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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Luciana Santos Silva

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Luciana Santos Silva

Bater em Mulher dá Cadeia!

Analise Sociocultural da Punição na Lei Maria da Penha.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Luciana Santos Silva

Bater em Mulher dá Cadeia!

Analise Sociocultural da Punição na Lei Maria da Penha.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais, sob a orientação da Professora Doutora Eliane Hojaij Gouveia.

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Banca Examinadora

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Bater em Mulher dá Cadeia!

Analise Sociocultural da Punição na Lei Maria da Penha.

Luciana Santos Silva

A presente tese objetivou analisar a efetividade dos aspectos criminais da Lei Maria da Penha, questionando-se se seus efeitos eram reais ou simbólicos no combate e prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher. A hipótese que foi confirmada é que seus efeitos são de cunho simbólico diante da cultura do expansionismo do campo penal. A pesquisa foi delimitada na comarca de Vitória da Conquista, Bahia, no período de 2006 a 2013 e se pautou em analise de processos judiciais, entrevistas, analise documental. Foi observado que o discurso penal não se efetiva diante das poucas sentenças condenatória.

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Beat up Wife is Arrested!

Analysis of Punishment in the Maria da Penha Law.

Luciana Santos Silva

This thesis aims to analyze the effectiveness of the criminal aspects of the Maria da Penha Law, it wonders if its effects were real or symbolic in combating and preventing domestic and family violence against women. The hypothesis that has been confirmed is that its effects are symbolic imprint on the culture of the expansionism of the criminal field. The research was delimited in the region of Vitória da Conquista, Bahia, in the period from 2006 to 2013 and was based on analysis of court cases, interviews and documentary analysis. It was observed that criminal speech does not become effective before the few punishments.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

1 - LIBERDADE, SEGURANÇA E MEDO NA CONSTITUIÇÃO DO CAMPO PENAL CONTEMPORÂNEO.

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1.1- Pilares da Modernidade: Capitalismo e Razão 18 1.2- A Modernidade Enquanto Massificação da Auri Sacra Fames 23

1.3- A Modernidade na Senda do Medo 29

1.4- O Fetiche pelo Direito Penal 40

2- LUGARES E NÃO-LUGARES DO FEMININO NA MODERNIDADE 56

2.1- A Modernidade Masculina 56

2.2- O Campo Jurídico na Modernidade Masculina

2.3- Processos de Naturalização da Subalternização Feminina

61 66 2.4 - Gênero e Patriarcalismo Enquanto Categorias Analíticas 76 2.5- O Brasil na Modernidade Masculina. 84

3- LEI MARIA DA PENHA: NOS DEBATES DA MODERNIDADE: ENTRE A SUPERAÇÃO DO

PATRIARCALISMO E A EXPANSÃO DO CAMPO PENAL 87

3.1- Violência Doméstica contra a Mulher: Quando a Superação da Patriarcalismo Toca a

Expansão Penal. 87 3.2- A Lei Maria da Penha e a Judicialização da Violência Doméstica pelo Campo Penal. 95 3.2.1- Limitações à Competência Hibrida dos Juizados de Violência Doméstica Contra a

Mulher e os Entraves à Cidadania Feminina. 106

3.3- Afastamento dos Juizados Especiais Criminais pela Lei Maria da Penha e o

Expansionismo do Campo Penal. 114

3.4- Consideração do Discurso Punitivo na Lei Maria da Penha 120

4- O FEMININO DIANTE DA JURISDIÇÃO PENAL: AUTONOMIA OU SILENCIAMENTO? 121

4.1- Restrições da Lei Maria da Penha à Escolha da Mulher pela Jurisdição Penal nas de

Lesão Corporal Leve 121

4.2- Infrações Culposas na Lei Maria da Penha uma Necessidade Social de Imputação 134

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4.4- Vozes que Rompem o Silenciamento: A Fala Feminina nos Processos Judiciais de

Aplicação da Lei Maria da Penha 149

5- LEI APLICAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA: SUJEITOS ATINGIDOS E EFEITO SIMBÓLICO 157

5.1- Rupturas e Permanências na Constituição dos Sujeitos Processuais 157 5.1.1- Vítima ou Mulher em Situação de Violência? 157 5.1.2- Agora Vos Declaro Vítima e Agressor: As Posições de Sujeito de Mulheres e Homens

na Lei Maria da Penha 162

5.2- Seletividade Penal e Reprodução de Subalternidades na Aplicação do Sistema Penal 170 5.3- O Perfil da Judicialização Criminal da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

no Corpus da Pesquisa 179

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INTRODUÇÃO

A presente tese1 objetiva pesquisar a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, com base na categoria de gênero e patriarcalismo a partir do campo jurídico. O recorte posto é a discussão sobre as consequências sociais dos aspectos penais da Lei Maria da Penha. Parto do conceito de que o campo jurídico abrange a atividade legislativa, a prática jurídica e a acadêmica compreendida como o conjunto de estudos sobre o Direito. Estes três aspectos são abordados ao longo do trabalho.

Esta tese representa o aprofundamento da temática iniciada no mestrado, oportunidade em que trabalhei com as representações de Gênero no debate sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. A pesquisa apontou que o grupo do campo jurídico que prega a inconstitucionalidade desta lei reforça e reproduz os valores patriarcais que inferiorizam a mulher. Em contrapartida, aqueles que reputam a lei constitucional reconhecem as assimetrias de gênero no campo social, advogando que o Direito é meio legítimo de correção desta distorção. A pesquisa de mestrado delimitou que o campo jurídico seguia majoritariamente no sentido da conformidade da Lei Maria Penha com a Constituição Federal, o que foi referendado, no ano de 2012, pelo Supremo Tribunal Federal - STF no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade n.º 19.

A Lei Maria da Penha entrou em vigor no ano de 2006 e representa um importante marco legislativo e social na prevenção e combate à

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violência doméstica e familiar contra a mulher. Os índices desta espécie de violência no Brasil são altos e são sustentados por uma cultura de reificação da mulher e subalternização do feminino. Entre 1980 e 2010 foram assassinadas mais de 92 mil mulheres no Brasil, 43,7 mil somente na última década, o número de mortes nesse período passou de 1.353 para 4.465, que representa um aumento de 230% (WAISELFISZ: 2013).

No que diz respeito à ocupação de cargos eletivos pelas mulheres houve um pequeno avanço. Em 2013 contabilizei que cinquenta e duas dos quinhentos e noventa e quatro parlamentares eram mulheres. Já no período legislativo que se inicia em 2015, calculei que o Congresso contará com cinquenta e nove mulheres. Embora tenham ocorridos avanços nas últimas décadas em favor da cidadania feminina no Brasil as relações patriarcais se remodelam e ainda persistem na sociedade brasileira.

Inobstante a mulher ter conquistado maiores níveis de escolaridade e marcado seu ingresso, ainda de forma desigual, no mercado de trabalho forçando mudanças nos arranjos da relação do feminino com o espaço público, o espaço privado do lar ainda continua sendo relacionado como coisa de mulher. O Relatório O PROGRESSO DAS MULHERES NO BRASIL (2011) traz que enquanto 88% das mulheres realizavam afazeres domésticos, apenas 49% dos homens os realizavam em 2009.

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No sentido da conquista da isonomia entre mulheres e homens o campo jurídico em seu viés legislativo sintetizou muitas reivindicações sociais, sobretudo a dos movimentos de mulheres, dentre elas: o direito ao voto em 1932; a possibilidade do divórcio em 1977; a inserção em 1988 na Constituição Federal do princípio constitucional da igualdade entre homens e mulheres e a edição em 2006 da Lei Maria da Penha, dentre outras.

