Renascentista na Universidade de Cambridge, no Magdalene College, tornando-se um raro intelectual que teve experiência docente nas mais prestigiadas universidades britânicas. Depois de uma profícua e controversa carreira acadêmica, Lewis morreu no dia 22 de novembro de 1963, uma semana antes de completar 65 anos. Polígrafo e autor de ampla lavra literária, embora não haja consenso sobre a quantidade de textos que escreveu – posto que há muitos textos póstumos – acredita-se que seu número exceda 40 títulos.

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55 Contexto da obra Screwtape Letters

O livro The Screwtape Letters foi publicado em fascículos em uma revista eclesiástica de orientação anglicana em 1941. Posteriormente foi organizado em livro e publicado em 9 de fevereiro de 1942, no período da Segunda Guerra Mundial (Cf. MCGRATH, 2013, p. 395). Romance epistolar, o texto em análise não apresenta variação de interlocutores, posto que a correspondência entre Screwtape e seu sobrinho aprendiz, Wormwood, mantém-se inalterada, por conta disso, o leitor é informado acerca da situação do enredo apenas por meio da voz do ente infernal mais experiente.

Embora sua temática nos remeta aos autos ibéricos – peça breve, de tema religioso ou profano, encenada durante a Idade Média (MOISÉS, 2013, p. 46) –, vários comentaristas classificam o texto como uma sátira (GREGGERSEN, 2016, p. 142), onde Screwtape, autor das correspondências, é apresentado como um diabo experiente que, por meio das cartas, exerce a função de conselheiro no trabalho de seu sobrinho, Wormwood, que consiste em desviar seu “paciente” da zona de influência do “Inimigo”, a referência ao Deus judaico-cristão, e, assim, submergi-lo no domínio das trevas. Como a perspectiva discursiva é a do ente infernal, então é necessário que, para se atribuir um correto sentido ao texto, o leitor deve levar em conta o sentido contrário de nossos paradigmas de moralidade, lógica e virtude.

Nas cartas, o inferno é apresentado ao leitor, de acordo com Alister McGrath (2013, p. 232), como uma burocracia de um estado policial ou dos escritórios de uma empresa especializada em promover negócios sórdidos, num ambiente de ausência de graça e qualquer sentimento ou atitudes benevolentes. Além dessas analogias, poderíamos também apontar a burocracia infernal como uma alusão ao ambiente universitário em que o autor vivia. Faz-se necessário destacar como exemplo do funcionamento da engrenagem desse mecanismo a eficiente correspondência entre Screwtape e Wormwood. As cartas do diabo experiente têm como base ocultas correspondências enviadas por Wormwood, no entanto, o leitor não têm acesso ao conteúdo dessas missivas, mas pode inferi-lo a partir das respostas dadas pelas cartas de Screwtape.

Quando observamos a materialidade das edições da obra, numa perspectiva diacrônica, percebemos algumas peculiaridades, por exemplo, se consideramos a primeira edição inglesa, de 1942, percebemos que esta apresenta um prefácio posterior, pois tal paratexto não consta na primeira aparição pública do texto. Na edição da revista eclesiástica The Guardian, em sua publicação de 2 de maio de 1941, em sua página 21117, não há apresentação de prefácio. Isso é evidente porque textualmente o autor informa o leitor na edição em livro que a data da escrita desse paratexto se deu em 5 de julho de 1941 (LEWIS, 1942, p. 10). Já o prefácio utilizado na primeira edição brasileira da obra (LEWIS, 1964) é posterior pela data, mas também original por apresentar o texto a novos leitores, no caso os leitores da vigésima sétima edição inglesa, onde, “[...] diria coisas das quais, por uma razão ou por outra, acreditou poder estar dispensado” (GENETTE, 2009, p. 212-213).

Em um dos trechos mais célebres dessa peça, Lewis admite que escrever a obra foi uma das coisas mais fáceis e mais difíceis de ele escrever. Mais fáceis, porque bastou olhar para

17 Disponível em <https://apilgriminnarnia.com/2016/04/25/how-screwtape-was-introduced/> acesso em 8 jun.

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56 dentro do seu próprio coração para ele decifrar a lógica do diabo. Mais difíceis pela náusea provocada nele à vista do que encontrou lá.

