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Meu Mal, Meu Bem, Meu Zen: o individuo(alismo) moderno como um desafio à s teodicéias

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CAROLINA TELES LEMOS

Resumo: o presente texto apresenta uma análise sociológica da percepção do mal na atualidade. Visamos descobrir qual compreensão do mal se faz presente no imaginário das pessoas e como as pessoas experienciam e re-solvem os seus males. Partimos do pressuposto de que, para as pessoas, o bem é a vida longa e plena. É a garantia desse bem que as pessoas buscam permanentemente na religião. Sendo assim, quando os crentes percebem uma grande discrepância entre a promessa de garantia desse bem e a experiência cotidiana do mal, faz-se necessário uma explicação plausível para tal fenômeno. Perguntamo-nos, então: que reivindicações estão subjacentes às concepções do mal destacadas pelas pessoas entrevistadas? Estariam as tradicionais teodicéias se ressignificando? Que teodicéias es-tão respondendo melhor à queses-tão do mal na atualidade?

Palavras-chave: concepções de mal, teodicéias, cotidiano, religião. MEU MAL, MEU BEM, MEU ZEN:

MEU MAL, MEU BEM, MEU ZEN: MEU MAL, MEU BEM, MEU ZEN: MEU MAL, MEU BEM, MEU ZEN: MEU MAL, MEU BEM, MEU ZEN: O INDIVIDUO(ALISMO) MODERNO O INDIVIDUO(ALISMO) MODERNO O INDIVIDUO(ALISMO) MODERNO O INDIVIDUO(ALISMO) MODERNO O INDIVIDUO(ALISMO) MODERNO COMO UM DESAFIO ÀS TEODICÉIAS COMO UM DESAFIO ÀS TEODICÉIAS COMO UM DESAFIO ÀS TEODICÉIAS COMO UM DESAFIO ÀS TEODICÉIAS COMO UM DESAFIO ÀS TEODICÉIAS

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presente texto visa realizar uma análise sociológica da percepção do mal na atualidade. Para realizar tal tarefa, realizamos uma breve en-trevista com vinte pessoas enen-trevistadas aleatoriamente em diferentes espaços, no decorrer de suas atividades cotidianas. O Objetivo de entrevistar as referidas pessoas foi de verificar quais seriam suas con-cepções do mal e suas formas de enfrentá-lo1.

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Para o desenvolvimento de nossa análise, partimos do pressuposto de que, para as pessoas, o bem é a vida longa e plena. É a garantia desse bem que as pessoas buscam permanentemente na religião. Nesse sentido afirma Weber (1999, p. 279), as ações religiosas estão orientadas para este mundo, são realizadas “para que vás muito bem e vivas muitos e muitos anos sobre a face da terra” e, consequentemente as grandes religiões da humanidade têm gastado grande parte de suas energias buscando garantir a oferta desse bem. Sendo assim, quando os cren-tes percebem uma grande discrepância entre a promessa de garantia desse bem e a experiência cotidiana do mal, faz-se necessário uma explicação plausível para tal fenômeno. É aí que são construídas as teodicéias2 (WEBER, 1999, p. 279; 351ss).

A partir desse pressuposto, visando descobrir se essa perspectiva de com-preensão ainda se faz presente no imaginário das pessoas e como o faz, pensamos que a opinião destas sobre o que é o mal, como ele se apresenta na sociedade, como as pessoas experienciam e resolvem os seus males poderia ser uma porta de entrada no enfrentamento do tema. Perguntamo-nos, então: que reivindicações estão subjacentes às concepções do mal destacadas pelas pessoas entrevistadas? Estari-am as teodicéias se ressignificando? Que teodicéias estão responden-do melhor à questão responden-do mal na atualidade? Tentaremos encontrar respostas a essas questões ao longo de nossa análise.

A OFERTA DA GARANTIA DO BEM PELAS RELIGIÕES E A PRESENÇA DO MAL NA EXPERIÊNCIA HUMANA

Como afirmamos anteriormente, para a maioria dos seres humanos o bem é a vida longa e plena. Essa preocupação central nos seres humanos pode ser percebida pela simples observação do comportamento hu-mano. Se retrocedermos no tempo e no espaço e estudarmos cultu-ras e povos antigos, temos a impressão de que o ser humano sempre abominou a morte e com ela a doença que faz lembrar que estamos sujeitos a morrer. Essa abominação é compreensível, afirma Kubler-Ross (2000, p. 6), pois para o inconsciente humano é inconcebível imaginar um fim real para sua vida. Portanto, se a vida tiver um fim, este será sempre atribuído a uma intervenção maligna fora de nosso alcance. Devido ao fato de ser inconcebível ao ser humano morrer de forma natural, este associa a morte em si a uma ação má,

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a um acontecimento medonho, a algo que em si clama por recom-pensa ou castigo.

No caso das informações obtidas em nosso campo empírico, o mal é perce-bido como aquilo que impede a plenitude da vida. Ao serem inqueridas sobre o que é o mal para elas, as pessoas entrevistadas responderam que o mal é a injustiça social: “a escassez de emprego, falta de oportu-nidade pras pessoas trabalharem, fome e miséria... Situações sociais que tiram a dignidade do ser humano” (Nestor); o preconceito: “por-que onde há preconceito existe desigualdade social. Assim, quando você vai numa área de saúde, por exemplo... eles te tratam mal, sabe? Querem exigir o seu nome de homem e você se sente constrangido por ser travesti e tem que falar no meio das pessoas” (Poliana); a

doença: “já aconteceram várias coisas pequenas, que por serem

nega-tivas podem ser consideradas como males, no entanto, algo muito triste foi o nascimento extremamente prematuro do meu filho, e o fato de ter permanecido em uma UTI Neo Natal por 20 dias, desen-ganado pelos médicos. Graças a Deus foi um mal superado e venci-do” (Jaqueline).

Como entender o mal na sociedade atual, e principalmente, como entendê-lo na perspectiva destacada pelas pessoas entrevistadas? Para respon-der a essa pergunta, vamos voltar um pouco atrás, no tempo, uma vez que essa questão não é nova , tem ocupado grande parte das dis-cussões teológicas e do pensamento religioso existente.

A filosofia, no que tange à questão do mal, tem como foco de sua investiga-ção a esfera do conceito, objetivando esclarecer o que seja o mal no tocante à sua origem, seu fundamento e suas várias designações, para, finalmente, definir especificamente o chamado mal moral que está restrito somente à esfera da ação humana. Tomamos como exemplo dessa postura os trabalhos de Kant, em sua obra “A religião nos limi-tes da simples razão” (s/d). Isto porque tal obra nos permite perce-ber, já de acordo com a perspectiva de nossa análise no presente texto, a relação entre a concepção do mal e a de indivíduo moderno. Kant toma o agente como alguém que usa o seu poder de escolha para

incorporar incentivos dentro das máximas que governam suas ações e declara que a liberdade do arbítrio é de natureza tão peculiar que não pode ser determinada à ação por nenhum motivo, “a menos que o homem a tenha admitido em sua máxima (que tenha estabelecido para si uma regra geral, segundo a qual quer comportar-se); é

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te desse modo que um motivo, qualquer que seja, pode manter-se ao lado da absoluta espontaneidade do livre arbítrio (da liberdade)” (KANT, s/d, p. 28-9). Embora se possa identificar nos seres huma-nos uma “propensão inata para o mal”, ou seja, um “fundamento sub-jetivo da possibilidade de uma inclinação (desejo habitual, concupiscentia), enquanto contingente para a humanidade em ge-ral” essa propensão pode ser considerada como contraída por erro do próprio ser humano (KANT, s/d, p. 33-4).

Portanto, para Kant, o mal não é um princípio original no homem, algo que faz parte de sua natureza sensível. Se assim fosse, o mal seria necessário, e o homem, então, teria uma essência maligna. Ao con-trário, o mal é considerado como uma possibilidade humana, uma contingência e, sendo assim, acha-se inscrito na sua liberdade. O bem e o mal são possibilidades humanas radicais, isto é, enraizadas na liberdade do homem, na liberdade radical que é o fundo de sua vida. Semelhante à filosofia, no caso do pensamento religioso, no que tange ao processo de elaboração de uma concepção do mal, um longo cami-nho foi percorrido. Aliás, esta temática se constituiu em um dos prin-cipais aspectos diferenciadores do cristianismo em relação ao gnosticismo. Segundo Estrada (2004, p. 102-4) para o gnosticismo, doutrina dualista por excelência, a polarização do mundo em bem e mal era existente desde o começo. Afirmava-se que Deus, pertencen-te ao mundo espiritual (portanto “bom”), cria sucessivos seres finitos chamados éons, e um deles (Sofia) dá à luz a Demiurgo, deus criador, que fez o mundo material (portanto “mau”). Se o mal está na maté-ria, a solução lógica para o mal é a libertação deste mundo, que se dá após sucessivas passagens da alma na terra (reencarnação). É por isso que, nas doutrinas gnósticas modernas, o corpo é invariavelmente visto como prisão do espírito. Assim, a solução para o mal no mundo é dada pelo homem, a partir do progressivo desenvolvimento espiri-tual, quando, tendo atingido um grau máximo de purificação, não mais precisa “rebaixar-se” ao mundo material.