A criação em 2003 pelo governo federal da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, com status de Ministério, vem sendo relevante instrumento em favor da isonomia de mulheres e homens. A criação de um organismo estatal como este sinaliza que o enfrentamento da subalternização da mulher é percebido como política pública. Depois da existência dessa Secretária na esfera federal passaram a surgir outras secretarias ou organismos semelhantes nas esferas estaduais e municipais, a exemplo do estado da Bahia que conta com uma Secretaria criada em 2011 e os seguintes municípios baianos: Serrinha, Amargosa e Vitória da Conquista dentre outros.

A Lei Maria da Penha vem dando visibilidade à violência domestica e familiar contra a mulher contribuindo para retirar essa espécie de violência da invisibilidade e naturalização. A Lei na linha de tratados internacionais que o Brasil é signatário reconhece a violência contra a mulher como violação de direitos humanos e enumera as seguintes formas de violência: a física; sexual; patrimonial; psicológica e moral.

Reingresso ao debate para investigar se esta Lei, em seu aspecto criminal, vem sendo efetiva na intervenção da violência doméstica e familiar contra a mulher. Esta delimitação de estudo aprofunda a temática iniciada na dissertação mantendo o diálogo entre as Ciências Sociais e o Direito. Embora a Lei Maria da Penha seja uma lei que alberga de forma dialógica vários ramos do Direito, a instância penal é posta como meio privilegiado. Por isso o recorte dado à intervenção criminal.

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o uso de medidas despenalizadoras e de alternativas à prisão. A tensão entre a legitimidade ou não da ampliação da intervenção penal nos casos de violência doméstica contra a mulher, pôde ser sentida na disputa de posições entre o movimento feminista e magistrados na elaboração do projeto da Lei Maria da Penha.

Enquanto o grupo de entidades feministas defendia um maior rigor penal; um grupo de juízes sustentava que o expansionismo penal tem se mostrado ineficaz no Brasil pugnando pela manutenção de algumas medidas despenalizadoras (LAVIGNE: 2011). Assim, o projeto de lei apresentado seguiu a orientação dos julgadores, sendo alterado durante sua votação nas Casas Legislativas pela ação de advocacy2feminista.

A problematização da instância penal da Lei Maria da Penha surgiu para mim como tema de pesquisa no ano de 2006, a partir da atuação como advogada, atendendo mulheres em situação de violência doméstica e familiar, no Centro de Referência da Mulher Albertina Vasconcelos/CRAV, na cidade baiana de Vitória da Conquista. À época chamou-me a atenção o desejo de muitas mulheres atendidas pelo CRAV em afastar a intervenção do Direito Penal mesmo tendo ciência de que as violações constituem crime.

Era comum nos atendimento do CRAV ouvir a frase: “não quero que envolva a polícia, chama ele aqui só para dar uma bronca”. Também era corriqueiro, a instância criminal ser acionada em um primeiro momento, sendo afastada posteriormente pela retirada da representação (conhecida da linguagem popular como queixa) pela mulher ou pela mudança que esta

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empreendia nas versões dos fatos inicialmente narrados na polícia visando absolvição do homem apontado como agressor.

Os estudos sobre o tema divergem se essas atitudes são formas de autonomia da mulher que percebe a instância penal como mediadora do conflito doméstico, afastando assim o desejo de punição dos agressores (BRANDÃO: 2006. IZUMINO: 2004 e KARAM: 2007) ou se é um ato de submissão à violência de gênero (JONG, SADALA E TANAKA: 2006). Essa divergência reforça instância criminal como campo a ser estudado a partir das dinâmicas socioculturais que surgem com a Lei Maria da Penha.

Somem-se a isto pesquisas recentes (CEPIA, ONU: 2011; HOMICÍDIOS DE MULHERES NO BRASIL: 2012; IPEA: 2013) indicando que após a vigência da Lei Maria Penha, inobstante seu maior rigor penal, não houve alteração do elevado número de homicídios de mulheres no Brasil vítimas de violência doméstica ou intrafamiliar.

Esses dados sinalizaram para o fenômeno da expansão do campo penal como categoria analítica a qual identifica que a sociedade moderna aloca a seara criminal como a prima ratio para a intervenção nos conflitos sociais, gerando com isso um efeito apenas simbólico, ou seja, sem interferência nos índices de criminalidade.

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Inobstante as diversidades socioculturais e econômicas que dão conta de variações do que se convencionou chamar de Modernidade, Weber, Morin e Bauman enfatizam que em todas elas existem traços comuns que lhes dão unidade diante de suas diferenças. Esse laço seria constituído pelo modo de produção capitalista e pela massificação do pensamento racional.

Para perscrutar a efetividade dos aspectos criminais da Lei Maria da Penha utilizei de pesquisa documental e de campo. Entre os documentos qualitativamente analisados constam: a Lei Maria da Penha e atos normativos ou interpretativos do campo jurídico que visam regulamentar sua aplicação. No que diz respeito à pesquisa de campo a delimitação espacial foi na cidade de Vitória da Conquista3 que é a terceira maior cidade baiana. A cidade não conta com Juizados de Violência Doméstica e Familiar, prevista na Lei Maria da Penha para processar e julgar a violência contra a mulher.

Na ausência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher os processos como ocorre em Vitória da Conquista, Bahia, tramitam por varas criminais comuns. Isto que dizer que serão julgados por um juízo criminal que recebe demandas penais de diversas naturezas, ou seja, não há uma especialização quanto à matéria. Diferente do que ocorre nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar que possui como foco apenas processos em que as mulheres são vítimas.

Embora a Lei tenha previsto a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, estes são raros no Brasil. A maioria dos crimes em que se aplica a Lei Maria da Penha é julgados por varas criminais comuns ou pela vara do júri.

Vitória da Conquista, Bahia, possui três varas criminais comuns e a vara do júri que, pela ausência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, absorvem a demanda criminal tutelada pela Lei Maria da Penha. As duas maiores cidades da Bahia em termos populacionais são,

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nesta ordem, Salvador4 e Feira de Santana5 as quais possuem instalados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

A delimitação temporal compreendeu o período de 2006, quando a Lei Maria da Penha entra em vigor, até 2013. Com os recortes temporal e espacial apresentados selecionei cento e trinta processos judiciais, desses setenta e dois constituíram o corpus da pesquisa, pois utilizei como critério demanda que tivessem por objeto violência doméstica e familiar contra a mulher, desprezando aqueles que não estavam neste perfil.

Para início da pesquisa enviei ofício às varas criminais, endereçada aos juízes a fim de poder coletar e manusear os autos dos processos. Em algumas varas tive de imediato a resposta positiva. Em outras, apesar das visitas constantes, permanecia a omissão na análise do pedido. Senti certa resistência do Judiciário em se sentir observado, em alguns casos o juiz confirmava se o outro deferiu o ofício antes de deferir também. Ao final, todos autorizaram.

A maior dificuldade foi localizar os processos posto que, salvo as medidas protetivas de urgência, que são medidas preventivas como o pedido de afastamento do lar e proibição de aproximação, os demais procedimentos judiciais não possuem uma identificação diferenciada. Assim, um processo que tinha por objeto lesão corporal em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher estava misturado a todos os demais casos de lesão corporal que tramitam na Vara. Enfim, a coleta dos processos consumiu aproximadamente dois anos e foi feita com o auxílio de uma estudante do curso de Direito.

Os processos foram agrupados de acordo com a imputação criminal, as quais envolveram os seguintes crimes: lesão corporal (tentada e consumada); homicídio (tentado e consumado); ameaça; estupro; injúria; dano e aborto provocado por terceiro sem consentimento da gestante. Essa tipologia levou em consideração as condenações de primeiro grau, ou seja, as

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sentenças, e na ausência de decisão judicial observei, nesta ordem, a denúncia do Ministério Público e o inquérito policial.

