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A defesa dos INTERESSES DIFUSOS em juízo

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2021

HUGO NIGRO

MAZZILLI

A defesa

dos

INTERESSES

DIFUSOS

em juízo

• meio ambiente • consumidor

• patrimônio cultural • patrimônio público

e outros interesses

E DIÇ Ã

32

O

ª

Revista, ampliada e atua lizad a

(2)

AS VÁRIAS CATEGORIAS

DE INTERESSES

SUMÁRIO: 1. Interesse público e interesse privado. 2. Inte-resse público primário e secundário. 3. InteInte-resses transin-dividuais e sua tutela coletiva. 4. Interesses difusos. 5. Inte-resses coletivos. 6. InteInte-resses individuais homogêneos. 7. Conclusões.

1.

Interesse público e interesse privado

Embora não haja consenso sobre a noção de interesse público, essa expressão tem sido predominantemente utilizada para alcançar o interesse de proveito social ou geral, ou seja, o interesse da coletividade, considerada em seu todo.

Num estado democrático de Direito, no instante em que o legis-lador edita a lei, e o administrador ou o juiz a aplicam, colima-se alcançar o interesse da sociedade. Assim, como as atividades legislativas, adminis-trativas ou jurisdicionais são exercidas sob a invocação do interesse da coletividade, é o próprio Estado que, por seus órgãos, chama para si a tarefa de dizer, num dado momento, em que consiste o interesse de to-dos, já que o povo só interfere no rumo ou no resultado dessas decisões quando se manifesta, direta ou indiretamente, pelas vias cabíveis (elei-ções, plebiscitos, referendos etc.).

Ao tomar decisões no suposto benefício de todos, não raro o Estado confronta seus próprios interesses com os dos indivíduos, como em matéria penal ou tributária; em outras ocasiões, ele apenas disciplina as relações entre os indivíduos, como em matéria civil. Tornou-se, pois, tradicional a distinção entre o Direito Público (no qual o Estado é o ti-tular do interesse) e o Direito Privado (no qual o indivíduo é o titi-tular do interesse). Nesse sentido, o interesse público consiste na contraposi-ção do interesse do Estado ao do indivíduo (como no Direito Penal, que opõe o ius puniendi do Estado ao ius libertatis do indivíduo); por outro lado, o interesse privado consiste na contraposição entre os indivíduos, em seu inter-relacionamento (como nos contratos celebrados na forma do Direito Civil).

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50 — CAPÍTULO 1

Essa clássica dicotomia entre o interesse público e o interesse privado, que existe em todos os países de tradição romana do Direito, veio a sofrer crítica mais acentuada principalmente nas últimas décadas. Em primeiro lugar, porque hoje a expressão interesse público tornou-se equívoca, quando passou a ser utilizada para alcançar também os cha-mados interesses sociais, os interesses indisponíveis do indivíduo e da coletividade, e até os interesses coletivos ou os interesses difusos. Assim, o próprio legislador não raro abandona o conceito de interesse público como interesse do Estado e passa a identificá-lo com o bem geral, ou seja, o interesse geral da sociedade ou o interesse da coletividade como um todo.1 Em segundo lugar, porque, nos últimos anos, tem-se reco-nhecido que existem interesses intermediários que, embora não sejam propriamente estatais, são mais que meramente individuais, porque compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas. Embora não seja possível fazer distinções estanques, em regra consideramos grupo o conjunto de pessoas unidas por características comuns, com la-ços fáticos menos precisos (como os moradores de uma região quanto a questões ambientais comuns ou os consumidores de um produto quanto à qualidade ou ao preço da mercadoria), e classe ou categoria o conjunto de pessoas unidas por laços sociais, econômicos ou profissio-nais (como a classe média, a classe operária, a classe dos advogados, os empregados sindicalizados de uma categoria profissional).

Não é de hoje que o Direito se tem preocupado com a solução judicial de problemas de grupos, classes ou categorias de pessoas. O Di-reito Romano já tinha instituído meios processuais para defender os in-teresses dos que vissem uma via pública fechada por particulares, ou para coibir a violação de sepultura em defesa de interesses sociais. As próprias ações de classe do Direito norte-americano (class actions) têm raízes nas cortes medievais inglesas. Pelo bill of peace, o autor de uma ação individual requeria que o provimento englobasse os direitos de to-dos os que estivessem envolvito-dos no litígio, para que a questão fosse tratada de maneira uniforme, evitando-se, assim, a multiplicação de pro-cessos.2

Na Europa continental e no Brasil, porém, foi especialmente a partir da década de 1970, com os trabalhos e conferências de Mauro Cappelletti,3 que surgiu a exata consciência de que a defesa judicial dos interesses de grupos apresentava peculiaridades para as quais o pro-cesso civil tradicional não estava apto a dar solução: como cuidar da re-presentação ou da substituição processual do grupo lesado? Como

1. É o que faz, v.g., o art. 178, I, do CPC, quando limita a atuação do Ministério Público às causas em que haja interesse público ou social.

