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WEIL, Pierre (Org.) - Experiência Cósmica e Psicose - Pequeno Tratado de Psicologia Transpessoal Vol. 4 (1978)

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Coleção PSICOLOGIA TRANSPESSOAL 5/IV Orientação editorial DR. PIERRE WEIL Da mesma coleção:

1. Pierre Weil: A Consciência Cósmica. 2. Swami Krishnanan- da: Meditação Oriental. 3. Maria Helena Andrés: Caminhos

da Arte. 4. Pierre Weil: Fronteiras da Regressão. Em prepa­

ro: Leonard G. B.: Educação e Êxtase.

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

P479 Pequeno tratado de psicologia transpessoal / Pierre Weil ... | et al. |. — Petrópolis: Vozes, 1978.

(Coleção Psicologia transpessoal; n. 5/1 a V). Conteúdo: Vol. 1: Cartografia da consciência humana. Vol. 2: Mística e ciência. Vol. 3: Psico­ fisiologia da consciência cósmica. Vol. 4: Expe­ riência cósmica e psicose. Vol. 5: Medida da cons­ ciência cósmica.

Bibliografia.

1. Psicologia transpessoal I. Weil, Pierre II. Série.

CDD — 154

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EXPERIÊNCIA

CÓSMICA E PSICOSE

Pequeno Tratado de Psicologia

Transpessoal, vol. IV

KENNETH WAPNICK

RAYMOND PRINCE E CHARLES SAVAGE STANISLAV GROF ROBERTO ASSAGIOLI DENIZARD SOUZA

4

VOZES Petrópolis 1978

(4)

Os direitos desta edição revertem em benefício da SÍNTESE (Sociedade de Integração Transpessoal, Estrutural, Social e Energética de Minas Gerais, Av. Álvares Cabral, 441, Belo Horizonte), organização de fim não lucrativo.

Foram cedidos por Dr. Jim Fadiman, em nome da Revista

Transpersonal Psychology, dos EUA.

Direitos de publicação reservados à Editora Vozes Ltda.

Rua Frei Luís, 100 25.600 Petrópolis, RJ

Diagramação

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SUMÁRIO

Kenneth Wapnick

l. MISTICISMO E ESQUIZOFRENIA, 9 Raymond Prince e Charles Savage

II. ESTADOS MÍSTICOS E O CONCEITO DE REGRESSÃO, 37

Stanislav Grof

III. VARIEDADES DAS EXPERIÊNCIAS TRANSPESSOAL: OBSERVAÇÕES

DA PSICOTERAPIA COM LSD, 63 Roberto Assagioli

IV. SÍMBOLOS DE EXPERIÊNCIAS TRANSPESSOAL, 111

Denizard Souza

V. PERCEPÇÃO EXTRA-SENSORIAL E ALUCINAÇÕES, 131

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I

MISTICISMO

E ESQUIZOFRENIA

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KENNETH WAPNICK

Southeast Nassau Guidance Center Seaforth, Nova lorque

Introdução

O misticismo e a esquizofrenia encontram-se freqüente­ mente associados na literatura psiquiátrica. Alguns escrito- res sugerem que os místicos mostram uma forma especial de esquizofrenia ou outra Psicopatologia. (Ver, por exem­ plo, Alexander, 1931; Freud, 1961; e Menninger, 1938). Outros escrevem sobre a esquizofrenia numa linguagem alta­ mente metafórica, quase mística, focalizando principalmente a experiência da psicose, o que leva muitas pessoas a con­ cluir que estes escritores estão pregando a esquizofrenia como uma experiência importante e até mesmo desejável (Bateson, 1961; Laing, 1965, 1967). Num tom mais obje­ tivo, William James notou a semelhança entre a experiência mística e a experiência esquizofrênica, há tempos atrás: 1902. Ele distinguiu dois tipos de misticismo: um superior e outro inferior. O primeiro tipo incluía as experiências mís­ ticas clássicas, enquanto que o segundo James identificou à insanidade, e o chamou de «misticismo diabólico». James

(1958) concluiu que em ambas as formas se encontram: O mesmo senso de importância inefável nos meno­ res fatos, os mesmos textos e palavras vindos com novos significados, as mesmas vozes e visões e lide­ ranças e missões, o mesmo controle exercido por poderes estranhos. . . É evidente que do ponto de vista de seu mecanismo psicológico, o misticismo

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clássico e estes misticismos inferiores brotam do mesmo nível mental, daquela grande região subli­ minar ou transmarginal, cuja existência a ciência está começando a admitir, mas da qual tão pouco é co­ nhecido. Tal região contém todos os tipos de coisas: «o serafim e a cobra» lá habitam lado a lado

(p. 326).

Num trabalho apresentado em 1965 diante da R. M. Bucke Memorial Society, Prince e Savage discutiram a ex­ periência mística conforme o conceito de regressão a serviço do ego, elaborado por Kris (Prince e Savage, 1965). Quase que de passagem, os autores notaram uma «ligação plau­ sível» entre psicose e misticismo, e sugeriram que a psicose seria um «retraimento por coação» com um retorno incom­ pleto, enquanto o retraimento do místico seria mais con­ trolado e seu retorno, mais completo.

Embora as semelhanças de muitos aspectos dessas duas experiências sejam surpreendentes, elas não devem obscure- cer as diferenças significativas que existem entre elas. O objetivo do presente trabalho é esclarecer tais semelhanças e diferenças, para proporcionar uma compreensão mais com­ pleta da natureza destes dois processos. A natureza do mis­ ticismo será apresentada através de um esboço da expe­ riência mística «típica» e da vida mística de Santa Teresa de Ávila, uma católica espanhola do século XVI. A experiên­ cia esquizofrênica será ilustrada por alguns excertos de um relato de um episódio esquizofrênico feito na primeira pessoa.

Devido à natureza das experiências descritas abaixo, será necessário o emprego da linguagem metafórica original das experiências relatadas. Estes termos e palavras, embora pessoais e experieneiais, são, não obstante, mais expressivos das experiências particulares do que a linguagem precisa objetiva, que transforma inevitavelmente a experiência.

Contudo, deve ser relembrado que palavras como «inter no», «externo», «morte e renascimento do self», «Deus» etc., são metáforas que tentam expressar a experiência er

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palavras, mas que não devem ser tomadas literalmente como se fossem a própria experiência. Realmente, a verdadeira luta de John Perceval durante a sua psicose foi constatar que as vozes que ele escutava eram metafóricas, não lite­ rais. Como ele escreveu:

O espírito fala poeticamente, mas o homem o com­ preende literalmente. Deste modo, você escutará um lunático declarar que ele é feito de ferro, e que nada pode quebrá-lo; um outro, que ele é um navio chinês e que ele corre o perigo de ser destruído a cada minuto. O significado do espírito é que este homem é tão forte quanto o ferro, o outro, frágil como um navio da terra; mas o lunático considera o sentido literal (Bateson, 1961, p. 271).

Misticismo

O misticismo é usualmente caracterizado como a expe­ riência de Unidade, ou como Stace (1960) afirmou, «a apreensão de uma unidade nãa-sensual última em todas as coisas, uma unidade ou um Uno que nem o sentido nem a razão pode penetrar» (p. 14-15). Igualmente característica, contudo, é a qualidade ordenada do desenvolvimento do místico. Numa afirmação clássica, Underhill (1961) descre­ veu o misticismo como:

O nome daquele processo orgânico que.. . é a arte do estabelecimento da relação consciente (do ho­ mem) com o Absoluto. O movimento da consciên­ cia do místico em direção à sua consumação não é só a entrada súbita numa visão avassaladora da Verdade, embora tais relances deslumbrantes possam ser de tempos em tempos concedidos à alma. É antes um movimento ordenado em direção a níveis de realidade cada vez mais altos, uma identificação cada vez mais íntima com o Infinito (grifo nosso; p. 81-82).