Afirma o mesmo autor (ESTRADA, 2004, p. 115-24) que já no cristianis-mo, o mal não é criação de algum deus nem atribuído à matéria (criada e aprovada por Deus como “boa” em Gênesis), mas sim con-seqüência da vontade de autonomia do ser humano, que crê poder decidir entre o bem e o mal sem a participação de Deus. Afirma o autor que, para Santo Agostinho, uma das principais tragédias

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manas é que, apesar de diferenciar bem e mal, o homem não conse-gue por si só decidir-se sempre a favor do bem, pois sua autonomia é uma condição artificial, assim como o mal no mundo, que é tempo-ral e não absoluto. Os que reconhecem a necessidade de se arrepen-der desse desejo de autonomia (que é precisamente o pecado original) e recolocar Deus no centro de sua vontade para uma vida verdadeira são os salvos, que se valem do único meio de fazê-lo: o sacrifício de Jesus que, sendo Deus encarnado, pode levar embora todo o mal do mundo ao cumprir na cruz a morte que nos era destinada, reconcili-ando o mundo com Ele. Se a solução para o mal está em Deus, cabe ao ser humano a responsabilidade de colocá-lo no centro de sua vida para optar pelo bem e não pelo mal. Portanto, evitar o mal é uma responsabilidade divina, que conta com a adesão humana.

No caso de nosso campo empírico, sobre a origem do mal e a responsabili-dade pelo mesmo, afirmam nossos entrevistados que o mal é: “ape-nas uma faceta do humano. É da ordem das pulsões inconscientes do ser humano. O mal é também uma forma reducionista de nomear movimentos psíquicos inconscientes que de certa forma podem do-minar a pessoa” (Fulano Y); “o próprio homem. Trata-se de algo inerente à própria dimensão humana. Dialeticamente, o mal surge como um obstáculo para o exercício da liberdade humana. Um exemplo de mal: a violência física e simbólica” (Fulano W); “aquilo que dis-tancia o ser humano daquilo que ele compreende como felicidade, bem, realização, completude. Como nunca somos e talvez seremos, completos, o mal está em nós tanto quanto o bem. Vivemos a tensão do bem e do mal” (Fulano Z).

Independentemente de respostas mais elaboradas, como as que aca-bamos de expor, ou de respostas mais simples, como outras expostas neste texto, podemos perceber nas afirmações das pessoas entrevista-das, que as concepções sobre a responsabilidade pelo mal aproxi-mam-se tanto do pensamento kantiano como do agostiniano. É interessante notar que, embora haja a possibilidade de que as tradici-onais teodicéias possam estar povoando o imaginário das pessoas entrevistadas enquanto oferta de significados para a experiência do mal, foram muito raras as referências às mesmas em seus discursos. Afirma Weber (1999, p. 356) que a idéia de salvação começa sempre com o

ir bem (prosperidade econômica; garantia de vitória nas guerras; uma vida sem opressão, sem sofrimentos, com domínio do mundo e com

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prestígio social, sem sofrimentos físicos, psíquicos e sociais) e viver muito nesta terra (livre do desassossego e da transitoriedade sem sen-tido da vida, a liberação da inevitável imperfeição pessoal). Como esta promessa demora a se realizar (Deus não falha e os atuais viven-tes não querem perder a realização da promessa de Deus) surge a tendência a transformar-se em esperanças postas no além. Vale lem-brar que, no caso das pessoas entrevistadas, a centralidade da busca da salvação dos males experienciados se centrou no primeiro aspecto (momento) da salvação: o ir bem e o viver muito.

O MAL É O INDIVUDUO(ALISMO) MODERNO

Como afirmamos anteriormente, nossa pesquisa empírica revelou um des-locamento da concepção do mal em relação às teodicéias tradicionais próprias da cultura ocidental, tal como as descritas por Weber. Para as pessoas entrevistadas o grande mal é o individualismo moderno, ou seja, é as pessoas “quererem só pra si e não quererem ajudar os outros”.

Mas, o que é o individualismo? Segundo Dumont (1993), o individualis-mo é uma atitude que privilegia o indivíduo em relação à coletivida-de. Afirma o referido autor que quando se desbaratam os discursos globalizantes no seio de uma modernidade que repele o transcenden-te e as transcenden-teleologias, é o indivíduo que se torna valor supremo. Na mesma direção segue o pensamento de Lipovetsky (apud RUSS, 1999, p. 48), para quem o individualismo contemporâneo não designa mais um triunfo da individualidade em face de regras constrangedoras, mas a realização de indivíduos estranhos às disciplinas, às regras, aos constrangimentos diversos, às uniformizações. Esse é o sentido atri-buído ao individualismo, segundo as pessoas por nós entrevistadas, ao afirmarem que é nele que o mal está configurado.

Afirmam elas que o mal: “é algo que se engendra dentro de nós e que nos anuvia o olhar e os sentidos para o outro e para nós mesmos. Passa-mos ao estágio do mal quando, ao desejarPassa-mos algo, superaPassa-mos prin-cípios básicos de convivência, como a integridade física e moral do outro e a nossa própria” (Cristina); “é o contrário do bem, é a indife-rença, a falta de amor, solidariedade, atitudes grosseiras. Desobedi-ência dos filhos, falta de respeito, má educação, drogas, falta de tempo para com os filhos” (Natal); “é não apenas enxergar o mundo sob

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uma perspectiva absolutamente individualista e, porque não egoísta, mas também, negar ajuda a quem precisa e a quem você pode auxili-ar. Não creio que existam pessoas más, pelo prazer sádico de prejudi-car sem algum outro intuito, mas o verdadeiro mal é aquele que permeia a sociedade quando apenas os seus interesses são postos em evidência pelas suas ações, ignorando todo e qualquer indivíduo” (Angélica). As respostas das pessoas entrevistadas desafiam-nos a uma leitura da

per-cepção do mal conforme o pensamento kantiano e agostiniano, para quem o mal tem sua origem no erro humano, o qual só foi possibili-tado pela sua livre vontade. Afirma Estrada (2004, p. 116-121) que, para Agostinho, a única participação de Deus é positiva e reside no fato de ter concedido ao ser humano a liberdade que Ele mesmo tem, ao tê-lo criado à sua imagem e semelhança. Como vimos pelas afir-mações das pessoas entrevistadas, a teoria agostiniana está muito próxima das concepções do mal presentes no imaginário das pessoas até nos presentes dias. Essa aproximação talvez se explique porque Agosti-nho explicita filosoficamente o que está implícito no relato bíblico dos primeiros capítulos do livro de Gênesis: a criação é boa, Deus é declarado livre de qualquer culpa, só o homem é culpado. A aproxi-mação entre as afirmações das pessoas entrevistadas e as concepções agostinianas e kantianas sobre a responsabilidade humana pelo mal fica mais evidente pelo fato de que, para a maioria dos entrevistados, a responsabilidade pelo mal é quase que exclusivamente do ser hu-mano. Segundo eles, Deus não cria nem deseja o mal, mas deixa o livre arbítrio. Portanto o mal é resultado de escolhas humanas. Sobre a responsabilidade pela existência do mal, afirmam elas: “eu creio

que existe o mal, o próprio satanás, mas as pessoas fazem o mal e culpam ao demônio. O mal (satanás) precisa de cooperadores para agir” (Natal); “mal é algo negativo, ou a privação do bem ou deteri-oração de algo bom. Intimamente falando, mal é a corrupção das coisas boas que Deus criou” (Jaqueline); “não penso que ele (Deus) tem muito a ver com isso. Trata-se de relacionamento entre seres humanos. Acredito que ter fé ou não nele não deixa uma pessoa mais ética, então isso depende da consciência e experiência de cada um. Contudo, às vezes, penso que ele tenta me mostrar que isso nem sempre prevalece colocando pessoas maravilhosas em meu caminho e não me deixando desistir” (Angélica); “as leis de causa e efeito fa-lam por si só. Deus não tem nada a ver com isso (o mal)” (Fulano X);

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“em minha opinião a idéia de Deus é concebida após a minha exis-tência. Portanto, somente a minha existência é responsável para a significação do mal” (Fulano Z); “deus não pensa, né, ele respeita todo o tipo de pessoas e se as pessoas pelo livre arbítrio elas praticam o bem e podem também praticar o mal, então eu acho que cada um responde pelos seus atos seja bom, seja ruim, então eu penso que Deus não pensa sobre isso. Ele respeita tanto o infrator como a víti-ma. Agora, isso é uma situação onde as pessoas responderão perante Ele” (Nestor).

