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«Estamos aqui para falar.» Filosofia e literatura na encruzilhada das humanidades

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ANO LXII / N.º 215/216

maio - dezembro 2016

Florilégio medieval

Itinerários Filosóficos

(2)

Preâmbulo

Inspirada pela generosidade Franciscana, vem a revista Itinerarium recolher

por escrito, para os entregar à memória cultural dos contemporâneos e dos

vindouros, alguns «Itinerários Filosóficos com Joaquim Cerqueira

Gonçal-ves», que percorremos ao longo de três dias, 1 e 4-5 de Abril, no âmbito do

«Florilégio Medieval. Primavera 2016».

Como nasceu esta iniciativa de percorrer alguns «Itinerários Filosóficos

com Joaquim Cerqueira Gonçalves»? Estávamos a concluir o «Florilégio

Medieval» de 2015 e importava começar a preparar o seguinte, de 2016, uma

vez que se tratava de um encontro anual de estímulo dos estudos de filosofia

medieval, no curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa (FLUL). Ocorreu-me, então, tomar por empréstimo uma ideia que me

tinha sido comunicada pelo Doutor Gonçalo Figueiredo, Director da revista

Itinerarium, ao ter-me convidado, uns meses antes, a mim entre muitas outras

pessoas, a participar num evento comemorativo da publicação em 2015 do

vol. III de Itinerâncias de Escrita, de Joaquim Cerqueira Gonçalves.

Con-vite esse, que eu tinha aceitado com todo o prazer. No entanto, dizia-me um

dedo adivinho que a iniciativa estava a debater-se com resistências por parte

do autor da obra. Foi, assim, que a ideia me surgiu com o apelo tentador da

desobediência e me sugeriu desencaminhar um grupo de jovens inocentes

para actuarmos em conjunto pela calada da conspiração, sem pedir licença

ao autor da obra. E, sem ele saber, começámos a estudar os três volumes de

Itinerâncias de Escrita, cuja leitura repartimos entre nós – Ana Rita Ferreira,

António Rocha Martins, Filipa Afonso, Francisco Corboz, Rita Teles, Tomás

Castro e Maria Leonor Xavier – todos nós investigadores do Centro de

Filo-sofia da Universidade de Lisboa, unidos pelo interesse pela filoFilo-sofia medieval

ao nível dos estudos pós-graduados. Todavia, como fomos comunicando a

ideia a muitas outras pessoas, que não quiseram ficar fora da conspiração,

acabámos por obter um programa compacto de três dias de itinerância pela

obra de Joaquim Cerqueira Gonçalves, fazendo-nos ultrapassar as fronteiras

dos tempos medievais, que também foram da sua predilecção. Com efeito,

Joaquim Cerqueira Gonçalves foi o Professor de Filosofia Medieval, ao longo

de várias décadas, no curso de Filosofia da FLUL, e foi nessa condição que

tive o privilégio de conhecê-lo e de colher os frutos do seu magistério. Mas,

aí e desde então, aprendi também que o Professor nunca deixava encarcerar

o seu pensamento em apertadas divisões didácticas da história da filosofia,

(3)

muito abrangente quer no arco temporal quer nos motivos de reflexão.

Assim foi, de facto, o programa do «Florilégio Medieval. Primavera 2016»

e assim é também o elenco dos textos então apresentados e agora coligidos

neste duplo volume da revista Itinerarium. Tal como aquele programa, este

volume começa por uma parte intitulada «Joaquim Cerqueira Gonçalves

entre Colegas e Amigos», que reúne alguns textos sobre a sua vida e obra em

convívio e contexto universitários, mas continuam a ser Colegas e Amigos os

autores dos textos a seguir agrupados em torno de grandes linhas temáticas

do pensamento cerqueiriano: Filosofia, Literatura e Cultura, Diálogos com a

Tradição Filosófica, Ética e Filosofia da Vida, Pensamento Ecológico, Filosofia

e Pedagogia. Por fim, cabe a palavra aos Irmãos na Fé, na parte intitulada

«Joaquim Cerqueira Gonçalves entre os Irmãos Franciscanos», isto é, entre

aqueles que fazem laços de encontro e acolhimento das humanas itinerâncias.

(4)

«Estamos aqui para falar.»

Filosofia e literatura na encruzilhada

das humanidades

por

Tomás N. Castro *

(Universidade de Lisboa)

O quotidiano das actividades universitárias decorre sob o signo de uma

azáfama permanente, cuja origem é — na maior parte das vezes — alheia aos

seus intervenientes, um estado de espírito superveniente de estruturas pouco

claras e, não poucas vezes, antagónico com a natureza e a vocação

originá-rias das instituições. Um exemplo notório, e que traduz o vigente mal-estar,

encontra-se no discurso da «opinião pública» respeitante ao ensino superior

(temperado com abundantes intervenções dos seus demais reitores, membros

e estudantes), no qual abundam discussões acerca de dotações orçamentais,

sustentabilidade, critérios e viabilidade e, imagine-se, «empregabilidade»;

destas instituições espera-se de tudo um pouco, desde a promoção do

«em-preendedorismo» e de uma intrépida resposta face aos inauditos desafios do

mundo globalizado, até à integração com o tecido empresarial ou à exportação

do saber. Nas humanidades — ou nas suas transgénicas soit-disant «ciências»

sociais —, uma putativa aplicação que derive destas orientações ideológicas é,

na melhor das hipóteses, altamente problemática, já que é o ramo do saber que

oferece, par excellence, uma maior e quase inata resistência a avaliações que

visem mormente a quantificação (da qual a ideia peregrina de «bibliometria»

fala por si mesma), as estatísticas de produtividade ou ainda considerações

acerca da sua utilidade. Tudo isto, na linguagem que é moeda de troca na

re-tórica nacional, sempre em nome de uma pátria (que, ainda por cima, também

tem que ser «mátria») que vai «dar novos mundos ao mundo» — seja o que

for que isso queira dizer.