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Cada místico parece passar pelo mesmo «movimento or­ denado» básico, e é esse o aspecto comum que une o mís­ tico cristão ao hindu, o ateu ao sufi. Visando a discussão, os comentadores julgam conveniente descrever os estágios su­ cessivos deste movimento. Na literatura sobre o assunto, eles variam de três a oito, e não devem ser considerados literalmente, nem como se descrevessem a experiência de qualquer místico; ao contrário, são utilizados com a inten­ ção de esquematizar a experiência mística «típica». Os cinco estágios descritos por Underhill (1961) fornecem uma es­ trutura que se tornou um esquema útil da experiência mís­ tica e é usado como base para a presente discussão. Um sexto estágio parece ser necessário para descrever o pro­ cesso completamente e é acrescentado aos cinco estágios de Underhill.

1. Este estágio, tal como é experienciado e relatado pelos místicos, é a súbita conversão que se segue a um longo período de grande desassossego e inquietação. Conhecido como «O Despertar do Self», significa a súbita constatação de uma experiência emocional surpreendentemente nova e diferente que parece existir além da sensação, e produz a consciência de um nível de experiência «mais alto», mais desejável. James referiu-se a esta conversão como o irrom­ per da consciência transmarginal, a súbita «posse de um self ativo subliminar».

2. Após o místico experienciar este nível mais profundo de consciência, ele descobre que seus antigos padrões de vida não são mais satisfatórios. Sente que devem ser pur­ gados ou mortifiçados, aquilo a que Underhill chama de «A Purificação do Self». Na linguagem da dicotomia dos níveis de consciência de James, a nova consciência subliminar com a qual a pessoa acaba de entrar em contato é acentuada- mente diferente da consciência cotidiana da sua experiência comum. Assim, os comportamentos que envolviam o seu fun­ cionamento cotidiano no mundo social não são aplicáveis a esta experiência mais pessoal, e portanto devem ser descar­ tados.

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As práticas ascéticas extremas de muitos místicos, que ocorrem durante este estágio, são projetadas para purgar o indivíduo da sua necessidade de suas antigas ligações com a realidade social. Uma vez que isso se consuma, cessa o processo de purgação ou mortificação. Como Underhill ob­ serva, a despeito de sua etimologia, a meta da mortificação para o místico é a vida, mas esta vida só pode vir através da «morte» do «antigo self».

3. Após a pessoa haver se purgado de seus antigos inte­ resses e envolvimentos com o mundo social, ela entra no terceiro estágio ou naquilo que Underhill denomina «A Ilu­ minação do Self». Aqui ela experiencia mais completamente que está além dos limites de seus sentidos imediatos. A principal característica relatada a respeito deste estágio é a apreensão jubilosa daquilo que o místico experiencia como o Absoluto, incluindo expansões fulgurantes de êxtase e de arrebatamento, nas quais o indivíduo exulta em sua relação com o Absoluto. Contudo, o que distingue este estágio dos posteriores é que a pessoa ainda se experiencia como uma entidade separada, ainda não unificada com aquilo que ela considera como a Realidade Última. Existe ainda um sentido de Eu-dade, de ego, de self.

4. Este é talvez o estágio mais notável do processo mís­ tico. Embora se encontre em todas as experiências místicas, sua expressão emocional aparece somente na tradição oci­ dental, de onde ele tomou seu nome da sugestiva frase de São João da Cruz: «A Noite Escura da Alma». Há aqui a total negação e rejeição da alegria do estágio anterior. A pessoa se sente totalmente distante e alienada de suas expe­ riências prévias e se sente muito só e deprimida. É como se ela fosse lançada no meio de uma região não povoada ou de um deserto, sem esperanças de sobrevivência.

Durante o primeiro período de purgação, o indivíduo teve de se purgar de seus antigos vínculos ao mundo social. Ago­ ra, há de se purgar da sua experiência do self. A sua verda­ deira vontade deve se tornar totalmente imersa na «força» desconhecida que ele experiencia como estando no seu inte­

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rior. Na medida em que ele afirma a sua própria vontade ou individualidade, ele está mantendo uma distância ou se­ paração daquilo que ele sente como sendo a realidade última. 5. Embora não seja o estágio final, é o auge da tentativa mística: a completa e total absorção no mundo pessoal, associai, chamada «A Vida Unitiva». Ela consiste na obli- teração dos sentidos, até mesmo do sentido de self, resul­ tando na experiência de unidade com o universo. Este estado é descrito como um estado de consciência pura, no qual o indivíduo não experiencia nada-nenhuma coisa (nothing-no thing). O indivíduo aparentemente fez contato com as regiões mais profundas da sua consciência e experiencia o processo como tendo sido completado. Emocionalmente, a pessoa se sente totalmente tranqüila e em paz.

6. Embora os comentaristas não o mencionem como um estágio independente, o retorno do místico da experiência de união com o universo para as exigências da vida social constitui a parte mais importante do seu caminho. Na maior parte dos místicos se observa que eles renovam seu envol­ vimento prático em situações sociais com uma nova força e vitalidade, como Santa Teresa (Santa Teresa, 1961): «Mar­ ta e Maria devem trabalhar juntas quando oferecem hospe­ dagem ao Senhor», significando que o envolvimento mate­ rial e o espiritual são igualmente importantes. A vida de Santa Teresa, São Francisco e Santo Inácio, para citarmos somente esses três, dão testemunho do importante papel prático que os místicos desempenham no mundo. Na tradi­ ção oriental clássica, encontramos a mesma ênfase dada ao retorno ao mundo. O exemplo principal é o de Buda, que retornou de seu êxtase debaixo da árvore Bo para o mundo social que ele havia abandonado (Campbell, 1956).

O místico não considera mais detestável o seu envolvi­ mento com o mundo, mas de fato parece acolher de boa mente a oportunidade de se mover no mundo social que ele havia abandonado. Esse aparente parodoxo toma-se compreensível quando se considera que não era ao mundo que o místico estava renunciando, mas simplesmente aos

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seus vínculos e necessidades relacionados a ele, que impe­ diam o desenvolvimento de sua experiência pessoal, asso­ ciai. Uma vez que ele teve a capacidade de abandonar essas necessidades sociais, de dependência, e se sentiu livre da pressão do mundo social, ele experienciou a liberdade para viver dentro da sociedade, em harmonia com os seus esfor­ ços interiores, mais do que experienciando os costumes e instituições sociais como obstáculos à sua auto-realização.

A revisão das experiências místicas de Santa Teresa, que se segue, está amplamente baseada em seu Castelo Interior, um dos tratados místicos mais conhecidos, escrito em 1577 (Santa Teresa, 1961). Usando a metáfora de um castelo e escrevendo na terceira pessoa, Teresa descreveu sistematica­ mente o seu próprio desenvolvimento místico.

Como Teresa o experienciou, dentro dela havia uma alma que ela representou como um castelo no qual havia muitas moradas ou mansões; na mais interna dessas mansões esta­ va Deus. O castelo era construído como um palmito — um arbusto que consiste de várias camadas finas de folhas en­ volvendo uma parte central suculenta; para se comer a parte central, tem-se que retirar aquelas camadas. De ma­ neira semelhante, a morada em que Deus habitava era ro­ deada por muitas mansões, e para alcançar o centro, Teresa teve primeiro que viajar pelas moradas circundantes. Teresa acreditava que a despeito da grande beleza dessas moradas, a maioria das pessoas não escolhe entrar no castelo; Teresa achou que tal acontecia devido aos interesses e envolvimen­ tos no mundo social. O caminho esboçado por Teresa cor­ responde de modo geral àquele que foi acima esquematiza- do. Contudo, para evitarmos confusão, os estágios de Teresa serão mencionados através de seus nomes descritivos e não por números.