A relativização da atribuição da responsabilidade do mal à divindade e a acentuada centralidade dessa responsabilidade ao indivíduo pode ser entendida à luz do pensamento de Norbert Elias (1994, p. 28). Para o referido autor a individualização é o aspecto de uma transformação social que ultrapassa o controle do indivíduo. O principal efeito da individualização é o isolamento e encapsulação dos indivíduos em suas relações de uns com os outros. Afirma o autor que

Existe hoje uma padronização muito difundida da auto-imagem que induz o indivíduo a se sentir e pensar assim: “Estou aqui, inteiramente só; todos os outros estão lá, fora de mim; e cada um deles segue seu caminho, tal como eu, com um eu interior que é seu eu verdadeiro, seu puro ‘eu’, e uma roupagem externa, suas relações com as outras pessoas.” Essa atitude perante si mesmo e os outros afigura-se inteiramente natural e óbvia àqueles que a adotam (ELIAS, 1994, p. 32).

A auto percepção do indivíduo moderno, tal como destacada por Elias, pode ser percebida no discurso das pessoas entrevistadas. Estas, ao definirem o mal, criticam essa auto percepção, afirmando que é exa-tamente essa centralidade no indivíduo que representa o grande mal na atualidade. Para elas o mal “é o oposto do bem, é o oposto do amor, do companheirismo, de fraternidade como eu disse no início [...] O mal é o fim de onde leva todo mundo ao dia de hoje: cada um vivendo a sua própria independência, todo mundo deixou de acredi-tar no sentimento, deixou de acrediacredi-tar nas pessoas, deixou de confiar nas pessoas, justamente por quê?” (Weslei).

Para Elias, no entanto, embora essa concepção de indivíduo pareça óbvia, a individualização não se dá sem tensões e conflitos entre “as ordens e proibições sociais inculcadas como auto-domínio e os instintos e

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inclinações não controlados ou recalcados dentro do próprio ser hu-mano” (p. 99). No caso das pessoas entrevistadas, o controle social é experienciado com muita dor e sofrimento. É o que explicita o se-guinte discurso, denominando o comportamento das pessoas em re-lação às diferenças sociais como falta de respeito e, portanto, como um mal: “mal é a falta de consideração com o próximo. Tudo o que você trata com falta de consideração, automaticamente você já vai partir para o mal. Você não respeita, você engana, você passa pra trás, tudo isso é agir com maldade” (Weslei).

A tenção entre o controle externo e os instintos humanos é muito intensa, afirma Elias, pois para os adultos da sociedade européia que já se encontra em um avançado estágio de internalização dos controles sociais, por exemplo, “para quem perde o controle, a ameaça vinda dos

outros é menos intensa, muitas vezes, do que a que vem de si mesmo” (p.

99). Nesse sentido é possível entender a dureza da experiência do desemprego relatada por este entrevistado como sendo o grande mal de sua vida, pois na atualidade, em uma cultura patriarcal como a nossa, qualquer pessoa ficar desempregada já é difícil, devido à ne-cessidade de sobrevivência, ainda se essa pessoa for um “chefe de família” o mal se torna muito mais grave: “demissão de uma empresa e ficar dois anos sem trabalho, desempregado. Situação angustiante, a gente se sente inútil por conta de muitos julgamentos, da sociedade e da família. Isso nos leva à perda de identidade, principalmente quando um homem e chefe de família não pode dar ao seu filho um yorgute quando ele lhe pede para comprar. Outro tipo de mal são as decep-ções com os colegas e chefe de trabalho” (Natal).

Tanto a causa como o resultado dessa tensão é uma concepção dicotômica da relação homem e sociedade, na qual a imagem do eu é concebida como igual ao intelecto e aos sentimentos que formam a natureza do indivíduo inteiro diferente e, via de regra, em contraposição à socie-dade. Tanto o eu interior como a sociedade são vistos como natural. O trato com as pessoas é visto como algo imposto de fora, como uma máscara ou uma capa disposta pela sociedade:

É esse conflito no interior do indivíduo, essa ‘privatiza-ção’ ou exclusão de certas esferas de vida da interação social, e a associação delas com o medo socialmente instilado sob a forma de vergonha e embaraço, por exemplo, que levam o indivíduo a achar que, ‘dentro’ de si, ele é algo que

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existe inteiramente só, sem relacionamento com os outros, e que só ‘depois’ se relaciona com os outros ‘do lado de fora’ (ELIAS, 1994, p. 32).

Para as pessoas entrevistadas, esse medo da vergonha e do embaraço pelo fato de não corresponder com as expectativas sobre elas depositadas as leva a uma reação, em forma de busca de qualificação profissional como forma de enfrentamento do mal: “então você tem que contor-nar isso com uma disposição trabalhista, uma disposição até... física também, né? De não estar se corrompendo ou se envolvendo com o mal” (Nestor); “eu fui, à medida do possível, observando e tentando buscar uma capacitação maior e entender o que era a empresa e qual o objetivo da empresa” (Juliana).

Para Elias o processo de individualização faz parte do espírito de uma época histórica que evoluiu desde a relação do indivíduo com a comunidade primitiva em que se tinha o ponto de vista do nós (ELIAS, 1994, p. 98-103). O surgimento do autocontrole foi se dando na medida em que as pessoas tornaram-se mutuamente dependentes, uma vez que conviver juntos sistematicamente exigia mais controle de cada um. Aliás, o autocontrole dos seres humanos, o controle da sociedade e o contro-le da natureza foram se dando de forma inter-dependente:

O controle da natureza, o controle social e o autocontrole compõem uma espécie de anel concatenado: formam um triângulo de funções interligadas que pode servir de padrão básico para a observação das questões humanas. Um lado não pode desenvolver-se sem os outros; o alcance e a forma de um dependem dos dos outros; e, quando um deles fracassa, mais cedo ou mais tarde os outros o acompanham (ELIAS, 1994, p. 116).

Foi a capacidade de controle sobre a natureza e depois sobre o próprio homem, primeiro externamente e depois internamente que liberou o ser humano para muitas outras tarefas impostas pela proteção à vida, pelo medo do desconhecido e pela insatisfação das necessidades mais urgentes no presente imediato, fator que, sem dúvida, contribuiu para a construção do indivíduo moderno, uma vez que “o processo de individualização que, no grande fluxo do desenvolvimento huma-no, é inseparável de outros processos, como a crescente diferenciação das funções sociais e o controle cada vez maior das forças naturais não-humanas” (ELIAS, 1994, p.116-7).

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Nas sociedades industrializadas o indivíduo deve escolher por si entre as muitas alternativas. Prática essa que se torna um hábito que se coa-duna com o sentimento de orgulho de ser independente e autôno-mo. Afirma Elias (p. 117-8) que o caráter diferenciado de uma pessoa em “relação a todas as demais torna-se algo que ocupa um lugar par-ticularmente elevado na escala social de valores. Nessas sociedades, torna-se um ideal pessoal de jovens e adultos diferir dos semelhantes de um modo ou de outro, distinguir-se – em suma, ser diferente” (p. 118). Nesse sentido, dá para entender a afirmação do entrevistado de que nem Deus é responsável pelo mal, ele próprio, na sua individua-lidade é o responsável, e, se algo de mal lhe acontece, só pode ser resultado de suas próprias atitudes: “eu acredito que Deus não deseja o mal, mas assim como o bem é um livre-arbítrio, o mal também é. Deus nos dá a liberdade de escolha, e determinadas escolhas nos le-vam a caminhos que nem sempre nos trazem o bem. Acho que de alguma forma eu colhi o que plantei em algum momento da minha vida. Não vejo como um castigo, mas como uma ordem natural das coisas” (Jaqueline).