Itinerarium, LXII (2016) 389 - 401

* Centro de Filosofia, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. Alameda da Universidade. 1600-214 Lisboa. Email: tomas.castro@campus.ul.pt. Associamo-nos com muito gosto a esta home-nagem ao Professor Doutor Joaquim Cerqueira Gonçalves, expressando deste modo o nosso reconhe-cimento por termos recebido o Prémio de Ensaio Filosófico seu homónimo, em 2013.”

(5)

Nos escritos de Joaquim Cerqueira Gonçalves

1

, presbítero franciscano

e professor universitário, encontramos uma voz arguta no diagnóstico e na

descrição da actual encruzilhada, um pensamento esclarecido no que toca à

elucidação das causas deste mal-estar e, sobretudo, uma veemente defesa da

natureza das humanidades, que aqui iremos retomar. Comecemos por retomar

uma experiência de pensamento do Padre Cerqueira, originalmente a oratio

sapientiae que pronunciou, na Reitoria da Universidade de Lisboa, aquando

da inauguração solene do ano académico de 1991/92, e à qual pedimos de

empréstimo uma frase para o título deste labor.

Imaginemos, então, que somos subitamente visitados por sorridente

figura edénica, de cujos lábios irrompe esta pertinente, ainda que

impre-vista, interrogação: O que faz aqui esta tão estranha assembleia? Qual a

razão de tanta pompa e circunstância? Quem sois vós?

[...] A minha vista folgaria sobretudo com o contraste entre a

indumen-tária simples dessa figura paradisíaca, que dispensava ainda a oblonga e

recortada sombra da folha da figueira, e a pesada guarnição das nossas

becas e insígnias, lembrando inevitavelmente a desproporcionada peleja

de Golias e David, cabendo a todos nós o papel do gigante, sabe-se lá se

também com a sina de uma derrota antecipada.

[...] E a nossa Faculdade de Letras, por coerência dos acontecimentos

e do discurso, não recusa nem adia a sua resposta: Nós, todos, não apenas

a comunidade de Letras, Estamos aqui para falar.

1 Joaquim Cerqueira Gonçalves, OFM (1930-), Itinerâncias de Escrita [doravante: IE]: vol. I —

Cultura/Linguagem (2011); vol. II — Hermenêutica/Filosofia (2013); vol. III — Escola/Ecologia

(2014) (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda). Estas obras reunidas incluem a quase totalidade da produção édita (e alguns trabalhos inéditos) deste Doctor Fidelis ou Generosus (como bem sugeriu Manuel J. do Carmo Ferreira), incluindo os livros publicados separadamente — Humanismo

Medie-val — I. A Natureza do Indivíduo em João Duns Escoto; II. Franciscanismo e Cultura (Braga:

Tipo-grafia Editorial Franciscana, 1971); A Escola em Debate. Educar ou Profissionalizar? (Braga: Facul-dade de Filosofia, 1989); Fazer Filosofia. Como e onde? (Braga: FaculFacul-dade de Filosofia, 1990; 19952); Em Louvor da Vida e da Morte. Ambiente — A Cultura Ocidental em Questão (Lisboa:

Edi-ções Colibri, 1998) —, à excepção de Homem e Mundo em São Boaventura (Braga: s/n, 1970; origi-nalmente Tese de Doutoramento em Filosofia apresentada à Universidade de Lisboa através da Facul-dade de Letras, em 1970) e de alguns artigos dispersos. Deverá ainda consultar-se o volume de homenagem Poiética do Mundo. Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, org. Departamento e Centro de Filosofia da Faculdade de Letras [da Universidade] de Lisboa (Lisboa: Edições Colibri, 2001), nomeadamente os artigos de José Barata-Moura (“A filosofia de Joaquim Cerqueira Gonçalves — uma abordagem apenas parcelar”, pp. 35-44) e de Maria Leonor Xavier (“Ditos filosóficos de Joaquim Cerqueira Gonçalves”, pp. 61-115). Nas remissões bibliográficas, cada artigo que conste das obras reunidas será citado pelo seu título, seguido da respectiva data de primeira publicação, o volume de IE em que se encontra reproduzido e os números das páginas em referência.

(6)

391

Vejo o sorriso aquiescente do nosso edénico visitante, mas, em

contra-partida, escuto indefinidos murmúrios de contente desacordo. Para uns,

a nossa resposta corrobora o que sempre pensaram a respeito da nossa

prática escolar: um saber redundante, inútil e dissociado da vida; para

outros, ela confirma o que sempre defenderam, a redução do investimento

destinado às chamadas ciências do espírito, em benefício das ciências —

únicas — da natureza. [...]

2

Pese embora a vetustez da célebre dicotomia diltheyana, remanescem

ainda abundantes sequelas da suposta divisão entre as «ciências do espírito

(Geisteswissenschaften)» e as «ciências da natureza (Naturwissenschaften)»,

especialmente notórias nas sucessivas tentações quando o modo de proceder

daquelas tenta apropriar a metodologia destas. Disto é reflexo um singular e

desnorteado exercício da «disciplinaridade com a sua já consagrada bateria de

prefixos»

3

(interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, inter alia), por tantos

apregoada, mas que fracassa na sua circunscrição conceptual, porventura

compreensível se anuirmos que

[o]s cultores das humanidades não têm esmorecido na sua actividade,

mas vão-se deixando dominar, não raro, por um paradoxal complexo,

ora de inferioridade, perante os saberes que estão na ordem do dia, ora

de superioridade, amaldiçoando as técnicas, como se de um subproduto

cultural se tratasse.