Tabulei dados envolvendo a relação entre vítima e acusado; e sexo/idade/cor/escolaridade e profissão também da vítima e do acusado. As dificuldades neste processo envolveram a localização dos dados, pois estavam diluídos nos diversos documentos processuais. Por exemplo, em alguns casos a profissão constava do interrogatório, a escolaridade no inquérito e a cor em um exame de corpo de delito. Em geral a maior parte das especificações que perscrutei estava no boletim de ocorrência. Quanto à idade tive que calculá-la com base na data de nascimento e a data do crime. Dos processos constava a data de nascimento e não a idade da vítima e do acusado.

Tentei identificar dados relevantes como motivos do crime e representações de gênero nas manifestações jurídicas anotado-as na capa de cada processo para facilitar a localização dos mesmos. Também fiz oito entrevistas abertas, com base em roteiro semi-estruturado, com os envolvidos nos processos. As entrevistas na quantidade citada atingiram o ponto de saturação por reiteração do enredo. As entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas por estagiárias estudantes do curso de Direito. Além de membros do campo jurídico da comarca de Vitória da Conquista visitei o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da capital baiana e fiz três entrevistas (duas juízas e uma psicóloga da vara especializada). As juízas foram relevantes para esclarecer os tramites processuais e as singularidades do Juizado enquanto a psicóloga forneceu subsidio acerca da função interdisciplinar dos mesmo e de sua experiência na escuta de mulheres e homens envolvidos na violência doméstica e familiar.

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dolosos contra a vida selecionados para estudo que se constituíram em homicídio tentado ou consumado.

O diário de campo facilitou a preservação das memórias e impressões registradas que, faltamente, perder-se-iam ou não seriam tão detalhadas, pois foram selecionadas em um período estimado de anos. Esta 16técnica visou ainda apreender lógicas não perceptíveis pelos outros métodos que fiz uso. Em especial nos casos de crimes julgados pelo tribunal do júri os debates orais entre acusação e defesa permitiram analises que não seriam possíveis apenas com a leitura da sentença, as dinâmicas de atuação dos atores processuais e sociais restariam perdidas.

Durante o lapso em que a pesquisa se realizou atuei como conselheira (2010 a 2014) do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher e da Diretoria da União de Mulheres da Vitória da Conquista (desde 2009). As duas oportunidades de participação decorreram da premiação do V Prêmio Constituindo a Igualdade de Gênero. No Conselho represento a comunidade acadêmica e da União de Mulheres componho a Diretoria de assuntos educacionais e acadêmicos. Essas experiências permitiram maior contato com o contexto pesquisado. Produzi, outrossim, diário de campo das reuniões do Conselho Municipal e das reuniões da Rede de Proteção à mulher de Vitória da Conquista.

Todos os nomes e locais citados na tese a partir do material selecionados são fictícios para evitar identificação das fontes. Esta tese foi construída com cinco capitulo que sintetizo a seguir. O primeiro trata da constituição da Modernidade e de sua crise com suporte em Weber, Bauman e Morin. A Modernidade consolidada sob os pilares da razão e do espírito capitalista culmina na sociedade do medo. É neste contexto que se consolida a cultura de expansão do campo penal que uso como categoria de estudo do aspecto criminal da Lei Maria da Penha.

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hierarquizações daí decorrentes, pontuando as lógicas que sustentam a subaltenizações do feminino.

O terceiro capitulo trata da constituição do discurso punitivo na Lei Maria da Penha em cotejo com o expansionismo do campo penal, apontando avanços e permanências na citada lei. Este capitulo, leva em consideração o campo jurídico em seu aspecto legislativo.

O quarto capitulo aprofunda, com suporte nos anteriores, a relação entre a superação das assimetrias sociais entre mulheres e homens - sintetizadas pelas práticas de violência doméstica e familiar - e o expansionismo do sistema penal a partir da analise da jurisdicionalização desse conflito intersubjetivo e social.

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1- LIBERDADE, SEGURANÇA E MEDO NA CONSTITUIÇÃO DO CAMPO PENAL MODERNO.

1.1- Pilares da Modernidade: Capitalismo e Razão.

A Modernidade ocidental, seja ela subalterna ou hegemônica, apresenta o capitalismo e a razão como seus pilares os quais também coadunam com um sentido de feminino e masculino como aponta o capitulo seguinte. Enquanto “as coisas de mulher” são inferiorizadas o ethos masculino é posto no topo da pirâmide de valores.

Obervei isto na pesquisa de mestrado (SILVA: 2010) quando, sob o pano de fundo do debate sobre a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, o campo jurídico reforçava e naturaliza condutas e ações que eram tidas como inerentes ao ser mulher, aceitas socialmente, e inerente aos homens em que as atitudes de violência eram postas como integrantes de sua natureza.

Esta mesma percepção da “natureza” feminina conjugada à passividade e à maternidade foram vistas nos processos judiciais analisados nesta tese. Em um deles, em que o marido foi acusado de ter mandado matar a esposa por desconfiar que ela estivesse grávida de um suposto amante, no pedido de prisão preventiva o delegado fez as seguintes observações em

relação à vítima: “Conforme depoimentos tomados junto aos parentes de Maria

Valentina a mesma era pessoa extraordinária, com comportamento exemplar,

mãe amorosa, trabalhadora e que mantinha a sua casa em ordem”.

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recorrem ao bom ou mau papel social de esposa e mãe, desempenhado pela vítima, para abrandar ou agravar a conduta do agressor. Suspeitas de traição ou abandono dos filhos foram usadas para justificar ou abrandar a ação criminosa do homem, enquanto que a adequação da mulher aos papéis sociais ditos femininos era invocada para alocar a ação do homem no motivo torpe, gerando aumento na punição.

Representações sociais como estas podem ser naturalizadas, por exemplo, pela teoria do direito natural. O que é uma ideia contraditória em seu nascedouro uma vez que o Direito e sua aplicação é uma construção genuinamente cultural. Neste sentido, Weber (2009) ao afastar a existência de um direito natural diz que qualquer direito ou convenção vem depois de verificada sua regularidade, a qual é moldada de forma orgânica pelo ambiente e pela interação entre as pessoas.

Como a legislação e sua aplicação influenciam e são influenciadas pelo espaço geográfico e temporalidade histórica, este capitulo tem por mister dar suporte, ao longo da tese, à analise da Lei Maria da Penha a partir do contexto em que foi elaborada e vem sendo aplicada.

Sobre a importância da contextualização Morin (2011) elucida que a palavra latina complexus significa “o que é tecido em conjunto” e acrescenta:

“O Conhecimento complexo procura situar seu objeto

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fato, um elemento, uma informação, um dado, de seu

contexto” (MORIN: 2011,190).

A partir de Morin (2011) tomo a lição de inserir esta investigação em um plano mais amplo. Como a tese tem por recorte o aspecto criminal da Lei Maria da Penha, visando contextualizá-la, começaremos pela leitura do mundo contemporâneo para posteriormente averiguar sua possível influência na subalternização do feminino e na constituição do campo penal da Lei Maria da Penha.

Assim a contemporaneidade é marcada pela crise. Acreditava-se que o século XXI iria colher os frutos maduros do progresso da Humanidade (MORIN: 2010). Ao revés disso Weber sinaliza para o desencantamento do mundo; Bauman (2003/2009) para solapamento do sentido de comunidade e Morin (2010) para a perda da identidade humana de homens e mulheres. Esses são os frutos, maduros ou não, que estamos colhendo da Modernidade.