No entanto, afirma Elias, essa liberdade vem acompanhada de um grau elevado de riscos para os indivíduos que devem buscar sozinhos a realização de seus anseios pessoais, pois

quer se aperceba disso ou não, o indivíduo é colocado, nessas sociedades, numa constante luta competitiva, parcialmente tácita e parcialmente explícita, em que é de suma importância para seu orgulho e respeito próprio que ele possa dizer a si mesmo: ‘Esta é a qualidade, posse, realização ou dom pelo qual difiro das pessoas que encontro a meu redor, aquilo que me distingue delas’ (ELIAS, 1994, p. 118).

Essa necessidade de diferenciação social exige do indivíduo deixar de lado as chances de felicidade em favor de metas de longo prazo. Para Elias (1994), é esse ideal de ego do indivíduo, esse desejo de se destacar dos outros, de se suster nos próprios pés e de buscar a realização de uma batalha pessoal em suas próprias qualidades, aptidões, proprie-dades ou realizações, que representa um componente fundamental da pessoa individualmente considerada.

Como resultado de um longo processo de aprendizado, nas sociedades alta-mente individualizadas “a pessoa não escolhe livrealta-mente esse ideal

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dentre diversos outros como o único que a atrai pessoalmente. Ele é o ideal individual socialmente exigido e inculcado na grande maioria das sociedades altamente diferenciadas” (ELIAS, 1994, p. 118). Des-ta forma o indivíduo atual, com a estrutura de uma personalidade individualizada vista como ideal socialmente exigido e inculcado, é o fruto de uma batalha aprendida e produzida por instituições sociais e experiências específicas. No entanto, as promessas de realização pes-soal a tal indivíduo não são satisfeitas pelas mesmas instituições que ensinam esse ideal. Como afirma Elias (1994, p. 119), “as probabili-dades de se chegar à consecução desses esforços em tais socieprobabili-dades são sempre ínfimas em relação ao número de pessoas que a buscam”. O que importa destacar nesse caso são as ofertas feitas ao indivíduo altamente individualizado, mas não cumpridas pelas instituições que a prometem. Ou seja, trata-se de “uma batalha pessoal aprendida, produzida no indivíduo por instituições sociais e experiências espe-cíficas, que, nesses casos, as instituições sociais não satisfazem”(ELIAS, 1994, p. 119).

A insatisfação devido às promessas não cumpridas acirra a competitividade entre os indivíduos, gerando ou alimentando uma “competição por oportunidades estimadas como valiosas e dignas de empenho segun-do uma escala social de valores pratica-mente desprovida de ambi-güidades”. Afirma o autor que essas oportunidades, por uma ou outra razão, permanecem inatingíveis para a maioria dos que as perseguem. Mas, “para os indivíduos que as alcançam, estão associadas a diversos tipos de recompensa, sejam eles o sentimento de realização, proprie-dade e poder, o de respeito e prazer, ou uma combinação de ambos” (ELIAS, 1994, p. 119). Na lógica dessa reflexão, não é de se estra-nhar que as pessoas entrevistadas atribuam a si mesmas a tarefa de solucionar o mal, uma vez que o retorno do reconhecimento social pode recair sobre elas. Dessa forma o enfrentamento do mal é enten-dido como sendo uma tarefa do próprio indivíduo que, com seu auto-aperfeiçoamento, passa a obter respeito: “a gente mesmo (supera o mal), uma proteção que se passa pra você mesmo, através de condi-ções onde as pessoas começam a te respeitar” (Nestor); “quando eu comecei a trabalhar eu entrei numa empresa que eu não sabia, eu não tinha conhecimento do que era a empresa, fui aprendendo aos pou-cos, apanhei muito, mas eu consegui ter um know how que é a ques-tão de hoje: o conhecimento que eu tenho” (Juliana).

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No entanto, o retorno do respeito esperado pelo fato de se ter “esmerado” na superação do mal, não é garantido. Afirma Elias que a própria construção da individualidade aliada à vivência desta em sociedade gera uma situação de conflito interno ao indivíduo, ou seja, a mesma sociedade que incentiva o indivíduo a, desde a infância, desenvolver um alto grau de autocontrole e independência, a distinguir-se dos outros por qualidades, esforços e realizações pessoais possui

rígidos limites estabelecidos quanto à maneira como o sujeito pode distinguir-se e os campos em que pode fazê-lo. Fora desdistinguir-ses limites espera-distinguir-se exatamente o inverso. Ali, não se espera que a pessoa se destaque das outras: fazê-lo seria incorrer em desaprovação e, muitas vezes, em reações negativas muito mais fortes. O autocontrole do indivíduo, por conseguinte é dirigido para ele não sair da linha, ser como todos os demais, conformar-se (ELIAS, 1994, p. 120).

O resultado dessa experiência é que o destino vira a discrepância entre os sentimentos de busca de realização ensinada e a não realização pro-duzida pela experiência objetiva (social). Essa experiência leva a uma concepção de que há uma discrepância entre o eu (indivíduo) e a sociedade (condições sociais), pois

o elevado nível de individualização ou independência pessoal e, não raro, de solidão, característico desse tipo de sociedade, que talvez seja até necessário para sua manutenção, muitas vezes não se harmoniza muito com a complexa rede de dependência-indevassável para o indivíduo-em que a pessoa se vê encerrada com um número crescente de seus semelhantes, em boa medida devido a suas próprias necessidades socialmente inculcadas (ELIAS, 1994, p. 124).

Um sinal dessa discrepância entre o eu (indivíduo) e a sociedade (condições sociais) pode ser percebido na fala das pessoas entrevistadas, quando estas narram sua decepção ao procurarem nas instituições sociais co-erência entre o que prometem e o que, de fato, oferecem: “fui na polícia e não adiantou nada... Eles falaram assim: há! esse horário também! você tá na rua... você tava querendo o que? mas, eu posso tá qualquer horário na rua, o “direito” deles é me defender” (Poliana). No entanto, afirma Elias (1994, p. 124), não existe o indivíduo acima ou abaixo da sociedade: ambos se produzem e se reproduzem e “a pecu-liar trama de independência e dependência, de necessidade e capaci-dade

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de decidir sozinho, por um lado, e de impossibilidade de decidir sozinho, por outro, de responsabilidade por si e obediência ao Esta-do pode produzir tensões consideráveis”. Os conflitos, resultaEsta-do e parte das relações entre indivíduo e sociedade são compreensíveis, uma vez que o desejo-necessidade de destacar-se e fazer parte, o sen-timento de participar e de estar descomprometido se misturam mui-tas vezes. Afirma Elias (1994, p. 124) que

a necessidade de se destacar caminha de mãos dadas com a necessidade de fazer parte. O sentimento de participar, de estar envolvido, muitas vezes se mistura com o de estar descomprometido, desligado- ‘que me importa tudo isso?’ E, como já foi dito, o objetivo de ser alguém único e incomparável é acompanhado, muitas vezes, pelo de não se destacar, e de se conformar.

No caso de nosso campo empírico, percebemos que a tensão fruto-parte da relação indivíduo e sociedade é percebida pelas pessoas entrevistadas quando elas tecem sérias críticas ao individualismo social e responsa-bilizam o indivíduo pelos males presentes na sociedade. E, como con-seqüência da concepção de que o mal é responsabilidade do indivíduo e não da divindade, a forma de resolução do mal, tanto aquele pre-sente na sociedade como aquele experienciado pelas pessoas entrevis-tadas é, na sua maioria, buscado na própria sociedade: nas instituições sociais, nas ciências, no aprimoramento técnico da pessoa humana, e não na divindade, ou seja, quem faz o mal que se responsabilize pelas conseqüências do mesmo ou por sua erradicação.

A SAUDADE DA COMUNIDADE

Como destacamos anteriormente, para Norbert Elias (1994, p. 24), na re-lação indivíduo e sociedade, não existe o indivíduo acima ou abaixo da sociedade: ambos se produzem e se reproduzem. Junto ao desejo de se destacar existe o desejo de estar inserido em uma sociedade. Destacar-se e fazer parte; sentimento de participar e de estar descomprometido se misturam muitas vezes.

Talvez seja esse sentimento, o do limite do indivíduo enquanto aquele que supre o ser humano em todas as suas necessidades, que traz consigo o desejo do retorno à comunidade. Ou seja, o mesmo indivíduo que

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tanto preza sua individualidade e a busca desenfreadamente, percebe os limites da mesma e volta-se a buscar algo do qual já ouviu falar, mas que nunca (ou quase nunca) teve a oportunidade de experienciar: a comunidade.