Já o posfácio, intitulado “Screwtape propõe um brinde” foi escrito em resposta ao convite insistente de algumas editoras para o autor escrever uma continuação de Screwtape - coisa que ele sempre recusou porque dizia que não tinha estômago para isso. Ele foi publicado em 1959 no The Saturday Evening Post, ou seja, quase duas décadas depois da primeira edição de Screwtape, num contexto histórico e social já bem diferente da primeira edição. Trata-se do discurso de Screwtape por ocasião da festa de formatura dos diabos aprendizes que estão a banquetear as suas vítimas.

Como o diabo gosta: análise da obra

Há certas coisas que “o diabo gosta”, como diz o provérbio. E outras das quais se deve fugir “como o diabo foge da cruz”. E Lewis as explora de maneira magistral. Vamos nesse capítulo analisar algumas dessas coisas e refletir sobre elas, no sentido de tentar definir as coincidências e as divergências da sua concepção de diabo em relação às concepções tradicionais de diabo abordadas acima.

Coisas de que o diabo gosta

Com relação a ele mesmo, como se lê no prefácio do livro, são duas atitudes estimuladas pelo diabo: crer que ele não existe, ou dar pouca ou nenhuma atenção a ele, subestimando a sua atuação no mundo; ou dar atenção demais a ele, atribuindo-lhe poderes que ele não tem, já que ele, segundo o cristianismo, já se encontra derrotado por Deus. Mas há outras coisas de que ele gosta e seguiremos o livro para não fazer “spoiler”, mas apenas fazer algumas considerações que aprofundam a leitura do livro.

O jargão e a frase feita.

Ou seja, ele gosta dos reducionismos, superficialidades e modismos. O que é o jargão se não o lugar comum, ou o que muitas pessoas chamam erroneamente, diga-se de passagem, de senso comum, já que esse último tem um valor inestimável, ao contrário do jargão.

Esse vem da linguagem viciada e corrompida, incompreensível, proveniente muitas vezes de uma língua estrangeira. Seu uso demonstra ou pouco conhecimento da língua, ou então, o que é pior moralmente, uma intenção de não se fazer compreensível ou se fazer de difícil, inatingível ou superior, através da linguagem. São exemplos de jargão profissional o uso de latinismos pelos advogados como “Data Vênia”, etc. ou uso de nomes científicos em latim para bactérias, plantas, animais e doenças pelos médicos, biólogos, farmacêuticos, etc. Também é muito comum o uso de siglas e terminologia cujo entendimento é reservado aos que fazem parte de um grupo seleto. Isso é muito comum nas universidades, em todas as áreas e departamentos. No meio religioso temos o “evangeliquês”, que é o linguajar típico dos evangélicos e outros linguajares de outras religiões. Da mesma forma, no meio político tem-se suas expressões esvaziadas de sentido que servem apenas para causar alguma impressão no

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57 outro ou para preencher vazios de ter o que dizer realmente. Isso explica o volume de processos e leis, que não poupam palavras e não usam de parcimônia nas mesmas.

O motivo que leva o diabo de Lewis a gostar tanto disso é a sua concepção de linguagem como uma instituição que tem a finalidade de comunicar e ser significativa (e não oca por dentro), em vez de provocar algum tipo de reação nos outros ou manipulá-los. A ideia de manipulação é outra muito querida a Screwtape, à qual vamos nos dedicar em seguida.

Além da manipulação, o jargão serve para alimentar preconceitos do tipo: “Pau que nasce torto, morre torto”, “Em time que ganha não se mexe”, etc. Pois o pré-conceito é um conceito reducionista, pronto e preconcebido, que se compra por atacado e se vende nas instituições a preço de banana.