4

Na origem desta posição epistemológica desvela-se uma pressuposta

universalidade científica (i.e., um saber crido — e querido — único), cujo

acesso requereria, consequentemente, uma unidade na πράξις e no método

da sua inquirição, à qual corresponderia, em última análise, uma linguagem

2 “A Faculdade de Letras de Lisboa e a Universidade” (1991), in IE I: 591-92. Enquanto era

pro-ferida esta lição magistral, a Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa foi invadida por es-tudantes em protesto contra as políticas dos então dirigentes académicos.

3 “O Estatuto das Humanidades. O Regresso às Artes” (1993), in IE I: 552.

4 Ibid. Cf. «Os entusiastas da filosofia querem entender esta em termos específicos, irredutível aos

outros saberes, por a julgarem mais radical e universal do que estes, reservando o seu cultivo a atletas das profundidades ou das alturas. Não só não aceitam que a filosofia seja uma disciplina científica ou escolar como se indignam que ocupe, nas instituições, o mesmo lugar dos outros saberes, ditos cien-tíficos. [...] Não querem aperceber-se de que a filosofia é feita por gente que nasce, come, dorme e morre, sendo esse saber atingido radicalmente por todas as fragilidades que acompanham as obras dos mortais.» “A Filosofia nos Destinos das Culturas” (1999), in IE I: 280-1.

«ESTAMOS AQUI PARA FALAR.»

(7)

(μάθησις) universal (uma cartesiana ou leibniziana «mathesis universalis»)

5

.

Face à urgência da unificação do saber — uma urgência, per se, acentuada pelas

querelas entre as duas irreconciliáveis «ciências» —, fizeram-se experiências

de unificação, nomeadamente na área da filosofia. No mais recente século

transacto da sua história, assistiu-se, sobretudo no contexto de expressão

anglo-saxónica, à tentativa de forjar para a filosofia uma linguagem própria,

com atributos que ultrapassassem os defeitos d’ «a linguagem chamada

natural»

6

, viz. em resposta à suspeita instalada de que um grande número de

faltas de rigor é consequência das insuficiências das línguas naturais

7

. Uma

tensão já muito antiga, entre a carga e o seu veículo, entre o conteúdo e a

forma, entre a retórica — a arte de bem dizer, do discurso e da persuasão — e

a lógica — o instrumento de veiculação gramatical e de validade do processo

e das suas operações

8

.

5 Vd. «A alternativa entre ciências da natureza e ciências do espírito é inaceitável

epistemo-logicamente, constituindo mesmo uma falsa questão, cada vez mais denunciada, tornando-se, po-rém, uma questão grave quando se procura dissociá-las, na teoria e na prática, como se o desen-volvimento de uma dessas áreas pudesse ser indiferente ao exercício da outra. Com efeito, no âmbito do saber, argumentar com supremacias, alternativas e segregações equivale a entregar-se a um saber mutilado, ao arrepio da fundamental intencionalidade do saber que aponta para a inte-gralidade. [...] Essa ideia de saber único, que sempre alimentou a utopia da razão, em paralelo e articulação com outra utopia, a da mathesis universalis, a de uma linguagem única, encontra-se já suficientemente avaliada no seu grau de inviabilidade.» “A Faculdade de Letras de Lisboa e a Universidade” (1991), in IE I: 597-98.

6 «A linguagem chamada natural» (ou, em alternativa, «a chamada linguagem natural») é um

sintagma que aparece copiosamente na obra de Joaquim Cerqueira Gonçalves, o que espelha bem a centralidade deste τόπος e da relação absolutamente indissociável entre a filosofia e a (sua) linguagem na obra deste pensador. De entre todas as linguagens naturais, a língua de Camões ganha uma especial proeminência nesta mundivisão e, sem ela, o paraíso seria um lugar mais pobre, como escreveu o Padre Cerqueira e depois fez questão de nos alertar pessoalmente (“A Faculdade de Letras de Lisboa e a Universidade” (1991), in IE I: 601).

7 «Pretendeu-se mesmo inventar para ela [a filosofia] uma linguagem própria, onde não fosse

possível o erro, já que este derivaria, muitas vezes, da falta de rigor da linguagem. [...] A filosofia não tem linguagem específica nem dela carece, porque não há melhor linguagem do que a chamada lin-guagem natural. É com esta que se enriquece o discurso, a nossa visão da vida e do mundo.» “Filoso-far pela Rádio” (1998), in IE III: 241.

8 «[...] pois, já desde a Antiguidade, se verificou, nas ciências do Trivium, a tensão entre conteúdo

e forma, entre retórica e lógica, o que, fundamentalmente, redundava na conquista de uma maior formalização linguística possível. Trava-se, porém, menos do estudo da linguagem, dentro da sua própria esfera, do que de preocupações de outros saberes, que lutavam por uma linguagem-instrumen-to, de teor cientificista.» “Metáfora. Uma Fénix Renascida da Literatura Ocidental” (2008), in IE I: 603; cf. “Línguas Estrangeiras nos Cursos Superiores de Humanidades” (s/d), in IE I: 647-53. De um dito de Cerqueira Gonçalves — que aqui registamos — consta uma interessante tese acerca da história da filosofia: «Só há dois tipos de filosofia: a antiga e a moderna (que começa com o Cristianismo).»