Weber (1999/2009), Morin (2009) e Bauman (2003/2004/2009) apontam a Modernidade, enquanto conjunto de transformações que se deram a partir do século XVI, como temporalidade histórica marcada pelo racionalismo. Habermas (2002:3) esclarecendo essa relação a partir de Weber escreveu que: “para MAX WEBER ainda era evidente a relação interna, e não meramente contingente, entre a modernidade e aquilo que se designou como racionalismo ocidental”.

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social, científico e cultural, sendo fundamental à consolidação do capitalismo moderno que se constituiu por meio da racionalidade que foi conjugada a ele.

Essa relação dialógica é citada por Wallerstein(1996: 56/57) para quem as grandes potências econômicas, estimuladas pela guerra fria, começaram a investir nas ciências e que a expansão econômica mundial implicou um verdadeiro salto quântico para o conhecimento científico, as máquinas do Estado e para as empresas.

Destarte as estruturas de racionalização foram fatores fundamentais para a consolidação do moderno capitalismo, pois este não necessita apenas das técnicas de produção. A racionalização da vida cotidiana, a constituição das leis e da burocracia foram fortalecedoras do capitalismo e fortalecidas por ele, instaurando-se uma dinâmica de retroalimentação entre ambos. Weber (1999:09) no trecho abaixo traz reflexões sobre a importância da racionalidade ocidental para a hegemonia do capitalismo:

“Tais tipos de sistemas legais e de administração, num

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todos os casos acima o problema é o racionalismo

peculiar e específico da cultura ocidental”.

O pensamento racional ao tempo que uniformizou as formas de conhecimento válido também moldou os novos sujeitos sociais. Wallerstein (1996:21), sobre a formação do conhecimento científico moderno, aponta que a criação de estruturas institucionais permanentes como as disciplinas e a profissionalização são destinadas, de forma simultânea, a produzir um novo conhecimento e a reproduzir os produtores desse conhecimento. A racionalidade ocidental que pode ser vista com facilidade no modelo de ciência moderna, faz-se presente nas diversas linhas da teia social.

A ideia weberiana é que a racionalização foi tão fundamental ao capitalismo moderno como esse foi para a racionalização. A Modernidade no ocidente foi sustentada por esses dois pilares: racionalização e capitalismo. Weber (1999:08) concretiza essa afirmativa, equacionado ciência e capitalismo, ao dizer que o modo de produção capitalista é dependente da ciência moderna e que, por outro lado, o desenvolvimento da ciência recebe importante estímulo dos interesses capitalistas.

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1.2- Modernidade enquanto Massificação da Auri Sacra Fames.

Para Morin (2010) e Bauman (2003/2004) o racionalismo moderno (ou a Modernidade racionalista) alimentou na humanidade a aspiração de progresso infinito. Mas em vez dos anos de esplendor perdura uma crise instalada já no século XX. O avanço científico e tecnológico calcado na razão propiciou no século XX o horror de duas guerras de proporção mundial. Para Morin (2010) há duas vias para compreender o século XX: uma do progresso, do desenvolvimento e de aparente racionalidade; outra de convulsões e horrores.

Para Betto (1997) a crise do século XX é a da razão que põe em questão as promessas não realizadas da Modernidade. Morin (2010:19) traz a seguinte definição de crise:

“Numa primeira abordagem, a crise se manifesta não

somente como fratura no interior de um continuum, perturbação num sistema até então aparentemente estável, mas também como crescimento das eventualidades, isto é, das incertezas. Ela se manifesta pela transformação das complementaridades em antagonismos, pelo aumento rápido das transgressões em tendências, pela aceleração do processo desestruturante/desintegrante (feedback positivo), pela ruptura das regulações, pela deflagração de processos incontrolados tendendo a autoamplificar-se por si mesmos ou a chocar-se violentamente com outros processos igualmente antagônicos e incontrolados”.

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de vida nos países centrais do capitalismo aumentou de forma considerável, na periferia do sistema pessoas ainda morrem por desnutrição.

A imagem, vencedora do prêmio Pulitzer, tirada em 1993 pelo fotografo sul-africano Kelvin Carter em Ayod no Sudão (sul da África), simboliza a face nefasta da humanidade: um urubu esperando a morte de uma menina6

para se alimentar.

Esta fotografia representa a face dos esquecidos da Modernidade, em que o avanço científico/tecnológico ou as promessas da razão não se concretizaram para todos, evidenciando que perdemos o sentido de Humanidade quando a acumulação de uns gera o extermínio de outros.

Andrade (2012:43) no poema Lembrança de um Mundo Antigo mostra, por meio da linguagem poética, um dos elementos da crise apontado na definição de Morin (2010): a perturbação da instabilidade. O poema traz a personagem Clara que é cercada por elementos estáveis. Tudo era tranquilo ao redor de Clara:

“Clara passeava no jardim com as crianças.

O céu era verde sobre o gramado,

a água era dourada sob as pontes,

outros elementos era azuis, róseos, alaranjados,

o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,

a menina pisou a relva para pegar um pássaro,

o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara.

6 A criança usava na mão direita uma pulseira indicando que tinha malnutrição severa e estava

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(...)” (ANDRADE: 2012, p.43).

Mas essa estabilidade e tranquilidade são postas nas estrofes seguintes como um passado saudoso ao poeta (e à humanidade). A última frase alude a um tempo atual em que não há jardins ou manhãs como outrora:

“(...) As crianças olhavam para o céu: não era proibido.

A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.

Os perigos que Clara temia eram a gripe, a febre, o calor, os insetos.

Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,

esperava cartas que tardavam a chegar,

nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava pelo jardim, pela manhã!!!

Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!”

(ANDRADE: 2012, p. 43).

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Essa instabilidade, segundo Weber (1999), Morin (2010) e Bauman (2009), foi se formando a partir da dissolução das antigas formas de interação social como consequência da consolidação da racionalização e do modo de produção capitalista. Morin (2010) traz que o desenvolvimento da indústria capitalista fez-se não sobre o solo da civilização precedente, mas ao revirar-se de ponta-cabeça a sociedade tradicional, destruindo os laços de solidariedade sob a relação monetária, arruinando culturas milenares.

Weber (1999) ao tratar do espírito do capitalismo moderno, define-o como um ethos que pode ser traduzido como um padrão de vida massificado, o qual tem por centro a acumulação. Essa assertiva pode ser identificada no trecho abaixo:

"O homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da vida. A aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como um meio para satisfação de suas necessidades materiais. Essa inversão daquilo que chamamos de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio guia do capitalismo, tanto quanto soa estranha para as pessoas que não estão sob a influência capitalista" (WEBER: 1999, p. 21).

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Weber (1999) diz que esse exemplo traduz o que ele designa por tradicionalismo. “O homem não deseja 'naturalmente' ganhar mais e mais dinheiro, mas viver simplesmente como foi acostumado a viver e ganhar o necessário para isso" (WEBER:1999, p. 24). A tese weberiana aponta que a Modernidade substitui o tradicionalismo econômico, baseado na economia de necessidades, pelo modo de produção capitalista, lastreado no ethos de aquisição.

Nesta transição Bauman (2003) identifica a perda do sentido de comunidade. Para Bauman (2003/2004) na Modernidade líquida perdemos o sentido de comunidade como lugar no qual os indivíduos se sentem fraternalmente acolhidos, onde “se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicações e pedir desculpas, arrepender-nos se necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre” (BAUMAN: 2003, p.8). Contudo, lamentavelmente, essa comunidade não está ao nosso alcance.

Na Modernidade vige o individualismo exacerbado, predomina o medo e o sentimento de insegurança. Para Morin (2010:30) as vantagens libertadoras da vida urbana e dos bens de consumo estão disponíveis à custa do sacrifício da solidariedade e pela automação de corpos e espíritos aos ritmos cronometrados das máquinas.