2. Márcio Flávio Mafra Leal, Ações coletivas: história, teoria e prática, Sérgio Fa-bris, 1998.

3. Mauro Cappelletti, Formazioni sociali e interessi di gruppo davanti alla giustizia civile, em Rivista di Diritto Processuale, 30:367, 1975; La tutela degli interessi diffusi nel diritto comparato, Milão, Giuffrè, 1976.

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estender a coisa julgada para além das partes formais do processo? Como repartir o produto da indenização entre lesados indetermináveis? Como assegurar a presença de todo o grupo lesado nos processos coletivos destinados à composição e decisão de tais conflitos intersubjetivos?4

Todas essas dificuldades estavam a recomendar que os interesses de grupos alcançassem uma disciplina processual própria, para a ade-quada defesa em juízo dos direitos coletivos, também chamados direitos de terceira geração.5

No Brasil, a defesa dos interesses de grupos começou a ser siste-matizada com o advento da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública — LACP) e da Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor — CDC), que distinguiu os interesses transindividuais em difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos. A própria Constituição de 1988 acabou se preocupando com a tutela dos interesses difusos e cole-tivos (v.g, art. 129, III).

Será objeto desta obra a análise desses interesses transindividu-ais ou de grupo, bem como o estudo de como se faz sua defesa em juízo.

2.

Interesse público primário e secundário

Ao tomar decisões na suposta defesa do interesse público, nem sempre os governantes fazem o melhor para a coletividade: políticas eco-nômicas e sociais ruinosas, guerras, desastres fiscais, decisões equivoca-das, malbaratamento dos recursos públicos e outras tantas ações dani-nhas não raro contrapõem governantes e governados, Estado e indiví-duos.

Como o interesse do Estado ou dos governantes não coincide necessariamente com o bem geral da coletividade, Renato Alessi distin-guiu o interesse público primário (o bem geral) do interesse público secundário (o modo pelo qual os órgãos da Administração veem o inte-resse público); com efeito, em suas decisões, nem sempre os governan-tes atendem ao real interesse da comunidade.6

O interesse público primário é o interesse social (o interesse da sociedade ou da coletividade como um todo).

4. Massimo Villone, La collocazione istituzionale dell’interesse diffuso, em La tutela degli interessi diffusi nel diritto comparato, Milão, Giuffrè, 1976.

5. Segundo Norberto Bobbio (A era dos direitos, Rio de Janeiro, Campus, 1992), os direitos de primeira geração são os individuais e os políticos (como aqueles que foram conquistados em face dos soberanos absolutos); os de segunda geração, os sociais (como os ligados à proteção dos trabalhadores); os de terceira geração, os coleti-vos (como a defesa do meio ambiente); os de quarta geração, os da humanidade (como a imposição de limites para as pesquisas biológicas).

6. Renato Alessi, Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano, 3ª ed., p. 197-198, Milão, Giuffrè, 1960.

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52 — CAPÍTULO 1

A distinção de Alessi permite evidenciar, portanto, que nem sem-pre coincidem o interesse público primário e o secundário. Nesse sen-tido, o interesse público primário (bem geral) pode ser identificado com o interesse social, o interesse da sociedade ou da coletividade, e até mesmo com alguns dos mais autênticos interesses difusos (o exemplo, por excelência, do meio ambiente em geral).

Partindo, porém, da constatação de que a sociedade atual é cada vez mais complexa e fragmentária — pois os interesses de grupos se con-trapõem de forma acentuada (característica da conflituosidade, em re-gra presente nas questões que envolvam interesses difusos e coletivos) —, alguns doutrinadores, mais recentemente, têm sustentado o esvazia-mento do conceito de interesse público, ou, na mesma linha de raciocí-nio, têm negado que exista um único bem comum.7 Assim, p. ex., insta-lar uma fábrica numa cidade pode ser um grande benefício social no que diz respeito à geração de empregos diretos e indiretos, à arrecadação de tributos e à vida econômica do lugar, mas, ao mesmo tempo, pode trazer sérios danos ao meio ambiente na região, dependendo da atividade a ser desenvolvida. Noutro exemplo, melhorar os serviços sociais à disposição das classes mais pobres pode exigir aumento de impostos para as classes economicamente mais favorecidas, o que será contrapor os interesses dos grupos diretamente envolvidos no problema.

Sem negar, porém, o caráter da conflituosidade normalmente inato na discussão dos interesses transindividuais, de nossa parte, cre-mos ainda na supremacia da noção do bem comum, ou seja, o interesse público primário. Assim, nos exemplos acima, a solução exigida pelo bem geral consiste em instalar a fábrica e, ao mesmo tempo, respeitar o meio ambiente, ainda que, com isso, estejamos a não agradar integral-mente, ou a desagradar preponderantemente a todos os grupos mais ativamente envolvidos na controvérsia; melhorar os serviços sociais va-lendo-nos de impostos que obedeçam aos parâmetros constitucionais, inclusive o da razoabilidade, é o que pede o bem geral, ainda que não se consiga, num só instante, compor todos os interesses em jogo.

3.