(8)

393

Enquanto que, num primeiro momento, a sofisticação da linguagem é

uma consequência da premente necessidade de desenvolvimento de

instru-mentos que permitam uma posterior autonomização disciplinar, após a sua

emancipação essa demanda da sofisticação linguística, enquanto um fim em si

mesmo, é pervertida até à sua completa artificialização, metamorfoseando-se

em objecto e conteúdo mesmo da ciência, e não num seu meio. Na tentativa

de assassinato da linguagem natural — no contexto das humanidades —,

que é intentado sempre que se tenta desligá-la do mundo ao qual se encontra

indelevelmente unida, o limitado mundo da linguagem nascida do tubo de

ensaio circunscreve-se somente ao laboratório que a gerou, em detrimento

da realidade, do mundo — como se fosse possível expurgar a filosofia da sua

ligação ao real, quando se pretende uma filosofia autónoma e auto-suficiente,

porventura uma espécie de artificialidade sem filósofos, não mais susceptível

à mortalidade destes.

«Sempre a filosofia, tantas vezes navegante desse oceano que a linguística

é, a ponto de, não raro, com ela se identificar, se sentiu pequenina diante

desse milagre da linguagem.»

9

A filosofia e as outras ramificações do saber,

ainda que aparentem encontrar-se de costas voltadas, podem abandonar as

suas resistências mútuas, se falarem uma metalinguagem, ainda que essa não

seja a metalinguagem que, à partida, se poderia esperar.

Mas, para que este recíproco encontro [o da filosofia com os outros

saberes] seja possível, há que falar a mesma linguagem. Não que seja

necessário inventar uma linguagem artificial — uma metalinguagem —,

aceite por todos numa espécie de acordo formal. A verdadeira e

irrecu-sável metalinguagem é, para esse efeito, a linguagem natural. Dela todas

as outras partem, dela todas as outras necessitam, nem que seja para se

compreenderem a si próprias e de si falarem, a ela todas regressam.

Para a mesma posição apontam as afirmações: «Quase tudo o que está na filosofia moderna, já estava mais ou menos explicitamente na filosofia medieval. [...] Não obstante a discordância de princípio com a divisão da história da filosofia em épocas, é preferível a divisão em duas épocas, antiga e moderna, marcada esta pelo legado bíblico cristão, à divisão em três épocas, antiga, medieval e moderna.» Apud Maria Leonor Xavier, op. cit., 89.

9 “Regressemos à Literatura. Palavras, Ideias, Coisas” (1984), in IE I: 559.

«ESTAMOS AQUI PARA FALAR.»

(9)

A verdadeira e almejada universalidade entrevê-se precisamente na chamada

linguagem natural, dizem-no

10

os escritos cerqueirianos. Se a linguagem dita

científica permite descrever um mundo cujos limites ela própria encerra, o

seu âmbito, por mais ambicioso que se lhe possa intentar outorgar, é

neces-sariamente adscrito e, ainda que mediatamente, esgotável

11

. A contrario, a

linguagem natural

12

ambiciona, a cada momento, a transcendência dos seus

próprios limites, não se confinando mas antes alargando a sua circunscrição,

de modo a não mais manifestar um mundo, mas sim, articulando e acumulando

a diferença (que não é subsumida por uma mesmidade transversal), constitui,

num processo progressivo e potencialmente interminável, «o mundo» — um

filosofema, um conjunto no qual se manifestam todas as possibilidades do

real (ou, como disse um célebre austríaco, «tudo aquilo que é o caso»)

13

. E

esta, portanto, é a linguagem da filosofia (e, lato sensu, das humanidades),

quando não se demite da sua tarefa e aceita a imersão no real, quando não

se exime do seu carácter poiético

14

, sem rejeitar a sua propensão para a

uni-10 Fazer Filosofia. Como e onde? (1990), in IE II: 120; vd. “A Filosofia e os Outros Saberes”, ibid.

112-17. Cf. “Filosofia e Literatura. Em Demanda da Unidade do Saber” (2006), in IE II: 123-135; “Filosofia e Literatura. Que Relações?” (2006), in IE II: 136-141; “Literatura, Filosofia e História” (2006), in IE II: 142-159.

11 Vd. «Esta construção do mundo faz-se sobretudo pela linguagem, pela chamada linguagem

natural. Enquanto a linguagem dita científica está feita para tecer um mundo determinado, antecipa-damente concebido, a linguagem natural vive dessa constituição progressiva de o mundo.» “Filosofia e Hermenêutica” (1991), in IE II: 14.

12 Uma outra discussão, assaz célebre, seria apurar se existem linguagens naturais mais favoráveis à

expressão e manifestação ontológicas: «As linguagens, ainda as humanas, são variadas, tornando-se ques-tão primacial saber qual delas dá mais facilmente acesso à linguagem ontológica ou, por outras palavras, qual delas dispõe de mais recursos para manifestar esta.» “Textos e Metatexto” (2000), in IE I: 581.

13 «Com efeito, no horizonte de tudo o que o homem é e realiza está a ideia-motivo de uma

tota-lidade organizada, o mais diferenciada e universal possível. Mas, enquanto uns ficam ao nível de uma totalidade possível, a de um mundo entre outros, o filósofo não se conforma com um mundo, mas reclama as características ontológicas de o mundo — o mais universal e diferenciado possível.» “Fi-losofia e Hermenêutica” (1991), in IE II: 13. Cf. «A linguagem é fundamentalmente articulação, for-mando discursos de unidades diferenciadas, em constante e histórico processo de abertura, rumo a um maior sentido. Antes de ser um sistema de signos ou uma dialéctica de conceitos, a linguagem traduz a própria vida das formas da realidade, sendo esta que determina a constituição dos sistemas linguís-ticos e lógicos, não obstante o risco de, ao passar pela mente humana, se cristalizar em formalizações lógicas e linguísticas.» “Textos e Metatexto” (2000), in IE I: 575.