Weber (1999:21) diz que o summum bonum, ou o bem maior, da ética que embasa o espírito capitalista moderno, o ganhar mais e mais dinheiro é combinado com o afastamento estrito de todo prazer espontâneo de viver. A fome de riqueza é pensada como um fim em si mesmo.

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Para melhor entender como o ethos do espírito capitalista tornou o homem alheio a si mesmo, citemos mais uma vez Weber (1999:29):

"Se lhes perguntarem qual o significado de sua atividade sem descanso, porque nunca estão satisfeitos com o que têm, parecendo não fazer sentido de qualquer ponto de vista puramente mundano, talvez nos dêem uma resposta, se tiverem uma: para garantir o futuro a meus filhos e meus netos ... Com muito mais frequência, uma vez que tais motivos não lhes são peculiares, mas seriam igualmente efetivos para os tradicionalistas e, mais corretamente, a resposta seria tão só: o negócio, com o seu incessante trabalho, tornou-se uma parte necessária de suas vidas. E essa seria de fato a única motivação possível, mas ao mesmo tempo nos diz que, do ponto de vista da felicidade pessoal, parece tão irracional este tipo de vida na qual o homem existe para o seu negócio, quando deveria ser o contrário".

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Esse ego-proprietário é visto nas relações sociais cotidianas, traduzido, por exemplo, pelo ciúme e não aceitação pelo homem do fim da relação amorosa causando violência doméstica e familiar contra a mulher. Essa percepção reflete a representação da mulher como coisa de propriedade do homem com quem ela mantém ou manteve relação afetiva. A pesquisa Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (DataSenado: 2013) aponta que o ciúmes é o principal motivo para a violência doméstica e familiar contra a mulher praticada por parceiros ou ex-parceiros.

No mundo saudoso à Andrade (2012) Clara, apesar de nem sempre poder usar vestido novo, era rodeada por relações humanas: passeava no jardim com as crianças, via o guarda civil sorrir e a menina pisar a relva para pegar um pássaro. A massificação do ethos capitalista jungido à razão trouxe o solapamento da comunidade enquanto sentimento de solidariedade humana.

O individualismo instaurou-se fazendo com que homens e mulheres, aficionados pela economia de aquisição, perdessem o sentido de humanidade comum. Permitiu-se o desencantamento do mundo quando foi retirado o sentido “natural” da vida humana e pôs-se em seu lugar o ethos de aquisição. Eis a base da nossa crise produtora de antagonismos como na fotografia feita por Carter.

1.3- A Modernidade na Senda do Medo.

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Com a mudança do tradicionalismo para a Modernidade, que implicou no desfazimento dos laços de solidariedade e a massificação do individualismo, o medo surge como elemento constituidor da sociedade e de sua instabilidade. Bauman (2009) diz que nos últimos anos a forte tendência de sentir medo e a obsessão maníaca por segurança fizeram a mais espetacular das carreiras, inobstante vivamos em sociedades que estão entre as mais seguras que já existiram.

Corroborando essa constatação, Silva Sánchez (2011) afirma que a dimensão subjetiva do medo é mais relevante que a objetiva, e com base nessa perspectiva, nossa sociedade pode ser definida como sociedade de “insegurança sentida” ou “como sociedade do medo”. Para Silva Sánchez (2011) um dos traços mais significativos das sociedades da era pós-industrial é a sensação geral de insegurança e medo.

Bauman (2003/2009), Castel (2003) e Silva Sánchez (2011) apontam que com a substituição das comunidades (ou tradicionalismo nas palavras de Weber (1999)) pela sociedade moderna, a solidariedade deu lugar ao dever individual de cuidar de si próprio e de fazer por si mesmo, solidificando a insegurança e a ideia de que o perigo está em toda parte.

Bauman (2003) aponta que as cidades ingressam no fim do século XX em um momento histórico caracterizado pelo individualismo exacerbado, o que vem a solapar, nas palavras de Morin (2010), o sentido de comunidade e de humanidade comum. Enquanto que na comunidade todos servem e são servidos por todos, nas grandes cidades hodiernas o processo civilizador potencializou o sentido de individualidade acirrado pela competição excludente.

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"A economia capitalista moderna é um imenso cosmos no qual o indivíduo nasce, e que se lhe afigura, ao menos como indivíduo, como uma ordem de coisas inalteráveis, na qual ele tem de viver. Ela força o indivíduo, a medida que esse esteja envolvido no sistema de relações de mercado, a se conformar às regras de comportamento capitalistas. O fabricante que se opuser por longo tempo a essas normas será inevitavelmente eliminado do cenário econômico, tanto quanto um trabalhador que não possa ou não queira se adaptar às regras, será jogado na rua, sem emprego." (...)

(...)

“Assim pois, o capitalismo atual que veio a dominar a vida econômica, educa e seleciona os sujeitos de quem precisa, mediante o processo de sobrevivência

econômica do mais apto” ( WEBER:1999 , p. 21/22).

Destaquemos que a feição do Estado moderno, embalada pelo capitalismo e racionalismo, produz exclusões. “Para dizê-lo de maneira curta e grossa: a emancipação de alguns exigia a supressão de outros. E foi isso exatamente o que aconteceu." (BAUMAN: 2003,28). Betto (1997:20) interpretando esse fenômeno a partir do Brasil assim se manifestou:

“Juscelino dizia: ‘Vamos desenvolver o Brasil, cinquenta anos em cinco’. Hoje, a palavra é ‘modernização’. A palavra ‘modernização’ não tem um

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minha empresa, que a minha cidade, que o meu país, que o estado esteja próximo do paradigma primeiro-mundista, ainda que isso signifique sacrifício para as pessoas”.

Wallerstein (1996) esclarece que o termo desenvolvimento foi definido como o processo pelo qual um país ia avançando na via universal a caminho da modernização. Esse desenvolvimento foi e é calcado em um modelo que exclui tudo e todo aquele que não se molda a ele, imprimindo um viés competitivo.

O paradigma da auri sacra fames trouxe como seu subproduto a exclusão. Para Bauman (2009:21) “quando a solidariedade é substituída pela competição, os indivíduos se sentem abandonados a si mesmos, entregues a seus próprios recursos – escassos e claramente inadequados”. Assim com a ruptura do que Weber chamou de tradicionalismo, e com a consolidação do espírito capitalista, o individualismo excluiu, segregou e estratificou as pessoas, criando a sensação de instabilidade e os sentimentos de insegurança e medo.

Na definição de crise dada por Morin (2010), citada no tópico anterior, constam como elementos da mesma: a instabilidade e a transformação da complementaridade em antagonismo. A instabilidade pode ser sentida a partir da generalização do medo e da insegurança, como na estrofe final do poema de Andrade (2012): "tudo deixou de ser tranquilo ao redor de Clara".

Enquanto Clara passeava pelo jardim seus medos eram a gripe, a febre, o calor e os insetos. No mundo contemporâneo, onde o medo é disseminado, as praças estão cercadas por grades e o outro causa medo. Bauman (2003:10) referindo-se à contemporaneidade escreve que:

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sensação aconchegante de lar? Ponha alarmes em sua porta e câmeras de tevê no acesso. (...) Você quer aconchego? Não chegue perto da janela e jamais abra."

Bauman (2003/2009) ainda destaca que, com a dissolução dos laços de comunidade, a Modernidade tenta substituí-los por laços artificiais, dentre eles a proteção social/irmandade e a identidade. Quanto à construção da proteção social/irmandade ele escreve que:

“O modo como a modernidade sólida administrava o

medo tendia a substituir os laços 'naturais' –

irremediavelmente danificados – por outros laços, artificiais, que assumiam a forma de associações, sindicatos e coletivos part time (quase permanentes, no entanto, pois consolidados pela rotina diariamente

partilhada)” BAUMAN (2009:20) .