As primeiras mansões de Teresa correspondem mais ou menos ao período de desassossego que precede à conversão acima chamada de primeiro estágio. Como Teresa experien­ ciou a conversão, o sentimento parecia irradiar-se de seu interior profundo, de uma fonte fora de seu controle e cons­ ciência. A esta fonte Teresa deu o nome de Deus.

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A preparação de Teresa para suas experiências poste­ riores foi chamada de Oração de Recolhimento. Consistia no abandono de seu envolvimento com o mundo social como uma fonte de prazer e de gratificação, e na concentração (recolhimento) de suas faculdades e de sua atenção nesta fonte interna.

(A pessoa) fecha involuntariamente os olhos e de­ seja a solidão; e, sem artifício, parece que se vai construindo o edifício para a oração de que ficou dito acima; porque estes sentidos e coisas externas parece que vão perdendo o controle sobre si, en­ quanto a alma recobra o controle que tinha de si mesma (p. 85).1

Através da Oração de Recolhimento, Teresa se preparou para passar à mansão seguinte, que ela chama de Oração de Quietude, semelhante à «iluminação» acima descrita. Ela compara os sentimentos indescritíveis de grande alegria, que resultaram de seu recolhimento dos interesses e assuntos ex­ ternos a ela, à água que mina de uma fonte:

. . . à medida que esta água celestial começa a fluir desta fonte da qual estou falando — isto é, das nossas verdadeiras profundezas — ela prossegue o seu caminho e se espalha no nosso interior, causa uma dilatação interna e produz maravilhas inefá­ veis, de tal modo que a alma por si não pode com­ preender tudo que ela recebe ali. A fragrância que ela experiencia, poderíamos dizer, é como se naque­ las profundezas interiores houvesse um braseiro no qual se queimassem perfumes castos e doces; a luz não pode ser vista, nem o local onde ela habita, mas a fumaça perfumada e o calor penetram a alma inteira, e muito freqüentemente, como já disse, os efeitos se estendem mesmo ao corpo (p. 82).

1. A menos que seja indicado, todas as citações desta seção são de Sta. Teresa (1961).

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Teresa advertia os outros a serem cautelosos com as boas sensações desta morada, pois poderiam acreditar que ha­ viam alcançado a Realidade Última, deixando o castelo sem mais progredirem.

Pois a alma ainda não está criada mas é como uma criança que começa a mamar. Se for retirada do seio materno, o que se pode esperar dela a não ser a morte? Temo muito que esta seja a sorte daquela a quem Deus tenha concedido esta graça, caso a ora­ ção seja interrompida... (p. 91).

Com o aumento das alegrias deste período, Teresa passa à mansão seguinte, à Oração de União. Aqui, ela suspende completamente as relações com o mundo social, e se entrega totalmente ao que ela havia experienciado como Deus. É como se ela adormecesse para todas as coisas externas e até mesmo para si mesma. Está sem consciência e «morre completamente para o mundo a fim de viver mais total­ mente em Deus» (p. 126).

Devido à sua grande dificuldade em verbalizar as expe­ riências que teve durante este período e nos períodos seguin­ tes, Teresa empregou a metáfora das Núpcias Espirituais para lhe facilitar a comunicação. Estas núpcias se realizam entre ela e Deus, e é «uma união do amor com o amor». Durante a Oração de União se dá o primeiro encontro de ambos; eles se entendem e celebram o contrato de casamen­ to: um Noivado Espiritual. Após aqueles breves «encontros», Teresa sente uma fome e um desejo da experiência de Deus.

. . . a alma foi ferida de amor pelo Esposo e pro­ cura maiores oportunidades de estar a sós, tentando, tanto quanto é possível para alguém neste estado, renunciar a tudo que possa perturbar sua solidão (p. 126).

Contudo, nas palavras da metáfora. Deus ainda se nega à consumação do Noivado, e inflige grandes dores e prova­ ções a Teresa,

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(desconsiderando suas) ânsias para a conclusão do Noivado, desejando que elas se tornem ainda mais profundas e que esta suprema felicidade seja con­ quistada pela alma através de algum esforço de sua parte (p. 126).

Estas provas — as mais difíceis e dolorosas que Teresa teve que passar («A Noite Negra da Alma») — incluem pessoas que a acusam de ser fraudulenta ou de colaboração com o demônio; rejeição por parte de seus amigos; tremen­ das dores físicas; e sentimentos de grande solidão, quando ela se sente distante não só dos outros, mas de si mesma. Durante os últimos tempos ela é incapaz de orar e de sentir a Deus em seu interior.

Algumas de suas dores físicas mais dolorosas se dão du­ rante aqueles momentos conhecidos como «Arrebatamentos», quando Teresa sente um «encontro com Deus», Em tais mo­ mentos, ela se vê completamente livre, fisicamente, de seu corpo. Esta experiência comporta um tipo estranho de des­ ligamento, maior do que os que Teresa experienciara em períodos anteriores. Ela produz uma profunda solidão, pois Teresa rompe todos os laços com o mundo social, mas, na metáfora do Casamento, ainda não está unida a Deus:

nenhum conforto lhe vem (a Teresa) do Céu, e ela não está no Céu, nem deseja nenhum conforto ter­ reno, nem está na terra, mas por assim dizer, cru­ cificada entre o Céu e a Terra; e sofre enormemen­ te, pois nenhum auxílio lhe chega nem de um lado nem de outro (Santa Teresa, 1957, p. 123).

Teresa sente este período como o mais difícil de todos, pois exige dela uma renúncia completa do controle sobre si mesma e também uma prontidão para suportar a indepen­ dência completa do mundo social.

Pois, aconteça o que acontecer, devemos arriscar tudo, e nos resignar nas mãos de Deus, e devemos

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ir de boa vontade a qualquer lugar aonde formos levados (Santa Teresa, 1957, p. 120).

Uma vez que Teresa teve a capacidade de fazê-lo, ela experiencia a união final, a consumação das Núpcias Espi­ rituais, o estado de «pura espiritualidade». Esta experiência de união é bem diferente daquele «noivado» que se realiza anteriormente. Aí, embora haja uma experiência de união, ocorre ainda uma separação entre ela e a fonte mais secreta. Entretanto, isto não se dá no estágio final.

. . . é como a chuva caindo dos céus num rio ou numa fonte; não existe mais nada a não ser água, e é impossível dividirmos ou separarmos a água que pertence ao rio da que caiu dos céus. Ou é como se um estreito riacho que entra no mar, de onde ele não encontrará nenhuma maneira de se separar, ou como se num quarto houvesse duas grandes janelas através das quais a luz se infiltrasse: ela entra por lugares diferentes, mas tudo se torna uma só coisa. Teresa se encontra num estado de tranqüilidade quase perpétuo, mesmo realizando funções sociais. Agora ela não mais se sente oprimida por aquilo que havia experienciado anteriormente como o mal no mundo. De modo contrário ao que havia acontecido até então, Teresa deseja fervorosa­ mente viver no mundo e espalhar a palavra de Deus. O resto de sua vida é gasto numa participação ativa na Re­ forma das Carmelitas Espanholas, o que inclui a fundação de 18 conventos. Durante todo o tempo, as experiências interiores de Teresa continuam e ela se sente freqüente­ mente em união com Deus.

