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O CONCEITO DE ESSÊNCIA NO LIVRO VII DA "METAFÍSICA" DE ARISTÓTELES

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Academic year: 2021

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DA "METAFÍSICA" DE ARISTÓTELES

Lucas Angioni1

A presente dissertação de mestrado consiste basicamente num co-mentário ao livro Z (VII) da "Metafísica” de Aristóteles, no qual este filósofo desenvolve um dos conceitos fundamentais de seu pensamento: o de es-sência (ousia). Sustentando a idéia de que, em última instância, há um fio condutor único a presidir o desenvolvimento do referido conceito, tentamos mostrar, em oposição a certa tradição interpretativa, que, em tal livro, longe de hesitar entre acepções distintas e mesmo contraditórias do conceito de

"essência", Aristóteles o aborda decididamente a partir de uma perspectiva

peculiar, que lhe permite isolar a única acepção que ali lhe interessa, a sa-ber, a de forma, entendida como princípio de inteligibilidade (definibilidade) e de unidade do ente sensível. Nessa perspectiva, longe de oscilar entre uma concepção (para alguns, "realista') de “essência” como “sujeito” e uma

1Dissertação de mestrado defendida em 20.05.97 junto ao Depto de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do prof. José Cavalcante de Souza.

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concepção (para alguns, "idealista") de "essência" como “forma”, Aristóteles estaria tão somente interessado nesta última, cujas dificuldades, além do mais, o ocupam durante a maior parte de seu percurso: Aristóteles, pois, busca determinar de maneira precisa o estatuto da relação entre forma e

matéria na constituição da essência sensível, visando, assim, determinar

um tipo de unidade inteligível imediata cujas respectivas partes, distintas tão somente sob o aspecto da potencialidade ou atualidade das mesmas de-terminações, possam ser imanentemente concebidas uma a partir da outra, de modo a poder colocar a essência em seu todo como princípio suficiente da ciência demonstrativa. De certo modo, portanto, a determinação do con-ceito de essência no livro VII da “Metafísica” apresenta-se como determina-ção das condições em que uma definidetermina-ção (cujo objeto, pois, é primordial-mente uma essência, embora possa também ser algum outro ente situado nas demais categorias), enunciando uma unidade complexa inteligível por si mesma, poderia plenamente satisfazer a função de princípio demonstrativo, tal como estabelecido na teoria da ciência desenvolvida por Aristóteles nos

"Analíticos Posteriores".

O primeiro passo importante para a demonstração dessa proposta interpretativa consiste numa radical mudança na compreensão da estraté-gia argumentativa peculiar ao capítulo VII, 3, no qual freqüentemente se viu, injustificadamente, uma exposição positiva da concepção aristotélica de essência como sujeito, substantia prima, isto é, indivíduo concreto. A partir de certos preconceitos colhidos, por um lado, na doutrina duvidosa das

Categorias a respeito da substância primeira e, por outro lado, na opinião

comum de que Aristóteles, o asclepíada, se opõem radicalmente ao "idea-lismo platônico", muitos intérpretes viram neste capítulo o desenvolvimento da noção de essência como sujeito, isto é, como substância concreta que

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não existe à parte da matéria, etc. A perspectiva de interpretação que pro-pomos é diametralmente diversa: longe de pretender negar a importância da referida oposição ao platonismo na filosofia aristotélica, buscamos, não obstante, demonstrar que o interesse argumentativo do capítulo em questão delimita-se em tomo de outra problemática: ora, a noção de sujeito aí inici-almente posta como acepção primordial de essência está longe de se con-fundir com a idéia de substância primeira ou indivíduo concreto, pois, muito pelo contrário, é ela mesma que permite assinalar a primazia da forma como acepção principal de essência (1029a 5-7). Incapazes de captar o andamento do raciocínio aristotélico, muitos intérpretes acusaram-no de inconsistência, de contaminação indevida de um mesmo passo argumenta-tivo por perspectivas diversas. Contra esse coro imponente, sustentamos que Aristóteles está a delinear um argumento nítido e inteiramente legítimo, cujo interesse consiste em detectar o problema da ambigüidade da noção de sujeito: esta noção, pois, por um lado, reconcilia-se com a noção de