As respostas que seguem apontam em direção a esse sonho: “a sociedade de hoje apresenta-se muito individualista, atitudes individualistas; dis-tribuição desigual, situação caótica, sem solidariedade e sem atitudes de empatia. Ela é muito apática, indiferente. Talvez por conta da perda de confiança com os políticos. Sobra impunidade” (Jaqueline);”na minha visão, a sociedade atualmente se encontra em uma crise de valores e de princípios morais, éticos, humanos e espirituais. As su-cessivas manchetes nos jornais, nossas experiências diárias e mesmo os fatos da própria história evidenciam isso claramente. A humani-dade se encontra perdida e são muitos os caminhos que se oferecem, e muitas as soluções que se apresentam. Todavia, apenas uma constatação tem se tornado clara frente a todas elas: nenhuma foi capaz, e não tem sido, de resolver os problemas fundamentais que se colocam di-ante de cada um de nós” (Milton).

Pelas afirmações das pessoas entrevistadas, podemos perceber que a concep-ção do mal como sendo da responsabilidade do indivíduo apresenta-se mais como uma crítica a essa realidade que como uma supervalorização do individualismo atual. É uma espécie de lamentação porque hoje lhes cabe tal realidade: viver em uma sociedade individualizante. Essa percepção pode ser entendida à luz das afirmações de Gauchet (2002). Afirma o referido autor que estamos entrando em uma fase, na qual assistimos ao surgimento de uma “personalidade” contemporânea desconectada simbólica e cognitivamente do todo social. Um indiví-duo para o qual o conjunto da sociedade não faz sentido. Pela primeira vez na história, teria sido possível produzir um indivíduo que ignora que vive em sociedade, que não comporta um senso de responsabilida-de para com as regras sociais. O hiperindividualismo próprio da contemporaneidade conduz a um sentimento de não ser nada e de não estar em lugar nenhum.

Entendemos que a percepção de Gauchet (2002) sobre a relação in-divíduo e sociedade na contemporaneidade se confirma nas críticas subjacentes às afirmações sobre a centralidade do indivíduo apresen-tadas pelas pessoas entrevisapresen-tadas. O sonho e o desejo da comunidade expresso por elas está implícito nas críticas que fazem ao constante

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individualismo presente na sociedade e que por elas é experienciado como o grande mal na sociedade atual. Esse sonho pode ser entendi-do à luz entendi-do pensamento de Bauman (2003), sobre a comunidade. Afirma o autor que, a partir da ideologia que envolve esse termo, ou seja,

a partir da pré-concepção acrítica do conceito de comunidade, tal expressão nos remete sempre à idéia de uma “coisa boa”. Com base no pensamento de outros autores, afirma Bauman que a definição positiva a priori de comunidade traz presente a idéia de um “círculo aconchegante”, um agrupamento “distinto, pequeno e auto-suficiente”, relacionada ainda com a idéia de entendimento. A reivindicação de uma comunidade nos moldes dessa concepção está subjacente à seguinte crítica à sociedade atual apresentada por um de nossos entrevistados: “de uma forma geral... eu acho que a sociedade perdeu um pouco o vínculo com a família, que é amor, fraternidade, companheirismo, entre elas... Pra mim tá faltando muita coisa assim de família, coisas que, desde que eu me entendo por gente [...] é, desde criança, a gente vem falando de amor, de respeito, de educação dentro de casa, da família, isso hoje em dia tá faltando pra mim no meu ponto de vista (Natal).

Para Bauman, a referida concepção de comunidade tem por base a idéia de que ela é constituída por “um tipo de entendimento que precede todos os acordos e desacordos”. Esse entendimento seria um “senti-mento recíproco e vinculante” graças ao qual, na comunidade, as pessoas “permanecem essencial-mente unidas a despeito de todos os fatores que as separam”. Seria esse entendimento a “característica que separa a comunidade de um mundo de amargos desentendimen-tos, violenta competição, trocas e conchavos” (BAUMAN, 2003, p. 16). A carência desse entendimento é destacada nas seguintes críticas à socieda-de, levantadas pelas pessoas entrevistadas, ao afirmarem que “a soci-edade hoje se apresenta como um conjunto de pessoas seduzidas pelos bens do mercado, acreditando e defendendo os bens de consumo, sem se aperceberem das estratégias de dominação” (Fulano X); “uma sociedade mercantilista, aética, violenta, mas que em sua essência busca a felicidade. Em resumo: uma sociedade conflituosa e perple-xa” (Fulano Y).

Segundo Bauman (2003, p. 16), na referida concepção de comunidade se en-tende que as lealdades humanas, oferecidas e normalmente esperadas

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den-tro do “círculo aconchegante”, “não derivam de uma lógica social externa ou de qualquer análise econômica de custo-benefício”. Isso é precisamente o que torna esse círculo “aconchegante”: “não há espaço para o cálculo frio que qualquer sociedade em volta poderia apresentar, de modo impessoal e sem humor, como “im-pondo-se à razão”. O sonho do “círculo aconchegante” é realçado pelas pessoas entrevistadas,

quando estas afirmam que a prática da solidariedade é também uma forma de resolução do mal, pois, para eles, para vencer o mal preciso: “ser mais humano, pensar mais na pobreza, pensar mais nas pessoas carentes, né, ser gente... tranqüilo, pra poder proteger e ajudar quem precisa” (Antônia); “deixar de ser preconceituosa e aceitar mais a gente (Poliana); “tentar ser mais inteligente no modo de gastar o tempo que temos, prestando mais atenção na necessidade do outro e não se recu-sando a ajudar quando isso simplesmente não vai te prejudicar. Basi-camente, aprender a ser mais compreensivo, mais solidário” (Angélica). Bauman (2003, p. 16) critica essa concepção de comunidade, denominando-a de “imersão ingênudenominando-a ndenominando-a união humdenominando-andenominando-a – outrordenominando-a, quem sdenominando-abe, umdenominando-a condição humana comum, mas hoje somente possível, e cada vez mais, em sonhos”. Para Bauman (2003, p. 16) a concepção de comunidade como um círculo aconchegante é a razão por que as pessoas afetadas pela frialdade presente na sociedade “sonham com esse círculo mágico e gostariam de adaptar aquele mundo frio a seu tamanho e medida. Dentro do “círculo aconchegante” elas não precisam provar nada e podem, o que quer que tenham feito, esperar simpatia e ajuda”. Vejamos como esse sonho transparece na crítica dirigida à sociedade por

esta entrevistada: “quando o assunto é religião, me parece que as pes-soas estão muito preocupadas com suas necessidades e suas ambições mais imediatas, deixando para trás as coisas do espírito e valores como caridade, solidariedade, companheirismo, em prol de ações assistencialistas e que visam a uma resposta, ou seja, se vê, em escala macro, pouca caridade e solidariedade desinteressadas” (Angélica); Para Bauman (2003, p. 14-5), essa concepção de comunidade está fundada

tanto na mitologia grega quanto na bíblica, nas quais a idéia de para-íso está ligada à idéia de inocência, de pertencimento a um grupo sem interesses individualistas, um lugar em que se podia viver sem problemas, como no caso de Adão e Eva que “não tinham que fazer as escolhas das quais dependia sua felicidade (ou infelicidade)”. A perda desse paraíso está guardada em nossa memória; temos uma

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memória da felicidade que tínhamos e que não é mais passível de aceder e que se transformou em utopia, uma vez que

o querubim com a espada flamejante para proteger o acesso à árvore da vida - para advertir Adão e Eva e sua descendência de que nenhuma quantidade de trabalho ou de suor seria suficiente para trazer de volta a serena alegria despreocupada da ignorância paradisíaca; aquela felicidade pri-mitiva irremediavelmente perdida uma vez perdida a inocência

(BAUMAN, 2003, p. 14-5).

Afirma o autor que existe em nós, se assim podemos dizer, portanto, um saudosismo atávico que reproduz e reinventa, no conceito de comuni-dade, a idéia do paraíso perdido, em que o senso de pertencimento fazia-nos sentir-nos “dentro do ninho”, confortáveis e seguros. Trata-se de uma memória da felicidade que “viria a assombrar os descen-dentes de Adão e Eva, mantendo-os à espera, contra toda a espe-rança, da descoberta do caminho de volta” (BAUMAN, 2003, p. 15).