Interesses transindividuais e sua tutela coletiva

Situados numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, existem os interesses transindividuais (também chamados de interesses metaindividuais ou ainda de interesses coletivos em sentido lato), os quais são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas (como os condôminos de um edifício, os sócios de uma empresa, os membros de uma equipe esportiva, os empregados do mesmo patrão). São interesses que excedem o âmbito estritamente

7. José Eduardo Faria, A definição de interesse público, em Processo civil e in-teresse público, p. 84-85, Revista dos Tribunais, 2003.

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individual, mas não chegam propriamente a constituir interesse pú-blico.8

Sob o aspecto processual, o que caracteriza os interesses transin-dividuais, ou de grupo, não é apenas o fato de serem compartilhados por diversos titulares individuais reunidos pela mesma relação jurídica ou fática. Mais do que isso, é a circunstância de que a ordem jurídica reconhece a necessidade de que o acesso individual dos lesados à Justiça seja substituído por um acesso coletivo, de modo que a solução obtida no processo coletivo não apenas deve ser apta a evitar decisões contra-ditórias como, ainda, deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido em proveito de todo o grupo le-sado.9

Atendendo a essa realidade e procurando melhor sistematizar a defesa dos interesses transindividuais já iniciada pela LACP, o CDC pas-sou a distingui-los segundo sua origem: a) se o que une interessados determináveis, que compartilhem interesses divisíveis, é a origem co-mum da lesão (p. ex., os consumidores que adquirem produtos de série com o mesmo defeito), temos interesses individuais homogêneos; b) se o que une interessados determináveis é a circunstância de compartilha-rem a mesma relação jurídica indivisível (como os consumidores que se submetem à mesma cláusula ilegal em contrato de adesão), temos interesses coletivos em sentido estrito; c) se o que une interessados in-determináveis é a mesma situação de fato, mas o dano é individual-mente indivisível (p. ex., os que assistem pela televisão à mesma propa-ganda enganosa), temos interesses difusos.10

Há, pois, interesses que envolvem uma categoria determinável de pessoas (como os interesses individuais homogêneos e os interesses coletivos); outros, são compartilhados por grupo indeterminável de in-divíduos ou por grupo cujos integrantes são de difícil ou praticamente impossível determinação (como os interesses difusos).

Todos os interesses de grupos, classes ou categorias de pessoas merecem tutela coletiva para acesso à Justiça, e não apenas tutela indivi-dual.

A tutela coletiva apresenta estas características:

a) Na tutela coletiva, estabelece-se uma controvérsia sobre inte-resses de grupos, classes ou categorias de pessoas (enquanto nos confli-tos coletivos o objeto da lide são interesses difusos, coletivos ou indivi-duais homogêneos, já nos conflitos indiviindivi-duais, de regra, a controvérsia cinge-se a interesses propriamente individuais);

8. Mauro Cappelletti, Formazioni sociali e interessi di gruppo davanti alla giustizia civile, em Rivista di Diritto Processuale, 30:367, 1975.

9. Massimo Villone, op. cit. 10. CDC, art. 81.

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54 — CAPÍTULO 1

b) Na tutela coletiva, é frequente a conflituosidade entre os pró-prios grupos envolvidos (enquanto nos conflitos tipicamente individuais a lide se estabelece entre autor e réu, ainda que agindo isoladamente ou em conjunto com os respectivos litisconsortes, já nos conflitos coletivos temos, não raro, grupos, categorias ou classes de pessoas com preten-sões colidentes entre si — também chamados “interesses macrossociais” —, como as de um grupo que, ao invocar o direito ao meio ambiente sadio, deseje o fechamento de uma fábrica, e as de outro grupo de pes-soas que dependam, direta ou indiretamente, da manutenção dos res-pectivos empregos ou da continuidade da produção industrial, para sua própria subsistência);11

c) A defesa judicial coletiva faz-se por meio de legitimação extra-ordinária (enquanto nos conflitos individuais aquele que pede a presta-ção jurisdicional é, de regra, quem invoca a titularidade do direito a ser defendido, já nos conflitos coletivos, o autor da ação civil pública ou coletiva defende mais do que o direito próprio à reintegração da situação jurídica violada, pois também e especialmente está a defender interesses individuais alheios, não raro até mesmo divisíveis, os quais são compar-tilhados por grupo, classe ou categoria de pessoas);12

d) No processo coletivo, o pedido é formulado em proveito de um grupo, classe ou categoria de lesados, diversamente do que ocorre no processo individual, em que o pedido é formulado em favor das par-tes, que agem isoladamente ou em litisconsórcio;

e) Na tutela coletiva, a destinação do produto da indenização normalmente é especial (enquanto nas ações civis públicas ou coletivas que versem interesses difusos e coletivos o produto da indenização vai para um fundo fluido, de utilização flexível na reparação do interesse lesado, já nas ações individuais, o produto da indenização destina-se di-retamente aos lesados; somente quando da defesa coletiva de interesses individuais homogêneos é que o produto da indenização será repartido entre os integrantes do grupo lesado);

f) Na tutela coletiva, como os colegitimados ativos para a ação civil pública ou coletiva não são titulares dos interesses transindividuais objetivados na lide, em alguns casos a imutabilidade do decisum ultra-passa os limites das partes processuais (coisa julgada erga omnes ou