for-ma na medida em que se refere ao sujeito entendido como determinação

completa que subjaz às predicações, no entanto, num outro sentido, mera-mente gramatical e/ou físico, a mesma noção de sujeito aponta para uma crescente indeterminação: é mais sujeito aquilo que subjaz a mais e mais determinações, de modo que resulta ser mais sujeito aquilo que subjaz a todas as determinações possíveis: nesse sentido, pois, a ambigüidade da noção de sujeito poderia levar a conceber a primazia da matéria sobre a forma como acepção privilegiada de essência. Uma tal primazia, no entanto, seria inaceitável no aristotelismo, e Aristóteles trata de reduzi-Ia ao absurdo em 1029a 10-30, por intermédio de duas características distintivas que se atribui consensualmente à essência: esta é, pois, uma determinação com-pleta (tode ti) e perfeitamente concebível em si mesma (xwristo/n),

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exata-mente o oposto de uma indeterminação absoluta a que conduziria a pers-pectiva da noção de sujeito.

Procuramos mostrar, além do mais, que a idéia de que Aristóteles estaria a estabelecer, neste capítulo, a primazia inicial da substância

primei-ra fundamenta-se, em última instância, numa péssima compreensão da fprimei-ra-

fra-se "não fra-ser dito de um sujeito", utilizada nas Categorias numa acepção me-ramente gramatical, mas que, em vários outros textos, assinala preponde-rantemente a natureza homogênea da predicação essencial ou qüiditativa, que predica do sujeito uma noção imanentemente contida no seu "o que é", e, por essa razão, se distingue radicalmente da predicação heterogênea, na qual o predicado se diz de um sujeito que é, efetivamente, outro do ponto

de vista ontológico.

Prova suplementar de que a frase "não ser dito de um sujeito" con-trapõe-se à predicação heterogênea e recobre, por isso mesmo, o campo da predicação qüiditativa (que diz algo contido no “que é”), consiste na ulte-rior utilização, no capítulo seguinte, de expressões análogas para caracteri-zar a essência em termos de predicado "per se".

Assim, restabelecida a primazia da forma como noção primeira de

essência, para além da ambigüidade da acepção de sujeito, Aristóteles

toma a acepção de "o que era ser" (to ti hn einai) e passa a examiná-la de

um ponto de vista dialético (logikw=j), por intermédio das noções de

predi-cado per se (kaq” au(to/) e, posteriormente, de um isto (tode ti). O funda-mento básico para esta delimitação dialética do "que era ser" consiste na noção de predicação homogênea, que enuncia um ou mais elementos da qüididade, e assim se opõe à predicação heterogênea, na qual o predicado se diz de um sujeito que é, de fato, ontologicamente outro. No entanto, a predicação homogênea, enquanto tal, se distribui por todas as categorias

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do ente, e, por isso mesmo, não se mostra suficiente para isolar em sua peculiaridade o conceito de essência, que, por esta via, se mostra distinto do conceito comum de qüididade. E a isto, somente, limita-se a contribuição deste capítulo (e dos dois seguintes) para uma compreensão positiva do conceito de essência: para sustentá-lo, tivemos, naturalmente, de nos con-trapor a toda uma sedimentada tradição que vê, nestas linhas elípticas, eminentes mistérios filosóficos, quando na verdade, Aristóteles está apenas a referir-se sucintamente a pontos já desenvolvidos nos Analíticos

Posterio-res e nos Tópicos, os quais, além de tudo, inscrevem-se no domínio da

di-alética e têm limitada importância para o progresso da conceituação precisa que se tem em vista.