O investimento de energias na construção da sonhada comunidade é reivin-dicado no discurso deste entrevistado, quando ele destaca a forma ne-cessária de se superar o mal na sociedade: “eu creio assim que se você constitui uma família, se você desde o início você pega o seu filho, você começa a pregar o amor, você começa a falar das maravilhas da vida, você começa a mostrar o lado positivo da vida, entendeu? Auto-maticamente, você está extinguindo o mal, porque a gente nunca vai vencer o mal assim se debatendo de cara a cara com ele, né?” (Weslei). Porém, alerta Bauman (2003, p. 15), o reencontro do indivíduo com a sonhada comunidade jamais acontecerá, uma vez que a perda da ino-cência é um ponto sem volta. Tal como nos mitos grego e bíblico, tendo aprendido o significado da felicidade com sua perda, ter-se-ia que aprender, pela via mais difícil, a seguinte sabedoria: o propósito do reencontro com a comunidade “sempre lhes escaparia, por mais próximo (tantalizantemente pró-ximo) que lhes pudesse parecer”. No entanto, ou talvez mesmo por isso, se o sonho da comunidade é

inatin-gível, é que ele permanece povoando as mentes e as ações das pessoas, pois, retomando o pensamento de Hobsbawm, afirma Bauman (2003, p. 20) que “homens e mulheres procuram por grupos a que poderi-am pertencer, com certeza e para sempre, num mundo em que tudo se move e se desloca, em que nada é certo”.

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As pessoas entrevistadas destacam como, concretamente, perseguem em seu dia-a-dia a construção de uma comunidade, ou seja, de uma terra sem o mal do individualismo. O método destacado é o recurso ao diálogo: “pensar e sentir mais usando o diálogo como mediador des-te pensar e sentir” (Fulano Z); “quando eu des-tenho a oportunidade de falar com ela cara a cara, eu procuro estar falando como ela tá errada, do que é melhor pra ela, do erro que ela tá causando... que não é só pra ela, nem só pra mim. Porque todos os males que a gente deseja pro próximo, ele acaba sendo retrógrado, ele acaba voltando” (Weslei). A busca por comunidade, segundo Bauman (2003, p. 201), é cheia de con-tradições e são essas concon-tradições que inviabilizam a construção da comunidade. Isto porque ela vem articulada com a procura de iden-tidade e “ideniden-tidade significa aparecer: ser diferente e, por essa dife-rença, singular – e assim a procura da identidade não pode deixar de dividir e separar”. Como uma vida dedicada à procura da identidade é cheia de som e de fúria, as identidades individuais são muito vulne-ráveis e a construção das identidades ocorre de forma precária e soli-tária, esses fatores “levam os construtores da identidade a procurar cabides em que possam, em conjunto, pendurar seus medos e ansie-dades individualmente experimentados e, depois disso, rea-lizar os ritos de exorcismo em companhia de outros indivíduos também as-sustados e ansiosos” (BAUMAN, 2003, p. 21).

É essa esperança de alívio e tranqüilidade que torna a comunidade com que so-nham tão atraente. Ela ‘será impulsionada cada vez que acreditam, ou lhes é dito, que o lar comum que procuravam foi encontrado’. No entanto, para decepção dos individuos, quando encontrada, a comunidade realmente existente será diferente da de seus sonhos – mais semelhante a seu contrário: aumentará seus temores e insegurança em vez de diluí-los ou deixá-los de lado. Exigirá vigilância vinte e quatro horas por dia e a afiação diária das espadas, para a luta, dia sim, dia não, para manter os estranhos fora dos muros e para caçar os vira-casacas em seu próprio meio

(BAUMAN, 2003, p. 22).

Esse “engodo” em relação às experiências concretas de comunidade é desta-cado pelas pessoas entrevistadas quando estas afirmam que “vivenciamos hoje uma sociedade espetacularizadora. Uma sociedade que supervaloriza a imagem, o som, a tecnologia em detrimento da

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mensão humana” (Fulano W); “uma sociedade, generalizando, que está em crise. São diversas crises e tensões que se constroem nas dife-rentes realidades que se apresentam” (Fulano Z).

E, ainda mais, afirma Bauman que se a comunidade de entendimento co-mum por acaso for alcança-da, permanecerá “frágil e vulnerável, pre-cisando para sempre de vigilância, reforço e defesa” (p. 19). Por esse motivo as “pessoas que sonham com a comunidade na esperança de encontrar a segurança de longo prazo que tão dolorosa falta lhes faz em suas atividades cotidia-nas, e de libertar-se da enfadonha tarefa de escolhas sempre novas e arriscadas, serão desapontadas”. Mais do que com uma ilha de “entendimento natural’; ou um “círculo acon-chegante” onde se pode depor as armas e parar de lutar,

a comunidade ‘realmente existente’ se parece com uma fortaleza sitiada, continuamente bombardeada por inimigos (muitas vezes invisíveis) de fora e freqüentemente assolada pela discórdia interna. Trincheiras e ba-luartes são os lugares onde os que procuram o aconchego, simplicidade e a tranqüilidade comunitárias terão que passar a maior parte de seu tempo (BAUMAN, 2003, p. 19).

É a necessidade de combate a essa sensação de ilha sitiada que essa entrevis-tada evidencia ao denunciar os preconceitos sofridos em um dos es-paços que se apresenta à sociedade como comunitário, a escola. Afirma ela que é necessário “uma abordagem em educação nas escolas sobre o preconceito... Os professores em geral têm que reunir e ensinar a criança, desde criança, que somos pessoas diferentes apenas na op-ção, mas somos iguais... Eu acho na educação mesmo (infantil) deve-ria. Porque eu fui homo... eu nasci homossexual. Na infância... eu mesmo como homossexual dentro das escolas eu sofria o preconcei-to, mas não podia falar nada, eu tinha vergonha de falar com um professor que as crianças estavam tendo preconceito contra a minha opção sexual; nem era opção, mas a minha... o meu jeito de ser... Eles já viam que era uma criança diferente; eu sofri vários preconceitos...E eu acho que é por isso que eu nem quis concluir o ensino “superior” eu fiquei só na oitava série mesmo” (Poliana). Nesse sentido, comenta o autor, existe uma tensão entre a utópica e

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a promoção da segurança sempre requer o sacrifício da li-berdade, enquanto esta só pode ser ampliada à custa da seguran-ça. Mas segurança sem liberdade equivale a escravidão (e, além disso, sem uma injeção de liberdade, acaba por ser afinal um tipo muito inseguro de segurança). E a liberdade sem segurança equi-vale a estar perdido e abandonado (e, no limite, sem uma injeção de segurança, acaba por ser uma liberdade muito pouco livre (BAUMAN, 2003, p. 24).

Na medida em que a vivência em comunidade significa a perda da liberda-de, esse processo acaba gerando um dos dilemas mais significativos para compreensão das dinâmicas sociais da contemporaneidade, uma vez que “a segurança sacrificada em nome da liberdade ten-de a ser a

segurança dos outros; e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende a ser a liberdade dos outros” (p. 24). Paradoxalmente,

almeja-mos e resistialmeja-mos à segurança coletiva, em prol da liberdade individu-al. A complexidade desse paradoxo é compreensível, uma vez que a individualiza-ção foi, no que diz respeito aos valores humanos, uma troca. Os bens trocados no curso da individualização eram a segu-rança e a liberdade: a liberdade era oferecida em troca da segusegu-rança (p. 26). No entanto, ao se viver em liberdade, a insegurança se apre-senta como companheira cotidiana, uma vez que “o pacote de

liberda-de com segurança (ou, melhor, segurança através da liberdaliberda-de) não esta-va em geral incluído. Só estava disponível para um grupo seleto de fregue-ses)”. Com isso ocorre a manutenção do sonho da comunidade, onde

as promessas da liberdade com segurança se alimentam. “NOVAS” TEODICÉIAS

Já que a comunidade se apresenta como algo inascessível, há que se manter alguma forma de teodicéia, então a que tem mais chance de perma-necer é aquela presente e herdada da tradição cultural oriental, isto porque mantém articulada em seu seio a centralidade do indivíduo e o sonho da comunidade. Essa postura pode ser percebida nas afirma-ções das pessoas entrevistadas, quando elas dizem que (primeiramen-te buscam a ciência para enfrentar o mal): “num primeiro momento, procurei ajuda médica, pensando em uma enfermidade do corpo. Após uma série de exames físicos, (como nem todos os males são físicos, portanto do domínio das ciências ...) descobri que a questão

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era de ordem espiritual e psicológica. Daí, pude buscar o auxílio cor-reto (Cristina) (grifo da autora); “fiz várias coisas: levei para o divã com meu analista. Fiz também orações. Procurei fazer a epoche e compreender o ocorrido. E por fim, sofri profundamente” (Fulano Y); “a possibilidade de resolução do mal está na própria vivência em transcendência do mal como obstáculo” (Fulano W); (utiliza-se o recurso à divindade como forma de resolver o mal): “olha, na minha concepção, no meu ponto de vista eu oraria por essa pessoa [...] Eu sou daqueles que aprende que fogo não apaga fogo. Então quando uma pessoa te deseja o mal, você tem que pagar com o bem. E quan-do a pessoa deseja o mal ou tenta fazer o mal, tentar te prejudicar, hoje em dia tem muito esse tipo de coisa, eu procuro ta orando pra essa pessoa” (Weslei); “busquei ajuda espiritual. Creio que foi uma provação de Deus. Então Deus direcionou minha vida e minha com-panheira (esposa) foi muito próxima a mim, nesses momentos difí-ceis” (Natal); “tive fé, muita fé na providência de Deus. Orei muito, e acreditei cegamente que o Senhor não queria esse mal para mim” (Jaqueline).

