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O EFEITO FOUCAULT: FAZER PESQUISA PARA PENSAR DIFERENTEMENTE DO QUE SE PENSA

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Academic year: 2021

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O EFEITO FOUCAULT: FAZER PESQUISA PARA PENSAR DIFERENTEMENTE DO QUE SE PENSA Henrique Caetano Nardi (UFRGS) Rosane Azevedo Neves da Silva (UFRGS)

Eu tenho consciência de me deslocar sempre tanto em relação às questões que me interessam como em relação a aquilo que eu já pensei. Eu não penso nunca exatamente a mesma coisa, pois meus livros são para mim experiências, no sentido mais pleno possível. Uma experiência é algo do qual nós saímos transformados (FOUCAULT, 1994a, p. 41).

Este capítulo tem por objetivo explorar a força política do pensamento foucaultiano nos modos de fazer pesquisa em Psicologia Social. A caixa de ferramentas conceituais deixada por Michel Foucault mostra como nosso pensamento se enreda nos dispositivos de saber e poder que caracterizam as formas de governo contemporâneas e, ao mesmo tempo, nos coloca o desafio de que podemos ser mais livres do que pensamos ser.

O que é o efeito de um pensador na produção de conhecimento inerente ao ato de pesquisar? Tal efeito, só pode ser apreendido a partir do que ele produz no pensamento ao nos forçar a pensar outramente.

O efeito, neste caso, não significa fazer o mesmo, repetindo o que já foi feito por um determinado autor, mas procurar entender o movimento de um determinado sistema de pensamento, criando assim a possibilidade de novas produções de sentido. Trata-se, portanto, de embarcar no movimento imanente ao pensamento de um autor, tomando dele a tática utilizada para implementar uma determinada estratégia de produção de conhecimento. No caso do pensamento foucaultiano, nós podemos dizer que este movimento tem duas características fundamentais: a primeira é produzir uma desnaturalização dos procedimentos que procuram estabelecer uma relação entre saber e verdade. Foucault faz isto através de uma desnaturalização sistemática das evidências que cercam a constituição dos objetos e das práticas correspondentes a tais objetos. A segunda característica, é que este pensamento está sempre voltado para o presente, ou seja, para entender o que somos e o que deixamos de ser, e nos levando assim a questionar como nos constituímos historicamente naquilo que hoje somos. Essa segunda característica pode causar certo estranhamento porque se tomarmos o conjunto de sua obra veremos que as análises de Foucault sempre estiveram situadas em

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algum lugar do passado. Mas nesta análise do passado, a estratégia do pensamento foucaultiano sempre foi a de colocar em questão o modo pelo qual cada formação histórica produz um determinado regime de verdade que se atualiza através de um conjunto específico de práticas. O uso de análises do passado, particularmente a do sujeito grego ao final de sua obra, marca uma estratégia política de enfrentamento das formas de sujeição que limitam nossa liberdade e que Frédéric Gros (2001) chamou de “obliquidade histórica” quando descreve a situação do curso de Foucault no Collège de France intitulado “Hermenêutica do Sujeito” e que anuncia os dois últimos volumes publicados da histórica da sexualidade. Ao mostrar como os vetores de subjetivação próprios a outros contextos produzem um sujeito outro, Foucault opera a desnaturalização e dessencialização, mostrando que podemos ser diferentes do que somos hoje, que o sujeito é mais forma que conteúdo e que a forma indivíduo que caracteriza os modos de subjetivação nas sociedades modernas e contemporâneas não é a única possível, pois as formas-sujeito são dependentes de suas historicidades.

Estas características fazem parte de uma mesma estratégia de produção de conhecimento marcada, sobretudo, pelas dimensões crítica e política, as quais vão operar na definição dos regimes de verdade que caracterizam os modos e processos de subjetivação que conformam a experiência que o sujeito faz de si mesmo no interior do jogo de verdades (FOUCAULT, 1994b) próprio à dobra temporal que marca sua emergência. Assim, para Gros (2001, p. 505), a tese de Foucault pode ser resumida da seguinte forma, se para o sujeito grego sua constituição era marcada pela busca da ação correta/justa, no ocidente moderno, o sujeito é marcado pela busca do conhecimento verdadeiro.