O interesse fundamental do livro VII, como sustentamos, encontra-se nos capítulos de 10 a 12, os quais, no entanto, estão longe de constituir uma unidade doutrinária consistente. Os problemas aí explicitamente anali-sados consistem na relação entre as partes da definição e as partes do

de-finiendum, e na relação de anterioridade ou posterioridade entre o todo e as

partes. O próprio Aristóteles, no entanto, traduz esses problemas para uma formulação mais incisiva: trata-se de determinar a partir de que partes se constitui a essência (1034b 34), e em que consiste a unidade a ser atribuída entre os elementos da definição (1037b 11-13). Na verdade, a dificuldade preponderante aí enfrentada envolve o problema do papel desempenhado pela matéria como parte constitutiva da essência sensível: o interesse prin-cipal de Aristóteles apresenta-se como tentativa de delimitar de que manei-ra ela deverá ser concebida como elemento da definição – e da constituição – de tal essência. Quanto à resolução desta dificuldade, Aristóteles parece oscilar entre três soluções possíveis:

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- a matéria como absolutamente extrínseca à forma e inapreensível à definição, por ser puro princípio de contingência, desnecessário à concep-ção do todo de que é matéria (capítulo 10 inteiro, com nuanças, e a conclu-são do cap. 11, 1037a 21-33).

- a matéria como princípio de certo modo necessário à concepção do todo, mas ainda extrínseco à forma, e a ser mencionado na definição como um terceiro elemento, justaposto extrinsecamente aos elementos da espé-cie, i.e., o gênero e a diferença (1033a 2-5, 1035a 21-23, 1035b 27-30). Em estrita articulação com este problema, desenha-se uma inusitada concep-ção de um composto universal (su/noloj) que se situaria entre a pura forma,

essência primeira, e o indivíduo concreto, delimitado pela matéria e

subme-tido ao devir (1033b 24-26, 1035b 27-30).

- finalmente, a matéria como princípio não apenas necessário, mas também imanentemente contido na forma e na definição: delineia-se assim a concepção de uma unidade intrínseca entre matéria e forma, na qual am-bas surgiriam como uma só e mesma coisa, distinta apenas pelo aspecto da maior ou menor realização efetiva das mesmas determinações. Esta con-cepção se insinua já na crítica ao excesso de abstração de certos adversá-rios platônico-pitagóricos, no cap. 11 (1036b 21-32), se consolida mediante a noção de diferença última perfeita no capítulo 12, e confirma-se não só na recapitulação final do capítulo 17, como veremos, mas também no final do livro VIII (tido consensualmente como um apêndice do livro VII): em verda-de, será no capítulo VIII, 6, em 1045a 23, 29, 1045b 17-19, que encontra-remos com toda a explicitude desejável a afirmação da unidade imanente entre forma e matéria como única maneira de resolver satisfatoriamente, para além da soluções precárias dos platônicos, o problema da unidade da definição e da essência defínienda.

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Em posse desse resultado conclusivo, buscamos retrospectivamente detectar a razão das dificuldades sentidas por Aristóteles na resolução do referido problema. Na verdade, encontramos vários pontos: em primeiro lugar, há verdadeira indistinção, no tratamento desse tema (caps. 10 e 11), entre duas relações bastante distintas entre si: a que envolve matéria e for-ma, e a que envolve o todo e suas partes. Em segundo lugar, o andamento aporético do texto aristotélico, nos referidos capítulos, parece determinado pela ausência de uma clara demarcação entre dois sentidos absolutamente diversos do termo "matéria": um, no qual tal termo é tomado em seu sentido estrito, segundo o seu conceito preciso (como objeto formal, diriam os es-colásticos), como princípio de contingência, possibilidade de ser e de não ser, fonte de unidade numérica e de indeterminação: nesse sentido, a maté-ria exclui-se da definição de qualquer ente, pois a definição é do universal e necessário, que não pode ser de outro modo. Em outro sentido, no entanto, Aristóteles denomina de "matéria" (talvez seguindo o uso comum da lingua-gem) certas formas que, menos determinadas, subjazem à determinação ulterior de uma forma mais perfeita, tal como o bronze em relação à estátua. Nesse sentido, pois, "matéria" é a ser entendida como determinação formal

pressuposta à diferenciação específica, determinação que não apenas

con-diciona a diferença formal última, como também nela se reencontra

ima-nentemente integrada como elemento constituinte.

Forma e matéria, nesse sentido, perfazem uma unidade complexa na qual cada elemento pode ser imanentemente inteligido um a partir do outro: ou melhor, perfazem uma unidade tal como a que se dá entre espécie e gênero: este, pois, encontra-se potencialmente contido naquela como ele-mento constituinte, assim como uma semi-linha está contida potencialmente na linha inteira.