11. Diante da intensidade de conflitos nos processos coletivos, alguns os cha-mam de processos estruturais. Como observou Sérgio Cruz Arenhart, “as questões típicas de litígios estruturais envolvem valores amplos da sociedade, no sentido não apenas de que há vários interesses concorrentes em jogo, mas também de que a esfera jurídica de vários terceiros pode ser afetada pela decisão judicial” (Processos estruturais no Direito brasileiro: reflexões a partir do caso da ACP do carvão, http://revistadeprocessocompa-rado.com.br/wp-content/uploads/2016/01/ARENHART-Sergio-Artigo-Decisoes-estruturais. pdf, acesso em 26-10-20).

12. Sobre as controvérsias a propósito da natureza da legitimação ativa nas ações civis públicas e coletivas, v., mais especialmente, o Cap. 2.

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ultra partes), ao contrário do que ocorre com a coisa julgada nas ações tipicamente individuais (nas quais a imutabilidade do dispositivo fica restrita às partes do processo);

g) Na tutela coletiva, preponderam os princípios de economia processual (enquanto na tutela coletiva se discute numa só ação o direito de todo o grupo, classe ou categoria de pessoas, já na defesa individual, as ações judiciais dos lesados ficam pulverizadas, o que normalmente enseja julgamentos contraditórios, com grande desprestígio para a ad-ministração da Justiça, pois indivíduos em idêntica situação fática e jurí-dica acabam recebendo soluções díspares; essas incoerências, aliadas às despesas do processo, levam muitos lesados a abandonarem a defesa de seu direito e desistirem do acesso individual à jurisdição).13

Vamos agora à análise da questão terminológica: qual expressão é mais correta, interesses transindividuais ou metaindividuais?

Embora, em rigor de formação gramatical, seja preferível utili-zarmo-nos da primeira expressão, porque é neologismo formado com prefixo e radical latinos (diversamente da segunda, que, como hibri-dismo, soma prefixo grego a radical latino), a doutrina e a jurisprudência têm usado ambos os termos, no mais das vezes indistintamente, para referir-se a interesses de grupos, ou a interesses coletivos, em sentido lato.

O direito processual cuida da defesa dos interesses de grupo, mas sua conceituação e seu objeto são dados pelo direito material.

4.

Interesses difusos

14

Difusos — como os conceitua o CDC — são interesses ou direi-tos “transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.15 Os in-teresses difusos compreendem grupos menos determinados de pes-soas (melhor do que pespes-soas indeterminadas, são antes pespes-soas inde-termináveis), entre as quais inexiste vínculo jurídico ou fático preciso. São como um feixe ou conjunto de interesses individuais, de objeto indivisível, compartilhados por pessoas indetermináveis, que se en-contrem unidas por circunstâncias de fato conexas.

Advirta-se, porém, que, embora o CDC se refira a ser uma situa-ção fática o elo comum entre os lesados que compartilhem o mesmo interesse difuso, é evidente que essa relação fática também se subordina

13. Trata-se do fenômeno da litigiosidade contida, de que falava Kazuo Wata-nabe, em Juizado especial de pequenas causas, p. 2, Revista dos Tribunais, 1985.

14. Sobre a defesa de interesses difusos pelo Ministério Público, v., em especial, o Cap. 4, n. 15.

15. CDC, art. 81, parágrafo único, I. A lei refere-se a interessados indetermina-dos; entretanto, tratando-se de interesses difusos, melhor seria tivesse dito interessados indetermináveis.

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CAPÍTULO 3

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

SUMÁRIO: 1. O que é ação civil pública ou ação coletiva. 2. Ações de iniciativa do Ministério Público. 3. Ações funda-das na Constituição da República. 4. Ações fundafunda-das no Có-digo Civil. 5. Ações fundadas no CóCó-digo de Processo Civil. 6. Ações fundadas no Código de Processo Penal. 7. Ações fundadas no Estatuto da Criança e do Adolescente. 8. Ações fundadas na legislação trabalhista. 9. Ações fundadas na Lei de Registros Públicos. 10. Ações fundadas na Lei de Lotea-mentos. 11. Ações fundadas em leis diversas.

1.

O que é ação civil pública ou ação coletiva

Piero Calamandrei bem distinguiu ação privada e ação pública, não a partir da natureza privada ou pública do interesse protegido pela norma jurídica, mas sim considerando a titularidade do poder de invocar a tutela judicial do interesse (ou seja, importa saber a quem cabe o poder de dispor da proteção jurisdicional atribuída ao interesse). Como a legi-timação para agir consiste no poder disponível de invocar a garantia ju-risdicional, temos ação privada quando o poder de provocar o exercício da jurisdição está reservado de modo exclusivo ao titular do interesse individual que a norma jurídica protege, e ação pública quando tal po-der é confiado pelo Estado a um órgão público especial, que age, inde-pendentemente de qualquer estímulo privado, por dever de ofício.1

A rigor, sob o aspecto doutrinário, ação civil pública é a ação de objeto não penal proposta pelo Ministério Público.