Desde seu ingresso como professor no Collège de France, as análises de Foucault estavam claramente voltadas para uma genealogia do sujeito. No curso de 1970 “Lições sobre a vontade de saber” a sua preocupação se situava na constituição da vontade de verdade como característica da modernidade. A questão que dirigia sua pesquisa naquela ocasião era entender quais lutas e quais relações de dominação conformavam esta vontade de verdade. Ele apontava quatro problemas para pensar a relação entre conhecimento, saber e verdade (FOUCAULT, 2011, p. 5-6):

1) Ao falar de vontade de verdade, trata-se de distinguir o verdadeiro do falso ou uma vontade mais radical que coloca e impõe o sistema verdade-erro? Trata-se de vontade de saber ou de vontade de verdade? E entre elas, qual o lugar do conhecimento? O que se entende por

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vontade? Como diferenciar vontade de desejo? Qual a relação entre a vontade de saber e o desejo de conhecer?

2) Qual a relação teórica e histórica entre a vontade de saber e as formas de conhecimento? 3) É pertinente para uma análise dos saberes que tenta não se referir a um sujeito fundador tomar como noção central a vontade? Não se estaria assim introduzindo, de outro modo, algo como um sujeito soberano?

4) Ao buscar descobrir, por trás dos fenômenos históricos do saber, uma vontade de afirmação (mesmo que anônima), não estaríamos retornando a um tipo de história autônoma e ideal onde a vontade de saber determinaria ela mesma os fenômenos onde ela se manifesta? Em que seria ela diferente de uma história do pensamento, da consciência ou da cultura? A que ponto se pode articular esta vontade de saber aos processos reais de luta e dominação presentes na história das sociedades.

Finalmente, Foucault vai dizer que seu trabalho buscava recolocar o jogo de verdade em uma rede de imposições e de dominação. Ao fazer isso, ele poderia dar visibilidade à violência que caracteriza o sistema do verdadeiro e do falso que marca nossa civilização ocidental.

Nesta direção, ele denuncia as premissas da maquinaria do positivismo ao criticar a relação conhecimento-verdade que conduz e produz nossa vontade de saber:

“As coisas não tem um sentido escondido que devemos decifrar, não têm uma essência que constitui sua “nervura” inteligível e não são objetos que obedecem a leis” (FOUCAULT, 2011, p.196). Explorando o pensamento de Nietzsche, Foucault retoma a afirmação deste de que “não existe conhecimento em si”, uma vez que:

“(...) a relação sujeito-objeto (e todas suas derivações como o a priori, objetividade, conhecimento puro, sujeito constituinte) são produzidos pelo conhecimento ao invés de servir de fundamento para ele. Assim como o pensamento nada mais é que um efeito, o pensamento é um efeito do extra-pensamento, não um resultado natural, mas violência e ilusão” (FOUCAULT, 2011, p.202-3). A inspiração nietszcheana foi fundamental para Foucault pensar o conhecimento como um processo histórico anterior a uma problemática da verdade e para além da relação sujeito-objeto. Assim, o conhecimento “libertado” da relação sujeito-objeto pode ser pensado como “saber”.

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A relação sujeito-objeto e a vontade de saber na Psicologia

Estes desafios colocados por Foucault são tomados aqui para pensarmos as possibilidades e os obstáculos existentes na construção de uma psicologia para além da relação sujeito-objeto, ou melhor, a partir do exercício de suspensão da relação sujeito-objeto, uma vez que o contorno desta relação se dá no interior de um sistema de legitimação do que é dito e produzido como verdade.

Como tomar o conhecimento como saber no cotidiano da produção científica? Como enfrentar este desafio de superar o sistema verdadeiro-falso preso na lógica da repetição de casos clínicos, repertório de comportamentos que, pela acumulação de resultados de testes/escalas/observações/descrições, obedecem a uma vontade de verdade presa no sistema do verdadeiro e do falso e da produção da diferença como desvio, como doença, como falta? Como sair de uma lógica de normalização e hierarquização do humano que a psicologia na sua história breve contribuiu-contribui a edificar nas suas associações-subordinações com a lei, a medicina e a religião?