Finalmente, o jargão fomenta a criação e atribuição de rótulos nas pessoas, julgando-as pelas aparências e condições materiais. Em resumo, o uso do jargão é sinal de que o usuário é superficial, materialista, cheio de crendices e superstições alimentadoras do preconceito.

E o principal motivo que Screwtape cita para gostar tanto do jargão é que ele afasta o paciente da igreja. Em outras palavras, os preconceitos contra pôr os pés nessa instituição são os mais preciosos para o diabo, pois sua principal razão de ser é afastar a pessoa humana de Deus. Por mais que muitas igrejas realmente façam jus a alguns preconceitos, trata-se de um local voltado para Deus e para o transcendente, coisas que o diabo detesta, como veremos mais adiante.

Pensamentos de autossuficiência e força

Segundo Lewis, o diabo se interessa em fazer as pessoas se acharem fortes e até violentas, pois isso lhes dá um sentimento de empoderamento e coragem, que não teriam, se se sentissem fracas. Rótulos como “looser” “perdedor” ou “fracassado” são tão temidos porque precisamente dão o sentimento de impotência.

Isso vai diretamente contra o discurso atual do “empoderamento” das classes mais desfavorecidas e das minorias. O que importa não é fazê-las se sentirem aquilo que elas não são: pessoas reconhecidas e respeitadas, mas aquilo que são: guerreiras e, nesse sentido transcendente, e não material: vencedoras porque são resilientes.

Ver para crer

O diabo gosta de formar pequenos “São Tomés”: pessoas que só creem vendo e tocando. A fé, seja em Deus, seja em qualquer outra coisa, deve ser prevenida de todas as formas. A atitude de ceticismo e descrença é uma das mais apreciadas por Screwtape e seu sobrinho, pois coloca barreiras à fé e abertura para um relacionamento com Deus. Lembrando que é sempre o diabo que está na defensiva contra as investidas amorosas de Deus (que ele chama de “Inimigo” com “i’ maiúsculo, para evitar o inominável) para com os seus filhos. Não é o diabo que ataca. Segundo a Bíblia, ele apenas “ruge em redor” (BÍBLIA, I Pedro 5.8).

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58 Confusão

Uma das estratégias mais populares do diabo é de confundir o paciente. Não é para menos que na sabedoria popular e na Bíblia o Diabo é o “pai da Mentira”, e a mentira leva ao engano e à confusão.

É bom lembrar que diabo vem de diabolos, que é o fator de desordem de algo ordenado. Nesse sentido, algumas igrejas são como o diabo gosta, a julgar pelo caos e barulheira que lá reinam.

Distração

Uma das cenas memoráveis de Cartas... é aquela em que o paciente está na biblioteca lendo um livro - coisa abjeta para o diabo - que o está levando a pensamentos “perigosos” para ele. Então a sugestão dada é fazê-lo lembrar que já é quase hora do almoço e que não é saudável refletir sobre coisas tão sérias de estômago vazio e que certamente ele voltará a elas mais tarde de espírito renovado. Todos sabem e diz a psicologia popular que em noventa por cento dos casos, a questão estará para sempre esquecida.

Uma das coisas de que mais o diabo gosta de nos distrair é da atenção ao outro e da oração ou meditação sobre a Palavra. Assim que começamos a orar ou começamos a ouvir um sermão inspirado, milhões de pensamentos nos chegam à cabeça de modo a desviar a nossa atenção. Cartas... está repleto de cenas desse tipo.

Decepção

A mágoa e frustração gerada pela decepção são coisas adoráveis aos demônios, pois elas distorcem a capacidade que a pessoa tem de identificação e avaliação da realidade, e, portanto, faz com que ela tenda a tomar decisões erradas e precipitadas. Afastar a pessoa humana da realidade é um caminho garantido para afastá-la de Deus.