Resumindo os aspectos centrais da experiência de Teresa, vemos que, na medida em que ela é capaz de abandonar seus envolvimentos com o mundo social, ela tem um contato mais duradouro com a experiência associai, experiência pes­ soal de si mesma que ela denomina Deus. O processo é

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vitalício, vinculando dores tremendas, tanto físicas quanto mentais, e culmina na cessação completa do envolvimento externo e na experiência de «União com Deus». O estágio mais doloroso do processo ocorre imediatamente antes da experiência de União. Nesta época tornara mais intensos seus laços com o mundo social, mas tinha ainda de experien- ciar a União com Deus. Ela sente um pânico tremendo e medo de ficar completamente só, mas esse sentimento em breve é substituído pela experiência de União e por senti­ mentos da maior paz e alegria. Teresa consegue então reno­ var sua atividade no mundo social, recebendo maior satis­ fação e realização nessas atividades do que anteriormente. Esquizofrenia

A esquizofrenia é uma condição na qual o indivíduo expe- riencia a si mesmo e o mundo a seu redor de maneira distin­ tamente diferente daquela da maioria dos membros da socie­ dade. A concepção do esquizofrênico de tempo, espaço e das relações entre as situações sociais e os sentimentos internos são freqüentemente diferentes daqueles comparti­ lhados pelo mundo social. Seu comportamento, do mesmo modo, é muitas vezes socialmente inadequado e estranho, e incompreensível para os outros. A qualidade intensamente pessoal, associai, desta experiência fez com que a esquizo­ frenia fosse mais resistente a um consenso com relação à sua etiologia e tratamento. Na verdade, existem quase tan­ tas teorias e abordagens terapêuticas quanto existem teóri­ cos e terapeutas.

Desenvolveu-se recentemente na psicologia uma nova perspectiva na compreensão e no tratamento da esquizofre­ nia. Um princípio primário desta posição é o de que a psicose é parte de um processo contínuo, construtivo, no qual o indivíduo tenta corrigir a inadequação de seu funcio­ namento. Esta posição foi sintetizada por Kaplan (1964), que escreve que os

assim chamados ‘sintomas’, mais do que manifesta­ ções de um processo de doença alheias ao ego, pro­

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cesso este que de algum modo «agarrou» a pessoa, são ao contrário atos propositais do indivíduo, pos­ suindo intencionalidade e motivação. A ‘doença’ é algo que o indivíduo ‘deseja’ que aconteça (p. x). De modo semelhante, Bateson (1961), em sua introdução ao relato autobiográfico de John Perceval sobre a sua psi­ cose, escreve a respeito do processo da esquizofrenia e de sua qualidade visada: « . . . a mente contém, de certo modo, uma tal sabedoria, que ela pode criar aquele ataque sobre si mesma, que levará a uma resolução posterior da pato­ logia» (p. xii).

O porta-voz mais proeminente desta posição é talvez Laing. Nas suas conferências de 1966, diante do William Alanson White Institute, Laing propôs um novo nome para a esquizofrenia: «metanóia», que traduzido literalmente do grego significa «além da mente». (Na versão do Novo Tes­ tamento do Rei James, «metanóia» é traduzido por «reden­ ção». Ver o relato de Lara Jefferson sobre sua psicose que aparece a seguir). A esquizofrenia, assim redefinida, denota um processo ou experiência do indivíduo que se dá além da mente ou daquilo que coneeitualizamos como ego, «além dos horizontes do nosso senso comum» (Laing, 1967, p. 92). Os acompanhamentos comportamentais deste movimento, de acordo com Laing, não são nem ininteligíveis nem estranhos, mas bastante expressivos das experiências inusitadas pelas quais o indivíduo está passando; além disso, Laing (1967) afirma que estas experiências algumas vezes «parecem parte de uma seqüência de experiências potencialmente ordenada, natural. . . as expressões comportamentais de um drama ex- periencial» (p. 85).

Uma das principais contribuições deste movimento é a focalização da atenção nas experiências do esquizofrênico como expressivas das experiências pessoais, associais, do «outro mundo» do indivíduo, mais do que apenas as mani­ festações de uma mente desordenada. Como Haley (1959) demonstrou, quando o comportamento e as comunicações

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podem ser compreendidos no contexto da situação e da lógica pessoal do indivíduo, opostos à convenção social, eles se tornam significativos e compreensíveis. As publicações que contêm relatos de primeira mão de episódios psicóticos e análises fenomenológicas destas experiências aumentaram a compreensão dessa condição e favoreceram igualmente a sua identificação com as experiências místicas, que também são movimentos «além dos horizontes do nosso senso comum» (ver, por exemplo, Bateson, 1961; Coate, 1964; Kaplan, 1964; e Laing, 1965, 1967). O texto que damos a seguir de um relato feito na primeira pessoa de um episódio esqui­ zofrênico demonstrará a semelhança fenomenológica entre aspectos de experiências místicas esquizofrênicas, como tam­ bém ilustrará as diferenças entre elas, conforme o signifi­ cado que cada experiência tem dentro do contexto da vida do indivíduo.

Lara Jefferson era uma paciente psiquiátrica de um hos­ pital situado num estado do centro-oeste, durante os anos 40. Durante a sua psicose, ela escreveu a respeito de suas expe­ riências. Esses escritos foram descobertos e publicados com o título These Are My Sisters (Estas São Minhas Irmãs). A antologia de Kaplan (1964) contém excertos substanciais deste livro, donde extraímos este sumário.

A experiência de Lara em sua psicose foi de que «algo se desprendera dentro dela»; e o que a diferenciava da maioria dos outros psicóticos foi o fato de ela estar cons­ ciente da realização deste processo.

Algo me havia acontecido — não sei o quê. Todo o meu antigo self se desintegrou, e emergiu uma criatura da qual eu nada conheço. Ê uma estranha para mim... Toda a minha vida anterior se perdeu. O que eu podia fazer era sentir — surpreendente­ mente, cruamente, severamente — coisas que as pa­ lavras não conseguem descrever (p. 6-8).

Seu self anterior era como:

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Uma criatura desprezível que não estava à altura da vida, assim como ela se lhe apresentava — não podia escapar a ela, nem conseguia se ajustar a ela. Ficou louca e morreu de sofrimento — de frus­ tração e delírio (p. 9).

Assim a loucura tornou-se o agente da «morte» de seu «self anterior». Com esta «morte»,

Não há nada de sólido sobre o qual se firmar a não ser um vasto pântano traiçoeiro de desespero, seguido por períodos de júbilo e êxtase; e nenhuma condição tem qualquer fundamento lógico... A ra­ zão se evaporou completamente... (p. 9).

Através de sua loucura, Lara compreendeu que a razão pela qual seu antigo self tinha de ser abandonado era porque ela ignorava o verdadeiro significado da vida:

. . . Eu tenho me ocupado somente com coisas ex­ ternas, e perdi todos os significados da grande sig­ nificação interior. . . Eu fiquei louca — não por causa de alguma deformidade interior — mas por causa de uma supervisão muito rígida e por tentar forçar a coisa que eu era dentro de uma forma não natural (p. 11).

O «segundo self» que tinha sido criado na loucura agora dá a entender a Lara que:

a melhor arma para se lutar contra o fogo é o fogo. E sugere lutar contra a loucura com a loucura. Tal­ vez ela não seja tão insana quanto penso — talvez seja mais sã do que eu era antes de ela vir a mim. Ela apresenta sua idéia com tanta lógica, que me faz pensar que ao invés de perder a razão na loucura — e encontrar a insanidade, na realidade, eu per­

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derei a insanidade na loucura — e encontrarei uma mente sã (p. 10).