Os laços de proteção social/irmandade para Bauman (2003/2009) são representados pela união de pessoas para se protegerem, como nos exemplos supra transcritos, e pela proteção social dada pelo Estado. Assim, para Bauman (2003/2009) esses laços embora artificiais, pois não decorra do sentimento de comunidade, ainda representada uma proteção em face do individualismo.

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criminalização na medida em que a sociedade se identifica muito mais com a vítima da infração (também sujeito passivo).

Para Morin (2010) o Estado- providência e o Estado-assistencial moderno ao mesmo tempo que visam proteger o indivíduo, tira-lhe a responsabilidade em setores-chaves da sua vida em nome da suposta promessa de segurança e extirpação do medo. Esse fenômeno apontado por Morin (2010) pode ser observado atualmente no Brasil pela crescente implementação em algumas cidades do “toque de recolher para menores”, em que estes são proibidos por portarias de magistrados de ficar no espaço público a partir de determinado horário. Em nome da segurança e em deferência à sociedade do medo a liberdades dos menores é limitada e a vontade dos pais e do próprio menor são substituídas pelo poder estatal.

Silva Sánchez (2011:43), em consonância com Morin (2010), afirma que a transferência a terceiros, no caso o Estado, de funções de respaldo da nossa própria esfera jurídica, com o correlato da perda do domínio real, constitui uma base efetiva da sensação de insegurança e medo.

Bauman (2003/2009), Silva Sánchez (2011) e Morin (2010) compartilham do pensamento de que os laços artificiais ou a sociedade de sujeitos passivos é decorrência da destruição do sentimento de comunidade diante dos valores que sustentam a Modernidade. Bauman (2003/2009), contudo, traz um recorte histórico e valorativo relevante para entender o acirramento dos valores da Modernidade que fomentam a sensação de medo e insegurança.

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Diante das novas tecnologias, principalmente no que diz respeito aos transportes e à informação, o sistema do panóptipo era inviável à mobilidade das elites que dependiam da sua posição fixa nas torres de vigilância. A dominação passou por um rearranjo que Bauman (2003:42) denomina de desregulamentação quando os laços de solidariedade artificial foram dizimados. Este é para Bauman (2003/2009) o limiar entre a Modernidade sólida, em que havia laços ainda que artificiais, e a Modernidade líquida em que os laços foram desfeitos.

Para se resguardar dos riscos sentidos a individualização se acentua sendo exteriorizada pelo distanciamento, indiferença e desengajamento. O trabalhador não precisa mais ser vigiado no seu posto de serviço, o capataz foi substituído pela incerteza de manutenção do status quo. Se o trabalhador não sabe se amanhã ainda terá seu posto de trabalho, seja pelo desemprego, extinção ou deslocamento do mesmo para outro continente que permita maiores condições de exploração da mão de obra, suas energias são canalizadas para trabalhar cada vez mais sem a necessidade do olhar atento do patrão. Sua salvação agora é individual e não mais coletiva, nisto consiste a desregulamentação.

A crueldade do sistema panóptico, com seu esforço em substituir as comunidades tradicionais pelo ritmo das fabricas, em nome da auri sacra fames, foi exacerbado pela desregulamentação. Os trabalhadores não precisam mais serem vigiados. Cada um é responsável por sua desgraça ou seu lugar ao sol e o Estado não se presta a intervir com o mesmo fervor para construir laços artificiais de proteção social e as irmandades perdem sua força.

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As identidades, porém, reforçam e maximizam o processo de individualização na medida em que “identidade significa aparecer: ser diferente e, por essa diferença, singular – e assim a procura de identidade não pode deixar de dividir e separar e por isso mesmo contrastante com o sentido de comunidade" (BAUMAN, 2003: p.21).

Para concretizar esse paradoxo tomamos por espeque Bauman (2003/2009) e Castel (2005) ao afirmarem que a identidade, como reunião de semelhantes, acaba criando guetos voluntários ou forçados. Neste sentido, a elite econômica migra para os condomínios fechados enquanto que os pobres são alçados às favelas (ou comunidades como são eufemisticamente chamadas).

Essa segregação é construída com lastro no discurso do medo. À época do Brasil colônia vendia-se terrenos urbanos, pela "testada", ou seja, seu valor era mensurado pela medida de sua frente, de sua interseção com o espaço público. A profundidade do lote valia muito pouco. As casas de "janela e porta" tinham lotes com cinco metros de largura. Já os grandes sobrados chegavam a medir vinte metros ou mais, sendo sinal de ostentação e riqueza.

Lara (2013) constata que ao longo do século XX, com o impulso da urbanização, as ruas se tornaram mais populares. Então os moradores de classe alta foram se afastando. Primeiro deslocando suas casas da calçada, com a ajuda dos códigos sanitaristas que impuseram o afastamento. Depois vieram os muros, os equipamentos de segurança e a proliferação de condomínios fechados.

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O ethos dominante da auri sacra fames impõe a exclusão e o individualismo ao ponto de não reconhecermos o outro como semelhante. O outro passa a ser visto como uma ameaça ou fonte de medo e as diferenças são alçadas ao patamar de antagonismo.

Em suma, além da desregulamentação e da formação das identidades outros fatores fomentam a constituição da sociedade do medo ou da insegurança sentida no solapamento da comunidade. Neste ínterim retomo a Weber com o tema do processo de desencantamento do mundo que significa a perda de sentido da existência instalada pela ideia de progresso infinito.

Pierucci (2005:151) diz que em um sentido amplo o sintagma desencantamento do mundo é usado por Weber para:

“nomear um elo causal sine qua non no encadeamento histórico-cultural da emergência e ascensão da forma caracteristicamente ocidental de racionalidade que iria se derramar no ‘espiríto’ do moderno capitalismo, passa a funcionar também, e regiamente, para a produção de um diagnóstico de época, um ‘diagnóstico de nosso tempo’”.

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Weber (2013: 18/19) discorrendo sobre as ciências concretiza a assertiva acima com o seguinte exemplo:

“Igualmente não se pode demonstrar se o mundo, que elas descrevem, é digno de existir, se tem um 'sentido' ou se tem sentido existir nele. As ciências da natureza não se interrogam a este respeito. Ou encarai agora, por exemplo, uma arte tão altamente desenvolvida, do ponto de vista científico, como é a medicina moderna. O 'pressuposto' geral da atividade médica é, em termos triviais, a tarefa de conservar a vida enquanto tal e de minorar, quando possível, o sofrimento. E isto é problemático. O médico, com seus meios, mantém vivo o enfermo incurável, embora este suplique que o liberte da vida, embora os parentes, para os quais essa vida já não tem valor, que querem vê-la livre da dor ou que já não podem suportar os custos da sua manutenção – trata-se, porventura, de um louco miserável – desejam e devem desejar, confessadamente ou inconfessadamente, a morte do doente. Só os pressupostos da medicina e o código penal impedem que o médico se desvie desta linha de conduta. Será a vida digna de ser vivida, e quando? - a medicina não se questiona a esse respeito. Todas as ciências da natureza respondem a esta pergunta: Que devemos fazer, se queremos dominar tecnicamente a vida? Mas deixam inteiramente de lado a questão de se devemos e queremos ter esse domínio técnico, e se isso, no fundo, terá sentido – ou, então, pressupõem já uma resposta

para os seus fins”.

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incapacidade constitucional do conhecimento científico moderno de produzir sentido ou mesmo de o fundamentar. “A ciência desencanta porque o cálculo desvaloriza os incalculáveis mistérios da vida” (PIERUCCI: 2005, p.160/161).

Como reflexo desse desencantamento do mundo, notei que o campo jurídico se satisfaz com uma resposta meramente simbólica ao tratar da violência doméstica e familiar contra a mulher como demonstra o elevado número de processo que são encerrados sob o argumento da prescrição7. A resposta do Estado não é efetiva, mas meramente formal.