Manipulação

A manipulação é o reverso do respeito ao próximo e da assertividade, que se caracteriza pela atenção ao espaço do outro, não sendo nem invasivo, ou agressivo; nem evasivo ou passivo. E manipular significa invadir, usando estratégias sutis para que a pessoa não perceba o que está acontecendo. A manipulação pode se dar de forma consciente ou inconsciente. A mãe ou pai que manipula, usa de chantagem emocional para alcançar o que deseja, que normalmente é alguma forma de controle e exercício de poder sobre o filho ou a filha. O mesmo pode acontecer com um chefe, colega ou professor.

Manipular significa desrespeitar a individualidade e autonomia do outro, decidindo e agindo por ele, sem que ele se dê conta disso, fazendo-o achar que foi ele mesmo que tomou a decisão ou atitude.

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59 Altivez ou orgulho

Há um capítulo inteiro, intitulado “o pecado capital”, dedicado ao orgulho no clássico de apologética de C.S. Lewis intitulado, Cristianismo Puro e Simples. A atitude de quem se acha superior ou autossuficiente é uma das piores que se pode assumir e também que mais nos afasta de Deus. Foi o pecado que levou à queda, o desejo de ser igual a Deus. Junto com o orgulho vem o sarcasmo e a crueldade.

A soberba também é um dos motivadores do sentimento de posse e da possessividade, pois o orgulho faz a pessoa se sentir dona do mundo e possuidora de bens e pessoas, que passa a usar para alcançar seus objetivos egocêntricos.

O reverso disso é a humildade ou modéstia, que se caracteriza não pela baixa autoestima, como muitos tendem a considerar de forma equivocada, mas pela valorização e respeito ao outro e capacidade de cada um de se colocar em seu devido lugar.

Centrar-se na vida interior

O diabo adora quando a pessoa esquece do mundo ao redor e se concentra nas suas emoções e percepções subjetivas. É uma forma de egoísmo e emsimesmamento, que, mais uma vez, deságua no desrespeito ao próximo, fazendo pouco caso dele, ou ignorando-o por completo. A pessoa fica tão focada em si mesma que se torna insensível aos dramas do outro.

Sentimentalismo

Muito relacionada à anterior está a atitude de focar nos sentimentos e impressões subjetivas ao invés de informações vindas da realidade de fora. É claro que Lewis, como era acadêmico, numa época dominada pelo racionalismo, tinha a tendência ao preconceito contra os sentimentos, mas o extremo da emotividade certamente é uma atitude bem-vinda aos demônios, pois tende a nos fazer distorcer a realidade, dando importância demasiada ou exagerando certas impressões de realidade que temos subjetivamente.

Principalmente a oração que o diabo gosta é repleta de sentimentalismos e pouca concretude e fatos concretos.

Irritações cotidianas

A louça que ficou na pia para lavar, a calça que ficou com dinheiro no bolso no cesto de lavagem, a pasta de dente que não foi apertada direito, são exemplos de pequenas irritações cotidianas que o diabo tem o máximo prazer de atiçar. Cartas está cheia de cenas desse tipo.

Então, com relação às irritações cotidianas é preciso manter o paciente numa constante atitude de reclamação e mau humor, que são estados adorados pelos demônios.

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60 Ódio à vida doméstica

Da mesma forma que as irritações cotidianas, o ódio à vida doméstica é um elemento que mina os relacionamentos, principalmente familiares, de forma lenta e gradual. Mas ao invés de nos atiçar à irritabilidade, pelo contrário, nos faz muitas vezes assumir uma postura passiva de indiferença e tédio. As atividades rotineiras muitas vezes nos causam asco. Por isso o diabo gosta de nos inserir num ciclo vicioso da não quebra de rotina por tédio e preguiça, gerando ainda mais rotina, passividade, tédio e preguiça.

Imaginação corrompida

A imaginação é um sentido humano muito importante, tão ou mais importante do que a razão. Mas se ficar descontrolada ou desvirtuada, ela pode levar à ilusão e ao engodo. Fazer o paciente ocupar a sua imaginação com coisas destrutivas e imorais é um dos passatempos prediletos de Satanás. Nesse sentido, a imaginação desassistida é um prato cheio para o Diabo. Medos, fobias e ansiedades são os sentimentos que mais atiçam a imaginação para que ela se corrompa e são igualmente apreciados por Screwtape.