14 «Nenhuma linguagem melhor do que a natural, devido ao seu poder de articulação e de

acumu-lação progressiva de sentido, se mostra capaz de construir a mais rica topografia do mundo, cumprin-do, assim, a trajectória fundamental deste. Essa plasticidade da linguagem natural funde-se com o poder de o ser humano se distanciar, pela razão, vontade e imaginação, do imediato, das configurações dos mundos feitos, para gizar um projecto de mundo mais rico, onde aliás integra as instâncias de

(10)

395

versalização — na qual coexistem a unificação e a diferença — e na qual a

estrutura da acção humana

15

e a unidade d’ o mundo são pressupostos unitivos

e indispensáveis.

Nem as coisas se integram no mundo, se não passarem pelas ideias e

pelas palavras, nem estas e aquelas têm consistência, se não se reificarem.

A filosofia tem, pois, conteúdo, o das coisas, das ideias e das palavras,

organizando-se em texto, melhor dito, em obra, para que, nesta, possa

ter as dimensões da exigência de o mundo. [...] Trata-se de facto, de um

processo, mas que parte de algo feito, a fim de o sentido deste ser levado

a uma ulterior e superior expressão. A filosofia é, por isso, textualização,

mas esta é, por sua vez, intertextualização e contextualização.

16

Enquanto produto de um processo de feitura, enquanto resultado de um

sistema de linguagem — nomeadamente escrita

17

— em devir, qualquer texto

recém-nato assinala e inaugura uma cisão com o mundo no qual nasceu e do

qual partiu (uma diferença ontológica), uma ruptura poiética que permite a

constituição de algo novo, de uma realidade outra, que expande esse mundo,

o qual não é já o mesmo — é um outro mundo, o desse texto, através do qual

onde partiu. É somente atendendo a esta capacidade que se pode falar do mundo, o qual supõe uma constante dinâmica de alteração qualitativa, para uma intensificação de sentido.» Fazer Filosofia.

Como e onde? (1990), in IE II: 74. Cf. «É que a linguagem natural não existe para transaccionar

va-lores disponíveis, mas para criar vava-lores novos. [...] Nenhuma mathesis universalis conseguiu ir tão longe como a linguagem natural, devido ao facto de esta enformar a racionalidade de um mundo mais universal. [...] Um saber cuja racionalidade é a única insubstituível.» “A Faculdade de Letras de Lis-boa e a Universidade” (1991), in IE I: 593-94.

15 «Mais do que diluir a acção em um conteúdo inerte, trata-se, antes, [...] de ver a acção como um

conteúdo significativo, onde a estrutura das diferenças e a tendência global para um excesso de reali-dade imprimem uma dinâmica indeclinável. Designamos esse resultado por mundo, no qual se mani-festam as possibilidades do real, que constituem, afinal, a verdade.» Fazer Filosofia. Como e onde? (1990), in IE II: 69.

16 “Filosofia e Hermenêutica” (1991), in IE II: 14. Cf. «Há mesmo boas razões para ver as

pala-vras como inscrições das formas do mundo e até de tomar a escrita por modelo de toda a palavra.» “O Estatuto das Humanidades. O Regresso às Artes” (1993), in IE I: 557.

17 «Não obstante a supremacia que a retórica ocidental tem dispensado à oralidade, aproximada

geralmente da função comunicativa da linguagem, e não obstante ainda as múltiplas e desencontradas interpretações que acompanham o fenómeno da escrita, este parece oferecer possibilidade mais envol-ventes do que as da oralidade, para manifestar, construir e fixar a unidade diferenciadora do real.» “Textos e Metatexto” (2000), in IE I: 578.

«ESTAMOS AQUI PARA FALAR.»

(11)

se desmultiplicam e se criam novos sentidos n’ o mundo

18

. No pensamento

de Cerqueira Gonçalves encontramos uma defesa da indesmentível

prima-zia do texto, visto que este se encontra intimamente ligado aos esquemas

de inteligibilidade humana e às «formas e orientações do próprio ser»

19

,

na medida em que é a reificação e a materialização do próprio ser, do qual

o mundo é expressão exemplar. Mais do que um mero instrumento ou um

objecto de estudo de certas disciplinas, o texto é dotado de uma autonomia

que se torna disciplinarmente transversal e de uma potencialidade tal que,

se for devidamente considerada, o converte de objecto a sujeito mesmo da

ontopoiese e da mudança.

«A filosofia não constrói; a filosofia descobre.»

20

O caderno de encargos

da filosofia dilata-se ainda mais, porque a constituição do mundo — a soma

da miríade dos (seus) sentidos —, encontra-se ancorada na realidade da qual

esta parte, e é a própria tarefa de mediação do ser, i.e., a própria filosofia, que

constitui e realiza «a mais radical intencionalidade ontológica»

21

. «A filosofia

18 «O mundo é a expressão de sentido do sentido do ser, na fecundidade do tempo, é a

manifesta-ção da disponibilidade do ser, é a vida da razão.» Fazer Filosofia. Como e onde? (1990), in IE II: 69-70. Cf. «A hermenêutica moderna, herdando embora características importantes da hermenêutica antiga, deve fundamentalmente a sua especificidade à alteração da posição da instância

sujeito-objec-to, considerando-a não ponto de partida insuperável, mas, antes, plano derivado, que tem no ser-no--mundo o seu solo e alimento. Mais do que simples estratégia, a hermenêutica participa, assim, da

acção essencial do real, é mesmo a actividade privilegiada de desenvolvimento do sentido deste. Tal foi o caminho que possibilitou não só a identificação entre filosofia e hermenêutica como também a atribuição imprescindível de um conteúdo à primeira.» “Filosofia e Hermenêutica” (1991), in IE II: 12-13 e “Filosofia — Uma Hermenêutica”, in Fazer Filosofia. Como e onde? (1990), in IE II: 86-105.