As conseqüências desta decisão:

Não posso escapar da Loucura pela porta por que entrei, isto é certo... Não posso voltar atrás — terei de ir em frente — mesmo se o caminho levar ao «Three Building» — onde os desesperados in­ curáveis andam e se lamentam e esperam pela morte de seus corpos. Não posso escapar disso — não posso encarar isso — como eu posso suportar isso

(p. 7).

Tendo se «decidido» a seguir este caminho, a despeito de seu «terror intolerável», Lara experienciou um período de 5 dias de «loucura total», que começou com o sentimento de que algo estava prestes a irromper em seu interior.

Assim o monstro foi solto e o fantasma de algum antepassado louco furioso cresceu dentro de mim e sugeriu que eu poderia fazer algo a respeito, e o ódio selvagem exultou por haver se apossado de um corpo compacto e poderoso. E a coisa que estava em mim não era eu de modo algum — mas outro — e eu sabia que nenhuma força terrena poderia detê- la, a não ser uma camisa-de-força (p. 33).

Lara pediu uma camisa-de-força e lha deram. Protegida contra si mesma, e segura de que não poderia nem ferir nem destruir os outros, Lara conseguiu libertar-se dos laços que a puxavam para trás.

E uma vez que a grande Loucura em mim encon­ trou uma voz, não havia fim. Ela se agitava num tal tumulto, que eu mesma fiquei surpresa; eu me perguntava de onde tudo aquilo vinha. Parecia

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ceno e terrível que eu deveria responder em lingua­ gem adulta coisas que me foram ditas na infância. Coisas que eu havia esquecido, até que elas come­ çaram de novo a se precipitar sobre mim, numa enchente de memórias amargas. Mesmo incidentes que eu relembrava claramente voltaram tão defor­ mados e destorcidos que eles pareciam crianças más substituídas por outras logo ao nascer...

Senti-me bem por haver encontrado enfim a cora­ gem para olhar e ver as coisas como elas são (não as camuflando numa rósea luz de um significado que elas não possuem), que tive vontade de gritar e de cantar.

Aquela voz era a razão, fazendo uma última tenta­ tiva desesperada, mas era somente uma sombra e não tinha nenhum poder para testar as coisas que eu estava sentindo. Ela me manteve em silêncio alguns breves minutos e me forçou a considerar a coisa que eu sabia estar acontecendo a mim... Mas não por muito tempo:

Todo o meu medo humano da dor e da morte e da perda da razão foi sufocado num júbilo selvagem... Assim a última coisa associada e coerente no meu pensamente deu passagem — e a Loucura, tómando conta de mim, se regozijou. Não havendo nada para lhe obstar, ela gritou e exultou com um estrépito que dilacerou minha garganta, invadindo-me com­ pletamente e quase me tirando a vida. Parte da mi­ nha mente permaneceu lá e percebeu toda a situação, embora não pudesse saber nada a respeito dela. A coisa que estava se encolerizando não me parecia errada então — ao contrário, me parecia a coisa mais certa do mundo — uma proeza magnífica

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Lara dormiu com muita dificuldade durante a noite, a despeito das duas injeções de morfina. Mas, finalmente após ter adormecido, na manhã seguinte foi despertada por um paciente falando muito alto e querendo estar num lago. E então Lara se sentiu subitamente às margens de um lago:

Não era imaginação, mas algo mais forte. A mera imaginação, embora vivida, não poderia transportar uma pessoa que estava com as mãos e os pés amar­ rados num hospício e soltá-los nalgum lugar dis­ tante. Descobri que eu estava parada em algum lu­ gar de uma praia cheia de seixos ao crepúsculo.. . Nunca vira eu um crepúsculo tão agradável. Pois jamais estivera anteriormente num lago inexistente — nem jamais experienciara um crepúsculo que me tivesse alcançado através dos meus grosseiros órgãos sensoriais — e isto era algo diferente — tão pun­ gente e perfeito que parecia um êxtase...

Havia tal repouso e liberdade ao flutuar na corrente dos meus pensamentos, sem a luta para forçar meu pensamento a continuar nos canais que, conforme me haviam ensinado, eram corretos! Assim deixei-os correr selvagens e livres...

Como o canto é a expressão espontânea, natural, da liberdade, senti uma necessidade de cantar — pois eu estava livre. E cantei — canção após canção. Nada importava (p. 37-39).

As enfermeiras chegaram neste ponto e transferiram Lara para o confinamento solitário, colocaram-na em nova cami­ sa-de-força, extraforte, e a amarraram às grades da cama. Contudo, o fluxo continuou inabalável. Lara começou a ter alucinações que duraram no mínimo um dia. Então, apesar da forte pressão da camisa-de-força, ela teve uma sensação de libertação e experienciou seus braços como se estivessem livres. Na manhã do terceiro dia, Lara «estava muito longe nas alturas reais do êxtase» e começou a emergir da Loucura.

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Na manhã do quarto dia eu havia me estabelecido em algo da pessoa que ainda sou até hoje... Na quinta manhã eles me tiraram da camisa-de-for­ ça. Eu estivera ensopada de suor na maior parte do tempo durante aqueles cinco dias e noites e o odor... que me assaltou quando a camisa-de-força foi afrouxada foi asfixiante. Verdadeiramente, alguma coisa havia morrido, e estava se decompondo! Ha­ via uma qualidade no odor daquele suor que era totalmente incomum. Até as glândulas sudoríparas foram uma voz naquele conflito. Minhas mãos esta­ vam cheias de uma substância bem viscosa. Cada nervo e cada fibra de todo o meu corpo registra­ ram o efeito daquilo pelo qual eu havia passado. Toda a minha química estava mudada. Eu era ver­ dadeiramente uma pessoa diferente (p. 41).

Refletindo sobre a sua experiência, Lara ofereceu o se­ guinte conselho àqueles que um dia venham a passar por uma experiência semelhante:

Para eles eu diria (porque sei, estive lá ): Lembrem- se, quando as almas navegam naquele mar desco­ nhecido chamado Loucura, elas conquistam a liber­ dade . . . Embora a necessidade que fez com que isso se desse não possa ser bem conhecida por aque­ les que não a sentiram. Pois o que as pessoas sãs chamam de ‘ruína’ — por que não sabem — as que experienciaram aquilo de que estou falando, sabem que a histeria selvagem da Loucura significa salva­ ção. Libertação. Escape. Salvação de uma dor muito maior do que toda a dor da Loucura. Escape — daquilo que não poderia ser suportado. E é por causa disso que a Loucura veio. Redenção; pura e simples redenção. . . Nada neste mundo pode obs- tá-la, quando reclama o que lhe pertence... Senti-a limpando-me e se apossando de mim — onde, eu

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não sei (todo o caminho para o inferno, e mais lon­ ge, no outro lado; e me dando um senso mais sutil de sentimento do que o que possui a razão embo­ tada) — todavia, não sei como transmitir as coisas que eu experienciei naquela viagem misteriosa

(p. 31-32).

Em resumo, Lara relatou uma dicotomia entre níveis de experiência; um se identificava com o self pré-psicótico — relacionado à razão e «somente às coisas externas» — en­ quanto que o outro eram as intensas emoções que Lara nunca havia expressado. Sua psicose consistia na quebra de seu controle, o que tornou possível que estes sentimentos emergissem. Tais impulsos irromperam com um poder ex­ plosivo, atemorizando-a; ao mesmo tempo, a sua liberação encheu-a de júbilo. Esta perda de controle assinalou um retraimento completo de seu envolvimento com o mundo social. Lara expressou esta mudança de atitude com refe­ rência às suas relações com a sociedade como a morte do antigo self. Com o término da «loucura total» de cinco dias, Lara sentiu uma paz interior, que ela descreveu como a emergência de um novo self. Teve então a capacidade para «retornar» ao mundo social, e em seguida recebeu alta no hospital.