Não se trata, neste texto, de condenar os testes, as escalas, as observações, as descrições e interpretações de casos, mas de atentar para os riscos de seu uso quando presos à obediência a uma vontade de verdade que produz o conhecimento como violência. Vemos estes riscos em diferentes campos no espectro da diversidade da produção em psicologia. Em um de seus polos, encontramos como ponto de partida e chegada a ideia de um sujeito autônomo que produz os limites da alteridade possível, que exclui a liberdade como condição da reflexão ética e que, no seu lugar, constrói códigos morais que vão demarcar a direção da conduta e a análise dos comportamentos. No polo oposto, mas preso à mesma lógica autoritária, está a invocação da estrutura psíquica e suas leis simbólicas, seus nomes do pai e suas leituras heterossexistas e sexistas, frutos de uma ordem social que esquece sua emergência para erigi-la em essência, uma base do humano inventada, cuja invenção é esquecida para transformar-se em inescapável destino.

A descrição do dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, 1976) vai ser importante para pensarmos ao mesmo tempo, os vetores históricos que marcam a emergência da psicologia e a rede que a aprisiona. Como George Canguilhem (1995[1966]) já havia anunciado, os caminhos da psicologia podiam tomar tanto a direção das grandes obras do pensamento como da delegacia de polícia. A primeira direção toma a ética e a liberdade como guias da produção do conhecimento, a segunda aponta para a normalização dos comportamentos a partir da

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adaptação e da obediência do sujeito ao meio social, tomando o código moral como parâmetro de normalidade.

A partir da descrição do dispositivo da sexualidade e da desconstrução da hipótese repressiva realizadas por Foucault (1976) podemos ver como as ciências (e aqui a psicologia encontra um de seus berços) que se ocupam contemporaneamente da construção do objeto sexualidade, operaram com a noção de liberação da sexualidade como forma de romper as amarras da repressão que marcariam nossos tempos e subjugariam os sujeitos. Como a análise é feita a partir de uma naturalização na noção de repressão, a produção de conhecimento se vê presa no mesmo jogo de incitação discursiva, a vontade de saber moderna, que criou o par ‘repressão-liberação’. Assim, embora se acredite operar no sentido de liberar a sexualidade e por consequência a nós mesmos, a incitação discursiva para que se fale de si, que se busque a verdade sobre si, escondida a partir de traumas, segredos, abusos, continua operando na lógica da submissão do sujeito à voz do especialista, aquele que reconhece a verdade e que conhece a senha para que o sujeito conheça a si mesmo e encontre, não mais nas tentações do demônio (como construída no cristianismo), mas no seu inconsciente ou em um inventário de comportamentos, a chave para a revelação do que é. Neste jogo discursivo, a reflexão ética desaparece, pois a passagem da técnica da confissão cristã ao saber psicológico, médico e jurídico, atrela esta revelação do segredo sobre o sexo à construção da verdade sobre o que somos. Se o que somos depende de nossa sexualidade escondida que só pode ser revelada a partir da interpretação do especialista, onde está a reflexão sobre nossas ações e as formas de auto constituição como sujeitos, de como nos relacionamos com os jogos de poder, dominação e verdade. Quais os efeitos de nossas ações sobre os outros e sobre a sociedade, o que fazemos com nossa liberdade?

O jogo de individualização presente nas técnicas psi, amarra o sujeito em uma trama familiar, nos esquemas de desenvolvimento típicos e atípicos, na prisão do édipo, ou no jogo de incitação ao “bom” orgasmo. A vigilância sexual e a explosão discursiva só trocam de palavras, não se mudam as regras do jogo, pois o sujeito se mantem preso no jogo repressão-liberação que faz parte da regra que o submete ao jugo do especialista, ao mesmo tempo em que o especialista está, por sua vez, submetido às lógicas de normalização que legitimam seu saber e que o atrelam ao jugo da biopolítica. É importante ressaltar que esta lógica discursiva se mantém presa às formas de dominação econômicas, as lutas em relação aos modos de subjetivação se ancoram na relação hierárquica de classe. O exercício biopolítico depende da estratégia de construção de uma norma familiar e de uma explosão discursiva que se mantém desde o século XIX, fazendo com que o dispositivo da sexualidade, ao se tornar mais

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importante que o dispositivo da aliança, mantenha a distinção da burguesia em relação aos pobres1. Como disse Foucault (1976), a sexualidade burguesa toma o lugar do sangue como marcador que produzia e legitimava a distinção da nobreza em relação à plebe.