Sem melhor técnica, portanto, a Lei n. 7.347/85 usou a expressão ação civil pública para referir-se à ação para defesa de interesses tran-sindividuais, proposta por diversos colegitimados ativos, entre os quais até mesmo associações privadas, além do Ministério Público e outros ór-gãos públicos. Mais acertadamente, quando dispôs sobre a defesa em

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juízo desses mesmos interesses transindividuais, o CDC preferiu a deno-minação ação coletiva, da qual as associações civis, o Ministério Público e outros órgãos públicos são colegitimados.

A ação civil pública da Lei n. 7.347/85 nada mais é que uma es-pécie de ação coletiva, como o mandado de segurança coletivo e a ação popular.

Baseados na literalidade do inc. IV do art. 1º da Lei n. 7.347/85 (que só mencionam expressamente os interesses difusos e coletivos) e nos arts. 81 e 91 da Lei n. 8.078/90 (que se referem à tutela coletiva de interesses individuais homogêneos), dizem alguns que as ações para tu-tela de interesses difusos e coletivos são ações civis públicas, enquanto a tutela de interesses individuais homogêneos se faz por ações coletivas. O entendimento é superficial, pois que há todo um microssistema de tutela coletiva, do qual fazem parte, de forma integrada, tanto a LACP como o CDC (LACP, art. 21; CDC, art. 90). Assim, é perfeitamente possí-vel utilizar a ação civil pública da Lei n. 7.347/85 para defender quaisquer interesses transindividuais, inclusive aqueles homogêneos, ainda que não apenas de consumidores.

Como denominaremos, pois, uma ação que verse a defesa de in-teresses difusos, coletivos ou individuais homogêneos ?

Se ela estiver sendo movida pelo Ministério Público, o mais cor-reto, sob o prisma doutrinário, será chamá-la de ação civil pública. Mas se tiver sido proposta por associações civis, mais correto será denominá-la ação coletiva. Sob o enfoque puramente legal, será ação civil pública qualquer ação movida com base na Lei n. 7.347/85, para a defesa de in-teresses transindividuais, ainda que seu autor seja uma associação civil, um ente estatal, o Ministério Público, ou qualquer outro colegitimado; será ação coletiva qualquer ação fundada nos arts. 81 e s. do CDC, que verse a defesa de interesses transindividuais. De qualquer forma, porém, nenhuma ação de objeto coletivo poderá ser rejeitada apenas porque o autor a chamou de coletiva em vez civil pública, ou vice-versa… A mera nomenclatura será irrelevante.

Segundo a Constituição Federal, o Ministério Público nunca terá legitimidade exclusiva para a promoção de ação civil em defesa de inte-resses transindividuais.2 São colegitimados ativos para as ações civis pú-blicas ou coletivas previstas na LACP ou no CDC as pessoas jurídicas de direito público interno, as associações civis, os sindicatos e alguns outros órgãos e entidades que, em momento próprio, aqui serão estudados.3

2.

Ações de iniciativa do Ministério Público

Ressalvadas as ações cíveis cuja iniciativa caiba, por expresso, a membros do Ministério Público integrantes de Promotorias de Justiça

2. CR, art. 129, § 1º. 3. V. o Cap. 17.

(11)

AÇÃO CIVIL PÚBLICA — 79

especializadas (p. ex., a ação de nulidade de casamento, às promotorias de família; a ação destinada à proteção do patrimônio público e social, às promotorias da cidadania etc.) — no mais, a ação civil pública em geral cabe ao promotor de Justiça cível.4

Já temos feito levantamento mais amplo das hipóteses de ações civis públicas, e aqui lembraremos as mais expressivas.5

3.

Ações fundadas na Constituição da República

1. Ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (arts. 102, I, a, 103, VI, e 129, IV).

2. Ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão (arts. 102, I, a, 103, VI e § 2º, e 129, IV).

3. Ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato nor-mativo federal (arts. 102, I, a, e 103, VI, cf. EC ns. 3/93 e 45/04).

4. Representação interventiva para assegurar observância de princípios constitucionais ou no caso de recusa à execução de lei federal (arts. 34, VII, e 36, III, com a redação da EC n. 45/04).

5. Ação direta interventiva por inconstitucionalidade de lei es-tadual ou municipal em face da Constituição eses-tadual, proposta pelo procurador-geral de Justiça ao Tribunal de Justiça local (arts. 35, IV, 125, § 2º, e 129, IV).

6. Arguição de descumprimento de preceito fundamental de-corrente da Constituição (art. 102, § 1º, da CR, c.c. o art. 2º, I, da Lei n. 9.882/99).

7. Ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III).6

8. Ação para defesa dos interesses das populações indígenas (art. 129, V).

9. Ação de responsabilidade civil por fatos apurados por comis-sões parlamentares de inquérito (art. 58, § 3º).

10. Dissídio coletivo (art. 114, § 3º, com a redação da EC n. 45/04).

11. Pedido de aprovação, revisão ou cancelamento de súmula vinculante (art. 103-A, § 2º, introduzido pela EC n. 45/04).

4. LC paulista n. 734/93, arts. 46, 47, 121 e 295.

5. Para um estudo mais aprofundado da matéria, v. nosso Manual do promotor de Justiça, Cap. 27.

6. O Ministério Público não mais representa a Fazenda na ação fiscal, diante da vedação do art. 129, IX, da CR. Com a sanção das Leis Complementares ns. 73/93 e 75/93, restou superada a ressalva do art. 29, § 5º, do ADCT.

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12. Representação para impugnação de mandado eletivo (art. 14, § 10, c.c. o art. 22 da LC n. 64/90).

13. Representação por irregularidades na propaganda eleitoral (CR, arts. 127, caput, e 129, II).7

4.

Ações fundadas no Código Civil

14. Pedido de declaração de ausência e nomeação de curador (CC, art. 22).

15. Pedido de abertura de sucessão provisória (CC, art. 28, § 1º). 16. Ação velando por fundações, ou para a extinção de fundações (CC, arts. 66 e 69; CPC, art. 765).

17. Ação de nulidade ou de anulação de atos jurídicos (CC, art. 168).8

18. Ação de execução de obrigação de fazer, imposta por doador ao donatário, de interesse geral (CC, art. 553, parágrafo único; CPC, arts. 501 e 815).

19. Ação de liquidação de sociedade simples (CC, art. 1.037). 20. Ação para inscrição e especialização de hipoteca legal (CC, art. 1.497, § 1º).

21. Ação de nulidade de casamento, quando haja infringência de impedimento (CC, arts. 1.548, II, e 1.549).

22. Ação de suspensão do poder familiar (CC, art. 1.637). 23. Ação de destituição do poder familiar (CC, arts. 1.637-1.638). 24. Qualquer ação cautelar ou principal, visando à segurança do menor e de seus haveres (CC, art. 1.637).

25. Ação de remoção, suspensão ou destituição de tutor ou cu-rador, ou de prestação de suas contas (CC, arts. 1.637, 1.757 e 1.766; CPC, arts. 761 e 763, § 2º).

26. Pedido de nomeação de curador especial em favor de inca-paz, se os interesses deste conflitarem com os de seus pais, no exercício do poder familiar (CC, art. 1.692).

7. O art. 45, § 3º, da Lei n. 9.096/95, com a redação da Lei n. 12.034/09, procu-rava restringir essa representação aos partidos políticos; entretanto, a restrição era in-constitucional, pois cabe ao Ministério Público adotar medidas necessárias na defesa da ordem jurídica e do regime democrático (ADIn n. 4.617-DF, STF Pleno, j. 19-06-13, m.v., rel. Min. Luiz Fux, DJe, 12-02-14).

8. Cf. Nelson Nery Júnior, Vícios do ato jurídico e reserva mental, p. 109-110, Revista dos Tribunais, 1983.

(13)

CAPÍTULO 7

PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE

SUMÁRIO: 1. A proteção legal ao meio ambiente. 2. Con-ceito de meio ambiente. 3. A proteção às coisas, aos animais e aos vegetais. 4. Consciência social da preservação ambien-tal. 5. Legitimação para a ação ambienambien-tal.

1.

A proteção legal ao meio ambiente

Antes da LACP (1985), a legislação ainda era incipiente; faltava um sistema mais adequado para a proteção judicial do meio ambiente. O Dec. n. 83.540, de 4 de junho de 1979, já tinha previsto a propositura pelo Ministério Público de ação de responsabilidade civil por danos de-correntes da poluição por óleo. Em seguida, a Lei n. 6.938/81, que insti-tuiu a Política Nacional do Meio Ambiente, atribuiu ao Ministério Público federal e estadual a ação para constranger o poluidor a indenizar ou a reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, independen-temente de culpa.1

Assim, ainda antes da Lei n. 7.347/85, vale invocar um exemplo pioneiro, que demonstra a fragilidade da legislação vigente à época. Na primeira ação ambiental proposta pelo Ministério Público de que se tem notícia, em inícios de 1983, o Promotor de Justiça Renato Guimarães Júnior requereu na comarca de Campinas uma medida cautelar de pro-testo, visando a impedir a pulverização de um agrotóxico contra uma praga algodoeira. Nessa ocasião, o Ministério da Agricultura pretendia efetuar uma pulverização aérea na região mojiana do Estado de São Paulo, com o agrotóxico “Malathion” (cujo agente químico é o dimetilditiofosfato de mercaptosuccinato de dietila). À falta de melho-res remédios na área cível, o zeloso promotor estadual, depois de insistir na necessidade de prevenir responsabilidades criminais, conseguiu fosse sustada a pulverização, por decisão do juiz José Palmácio Saraiva, da 7ª Vara Cível de Campinas. Embora o protesto visasse expressamente a pre-venir responsabilidades criminais, à evidência o objetivo da iniciativa era

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todo ambiental, e foi ajuizado na esfera cível. Posteriormente, acabou-se entendendo que a competência para conhecer da matéria cabia à Justiça federal.2 Não se seguiu à cautelar ação principal alguma, seja para apurar responsabilidades criminais, seja para reparar danos ambientais à luz da Lei n. 6.938/81, que então já vigorava, pois a pulverização jamais chegou a ser feita.