19 «O texto será, então, a expressão — a materialização —, não apenas da grelha da inteligência

humana, mas sobretudo das formas e orientações do próprio ser, pelas quais, aliás, o mundo da mente é determinado. Não se trata já da vitória da cultura sobre a natureza, da racionalidade sobre a anima-lidade, da alma sobre o corpo, mas da manifestação das possíveis formas de ser que encontram, no ente humano, uma expressão e também uma possibilidade, não só de realização desse ente, mas, nele e em relação com os outros, de toda a realidade.» “Textos e Metatexto” (2000), in IE I: 576. Cf. «Des-locada a majestade da palavra, de princípio originário para horizonte concreto, torna-se mais fácil compreender como todo o discurso tende a polarizar-se numa palavra única, onde habite toda a vida de um mundo, a tal palavra que o poeta desejaria proferir — apenas essa — e na qual tudo cintile.» “Regressemos à Literatura. Palavras, Ideias, Coisas” (1984), in IE I: 564.

20 Apud Maria Leonor Xavier, op. cit., 67.

21 «Não só a actividade filosófica é essencial à constituição do mundo como será também nas

exigências do mundo a constituir pela filosofia que se realiza a mais radical intencionalidade ontoló-gica. Se, neste contexto, parece fácil integrar a filosofia na dinâmica de manifestação do real, pruridos e tensões entre os mais diversos saberes levantam reservas a essa função decisiva e específica da filo-sofia, nessa tarefa de constituição do mundo.» “Filosofia e Hermenêutica” (1991), in IE II: 13.

(12)

397

é ontologia.»

22

Tendo em conta este quadro, aproximamo-nos, agora, de uma

das passagens mais audazes deste pensador.

Há que afirmá-lo sem hesitações: a filosofia é literatura, tomando esta

como a manifestação mais conseguida da linguagem, por valorização dos

recursos dela. Se a literatura optimiza as potencialidades da linguagem, o

mesmo é dizer, de manifestar o sentido do real, na constituição do mundo,

muito melhor o pode fazer a expressão filosófica dela, pois é sua tarefa

levar às últimas instâncias a trajectória do sentido. É por isso que o fazer

da filosofia se inscreve intencionalmente no fazer da linguagem, podendo

esta esclarecer aquele em muitos aspectos.

23

Prima facie, poderá parecer que descobrimos a posição do autor na

celebérrima disputa renascentista do paragone, i.e., no debate acerca da

precedência de uma disciplina no âmbito do sistema das artes; pelo

con-trário, não só esta posição que (re)conduz — mas não reduz — a filosofia

à literatura não retira qualquer dignidade ao trabalho filosófico, como não

se trata de um elogio ou de um partidarismo particular em favor da arte

literária. Tendo em conta a indiscutível importância reconhecida à

lingua-gem natural, uma vez que a melhor expressão do sentido se realiza in toto

no devir do texto, é a literatura que detém os melhores instrumentos para o

seu exercício, por outras palavras, é no texto literário que a potencialidade

de condução do sentido atinge a sua máxima ampliação. E por isso, «[n]

o seu sentido, a literatura liquefará homem-mundo, matéria-espírito, bem

22 Apud Maria Leonor Xavier, op. cit., 108.

23 Fazer Filosofia. Como e onde? (1990), in IE II: 74 (itálicos nossos). Cf. «A melhor expressão

de sentido realiza-se na linguagem, sendo ele essencialmente linguagem, concretizando-se a mais apurada intencionalidade de sentido no texto literário, no qual a própria filosofia se exprime. Contudo, da mesma forma que, por vezes, se verifica a relutância em inserir a filosofia na cultura, igual resis-tência se regista na tentativa de aproximação entre literatura e filosofia, como se esta não pudesse ser classificada entre os conteúdos daquela.» “A Filosofia nos Destinos das Culturas” (1999), in IE I: 284; «Sem se pretender evocar a clássica polémica sobre a rainha das artes, temos de convir no relevo da literatura entre as diversas expressões artísticas, mesmo que se lhe recuse o ceptro. Devido às carac-terísticas discursivas que dinamizam a linguagem natural, é a literatura que revela maior capacidade para conduzir o sentido, que está no horizonte de todas as artes, ao seu expoente mais elevado, além de ser por ela que, em boa medida, a cultura, uma das raízes do sentido, chega a todas as artes, para não falar do recurso que estas fazem da linguagem natural para falar de si próprias.» “O Estatuto das Humanidades. O Regresso às Artes” (1993), in IE I: 557-58.

«ESTAMOS AQUI PARA FALAR.»

(13)

como palavras-ideias-coisas, pois é, nessa acção, que todos estes

ingre-dientes assumem forma»

24

.