Carnelutti (2001) crítica os institutos processuais penais em que a “decisão” do Estado é no sentido que não mais poder se manifestar sobre o crime. Para Carnelutti (2001) o Judiciário não diz que a pessoas é culpada, mas também não diz que inocente, contentando-se com uma resposta apenas formal.

Silva Sánchez (2011), embora não use o termo desencantamento do mundo, trata da perda de sentido da existência. Enquanto Weber (2013) introduz o tema da perda de sentido na constituição da Modernidade, Silva Sánchez (2011) analisa-a na Contemporaneidade e relaciona com a sociedade do medo. Para Silva Sánchez (2011) a diversidade e complexidade social, com sua enorme pluralidade de opções, com a existência de uma abundância informativa, somada a falta de critérios para decisão sobre o que é bom ou mau, sobre em que se pode ou não confiar, fomenta a sensação de medo, ensejando a perda de sentido como sintoma de época sinalizado por Weber (2013).

Segundo Ferry e Forbes (2012) o medo que era associado a um sentimento infantil hoje é constitutivo da sociedade contemporânea. O rompimento dos vínculos naturais da comunidade seguido da criação de laços

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artificiais e do desencantamento, torna o mundo de Clara saudoso a todas e todas.

1.4- O Fetiche pelo Direito Penal.

Com o solapamento da comunidade, originada pela substituição do tradicionalismo pela Modernidade, o que BAUMAN (2003) deu a rubrica de “processo civilizador”, ocorreu uma troca do que diz respeito a valores. A permuta ocorreu entre segurança e liberdade. A liberdade foi oferecida em troca da segurança.

Em lugar da segurança, e mesmo em nome desta, a insegurança e o medo são exortados, amplificados, ou seja, são mais sentidos que vividos. A Modernidade afastou velhos riscos e trouxe novos. Nessa balança de pesos e contrapesos, Silva Sánchez (2011) assevera que a vivência subjetiva dos riscos é claramente superior à própria existência objetiva dos mesmos.

Esse contexto toca o campo penal, definido aqui de forma ampla como os meios utilizados pelo Estado na persecução do crime, a partir de duas premissas. A primeira parte do constructo teórico weberiano quando este destaca o papel do Direito na consolidação da racionalidade e do capitalismo enquanto pilares da Modernidade ocidental.

Para Weber (1999: 09), como já transcrevemos, a estrutura racional das leis teve importância fundamental no desenvolvimento do capitalismo racional, uma vez que este não necessitava apenas dos meios técnicos de produção, mas também de um sistema legal calculável.

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na tentativa de equacionar segurança e liberdade. Para Sánchez a demanda social por mais proteção é canalizada em termos mais ou menos irracionais como demanda de punição e a solução para a insegurança é buscada formalmente no Direito Penal (SILVA SÁNCHEZ: 2011, p.51).

Por isso que “quando os teóricos do direito penal tentam descrever as características do direito penal própria das sociedades modernas referem-se muitas vezes tratar-se de um direito penal expansivo” SANCHEZ (2011:23). A expressão Direito Penal expansivo, expansionismo do Direito Penal ou Direito Penal máximo é um campo de estudos que identifica e analisa o crescimento dos meios de punição estatal.

Embora o termo expansão faça referência ao Direito Penal, onde efetivamente é mais evidente sua concretização, seu alcance atinge também normas pertinentes ao Processo Penal8 e à Execução Penal9. Em razão disso, utilizo daqui por diante a denominação expansão ou expansionismo do campo penal, estando implícita a proliferação das normas de cunho penal, processual penal e de execução penal.

Segundo Sanchez (2011) e Silva Sánchez (2011) esse alargamento do campo penal é sentido pela definição legal de novos crimes, ampliação dos espaços de punição já existentes, antecipação do comportamento punível e redução das exigências para punição. Estas são as características do campo penal Moderno.

Na passagem do tradicionalismo para a Modernidade os laços de comunidade foram se desfazendo e as relações humanas, sobretudos as conflituosas, passaram a ser reguladas por normas jurídicas. Em lugar do diálogo entre os envolvidos ou membros da comunidade, o Estado intervém no conflito por meio de um terceiro: o magistrado.

8 Enquanto o Direito Penal define as condutas que são consideradas crime e a respectiva pena, o Processo Penal elenca o procedimento usado para analisar no caso concreto se ocorreu ou não a infração.

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Já asseveramos alhures (SILVA: 2010) que a intervenção jurídica representa a desapropriação do conflito pelos envolvidos, uma vez que estes “perdem” a fala em favor de seus representantes legais, em geral advogados, e têm suas celeumas “resolvidas” por um terceiro que usa jargão e procedimentos dos quais estão alheios.

Na literatura esse alheamento, que é chamado de racionalização, foi traduzido por Kafka na obra o Processo, em que o personagem Josef K. é processado e ao final é absolvido sem saber de quê. Qual era a sua acusação? A isto Josef K. não consegue responder ao longo de um processo judicial que transcorreu sob a égide da lei racional e inacessível do Estado moderno.

Esse alheamento e desapropriação do conflito das partes são percebidos, quando o mesmo se judicializa por meio da aplicação da Lei Maria da Penha, nas situações em que a vontade da vítima não se coaduna com a determinação da lei ou com as práticas jurídicas.

Observamos isto em duas situações. Uma é quando a mulher não deseja a punição como resposta judicial a violência doméstica e familiar e está é a solução proposta pela racionalidade do campo jurídico. Então, em geral, ela cria subterfúgios que levam à absolvição. A outra foi localizada quando a mulher espera a resposta punitiva do Estado e este se mantém inerte. Esta inércia é observada por percepções diferentes de tempo ou pela não assimilação da violência de gênero como crime. Na situação de percepções diferenciadas de tempo, a mulher deseja uma resposta mais rápida, uma punição célere, que o Judiciário por conta da racionalidade que impõe ritos a serem seguidos não consegue atender.

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No julgamento do crime acima narrado a dissimetria do tempo é observada na quantidade de pena aplicada e dos ritos processuais que devem ser seguidos. O réu foi condenado a pena de oito anos de reclusão, mas teve o direito de recorrer da sentença em liberdade. O julgamento ocorreu quatro anos após o crime. Anotamos (Julgamento 01: Diário de Campo, p.10):

“Após a leitura da sentença pelo juiz, familiares da vítima saíram do recinto murmurando palavras que remetiam à inconformidade com a liberdade do acusado. Procurei me aproximar de forma discreta para ouvir o que diziam.

Era como se falassem consigo mesmo. Não havia diálogo entre eles, mas frases soltas que, em baixo tom de voz, parecia se destinar à todos do recinto e à ninguém em especifico.

Eles saiam do recinto andando na mesma direção e murmurando. Parecia uma procissão às avessas: professavam a falta de fé na Justiça.

Algumas frases (ladainhas) que ouvi: ‘É só ser rico.’; ‘Impunidade!’; ‘Impunidade!’; ‘De que adianta levar oito anos e não pagar nada’; ‘preso fica é quem tá morto’”.

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foi confirmada pela analise dos processos e em entrevistas com outros atores de campo jurídico.

Para Silva Sánchez (2011) o fato das relações sociais serem intermediadas pelas normas, ou seja, quando o sujeito passa a exigir alguma coisa do outro não por razões morais ou afetivas, mas pela existência de uma norma, o sentido de comunidade deixou de existir e a insegurança sentida e o medo são alastrados. Eis suas palavras:

“E certamente esse é o modo social hoje dominante do ‘individualismo de massas’, no qual a sociedade já não é

uma comunidade, mas um conglomerado de indivíduos atomizados e narcisisticamente inclinados a uma íntima satisfação dos próprios desejos e interesses. Mas vejamos, em tal modelo, em que a vida social subordina-se à forma jurídica, de modo que as ações somente subordina-se explicam em termos de realização de pretensões jurídicas, é até certo ponto razoável que a sensação de solidão (insegurança) tenda a mostra-se mais e mais

intensa” (SILVA SÁNCHEZ: 2011, p. 44/45).