Aí é que entra a educação, para nos orientar no uso construtivo e criativo da imaginação, que serve para sonharmos e idealizarmos um mundo melhor, desenvolvermos projetos e nos motivarmos para realizá-los. A imaginação tem todos os poderes, por isso mesmo é que o diabo investe tanto para desvirtuá-la.

Angústia e perplexidade

Perder de vista o sentido da vida e ficar sem explicação, principalmente para a questão do mal e sofrimento no mundo e na própria vida é um dos sentimentos mais apreciados pelo diabo. Por isso ele mostra tanto interesse em combater a esperança. A atitude do suicida é o objetivo máximo que o diabo pode buscar, já que acaba com a vida, cortando pela raiz os planos de Deus para a existência da pessoa.

Mas o desânimo diante dos baixos da vida ou a depressão psicológica (não a física, que é uma doença e tem que ser combatida com remédios e tratamento) e o negativismo ou pessimismo são sentimentos que devem ser promovidos por Wormwood sempre que possível no cotidiano. E é nele que o inferno mais se aproxima de nós.

Adotar atitudes extremistas

Outra coisa que o diabo adora fazer é empurrar o paciente e para atitudes extremas: o extremo do pacifismo, o extremo patriotismo, fundamentalismos religiosos, posicionamentos políticos extremistas, etc. O medo torturante e a calma tola, quando se tem motivos para preocupação; o estado de ansiedade irracional e a completa indiferença são outros exemplos de extremos.

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61 Pois o que ele mais detesta é o equilíbrio, que é a postura de quem encontrou na vida a moderação e temperança, que é uma das virtudes cardeais e a sabedoria ou discernimento, igualmente detestáveis a Screwtape.

Tornar a igreja uma seita, facção ou partido

Também poderíamos incluir aí um “clube fechado”. Tudo que o diabo quer evitar é que a igreja tenha o sentido que deve ter de comunidade e corpo vivo de Cristo (BÍBLIA, I Coríntios 12.27 e Efésios 4.12), em que cada membro assume uma função.

Mundanismo

Tornar o mundo uma finalidade e a fé um meio, é essa a estratégia de Screwtape. Nesse sentido, o mundanismo é um materialismo que tem como instrumento o consumismo.

Busca desenfreada pelos prazeres

Screwtape deixa claro ao seu sobrinho que os prazeres em si, como a imaginação em si, não são o problema, pois são coisas criadas pelo Inimigo. Mas a busca desenfreada por eles e seu uso como fim e não como dádiva de Deus é que são incentivados pelo diabo.

E como ele faz questão de frisar, o pecado sexual não é o mais importante de se buscar, mas os pecados espirituais são infinitamente mais estratégicos para afastar o ser humano do Inimigo.

Mas o prazer verdadeiro, segundo Screwtape, é um perigo para os diabos. Espiritualidade morna

É bem mais divertido, segundo Screwtape, incentivar uma espiritualidade “água com açúcar” do que nenhuma espiritualidade. Nesse sentido, um cristão que vai à igreja por simples hábito e não cresce mais espiritualmente está mais longe de Deus do que um ateu ou pagão que pratica os valores do cristianismo.

Nesse sentido, a igreja de Laodiceia do Apocalipse (BÍBLIA, Apocalipse 4.14-22), que é considerada morna, tem o destino de ser “vomitada” por Deus. Entram nessa categoria as pessoas muito “religiosas” e “moralistas”, que não têm um relacionamento real e efetivo com Deus.

Irreverência

Apesar de já ter virado virtude no linguajar do senso comum, a irreverência no sentido original é um vício, falta de reverência. E a leviandade é o melhor antídoto para a verdadeira alegria. Ser irreverente não é ser engraçado de verdade, mas fazer troça de tudo e até de coisas sérias. A pessoa irreverente falta com respeito ao próximo e usa a piada para justificar tudo, às custas do afeto e muitas vezes, da amizade.