A explosão discursiva sobre a sexualidade, caracterizada por mudanças de enunciação por vezes sutis e por vezes escancaradas, pode ser vista nas páginas dos jornais, na televisão e nos programas das políticas públicas. Enunciados relativos à família pobre malthusiana, à sexualidade promíscua e selvagem dos pobres, à gravidez na adolescência e à vigilância das expressões de gênero e sexualidade são ferramentas de dominação que operam no interior do dispositivo. Não se discutem as condições sociais e de exploração das classes trabalhadoras, se apresenta uma individualização e patologização racista da sexualidade dos pobres, o que faz com que as ferramentas de incitação do discurso psi operem, ora incitando a sexualidade, definido quanti e qualitativamente o bom orgasmo nas classes médias, ora reprimindo a sexualidade perigosa dos pobres.

Se seguirmos a proposta de Foucault de operar na direção de suspender esta relação sujeito-objeto que nos é apresentada como ahistórica e recusarmos a demanda feita pela divisão disciplinar de nos ocuparmos, na psicologia, do comportamento dos sujeitos, sem pensar no contexto da produção de subjetividade e nas condições políticas para a emergência das categorias/enunciados/objetos que nos são oferecidos no contexto da biopolítica, somos incitados a pensar de forma distinta do que o extra pensamento nos impõe como pensamento. Assim, não se trata de dizer que não existe repressão ou que os movimentos de liberação sexual que incrementaram o campo de possibilidades políticas para os corpos são ilusórios, mas sim de compreender os efeitos destes enunciados e práticas nos jogos de verdade e nas relações de poder e dominação que nos inscrevem em uma determinada forma de relação com o que somos. É claro que os questionamentos dos movimentos feminista, LGBT e outros, foram importantes ao desnaturalizar a invenção do édipo, sua suposta universalidade e a relação heterossexista e sexista que o associa a lógica estruturalista da troca de mulheres

1 Embora sejamos defensores do papel da psicologia na assistência social, é importante lembrar que ela é convocada como integrante da equipa básica do Sistema Único de Assistência Social, como uma ferramenta de vigilância das famílias. É o par psicologia-assistência que é convocado como garantia das ações do Estado em relação às famílias merecedoras de suportes sociais. O risco de aplicação do código moral e da submissão cega às noções de família (estruturada e desestruturada) importadas de seu lócus de normalização de classe é grande. Aqui cabe o alerta que faremos no decorrer deste texto em relação à forma de produção de conhecimento que permita com que se recriem estratégias para pensar outramente e que seja vigilante com relação aos efeitos de verdade da prática psicológica, buscando situá-la politicamente a partir da forma com se insere nos jogos de saber-poder. Cabe aqui o alerta feito por Robert Castel (2011) sobre a forma como a Governamentalidade contemporânea “governa pela psicologia”.

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como fundamento da sociedade, assim como são fundamentais, quando nos ajudam a pensar como a demanda pelo reconhecimento pelo Estado de direitos igualitários para mulheres e população LGBT comporta os riscos de uma nova normalização, mas esta produção só foi possível pois suspendeu as categorias-noções apresentadas na lógica da metafísica da substância2 a partir da discussão de sua contingência política. Ou seja, o alerta de Foucault (1994c) de que não existem sociedades sem relações de dominação é fundamental para reverter a lógica reducionista do par liberação-repressão. Assim, trata-se de compreender como compreender as regras que estabelecem as relações de poder legitimadas em um determinado regime de verdades e, sem sair do jogo, compreender como jogar e construir estratégias para que possamos construir formas de relação caracterizadas por um mínimo de dominação e que abram espaço para a reversibilidade de posições.

Aqui neste ponto é importante retomarmos a questão da crítica como um importante operador no modo de problematização que marca o pensamento foucaultiano.