O processo de intelectualização e racionalização do Direito inserido na formação do Estado e do capitalismo moderno contribui o afrouxamento ou a liquidez (nas palavras de BAUMAN) das relações humanas. Ao tempo que a comunidade é solapada o Direito é referendado como intermediário por excelência das relações sociais. O Estado moderno constituído como Estado de Direito e, concomitantemente, em sociedade do medo ou da insegurança sentida, favorece o expansionismo do campo penal. Eis a junção das duas premissas.

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campo penal é um acirramento do movimento de lei e ordem iniciado a partir de 1970. Este movimento reclamava uma reação puramente punitiva ao fenômeno da criminalidade patrimonial e violenta das ruas.

Duas características separam o movimento de lei e ordem e o expansionismo do campo penal. A primeira é que o movimento iniciado em 1970 se limitava a bradar mais rigor punitivo estritamente aos delitos especificados acima. Já o expansionismo não tem foco especifico: aumento de mortes no trânsito: elevam-se as penas para tais condutas; dano ambiental: lei criminal; hospitais condicionando atendimento de emergência a cheque caução: isto é crime. A sociedade clama pela incriminação!

Forbes e Ferry (2012) afirmam que o medo tem se constituído base dos discursos sociais. Como exemplo, cito as campanhas contra o tabagismo em que os maços de cigarros apresentam fotos que evocam a morte. No mesmo sentido as campanhas em prol da proteção ao meio ambiente são sustentadas por imagens ou referências a catástrofes e até extinção da espécie humana. Vivemos sob os auspícios do medo. Temos medo da AIDS, do meio ambiente, do cigarro, das pessoas ... "Nossos medos são capazes de se manter e se reforçar sozinhos. Já têm vida própria" (BAUMAN: 2009, p.54). É esse medo disseminado que impulsiona a expansão irrestrita do campo penal.

A segunda característica diz respeito a seus interlocutores. As propostas do movimento de lei e ordem não eram em absoluto unívocas, encontrando ferrenhas resistências e criticas, como anota Silva Sánchez (2011:29/30): "Assim as coisas, uns setores sociais - para simplificar, os acomodados - ,apoiavam tais propostas; outros - os excluídos, mas também os intelectuais e os movimentos dos direitos humanos - se opunham a eles".

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em bases mais largas que o movimento de lei e ordem. Sobre o tema Silva Sánchez pontua que:

"Se os tais 'gestores' vinham sendo tradicionalmente determinados estratos burgueses conservadores, hoje adquirem tanta ou mais relevância em tal papel as associações ecologistas, feministas, de consumidores, de vizinhos (contra pequenos traficantes de drogas), pacifistas (contra propagação de ideologias violentas), antidiscriminatórias (contra ideologias racistas sexistas, por exemplo) ou em geral, as organizações não governamentais (ONGs) que protestam contra a violação de direitos humanos em outras partes de mundo. Todas elas encabeçam a tendência de uma progressiva ampliação do Direito Penal no sentido de uma crescente proteção de seus respectivos interesses" (SILVA SÁNCHEZ:2011,p.81).

Singer (2012) analisando a base de apoio do expansionismo do campo penal no Brasil, que ela designa de volúpia punitiva, afirma que "o debate em torno dos valores de liberdade, felicidade e igualdade está se restringindo ao tema da penalização que é fundamentalmente, conservador.” (SINGER: 2012, p.04).

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"Assim, a luta pela igualdade racial centraliza-se em torno da penalização da discriminação; a luta pela igualdade sexual busca, além dessa mesma penalização, também a criminalização de um conjunto de práticas, agora denominadas "assédio sexual"; para acabar com a violência policial, a palavra de ordem é "fim da impunidade" (...). (...); em relação aos chamados direitos difusos ou de terceira geração, luta-se pela penalização dos que poluem o ar, a terra e o mar; (...)" (SINGER: 2012, p. 04/05).

A adesão de setores da esquerda, que em geral refutavam o movimento da lei e ordem, ao campo penal expansivo foi denominado por Karam (1997) de “esquerda punitiva”. O movimento da lei e ordem foi incorporado ao expansionismo penal, o qual conta com novos discursos e novos atores. Em decorrência dessa lógica o Brasil contabiliza, escrevemos alhures (SILVA: 2014), a quarta maior população carcerária do mundo.

Como desdobramento da sensação de insegurança ou medo sentido, as identidades também refletem na formação do campo penal expansivo. Enquanto os bem-sucedidos, nas palavras de Bauman (2003), buscam segurança e liberdade em condomínios fechados, os fracos são enxotados para os guetos.

O individualismo exacerbado, nutrido pela auri sacra fames, produz exclusões promovidas pela estrutura racional do campo penal. Neste diapasão Bauman (2003:109) enfatiza que:

“A guetificação é paralela e complementar

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prisões são dois tipos de estratégia de ‘prender os indesejáveis ao chão, de confinamento e imobilização”.

Enquanto os bem-sucedidos compartilham a individualidade de direito e de fato (o que os separam dos demais), os fracos, segundo Bauman (2003), têm a individualidade de direito, mas são incapazes de praticar a individualidade de fato. E assim, são enxotados para os guetos e penitenciárias.

Em que pese ser fato notório que a população carcerária é constituída majoritariamente por um extrato muito específico da população: homens, afrodescendentes e/ou excluídos socialmente, vem surgindo uma demanda por punição dos chamados crimes de colarinho branco ou crime das elites. Silva Sánchez (2011:81) enfatiza que:

“A reviravolta tem sido tamanha que aqueles que outrora repudiavam o Direito Penal como braço armado

das classes poderosas contra as “subalternas” agora

clamam precisamente por mais Direito Penal contra as

classes poderosas”.

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Com a desregulamentação, representado pelo colapso do Estado-providência ou Estado-assistencial, o expansionismo penal vem sendo acentuado. Para Sánchez (2011) em geral quando o estado social é mínimo; o estado penal é máximo. Enfim, as formas de substituição dos laços naturais do mundo tradicional pelos artificiais na Modernidade e pelas identidades exortaram o medo e a insegurança, gerando a expansão do campo penal que encontra seu limiar na negação da condição de cidadão ao violador da lei penal.

É neste sentido que Jakobs (2007) faz referência ao Direito Penal do inimigo e Direito Penal do cidadão. Sob os auspícios do primeiro o violador da lei penal perderia seu status de cidadão e seria tratado como inimigo. Já para o segundo, o acusado no processo penal permanece como titular de direitos e garantias frente ao Estado vez que é tido como sujeito de direitos.

Darei enfoque ao chamado Direito Penal do inimigo por operar, por meio do expansionismo do campo penal, uma exclusão máxima: a retirada da cidadania de uma pessoa. Essa teoria tem por base a doutrina da origem contratualista do Estado, mais especificamente os estudos de Kant e Hobbes.

Jakobs (2007) amparado nos referidos filósofos defende que não existe delito no estado de natureza, onde vige a liberdade e a luta de forma excessiva. O crime e, consequentemente, a punição só podem acontecer com a formação do Estado. Neste sentido:

“Quem quer e pode, pode matar alguém sem causa

alguma. É este, como HOBBES constata expressamente seu ius naturale. E isso nada tem em comum com um delito, já que no estado de natureza, na falta de uma ordem definida, de maneira vinculante, não podem ser

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