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62 Vazio e ócio

Não fazer nada, nem o que se deve, nem o que gosta de fazer é extremamente produtivo para os demônios. O ócio só é prejudicial para eles quando é criativo.

O nada deve ser estimulado, que é o oposto do conteúdo e do significado. Em outras palavras, Screwtape ama a futilidade e o non-sense.

Passividade e letargia

É preciso, segundo Screwtape, estimular que se faça tudo menos agir. E o significado da ação em contraste com o simples fazer é que ela muda/transforma a realidade, coisa que ele quer evitar ao máximo. Manter as coisas como estão é a sua estratégia mais do que piorá-las, pois piorando, ele poderia causar a reação oposta: a conscientização.

Ódio entre igrejas

A intolerância e divisão entre as vertentes do cristianismo e entre as religiões é outra coisa de que o diabo gosta e muito.

Corrupção

Por último, mas não menos importante, temos que mencionar a corrupção como causade muitos outros vícios elencados acima e à qual Lewis dedica o seu posfácio: Screwtape proposes

a Toast ou “Maldanado propõe um brinde” como ficou traduzido na edição da Thomas Nelson.

Nele, a corrupção é o molho servido em um grande banquete dos infernos do jantar anual da Academia de Treinamento de Tentadores, para um dos pratos principais, uma autoridade municipal.

Embora Screwtape lamentasse o fato da falta de qualidade desses pratos, perto dos verdadeiramente crocantes como um Hitler e um Henrique VIII, e ele não tivesse “nenhum sabor de avareza realmente apaixonada e brutal” (LEWIS, 2017, p. 183), esse político é descrito como “uma criatura mesquinha, enriquecida por lucro ilícitos, comos bolsos cheios de piadinhas medíocres da vida privada e de subornos que eram negados em seus discursos públicos repletos de insípida trivialidade”. (LEWIS, 2017, p. 183).

Mas a corrupção não está presente apenas no político, mas em toda pessoa que se deixa degradar ou desvirtuar aquelas qualidades originalmente boas, como o amor autêntico de mãe que se torna desejo de posse, manipulação e controle.

Temos aqui já uma relação boa do que o diabo gosta. É claro que o contrário disso é o que ele detesta e faz tudo para evitar. Mas o que ele sempre frisa sobre o Inimigo é o amor que ele tem pelos “vermezinhos”, que é, sem dúvida o ponto pelo qual ele tem um ódio mortal e que acabará representando a sua derrota final.

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63 Considerações finais

Como pudemos abordar nesse artigo, os conceitos de diabo, demônios e outros são diversos. Mas, em vez de entrar na discussão sobre esses conceitos ou mitos a respeito dessas figuras, Lewis constrói a sua paródia sobre a ideia comum e histórica de que o diabo é personalização do mal e que o mal corrompe e leva ao mau caminho. Ele explora a forma como o mal age para nos levar à corrupção e nos convida a um exercício de nos colocarmos no lugar do diabo, assumindo a sua lógica (se é que podemos chamar assim) para compreender melhor as estratégias sórdidas de que o diabo se utiliza, a partir de seu conhecimento da verdade.

E mais, somos convidados a nos identificar com um demônio que está incumbido de corromper, já que é a nós que ele se dirige, ou seja, somos estimulados a assumir o nosso próprio lado obscuro e corrompido, num exercício de autocrítica, reflexão e conscientização.

Mas o mais interessante é que o poder de corrupção do mal é limitado e imperfeito. Haja vista que nem mesmo o diabo resiste à atração da verdade, de modo que o possamos flagrar em momentos de profundo sinsights sobre a realidade das coisas, principalmente no que diz respeito à constatação da maior arma do Inimigo contra ele: o amor.

Assim, como gosta de fazer em todas as suas obras, Lewis nos surpreende: o que parece ser um tratado sobre o diabo e a sua arte de levar o ser humano à corrupção acaba se revelando como uma tese sobre o amor divino pela humanidade.

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Recebido em 30/01/2019 Aprovado em 30/04/2019 Publicado em 22/09/2019

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