Nota bene, deste argumento não se segue que, em abstracto, o escritor

seja melhor que o filósofo mas antes que será aquele que tiver actualizado

maior arte na expressão do sentido que será capaz de maximizar a expressão

do sentido; por isso, não faz sentido discutir se Platão era, na verdade, um

prosador ou um filósofo, ou se Platão é melhor do que Proust — interessa,

sim, apurar se a sua prosa foi capaz de trabalhar eficazmente o sentido, por

outras palavras, se sucedeu nessa «tarefa levar às últimas instâncias a

trajec-tória do sentido». «A filosofia é literatura, antes de ser filosofia. [...] Não há

género literário filosófico, há filosofia em todos os géneros literários. Nós

é que confinamos o género literário da filosofia a algumas obras. [...] Onde

há literatura, há filosofia. A filosofia é a grande expressão da literatura.»

25

Escreve ainda o Doctor Fidelis (ou Generosus):

Herdamos, com efeito, os zelos da substituição da linguagem natural

pela linguagem científica, como se a primeira não fosse legítima e como

se a linguagem científica estivesse isenta de contaminações da linguagem

natural. A distanciação da filosofia relativamente à literatura confunde-se,

em muitos aspectos, com a necessidade de superação das dificuldades da

linguagem natural pelo apuramento da linguagem científica. Mas se esse

divórcio não tiver sentido e se, por outro lado, a linguagem da filosofia é

a natural, então a aproximação que hoje se procura entre filosofia e

lite-ratura traduz a reposição de uma situação que indevida e artificialmente

se perturbou.

26

24 “Regressemos à Literatura. Palavras, Ideias, Coisas” (1984), in IE I: 561 (corrigimos uma

gra-lha que se encontra no original). Cf. «Com efeito, a filosofia, além de se exprimir na chamada lingua-gem natural, corporiza-se no texto literário, sem que lhe seja exigido um género literário específico. Por isso mesmo, os textos serão filosóficos, não pela linguagem ou mesmo pelo estilo, mas antes pelas características do conteúdo, que tem de ser aí de sentido máximo.» “A Filosofia nos Destinos das Culturas” (1999), in IE I: 287.

25 Apud Maria Leonor Xavier, op. cit., 69.

26 “Editorial”, Philosophica 9 (1997): 4 [este texto não consta em IE]; cf. «Num esforço de

sínte-se e pressupondo diversas mediações implícitas, dir-sínte-se-ia que toda a filosofia é literatura, mas nem toda a literatura é filosofia, ainda que para esta, eventualmente, tenda. […] Conscientes da polissemia do termo, diríamos que a literatura é preenchida pela melhor expressão da linguagem, realizado-se nela a intencionalidade e a dinâmica da linguagem natural, no seu rumo de elaboração de sentido. Não se vê razão para excluir a filosofia do foro da literatura.» Ibid. A título de ilustração, veja-se, ainda, a posição de Carmo d’Orey (em “Filosofia e Literatura”, in Poiética do Mundo [op. cit.], 593-608) e o debate desta questão nos textos de Isabel Matos Dias, Maria Fernanda Henriques e Manuel Cândido

(14)

399

A operação do pensar, exercício distintivo do ser humano — que se

en-contra sublimemente, de entre as várias actividades possíveis, no filosofar

—, traduz-se numa única realidade dinâmica — à qual Cerqueira Gonçalves

chama de mundo — que se desdobra e desmultiplica nos seus sucessivos

processos (unificações, diferenciações e universalizações). Não há uma

razão pura, mas antes uma realidade com sentido, da qual a racionalidade

é manifestação — uma razão que é simultaneamente universal e concreta

27

.

E a cultura é «a constituição histórica de uma totalidade organizada», que

enforma (e informa) o quadro — de sentido — determinante na inteligência

da realidade — com sentido —, decisivo para a situação consciente do ser

humano numa escala ontológica e num panorama ético, mormente através

da organização axiológica que desvela no mundo e mediante a superação

do confinamento ao domínio da sensibilidade pelo exercício dessa mesma

razão

28

. Ao eixo filosofia—literatura soma-se, assim, um terceiro elemento,

a cultura, enquanto linha de horizonte que percorre todas e quaisquer

mani-festações da racionalidade humana, panorama sine qua non da cosmovisão

e do entendimento da realidade

29

.

Pimentel integrados neste Florilégio Medieval. Primavera 2016 — Itinerários Filosóficos com

Joa-quim Cerqueira Gonçalves.

27 Vd. «A razão não é substantivo, mas adjectivo: a realidade é que é racional; a razão não existe.»

Apud Maria Leonor Xavier, op. cit., 80. Cf. «O pensar, nos termos que advoga, é uma dinâmica que

distende e constrói sentido, no marco de uma co-operação com as realidades que se nos oferecem e é mister sondar, com vista a libertar, desenvolver e realizar um potencial que albergam, num propósi-to assumido de, pelo aprofundamenpropósi-to do múltiplo (inclusive, na sua riqueza diferenciada de singula-ridade), aceder unificadamente a uma verdadeira universalidade concreta de que a razão se constitui, do mesmo passo, como obreira.» José Barata-Moura, op. cit., 37.

28 «Por cultura queremos entender a constituição histórica de uma totalidade organizada, em

cons-tante processo de unificação, de diferenciação e de universalização, a que chamamos mundo. É este exercício fundamental que consideramos constitutivo do ser humano, abrangendo, contudo, no seu processo, toda a realidade. É ainda, pela possibilidade dele, que atribuímos à humanidade a caracte-rística da inteligência. Esta traduz o grau de ser que o ente humano ocupa na escala ontológica.» “A Filosofia nos Destinos das Culturas” (1999), in IE I: 283.