Discussão

Embora provindas de culturas muito diferentes, e separa­ das no tempo por quase quatro séculos, as experiências de Teresa e de Lara Jefferson parecem ter muito em comum. Esta semelhança inclui os seguintes aspectos: a experiência de uma dicotomia entre dois níveis de experiência — a externa ou social, oposta à interna ou pessoal; a quebra de seus vínculos com o mundo social; suas experiências de dor e de terror quando elas «entraram no mundo interior»; seus sentimentos de paz seguindo-se ao fim do terror; e seus «retornos» ao mundo social, agora uma fonte maior de sa­ tisfação do que anteriormente.

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Contudo, também houve importantes diferenças: o pro­ cesso místico de S. Teresa foi vitalício, enquanto a expe­ riência de Lara Jefferson do «mundo interior» foi compri­ mida num período de tempo muito menor. A vida mística de Teresa culminou na experiência de Unidade, enquanto Lara não teve tal experiência. ’ Durante todo o processo, Teresa pôde manter algum grau de contato social, embora vivendo numa clausura. Além disso, suas decisões de isolar-se estavam dentro do seu controle consciente. Lara, por outro lado, experienciou uma perda do controle consciente e uma quebra em seu funcionamento social, o que fez com que fosse necessária a sua hospitalização.

Embora Lara Jefferson seja um exemplo de uma esqui­ zofrênica que «voltou» dos terrores do mundo pessoal para o mundo social, sua experiência do poder avassalador de suas fantasias e imagens incapacitou-a totalmente de funcionar socialmente durante a sua psicose. A inabilidade do esquizofrênico para comandar esta experiência interna, e a sua quebra com a realidade social contrastam grande­ mente com a tolerância que o místico tem pela experiência interior. Isto torna-se compreensível à luz das diferentes preparações para a experiência.

A via mística em sua totalidade pode ser compreendida como um processo de fortalecimento através do qual o mís­ tico desenvolve gradualmente os «músculos» para suportar as experiências deste «mundo interior». É este fortalecimen­ to que é responsável pelos longos períodos de sofrimento e de abandono que são freqüentemente a sorte do místico, como também a fé do místico no desenlace positivo desta experiência. Al Ghazzali, um místico persa do século XI, escreve da sua segregação e purgação:

Fui para a Síria, onde permaneci por mais de dois anos; sem nenhum outro objetivo a não ser o de viver isolado e na solidão, conquistando os meus desejos, lutando com as

2. No mínimo um relato de um episódíio esquizofrênico, feito pela própria pessoa, incluía uma consciência de uma experiência maior — talvez a expe­

riência de Unidade — que a pessoa não permitiu que ocorresse (Laing, 1967, p. 108-112).

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minhas paixões, esforçando-me por purificar a minha alma, por aperfeiçoar o meu caráter e por preparar o meu cora­ ção para meditar sobre Deus (Underhill, 1961, p. 226).

Underhill, empregando a metáfora da criança, descreve o processo de fortalecimento da seguinte maneira:

. . . a Criança Divina, que na hora da conversão do místico nasceu na centelha da alma, deve apren­ der, como as outras crianças, a andar. Embora seja verdade que o self espiritual jamais deve perder seu senso de total dependência do Invisível, todavia, dentro daquela atmosfera de amparo e alimentado por suas dádivas, há de «encontrar os pés». Cada esforço para ficar de pé traz inicialmente uma sen­ sação gloriosa de crescimento e então uma queda: cada queda significa uma outra luta para se obter o difícil equilíbrio que vem quando a infância passa. Há muitas tentativas ansiosas, muitas esperanças, muitos desapontamentos. Ao final, quase subitamen­ te, chega o momento em que acabam as vacilações, os músculos aprendem a lição, ajustam-se automa­ ticamente, e o novo self subitamente se descobre — sem saber como — em pé, ereto e seguro.

O esquizofrênico não passa por tal treinamento ou forta­ lecimento. Seus «músculos» não estão desenvolvidos, e quando ele é «atirado» a este «mundo interior», ele é sub­ jugado, sem meios de enfrentar a sua experiência e sem convicção de que sobreviverá a ela.

Escrevendo sobre a renúncia do místico com relação aos seus vínculos sociais, que o isola da experiência de Deus, Underhill (1961) usa a imagem do molusco com a sua dura concha, ilustrando deste modo a natureza da «concha de vínculos» da pessoa (p. 98-99). De modo semelhante, Schachtel (1959) utiliza a imagem de um casulo, de Hebb, para descrever o mundo de fechamento que impede a capa­ cidade de crescimento da pessoa. Para empregarmos uma

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imagem, o esquizofrênico é alguém cuja cancha protetora foi quebrada súbita e prematuramente (A etiologia desta quebra não será discutida no presente trabalho). Por causa disto, ele é totalmente incapaz de fazer face à súbita investida dos sentimentos associais, pessoais, que ele experiencia, e seu funcionamento social sofre um colapso. O místico, por outro lado, devido a seu longo processo de treinamento, tem a capacidade de se despojar da concha gradualmente. Na medida em que ele aumenta a tolerância por aqueles novos sentimentos, tem a capacidade de incorporá-los em sua vida social. À medida que o místico se torna fortale­ cido, ele se prepara para o próximo passo e remove mais uma parte da sua concha.

Ao escrever sobre as suas próprias experiências de terror nascido desta «confrontação com o inconsciente». Jung (1961) enfatizou a importância da sua vida exterior como proteção de sua exposição muito súbita ao mundo interno do inconsciente.

Nesta época sobretudo, ao elaborar a matéria das fantasias, necessitei de um ponto de apoio «neste mundo», e posso dizer que minha família e meu trabalho profissional satisfaziam esse requisito. Era extremamente essencial para mim levar uma vida normal no mundo real, como compensação àquele estranho mundo interior. Minha família e minha pro­ fissão permaneceram como a base à qual eu podia sempre retornar, assegurando-me de que era uma pessoa comum, que existia realmente. Os conteúdos inconscientes poderiam ter-me levado à loucura...

(como sucedeu a Nietzsche) que era uma página em branco girando ao sabor dos ventos do espí­ rito. .. (ele que) tinha perdido o chão debaixo dos pés, porque não possuía nada além do mundo inter­ no dos seus pensamentos, que incidentalmente o pos­ suíam mais do que ele a eles. Não tinha raízes e pairava sobre a terra, e por isso sucumbiu ao exa­

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gero e à irrealidade. Para mim, tal irrealidade era a quintessência do terror, pois no final das contas eu tinha como objetivo este mundo e esta vida. Ape­ sar de profundamente absorvido ou exausto, eu sempre soube que tudo o que eu estava experien- ciando, em última instância, se dirigia para esta minha vida real (p. 189).