Esse precedente mostra, porém, a dificuldade que havia para a defesa ambiental, antes do advento da LACP. Assim, diretamente com base no Dec. n. 83.540/79 e na Lei n. 6.938/81, algumas poucas ações civis públicas de caráter ambiental chegaram então a ser propostas pelo Ministério Público. Contudo, foi somente depois, com o advento da Lei n. 7.347/85, que o Ministério Público, em especial, e também os demais legitimados ativos à ação civil pública começaram efetivamente a propor de forma mais intensa medidas judiciais para defesa do meio ambiente. Por que a mudança, especialmente no tocante à atuação do Mi-nistério Público? Como sabemos, a Lei n. 7.347/85 instituiu a ação civil pública para a defesa de interesses difusos e coletivos, inclusive na área ambiental, e cometeu sua iniciativa a diversos colegitimados, entre os quais o Ministério Público.3 Ora, essa lei, diversamente das anteriores, não apenas previu mais uma dentre tantas ações já a cargo do Ministério Público, mas também e principalmente colocou em suas mãos um pode-roso instrumento investigatório de caráter pré-processual, ou seja, o in-quérito civil.4

A seguir, a própria Constituição de 1988, a par de manter a titu-laridade concorrente do Ministério Público para a ação civil pública am-biental,5 ainda alargou o objeto da ação popular, admitindo-a agora não só para anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, como também para anular ato lesivo à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.6 A seguir, a Lei Maior assegurou que todos têm o direito ao meio ambi-ente devidamambi-ente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gera-ções.7

Preocupada em conferir efetividade ao seu comando, ao mesmo tempo que assegurou deveres e direitos ambientais a todos, a Constitui-ção impôs sanções aos infratores, pessoas físicas e jurídicas, com a

2. Cf. Correio Popular (Campinas), 22 maio 1983, n. 17.043, p. 1 e 7. 3. Cf. LACP, arts. 1º, I, e 5º; Lei n. 6.938/81, art. 14 e § 1º. V. Cap. 17.

4. A propósito do inquérito civil, v., neste livro, o Cap. 27; para o exame em profundidade do instituto, v. nosso O inquérito civil, 4ª ed., cit., Saraiva, 2015.

5. CR, art. 129, III. 6. CR, art. 5º, LXXIII. 7. CR, art. 225, caput.

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consequente obrigação de reparar os danos causados,8 e ainda enume-rou uma série de deveres do Poder Público, nessa matéria: a) preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecoló-gico das espécies e ecossistemas; b) preservar a diversidade e a integri-dade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entiintegri-dades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; c) definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; d) exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causa-dora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; e) controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; f) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a cons-cientização pública para a preservação do meio ambiente; g) proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou sub-metam os animais a crueldade.9

Por sua vez, a LC n. 140/11, em seu art. 3º, assegura constituírem objetivos fundamentais do Estado: a) proteger, defender e conservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, promovendo gestão des-centralizada, democrática e eficiente; b) garantir o equilíbrio do desen-volvimento socioeconômico com a proteção do meio ambiente, obser-vando a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza e a re-dução das desigualdades sociais e regionais; c) harmonizar as políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os en-tes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente; d) garantir a uniformidade da política ambiental para todo o País, respeitadas as peculiaridades regionais e lo-cais.

A defesa do meio ambiente supõe algumas considerações pré-vias. Em primeiro lugar, como já tivemos ocasião de sustentar em tese conjunta com Antônio Augusto Mello de Camargo Ferraz e Édis Milaré,10 não existe direito adquirido de poluir. É verdade que a Constituição ga-rante que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; mas isso não pode levar à falsa conclusão de que, uma vez autorizada administrativamente determinada atividade, que se viesse a revelar prejudicial ao meio ambiente, nenhuma alteração ou limitação

8. CR, art. 225, § 3º. 9. CR, art. 225, § 1º.

10. O Ministério Público e a questão ambiental na Constituição, tese aprovada pelo Congresso Nacional de Ministério Público, preparatório para a Assembleia Nacional Constituinte (São Paulo, 1985), publicada na Revista Justitia, 131-A, ed. especial, 1985, MPSP.