29 Veja-se, por exemplo: «Toda a natureza é cultura. [...] O mundo é cultural. [...] O cosmo

desen-volve-se através da cultura.» (apud Maria Leonor Xavier, op. cit., 73) e a quase kuhniana afirmação «Costuma dizer-se: contra factos, não há argumentos. O contrário, porém, é que acontece: os factos que não se enquadram na nossa cultura, nós não os vemos.» (ibid., 73). Cf. «Essa unidade radical e fontal, determinante quer da cultura, quer da própria natureza, é o ser, que se manifesta, historicamente, numa infinidade de formas possíveis, nos mundos da cultura.» “Textos e Metatexto” (2000), in IE I: 573.

«ESTAMOS AQUI PARA FALAR.»

(15)

Posto isto, fica claro por que razão «é na arte que situamos o pólo de

uni-ficação da racionalidade de todos os saberes»

30

, se entendermos por artes,

numa acepção propositadamente vasta, todas as ciências ou disciplinas do

possível. Deste modo,

[...] enquanto a ciência reduz, artificialmente, o mundo à sua perspectiva,

a arte, pelo contrário, exprime o mundo no seguimento da intencionalidade

deste e na forma mais abrangente possível. Ou seja, a ciência determina,

autolimitando-se, a fim de poder operar sobre o campo escolhido; a arte

é uma acção, sem determinações prévias, abrindo o real dado na

determi-nação da obra criada. A ciência só poderá vir depois da arte, adaptando

aos seus intentos o mundo criado por esta.

31

As humanidades — e especialmente a filosofia — brotam da asserção da

impossibilidade de reduzir o mundo a um dado conjunto de objectivações;

as ciências, por seu lado, providenciam as lentes necessárias para focar o

particular e, por isso, para entender a realidade concreta das coisas. Diante

da encruzilhada em que hoje se encontram — quer porque nela se colocaram,

quer porque porventura se deixaram colocar —, as humanidades têm que

reafirmar o seu papel, num discurso que vá muito para além do advogar do

seu exercício desinteressado da razão, salutar e autonomamente resguardado

das mais plurais apropriações.

A arte da palavra, que não apenas e sobretudo a do verbo oral — para

formação de docentes, advogados e políticos —, pode transformar-se em

decisivo exercício de expressão de vida, admitindo-se que a avaliação

social das escolas de humanidades se torne mais viável com o regresso

da acção artística a elas.

32

30 “O Estatuto das Humanidades. O Regresso às Artes” (1993), in IE I: 553.

31 “Regressemos à Literatura. Palavras, Ideias, Coisas” (1984), in IE I: 562; cf. «A filosofia

exis-te porque a realidade não pode ser objectivada; a ciência exisexis-te porque pode ser objectivada. Os ob-jectos da ciência são a nossa redução do mundo e são também os ideais que nós temos das coisas.»

Apud Maria Leonor Xavier, op. cit., 75. A este propósito, recorde-se o célebre texto de C.P. Snow, The Two Cultures (Cambridge: Cambridge University Press, 201215 [1959]); cf. «Great is the power of

steady misrepresentation; but the history of science shows that fortunately this power does not long endure.» Charles Darwin, The Origin of Species […], 6th ed. with additions and corrections to 1872 (London: John Murray, 1876), 421.

32 “O Estatuto das Humanidades. O Regresso às Artes” (1993), in IE I: 558; cf. «No contexto

(16)

401

Face às tendências positivistas e cientificistas que invadem o

pensamen-to contemporâneo, contra a hodierna ilusão da tecnociência e a fé nos seus

progressos, as humanidades terão que reafirmar a dimensão — sobretudo

política

33

— da palavra, a não ser que queiram correr o risco de se

desliga-rem da realidade e de perpetuamente difundidesliga-rem discursos autofágicos sobre

quimeras; nesta era da alienação técnica, destituída de fundamento ontológico

e enquadramento ético, é com

34

a obra de Cerqueira Gonçalves podemos

des-vendar elementos decisivos para a fundamentação e para o exercício pleno

da vocação humanística. Até porque — e damos aqui o nosso testemunho de

um aforismo do frade menor — «não há nada sobre que não se possa pensar».

é constitutivo da manifestação da existência humana, porque esta metamorfoseou-se no perfil do ci-dadão, a que a natureza humana foi reduzida. [...] Nunca, porém, o texto logrou tal grau de importân-cia, como no contexto da cidadania, que encontra, sobretudo no texto jurídico, tanto a sua fundamen-tação como a sua expressão. Paradoxalmente, o que impediu uma noção constitutiva de texto, na esfera da natureza humana e da vida humana, adensou a importância dele no âmbito da cidadania, a qual não teria sentido se não fosse sancionada pelo texto, ora científico, ora filosófico, ora jurídico, ora político. De facto, cidadão e texto são indissociáveis.» “Textos e Metatexto” (2000), in IE I: 570.

33 Sobre este tópico, veja-se Martha C. Nussbaum, Not For Profit: Why Democracy Needs the

Humanities (Princeton: Princeton University Press, 2010), sobretudo as pp. 25-26; vd. ainda

Frederi-ck Luis Aldama, Why the Humanities Matter: A Commonsense Approach (Austin: University of Texas Press, 2008), Manuel J. do Carmo Ferreira, “As Humanidades em Regresso: A Memória como Expe-riência”, Gaudium Sciendi 8 (2015): 16-26, Albrecht Classen, “The Role of the Humanities Past and Present: Future Perspectives Based on Ancient Ideas. Reflections by a Medievalist”, Alfinge 24 (2012): 9-30 e Stefan Collini, What Are Universities For? (London: Penguin Books, 2012).

34 «[...] pensar é sempre pensar com...» Apud Maria Leonor Xavier, op. cit., 67.

«ESTAMOS AQUI PARA FALAR.»

Referências

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