Estas diferenças na preparação refletem a diferença es­ sencial entre o místico e o esquizofrênico. A meta do místico, como se manifesta na sua dedicação vitalícia ao Absoluto, é expandir gradualmente a sua consciência, através de um movimento mais profundo em direção ao «mundo interior» de seus sentimentos pessoais, até que seja alcançado o seu ponto mais profundo, a que ele usualmente se refere como o Self ou Deus, de onde ele se sente em unidade com o universo. Embora o místico e o esquizofrênico compartilhem ostensivamente a mesma fuga do mundo social, o abandono do místico é meramente de seus próprios vínculos de de­ pendência a ele. Assim, a vida do místico é em essência um processo de libertação daqueles hábitos e costumes que haviam sido adotados como medidas de segurança para a proteção contra a ansiedade que inevitavelmente acompanha qualquer crescimento ou movimento em direção à indepen­ dência. * Uma vez alcançado o estado de total liberdade, o místico está apto a uma vez mais se envolver em atividades sociais. (Até certo ponto, tal participação é sempre neces­ sária. Uma vida vivida totalmente no «mundo interior», sem contato com o «mundo exterior», levaria inevitavelmente à morte física, pois não poderia haver a busca de proteção contra uma exposição demasiada, nem a aquisição de comida e de água).

O esquizofrênico, por outro lado, tem como «propósito» de sua psicose a fuga do mundo social, dentro do qual ele

3. Para uma excelente discussão de como estes hábitos impedem o desen­ volvimento do indivíduo, ver Schachtel, 1959. Uma discussão mais extensa do processo mistico deste e de outros pontos de vista encontra-se em Wapnick, 1968.

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é totalmente incapaz de funcionar. O «mundo interior» tor­ na-se seu refúgio da impossibilidade de existir no «mundo exterior». De modo diferente do místico, cujas experiências internas são conscientemente escolhidas num período de tempo e que se desenvolvem dentro do contexto cultural, a experiência do esquizofrênico dos seus sentimentos mais profundos é súbita e ocorre na recusa do seu funcionamento social. A fuga na psicose, se bem sucedida, restaura a sua capacidade de funcionar como um membro produtivo da sociedade, mas não o prepara necessariamente para o pro­ cesso vitalício de movimento entre a experiência interna e o funcionamento social, nem para a eliminação daqueles hábi­ tos aprendidos, que impedem o desenvolvimento de seu po­ tencial interno. Não existe nada nos relatos de esquizofrê­ nicos que se recuperaram, que sugira que, uma vez tendo se libertado dos padrões patológicos de suas vidas pré-mór- bidas, eles continuem a explorar aquelas experiências inter­ nas que anteriormente os subjugaram.

Em resumo, a vida do místico pode ser vista como um reconhecimento da existência da experiência íntima, pessoal, que embora independente, e mesmo antagônica à realidade social, não pode ser completamente desenvolvida, a menos que o indivíduo afirme também o seu papel na sociedade. Sentimentos belos e poderosos não são suficientes para aumentar o funcionamento de alguém no mundo social. O que é necessário é a integração destas experiências inte­ riores com os diversos papéis sociais que a pessoa adota. O místico fornece um exemplo do método através do qual se podem unir o interno e o externo; o esquizofrênico, o trágico resultado, quando eles estão separados.

Tradução de

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BIBLIOGRAFIA

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ESTADOS MÍSTICOS

E O CONCEITO

DE REGRESSÃO*

* Este artigo foi extraído do 1ivro The Highest State of Consciousness, editado por John White; Anchor Books (Doubleday & Company, Inc. Garden City, Nova Iorque, 1972.

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RAYMOND PRINCE

Charles Savage

Muitas autoridades do misticismo consideram o estado místico como uma elevação transitória a um tipo superior de consciência. Bucke (1) considerou este «nível superior» como um passo final no desenvolvimento evolutivo do homem. Existe inicialmente a consciência simples, como no caso dos animais e dos recém-nascidos; em seguida, emerge a autoconsciência, como é o caso dos seres humanos adul­ tos; e finalmente há um estágio chamado «consciência cós­ mica», que é alcançado somente por poucas pessoas no esta­ do místico. Bucke predisse que um número sempre maior de pessoas alcançaria o estado de consciência cósmica. Este ponto de vista é difícil harmonizar com a observação de que os estados místicos têm muito em comum com certos estados psicóticos. Por exemplo, muitos psicóticos descre­ vem estados de êxtase, de conhecimento positivo e de «união com a alma do mundo» que são altamente reminiscentes das experiências subjetivas dos místicos. Um paciente (2) escre­ veu o seguinte, com relação aos primeiros estágios de psicose: Subitamente me vi diante da convicção avassaladora de que eu havia descoberto os segredos do universo, os quais rapidamente fizeram-se claros, com uma lucidez incrível. As verdades descobertas pareciam ser conhecidas imediata e diretamente, com uma cer­ teza absoluta.

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De modo semelhante, alguns alegam que as drogas psico- délicas produzem psicoses-modelos, mas outros afirmam que elas produzem estados místicos. Esta situação desconcer­ tante é de algum modo idêntica àquela que relaciona o gênio e a doença mental.

É uma hipótese alternativa sobre a natureza das expe­ riências místicas o que desejamos apresentar. Ela se baseia no modelo psicanalítico de que os estados místicos repre­ sentam regressões a serviço do ego. Apresentando esta hipó­ tese, abordaremos brevemente as quatro seguintes áreas:

1) o conceito de regressão, enfatizando a sua função na saúde; 2) dados neurofisiológicos referentes à regressão; 3) a experiência subjetiva das primeiras fases da infância; e 4) diversos aspectos característicos do estado místico da presente hipótese.

O conceito de regressão

Nos termos mais simples, regressão significa um retorno a um nível anterior de funcionamento. Vamos dar alguns exemplos:

O primeiro caso (3) descreve o comportamento de um garoto de dois anos, quando foi levado a um hospital. Ele era uma criança bem desenvolvida e tinha um bom relaciona­ mento com a mãe. Na primeira semana, a mãe o visitou dia­ riamente; na segunda, somente duas vezes, e a partir de então não mais voltou:

Ele ficou indiferente, freqüentemente se sentava num canto mamando e sonhando, outras vezes era muito agressivo. Parou de falar quase que completamente. Estava sujo e molhado. Sentava-se diante do prato comendo muito pouco, sem prazer, e começou a lambusar a mesa de comida.

Os comentários são quase dispensáveis. Temos um stress — abandono num hospital — e uma criança de dois anos de idade, com um desenvolvimento normal, volta ao com­

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portamento característico de uma criança de idade muito menor: l) ela pára de falar, 2) os hábitos de comer se deterioram, 3) ela mama em grande quantidade e 4) há uma perda de controle da bexiga e dos intestinos. O quadro é familiar a qualquer‘pessoa que tenha uma família, obser­ vado em menor grau na criança mais nova, quando um novo bebê entra na família. O próximo exemplo é a descrição de uma experiência de LSD (o resultado de uma dose de 100 gramas dada a um sujeito normal) gravada dois dias após sua realização:

Mais ou menos uma hora e meia após a ingestão, a psicose parecia estar em seu apogeu, e houve uma grande luta para apegar-me à realidade. Eu tinha uma moeda e um alfinete em minha carteira, que me haviam sido dados como talismã de boa sorte. Eu os tomei e olhei para eles, e eles pare­ ciam ter uma função protetora como amuletos. Eu parecia estar lutando contra uma aniquilação e um nada totais.

Durante este período, as palavras pareciam ter per­ dido o seu significado. Eu perguntava constante­ mente se havia algo como «cadeira», ou «verdade», ou «loucura». Eu parecia estar cruzando em pala­ vras o rio Estige. . . Em certo momento da psicose profunda, não consigo lembrar exatamente quando, fiz aparecer como que por mágica, quase proposi- talmente, a imagem visual de uma mulher que eu havia visto recentemente numa exposição de foto­ grafias. Era bastante maternal, amamentando uma criança no seu grande seio... Substituí a mulher da„ fotografia por minha própria mãe. . . seu nariz grande, sua gordura, e particularmente o odor de sua transpiração. Senti, por alucinação, o bico de seu seio em minha boca. Isto era novamente uma proteção contra a aniquilação e um conforto. Mais ou menos quatro horas após a ingestão, eu estava

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começando a me recuperar. Senti-me completamen­ te exausto física e emocionalmente, e como se hou­ vesse nadado por mares que não existem nos ma­ pas; atirei-me exausto na praia. Eu era Lázaro de volta dos mortos; eu era um •prisioneiro condenado à morte que - teve a execução adiada. Uma nova seara completa de palavras havia brotado e eu tinha uma forte sensação de possuir uma nova persona­ lidade — terna, indefesa — saindo do lodo primor­ dial e tomando sol na praia.