A crítica e o pensamento de Foucault

Cabe ressaltar que a ação de criticar não define o acontecimento da crítica como operador de uma estratégia de produção de conhecimento. A questão que se coloca é: como extrair da ação o acontecimento, encontrando o elemento paradoxal que afirma a potência disjuntiva da crítica? A ação de criticar não se esgota na efetuação da crítica, mas necessita de uma contra-efetuação: é preciso tomar distância da conjugação dos tempos, das pessoas, dos modos, para dar passagem ao atemporal, ao impessoal, ao não-modal do acontecimento da crítica. Ou seja, não basta a efetuação da crítica em um estado de coisas, é preciso que a crítica instaure permanentemente um movimento de contra-efetuação: criticar-se (Agamben/Spinoza). Neste sentido, pode-se dizer que no acoplamento com o método, o verbo criticar assume a forma ativo-reflexiva cuja operação implica um “correto distanciamento” de si e do mundo. É este distanciamento que possibilita encontrar o problema e colocá-lo adequadamente, pois não existe, de um lado, o método e, de outro, o problema aguardando uma regra de soluções apropriada.

A função da crítica, como operador metodológico, expressa tanto a ideia de limite, de virada – no sentido de um ponto crítico que permite encontrar o problema –, quanto uma atitude, um ethos, um modo de fazer pesquisa que permite ultrapassar todo tipo de reducionismo.

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A metafísica da substância é um conceito tomado de Nietzsche por Judith Butler (2002) que busca descrever a naturalização de objetos, ou seja, ela opera fazendo com que pensemos que eles sempre existiram apagando sua emergência histórica.

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Segundo Koselleck (1999), a palavra crítica ganha visibilidade no século XVIII ao exprimir a divisão dualista do mundo em um domínio da moral e um domínio da política, característica do pensamento iluminista, que se manifestava em conceitos antagônicos: razão/revelação, liberdade/despotismo, natureza/civilização. A crítica convertia o mundo em um “palco de forças opostas” (p.89) e sua gênese na cena do Iluminismo está inicialmente relacionada com o campo da dramaturgia: o teatro foi utilizado como espaço para confrontar as leis vigentes, inaugurando o novo domínio da crítica política.

É neste cenário também que Kant, ao responder a questão colocada pelo jornal Berlinische Monatsschrift sobre o que é o Iluminismo, trará a discussão da atualidade e de uma ontologia crítica do presente para dentro do campo da interrogação filosófica, insinuando que a ideia de crise é inerente a uma atitude crítica.

Na esteira de Kant, a crítica foucaultiana caracterizar-se-á pela questão: é possível pensar diferentemente do que se pensa?

Podemos dizer que em Foucault existiriam três platôs ou três zonas de intensidade que reverberam mutuamente esta questão da crítica: um platô arqueológico, um platô genealógico e um platô ético. No platô arqueológico, a crítica introduz a questão da contingência e consiste em situar o que fazemos, pensamos ou dizemos a partir das condições de possibilidade de uma determinada formação discursiva. No platô genealógico, a crítica nos lança a seguinte questão: o que somos e como nos constituímos historicamente naquilo que hoje somos? Deste modo, a crítica lança-nos a possibilidade de ser, pensar ou fazer diferentemente do que somos, pensamos ou fazemos. Neste platô genealógico, a crítica introduz a questão da diferença. No platô ético, a crítica consiste no trabalho de si sobre si mesmo e introduz a questão da liberdade ao mostrar que somos mais livres do que acreditamos que somos. Este platô se configura pela análise dos limites que nos são impostos e por sua possível transgressão, introduzindo a ideia de recusa das formas de assujeitamento (daquilo que somos levados a fazer, pensar ou ser). A crítica seria, assim, a arte da inservidão voluntária, da indocilidade refletida.

Síntese final

Em síntese, para Foucault a função da crítica incide sobre as relações entre o sujeito, a verdade e o poder, ou seja, sobre os mecanismos de assujeitamento.

Assim, se retomamos a breve e densa conceituação de subjetividade para Foucault (1994b, p. 633), ou seja, que esta se refere à forma como o sujeito faz a experiência de si a partir de sua

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inserção em um determinado jogo de verdades, trata-se para a psicologia, de que o conhecimento que é produzido seja sempre marcado pela vigilância quanto aos seus efeitos de verdade. Cremos que o efeito do pensamento de Foucault é sempre o de manter o alerta para que o conhecimento que se legitima nas tramas institucionais da academia seja sempre contextual e marcado por uma produção crítica, ética e politicamente situada.

Referências

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CANGUILHEM, Georges (1995[1966]) O Normal e o Patológico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

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