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Dispondo de tais resultados, procuramos mostrar que a discussão da opinião platônica de que os universais seriam essência, que ocupa os ca-pítulos de 13 a 16 do livro VII, também não envolve, como preocupação fundamental, a tentativa de contrapor aos adversários a concretude da

substância primeira, entendida como acepção ontologicamente primordial

de essência. Também aqui, longe de pretender negar a importância do "im-pulso realista" do pensamento aristotélico, buscamos mostrar que o argu-mento polêmico se delimita em função de outros interesses e, sobretudo, em torno de outros conceitos: ao invés de apresentar, em contraposição à teoria adversária, uma concepção "realista' de essência como indivíduo sensível (como pensa a maior parte dos intérpretes), Aristóteles nada mais apresenta, nestes capítulos, senão sua própria concepção de essência

como forma desenvolvida nos capítulos anteriores. O universal platônico é

aqui preponderantemente visado na acepção de comum, ao qual falta a determinação completa e perfeita da diferença específica: é por meio da noção desta última, pois, que Aristóteles crê refutar a teoria adversária. A principal crítica dirigida aos platônicos consiste na incapacidade de se constituir uma essência entelequicamente una a partir de determinações comuns (os universais genéricos) concebidas, elas também, como

entele-quias separadas, e não como meras potências imanentemente resolvidas

na determinação total da forma específica.

Enfim, buscamos mostrar que a recapitulação oferecida no cap. 17 nos apresenta, sob o aspecto da causalidade, a mesma concepção de

es-sência desenvolvida penosamente nos capítulos anteriores. Aqui,

Aristóte-les recorre manifestamente à teoria desenvolvida nos Analíticos Posteriores sobre a causalidade e os procedimentos de definição e demonstração: toda causa, pois, é causa de uma unidade, de uma ligação entre dois elementos

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distintos. Também a essência, como causa, o será: no entanto, com a pe-culiaridade de que, neste caso, os elementos causados envolvidos não são

fisicamente outros, não são heterogêneos entre si. A causalidade da essên-cia, certamente, não envolve três termos (como a causalidade em geral),

mas, de certo modo, sequer envolve dois termos: enquanto forma

diferenci-al perfeita, a essência é causa de sua própria unidade com uma matéria

que, como determinação formal subjacente, lhe é distinta apenas sob o as-pecto da menor efetivação de determinações, e que se encontra imanente-mente contida na mesma como determinação potencial.

Enfim, como conclusão, procuramos sublinhar que esta unidade ima-nente que se efetua entre os elementos da essência apresenta-se, assim, como modelo de inteligibilidade científica: pois a essência como diferença última perfeita não consiste num amontoado de determinações extrinseca-mente congregadas num mesmo sujeito, mas sim numa unidade complexa na qual cada elemento formal encontra-se imanentemente integrado no ul-terior como determinação potencial. Eis, assim, que a essência a ser

defini-da apresenta-se como uma unidefini-dade complexa defini-da qual pode ser obtidefini-da, por

simples análise de seu conceito, toda a escala de determinações que a perfaz. É assim que ela é concebida como principio próprio da ciência

demonstrativa. Não obstante essa unidade perfeita da diferença última ter

sido severamente contestada nas belas páginas que o livro I do De Partibus

Animalium consagra à investigação científica, parecendo aí dar lugar à idéia

mais modesta de uma unidade meramente congregada de várias diferenças últimas obtidas, cada uma delas, por divisões irredutíveis entre si, resta como resultado firme do livro VII da Metafísica um conceito de essência que expõe as condições que o ente sensível deveria preencher para poder ofe-recer-se plenamente, como unidade formal perfeita, à apreensão científica.

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Lucas Angioni - Dissertação de Mestrado defendida em 20 de maio de 1997, tendo como membros da banca:

Orientador: José Cavalcante de Souza (Depto de Filosofia, Unicamp). Francisco Benjamin de Souza Netto (Depto de Filosofia,

Unicamp).

Referências

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