Mas, para que a superação do mal aconteça, (a sociedade deve acreditar mais em Deus e no ser humano): “eles deveriam ter Deus no cora-ção” (Antônia); “a sociedade, no geral, ao se unir em atitudes de solidariedade, sem egoísmo e individualismo, poderia resolver esses males. Nos finais do tempo, o amor esfriará. Há muitas leis injustas. Eu acho que a sociedade precisa voltar ao primeiro amor de Deus” (Natal); “a sociedade precisa de orientação espiritual, precisa de es-colhas certas para os caminhos que levam ao bem. Precisa também acreditar na força do bem, assim como a cooperação de todos para que possa haver uma harmonia geral” (Jaqueline); “as pessoas deveri-am levar mais a sério seus compromissos para com Deus, para com o outro e para consigo mesmas, procurando não vilipendiar aquilo que lhe foi “emprestado” para o fazimento de ações e de pensamentos benfazejos” (Cristina).

A forma de relacionar a crença em uma divindade e a superação do mal em uma perspectiva que se aproxima das tradições e das teodicéias ori-entais não é novidade. Aliás, ela se faz tão evidente que, para alguns autores, atualmente está ocorrendo no ocidente um processo de ‘orientalização’, caracterizado pelo deslocamento da teodicéia tradi-cional por uma outra que é essencialmente oriental na sua natureza.

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Segundo Campbell (1997), qualquer que seja a ética a guiar a nossa conduta no século XXI, com grande probabilidade deverá estar con-soante com esta nova teodicéia emergente, pois o paradigma cultural ou teodicéia que tem sustentado a prática e o pensamento ocidental por cerca de dois mil anos está sofrendo um processo de substituição – e com toda probabilidade terá sido substituído, quando entrarmos no próximo milênio – pelo paradigma que tradicionalmente caracte-rizou o oriente (CAMPBELL, 1997, p. 5).

O principal aspecto dessa nova teodicéia consiste em uma relativização das antigas teodicéias destacadas por Weber. As antigas teodicéias repre-sentavam um “conjunto estritamente limitado de respostas possíveis que Weber atribuía à problemática da teodicéia, que é a explicação dos caminhos de Deus para o homem e, especialmente, a solução do problema do mal” (CAMPBELL, 1997, p. 6). A perspectiva weberiana partia do reconhecimento de que a religião primitiva tinha como centro um aspecto fundamentalmente mágico e animista na forma de resolver o mal. Essa perspectiva já vai apontando para a superação dessa teodicéia, pois uma vez que a sociedade alcançava um certo patamar de desenvolvimento, onde já era possível gerar uma riqueza excedente suficiente para sustentar uma classe sacerdotal, esta classe podia se dedicar a resolver o mal e, com isso, as crenças também se tornavam mais sistematizadas.

Para Campbell (1997, p. 6), na perspectiva das teodicéias orientais, as respos-tas sobre a relação entre o divino e o “mundo” podem ser formuladas de duas maneiras: “ou o divino era concebido como fundamentalmen-te imanenfundamentalmen-te, assumia-se, nesse caso, que infundamentalmen-terpenetrava o mundo coti-diano ou transcendente, nesse outro caso, representado como superior e separado do mundo cotidiano”.

No primeiro caso, está pressuposto que o divino é imanente em todas as coisas e é parte do mundo, incluindo a humanidade, desde a eterni-dade, enquanto no segundo é transcendente e, em conseqüência dis-so, fundamentalmente separado do mundo, controlando-o de cima, tendo-o criado ex-nihilo.

Retomando o pensamento de Weber, afirma Campbell que estas duas pres-suposições contrastantes são identificadas pelo autor com o princí-pio Brahman-Atman da filosofia religiosa indiana por um lado, e com o Deus criador Semita por outro; duas teodicéias contrastantes que, na visão de Weber, caracterizam as sociedades do oriente e do

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dente. O ponto de chegada da concepção weberiana, segundo Campbell (1997, p. 6), é de que, “uma vez que as teodicéias tomaram esta for-ma básica, há um processo de desenvolvimento cultural, ou “racio-nalização”, que teria conduzido a uma evolução através das gerações culminando nos sistemas logicamente fechados representados pela lei do karma por um lado e, por outro, pela predestinação calvinista”. Interessante notar que as respostas das pessoas entrevistadas, no relativamen-te pouco espaço dado à divindade enquanto responsável pelo mal e pela superação do mesmo, apresentam algo das duas tradições teológi-cas ao mesmo tempo. Vejamos nas respostas a seguir a ênfase dada à melhoria na condição humana como resultado da experiência do mal: “minha postura diante da vida foi absorver o mal como um trampolim para minha humanização” (FulanoX); “sim. Já vivenciei várias experi-ências do mal o que me fez mais humano” (Fulano Y); “tento agir de outro modo, tento fazer a minha parte e dar o exemplo, mostrar que ajudar pode ser a única atitude ética aceita, que não prejudica e desen-cadeia uma série de efeitos positivos. Contudo a tarefa é árdua e nem sempre possível” (Angélica); “entretanto, o grande mal que vivenciei, me transformou na pessoa melhor que sou hoje” (Jaqueline); “penso que, como participei de minha programação para esta passagem reencarnatória pelo Planeta Terra, Deus nunca me abandonou, estan-do ao meu laestan-do o tempo toestan-do e me iluminanestan-do, para, por meu livre-arbítrio, chegar à melhor solução para o meu mal” (Cristina). Desafia Campbell sobre a possibilidade de se pensar o despertar do

budis-mo no ocidente no século XXI cobudis-mo um dos elementos integrantes de um caminho do meio, uma terceira via possível entre as duas teodicéias apontadas acima: lei do karma e a predestinação calvinista. Afirma o autor que o budismo propõe uma dessacralização do eu através da Ãnatman “Doutrina da Originação Dependente”, uma proposta nova de descrever a individualidade nem sacralizada como estava pressuposto pelo pensamento Indiano, nem criada por um Deus criador como pressuposto pelo pensamento cristão. Ao realizar essa dessacralização do eu, destitui esta identidade Atman-Brahman do seu lugar de centro do universo, abriu uma nova via. Esta, quem sabe, auxiliada pelo ideal de Bodhisattva da tradição Mahayãna, pode ser um dos elementos para se construir uma ponte entre ocidente e oriente, hoje já não mais separados como pólos opostos, mas reuni-dos num todo globalizado e pós-moderno do século XXI.

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A tendência à incorporação das concepções orientais na forma de articular a concepção do mal e religião apresentada pelos entrevistados pode ser percebida nas afirmações seguintes. Ou seja, para esses entrevista-dos, a forma de superar o mal é o auto-aperfeiçoamento e o respeito ao ser humano e à natureza: “conhecer-se, isto é seu espaço psicoló-gico, seus conflitos, anseios etc, fazer consciente” (Fulano X); “viver intensamente a existência ímpar de cada sujeito, mas pautando-se pela responsabilidade” (Fulano W); “então, a sociedade – que somos todos nós – prá resolver a situação do mal da humanidade, é começar a respeitar o ser humano, a natureza, quer dizer, toda ação viva como uma forma de princípio fundamental da vida. E uma vez que isso é desrespeitado, o mal vai acontecendo, como o planeta, né, que as pessoas põem fogo no mato e atrapalha toda a situação equilibrada da natureza., e isso provoca o mal, então a sociedade pode fazer isso: começar a conscientizar as pessoas do respeito à vida” (Nestor). Campbell se propõe a centrar sua análise nos últimos séculos, uma vez que,

segundo ele, a análise de Weber vai até a reforma protestante. A partir daí, afirma Campbell, Weber apenas apresenta a formulação de uma hipótese geral, segundo a qual a religião declinaria em face às forças seculares da razão e da ciência. No entanto, nos últimos séculos (XVIII, XIX e XX) pode-se testemunhar um abandono progressivo da teodicéia ocidental destacada por Weber. No entanto a teodicéia calvinista não foi meramente atacada, como parecia assumir Weber, pelas forças da secularização, mas em grande medida por crenças alternativas, como o “Arminianismo”, por exemplo. Essas crenças, enfatiza Campbell, ten-deram a realçar o amor mais do que a justiça terrível de Deus, afirman-do que se homens e mulheres foram criaafirman-dos “à imagem de Deus”, também são naturalmente bons e amáveis (CAMPBELL, 1997, p. 6). É interessante perceber que a concepção de teodicéia destacada por Campbell se faz perceber no pensamento das pessoas entrevistadas, quando es-tas afirmam que “seria na forma acreditar mais em Deus, né, e acre-ditar no ser humano... Que hoje em dia não se acredita no valor do ser humano... Acredita mais é no que... Ah... No que eu quero, no meu individual, no individualismo e no capitalismo” (Juliana); “busquei superar a dor pela crença no bem: amor que existe em mim, nos outros e no mundo” (Fulano Z).