Neste exemplo temos uma regressão carregada de ansie­ dade ao nível pré-verbal. Outros traços regressivos são: 1) um retorno a modos mágicos de pensamento, o uso do alfinete e da moeda como amuletos protetores e 2) um retorno ao pensamento alucinatório. Ao contrário da criança do primeiro exemplo, esta regressão é amplamente subje­ tiva e de curta duração. Por exemplo, o sujeito não perde o controle da bexiga e dos intestinos, nem chupa os dedos, nem assume outro comportamento infantil. De particular interesse aqui é o simbolismo da morte e do renascimento. Ele fala da travessia do rio Estige e quando os efeitos se dissipam, sente-se como Lázaro de volta dos mortos; toda uma nova seara de palavras brotou e ele tem uma forte sensação de possuir uma nova personalidade — terna, inde­ fesa, «saindo do lodo primordial e tomando sol na praia». Aqui, então, há uma retirada e um retorno, uma regressão de no mínimo uma parte do eu, até a idade de um ou dois anos. Então termina a regressão e há um sentimento de renascimento e um retorno bem sucedido à idade adulta. Nosso exemplo final é uma regressão de um tipo diferente, ou, no mínimo, de uma regressão que serve a uma função diferente. Não é uma fuga de uma realidade dolorosa com um desenlace infeliz, nem é tampouco induzida por drogas. É antes um exemplo de regressão a serviço do ego — uma técnica empregada pelo ego na solução de problemas. A citação é da descrição de Henri Poincaré (4) sobre a sua descoberta de certas equações matemáticas:

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Por quinze dias eu me empenhei em demonstrar que não poderiam existir funções como aquelas que tenho denominado funções fuchsianas. Eu era então muito ignorante, todos os dias eu me sentava à mesa de trabalho, ficava ali por uma ou duas horas, ten­ tava um grande número de combinações e não che­ gava a nenhum resultado. Certa noite, contraria­ mente a meus hábitos, tomei um café forte e não consegui dormir. As idéias surgem em multidões; eu sentia como se elas se chocassem, até que os pares se entrosassem, por assim dizer, formando uma combinação estável. Na manhã seguinte, eu havia estabelecido a existência de uma classe de funções fuchsianas. Eu só tive que escrever os resul­ tados; o que me custou somente algumas poucas horas.

E mais ainda:

. . . quando, acima, fiz certas observações pessoais, falei de uma noite de excitação, quando trabalhei, relutando contra mim mesmo. Tais casos são fre­ qüentes, e não é necessário que a atividade cerebral anormal seja causada por excitação física, como a que mencionei. Parece que, em tais casos, a pessoa está presente em seu próprio trabalho inconsciente, que se torna parcialmente perceptível à consciência superexcitada, embora não tenha sofrido uma modi­ ficação em sua natureza. Então compreendemos o que distingue os dois mecanismos, ou, se quiserem, os métodos de trabalho dos dois egos.

Neste exemplo, os modos de pensamento lógico de uma consciência maior são suspensos e se estabelece um tipo mais randômico de pensamento onírico de ensaio-e-erro.

Estes exemplos de modo algum esgotam a variedade dos fenômenos chamados regressivos. Muitos hipnotizadores

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afirmam que as verdadeiras regressões de idade podem ser produzidas através da hipnose. Em todo distúrbio psíquico há sempre uma dose de regressão. A esquizofrenia talvez forneça o melhor exemplo da regressão mais profunda durante um maior período de tempo. Para mencionar um exemplo, Arieti (5) descreve um grupo de esquizofrênicos crônicos em hospitais de doenças mentais, cujo comporta­ mento lembra muito crianças entre seis meses e dois anos de idade:

. . . Eles manifestam o hábito de pegar e levar à boca qualquer objeto pequeno, sem prestar atenção ao fato de serem ou não comestíveis. Se não são contidos, estes pacientes pegam migalhas, baratas, pedras, farrapos, papel, madeira, carvão, lápis e folhas do chão e as colocam na boca. Geralmente comem tais coisas; ocasionalmente as engolem com grande risco.

Estes pacientes estavam em estado de profunda regres­ são também em outros aspectos: se chegavam a falar, suas palavras eram ininteligíveis; havia a perda do controle da bexiga e dos intestinos e uma ausência completa de hábitos sociais. A regressão a serviço do ego, por outro lado, é talvez menos familiar e, na verdade, mais ligada ao nosso assunto. Um dos casos mais comuns de regressão a serviço do ego é o sono. Freud descreveu como, antes do sono, nos despojamos de todas as quinquilharias da civilização: nossas dentaduras, perucas, óculos e roupas, e retornamos ao nosso estado primitivo de nudez. Retornamos à nossa condição de inconsciência pré-natal. Ainda mais claro são os fenômenos regressivos que experienciamos nos limiares do sono, as fantasias hipnagógicas, o afrouxamento dos processos de pensamento, os fenômenos alucinatórios pré- verbais do sonho com sua lógica arcaica. E a cada manhã experienciamos um rejuvenescimento e um renascimento. Kris discute a natureza regressiva do humor e de muitos

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tipos de jogos e brincadeiras (6). A psicanálise faz um uso extensivo da regressão; através dos meses de tratamento, durante as sessões de uma hora, o paciente faz uma regres­ são flutuante ao seu passado. Ele reexperiencia situações de sua família e projeta seus sentimentos reativados sobre seu analista. As respostas do analista são diferentes daquelas de suas figuras familiares patológicas, e ele é capaz de cor­ rigir seus sentimentos e de se mover para outras situações, livrando cada um de seus afetos dolorosos. Ele chega a bom termo com os aspectos do seu passado.

Vamos agora completar e ampliar a nossa definição de regressão. A regressão é um retorno a um nível anterior de funcionamento — ela pode envolver somente uma parte do eu (como no caso dos modos de pensamento regressivo de Poincaré) ou pode ser mais completa, como no caso dos esquizofrênicos com profundas regressões, apresentado por Arieti. A regressão pode durar alguns minutos ou pode ser permanente; pode ser uma resposta ao stress — uma reti­ rada em vista de uma realidade dolorosa — ou pode ser empreendida de modo mais ou menos consciente como meio de recreação, ou como um passo no processo criativo, ou como uma forma de tratamento para as psiconeuroses. Neurofisiologia e regressão

Existem muitos experimentos neurofisiológicos com ani­ mais, e alguns com seres humanos, que lançam luz sobre a natureza da regressão em termos fisiológicos. Gostaríamos de abordar brevemente 4 tipos de estudos:

O conceito de regressão sugere que o cérebro humano contém registros completos de, no mínimo, algumas das experiências passadas do indivíduo. Não estamos com isso nos referindo à memória simples. Queremos dizer que a ex­ periência completa, incluindo o modo pelo qual o indivíduo reagiu a ela, a experiência e a matriz na qual ela está engastada, foram registradas — como um vídeo-tape que possuísse «trilha» sonora, «trilha» olfativa, «trilha» de tem­ peratura e de dor, como também uma «trilha» afetiva.

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