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se lhe poderia impor posteriormente em homenagem àquele princípio e ao exercício da livre iniciativa. A rigor, inexiste direito adquirido, do particular, em prejuízo do interesse coletivo de gerações futuras. O di-reito de propriedade, conquanto resguardado constitucionalmente, tem função social; portanto, desde que o uso da propriedade se divorcie de sua função social, a Administração, no exercício do poder de polícia, tem o dever de limitá-lo administrativamente (inclusive por meio da expro-priação) ou por via de recurso ao Poder Judiciário, pois, do contrário, tornar-se-á solidariamente responsável por eventuais danos sofridos por terceiros em virtude de sua ação (permitindo o exercício de atividade prejudicial ao meio ambiente) ou de sua omissão (negligenciando o po-liciamento dessa atividade). Normas editadas com o escopo de defender o meio ambiente, por serem de ordem pública, têm aplicação imediata, vale dizer, aplicam-se não apenas aos fatos ocorridos sob sua vigência, mas também às consequências e efeitos dos fatos ocorridos sob a égide da lei anterior (facta pendentia); essas normas só não atingirão relações jurídicas ou fatos já definitivamente exauridos antes de sua edição (facta præterita).11

Por outro lado, a defesa do meio ambiente supõe observância do princípio da responsabilidade objetiva,12 o que afasta a investigação e a discussão da culpa, mas não se prescinde do nexo causal entre o dano havido e a ação ou omissão de quem cause o dano, mas não se prescinde seja estabelecido o nexo causal entre o fato ocorrido e a ação ou omissão daquele a quem se pretenda responsabilizar pelo dano ocorrido (art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/81).

Para melhor discussão da responsabilidade decorrente da teoria do risco e da questão do nexo causal em matéria ambiental, reportamo-nos, respectivamente, ao Cap. 40, n. 1, a, e n. 3, onde essas matérias são discutidas mais detidamente.

Quando a lei impõe deveres propter rem, o proprietário de imó-vel pode sujeitar-se, v.g., independentemente de dano ou nexo causal, ao dever de conservar vegetação de preservação permanente ou ao dever de reservar uma percentagem da área do imóvel para cobertura vegetal (como a reserva legal ou a servidão ambiental).13 Como sabemos, as obrigações propter rem são aquelas a que fica sujeito o devedor simples-mente por ser titular do direito sobre a coisa.14

Na degradação dos ecossistemas, do patrimônio e dos recursos naturais da zona costeira, a lei infraconstitucional estabelece uma regra especial: exige que o Ministério Público comunique ao Conselho

Nacio-11. Nesse sentido, v. Cap. 25, item, 2, i.

12. Cf. art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/81. A propósito, v. Caps. 19, n. 1, e 40. 13. Lei n. 12.651/12, arts. 3º, III, 4º, 6º, 12, 13, § 1º e 44; Lei n. 6.938/81, art. 9º-A, com a redação da Lei n. 12.651/12.

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nal do Meio Ambiente (Consema) o teor das sentenças condenatórias e dos acordos judiciais que disponham a respeito.15

Supondo tenha havido um dano ambiental, a regeneração natu-ral do local atingido obstaria a qualquer ação judicial na proteção do mesmo bem já restaurado pela natureza?

Não é raro que os causadores de danos ambientais não façam nada para repará-los, deixando só à natureza o pesado encargo de levar anos para consertar o que o ser humano destrói em minutos com o em-prego de fogo ou máquinas. Entretanto, mesmo que esteja havendo ou se tenha completado a recuperação natural do meio ambiente degra-dado, antes disso já terá havido violação do Direito, suscetível de repa-ração indenizatória. Por isso, da mesma forma que a natureza se encar-rega de reparar as pequenas lesões corporais, também os pequenos da-nos ambientais, ainda que passíveis de recuperação espontânea pela na-tureza, nem por isso deixam de ser violações indenizáveis, e o produto da indenização deve reverter para o Fundo de que cuida o art. 13 da Lei n. 7.347/85. No caso, da violação do direito surge o dever de indenizar a coletividade pelo período em que teve diminuída a fruição de um bem jurídico a ela assegurada (interesses difusos).

Assim como no Direito Penal, no Direito Ambiental também é necessário construir uma teoria de prevenção geral positiva, que busque desenvolver a confiança do cidadão nas normas concretas: “É uma teoria de prevenção geral (trata da população como um todo) e é positiva, por-que não é dissuasória (negativa) e sim meta positiva, ou seja, a constru-ção de uma consciência de normas”16 — no sentido de preservação do habitat do ser humano, não só para a atual como especialmente para as futuras gerações.

Torna-se, pois, imperioso não apenas reprimir, como dissuadir, com a certeza da aplicação da lei, pois a impunidade é o maior estímulo à violação da lei.

Algumas questões que também dizem respeito à tutela ambiental foram por nós cuidadas em outros tópicos desta obra, e a eles nos reme-temos: a) o sistema prescricional em relação às infrações ambientais é abordado no Cap. 40, n. 4; b) a desconsideração da responsabilidade jurídica é enfrentada no Cap. 19, n. 1, e.

2.

Conceito de meio ambiente

Segundo o art. 3º, I, da Lei n. 6.938/81, meio ambiente é o con-junto de condições, leis, influências e interações de ordem física, quí-mica e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.

15. Lei n. 7.661/88, art. 7º, parágrafo único.

16. A respeito da teoria da prevenção geral positiva, v. Winfried Hassemer, A que metas pode a pena estatal visar? em Justitia, 134:26.

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