Do ponto de vista de Campbell, falar de “orientalização” não é apenas dis-cutir a introdução de idéias e valores religiosos do oriente, mas

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cipalmente referir-se ao processo pelo qual a concepção do divino, tradicionalmente ocidental, suas relações com a humanidade e o mundo, é substituída por aquela predominante no oriente. Afirma o autor que atualmente todos os itens de fé que compreendem a confissão Cristã na sua forma tradicional: a crença de que Jesus era filho de Deus, a crença em céu e inferno, e na concepção por uma virgem etc. são crenças minoritárias, aceitas por um pouco mais que um quinto da população. Sendo assim, não há como negar que “uma mudança significativa está ocorrendo, uma mudança que poderá significar a derrocada da teodicéia que tem dominado o pensamento Ocidental por dois mil anos” (p. 10).

IDEIAS CONCLUSIVAS

No processo de nossa análise, algumas idéias à guisa de conclusão podem ser apontadas. Uma delas é que, no caso das informações obtidas em nosso campo empírico, o mal é percebido como aquilo que impede a plenitude da vida, materializando-se em forma de escassez de empre-go, preconceitos, falta de oportunidades pras pessoas trabalharem, fome e miséria, situações sociais que tiram a dignidade do ser huma-no. Mas principalmente o grande mal é o individualismo moderno, ou seja, é as pessoas “quererem só pra si e não quererem ajudar os outros” e, para a maioria dos entrevistados, a responsabilidade pelo mal é quase que exclusivamente do ser humano.

Como conseqüência dessa percepção, a forma de resolução do mal, tanto aquele presente na sociedade como aquele experienciado pelas pesso-as entrevistadpesso-as é, na sua maioria, buscado na própria sociedade: npesso-as instituições sociais, nas ciências, no aprimoramento técnico da pes-soa humana.

Embora a maioria dos entrevistados faça alguma referência à intervenção divina tanto na forma de perceber o que é o mal, quem é o responsá-vel pelo mal e quem poderá solucionar o problema do mal, sempre que o faz, alterna a presença da divindade com as responsabilidades humanas por tais questões.

Sendo assim, o mesmo indivíduo que se constitui no grande vilão, o mal por excelência na atualidade, é também o grande convocado para a superação desse mal, ou seja, para a construção do bem, transfor-mando pessoas humanas e sociedade em situações e experiências zen.

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No entanto, a ênfase na centralidade do indivíduo não é apresentada como positiva. É, sim, muito mais, uma crítica às conseqüências que essa forma de estruturar a sociedade traz a si própria.

Entendemos, então, que a crítica subjacente à afirmação da centralidade do indivíduo, o individualismo moderno, apresenta-se como uma forte reivindicação ao retorno de uma comunidade. Comunidade essa que está mais presente no sonho, no imaginário das pessoas, que como parte de uma experiência já feita. Sendo assim, coerente com essa reivindicação e com a colocação da responsabilidade pelo mal e pela superação do mesmo imputada ao indivíduo e não à divindade, há uma seleção nas ofertas das teodicéias tradicionais. Ou seja, a forma de teodicéia que melhor convive com essa perspectiva é a que retém uma crença tanto na bondade da humanidade como na espiritualidade que liga a natureza do homem ao mundo natural, crença essa típica da cultura oriental.

Notas

1 Informamos que os nomes das pessoas são fictícios, visando manter o anonimato

das mesmas. Sendo assim, as pessoas entrevistadas foram: Nestor (auxiliar de secretaria escolar e presidente de uma ONG que tem como missão principal melhorar a qualidade de vida dos portadores do Vírus HIV, 44 anos, escolarida-de = Ensino Médio); Antônia (auxiliar escolarida-de limpeza, 52 anos, escolaridaescolarida-de = Ensi-no Fundamental incompleto); Juliana (auxiliar de administração, 32 aEnsi-nos, escolaridade = Ensino Superior incompleto); Poliana (travesti prostituta, 29 anos, escolaridade = Ensino Médio), Weslei (vigilante, idade não informada, escolari-dade = Ensino Fundamental); Fulano X (professor universitário); Fulano Y (ge-rente de banco); Fulano W (fazendeiro); Fulano Z (conferencista); Natal (auxiliar em Departamento Pessoal, 52 anos, curso superior); Angélica (gerente de marketing, 22 anos, curso superior); Cristina (professora, 40 anos, curso doutorado); Mil-ton (gerente geral, idade não informada, curso especialização). Desejaríamos in-formar sobre a religião dos/as entrevistados/as, mas houve resistência por parte da maioria deles/as quanto a essa informação. Agradeço aos doutorandos Sélcio de Souza Silva, Daniel Martins Sotelo, Ellwes Colle de Campos e Joselio Mendes Luz pela gentileza em me conceder as entrevistas por eles realizadas.

2 Trata-se da concepção de deus como imutável, onipotente e onisciente. Esta

con-cepção põe um problema: como o poder aumentado ao infinito de semelhante deus pode ser compatível com o fato da imperfeição do mundo que ele criou e

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governa? Afirma Weber que as soluções a este problema estão em íntima conexão com a formação da própria idéia de Deus e com as idéias de pecado e de salvação. São elas: referência a uma compensação futura neste mundo (escatologias messiânicas); a concepção de um além (almas que podem salvar-se e a idéia ética da retribuição dos bons e maus feitos concretos = juízo); concepção de um deus todo-poderoso que está além de todas as pretensões éticas de suas criaturas (predestinação); dualismo (jogo de forças entre o bem e o mal); doutrina do carma (transmigração das almas) (WEBER, 1999, p. 350-5).

Referências

BAUMAN, Z. Comunidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.

CAMPBELL, C. A orientalização do ocidente: reflexões sobre uma nova teodicéia para um novo milênio. Religião e sociedade, v. 1, n. 18, p. 5, 1997.

CAMPBELL, J. As máscaras de Deus: mitologia oriental. Tradução de Carmen Fischer. São Paulo: Palas Athena, 1994.

DUMONT, L. Essais sur l’individualisme: une perspective anthropologique sur l’idéologie

moderne. Paris: Seuil, 1993.

ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994. ESTRADA, Juan Antônio. A impossível teodicéia: a crise da fé em Deus e o proble-ma do proble-mal. São Paulo: Paulinas, 2004.

GAUCHET, M. La Démocratie Contre Elle-Même. Paris: Gallimard, 2002. KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. São Paulo: Escala, s/d. KUBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: M. Fontes, 2000. RUSS, J. Pensamento ético contemporâneo. São Paulo: Paulus, 1999.

WEBER, M. Economia e sociedade. Tradução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Bar-bosa. 4. ed. Brasília: Ed. da UnB, 1999.

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CAROLINA TELES LEMOS

Doutora em Ciências da Religião pela Umesp. Professora titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Católica de Goiás. Atua na área da Sociologia da Religião, priorizando os seguintes temas: religião, tradições cultu-rais, catolicismo, gênero, práticas de religiosidade popular e movimentos sociais.

Abstract: the present text presents a sociological analysis of the perception of the

evil in the present time. We aim to discover which understanding of the evil is present in the imaginary of the people and how the people experience and decide their evils. We start from the motive that for the people, the good is the long and full life. It is the guarantee of this good that the people search permanently in the religion. Being so, when the believers perceive a great discrepancy between the promise of guarantee of this good and the daily experience of the evil, a reasonable explanation for such phenomenon becomes necessary. We ask, then: what claimings are underlying under the conceptions of the evil detached by the interviewed people? The traditional theodicies could be in resignification? What kind of theodicies could give a better answer to the question of the evil in the present time?

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