• Nenhum resultado encontrado

DA VIDA NUA À VIDA PRECÁRIA: O DEBATE ENTRE GIORGIO AGAMBEN E JUDITH BUTLER

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "DA VIDA NUA À VIDA PRECÁRIA: O DEBATE ENTRE GIORGIO AGAMBEN E JUDITH BUTLER"

Copied!
11
0
0

Texto

(1)

DA VIDA NUA À VIDA PRECÁRIA: O DEBATE ENTRE GIORGIO AGAMBEN E JUDITH BUTLER

Felipe Dutra Demetri1

Resumo: Desde Heidegger, Benjamin e Arendt, há um diagnóstico da modernidade que aponta para a extrema fragilidade da vida. Hannah Arendt descreve a crise migratória do início do século passado nos seguintes termos: o refugo da terra que vagava pela Europa. Eram milhões de pessoas, despossuídas de seus bens e de seus qualificadores jurídicos mínimos: os direitos humanos. Giorgio Agamben, reatualizando a Biopolítica Foucaltiana, dá contornos a esse diagnóstico nos seguintes termos: o Estado de Exceção. É uma técnica de governo que virou a regra geral de todos os Estados soberanos do planeta. No Estado de Exceção, a vida, argumenta Agamben, é a vida nua: a vida desprovida de qualificadores políticos. Em outros termos, uma vida descartável. Para Agamben, os Estados são produtores de "dessubjetivações". Butler parece concordar em partes com esse diagnóstico em "Precarious Life", mas parece oferecer discordâncias que enriquecem o debate. Para a autora, não se pode pensar nessas vidas frágeis sem levar em consideração as diferentes formas de alocar precariedade. Essas vidas sujeitas à violência arbitrária são, sugere a filósofa, as vidas precárias. Ainda nesse sentido, a "dessubjetivação" está no cerne do pensamento sobre processos de subjetivação em Butler, na consideração sobre as normas que atravessam e constituem o sujeito, lançado ao mundo das trocas simbólicas. Objetiva-se, nesse trabalho, explorar os termos de um possível debate entre Giorgio Agamben e Judith Butler.

Palavras-chave: Vida nua, Vidas precárias, Estado de Exceção

O diagnóstico da extrema fragilidade e susceptibilidade da vida humana em relação aos poderes constituídos não é exatamente novo. É famosa a descrição de Hannah Arendt (1989), em As

Origens do Totalitarismo, sobre os povos apátridas, destituídos de direitos e qualificadores

políticos, caracterizados como um “refugo da terra” (Arendt, 1989, p. 300); Walter Benjamin (1987), em Teses sobre o conceito de história, alertava para o Estado de Exceção que tornara-se regra (Benjamin, 1987, p. 226). As atrocidades bélicas do século passado interpelaram os pensadores a refletir sobre os mecanismos que nos colocam em situação de extrema vulnerabilidade. A guerra moderna, porém, exige uma necessária reatualização dos recursos teóricos que dispomos: novidades como o “conflito sem mortes[sic]” levado a cabo por Drones; a

(2)

guerra contra o “Terrorismo”, que amiúde parece dominar todos os aspectos da vida – em breve, meros protestos poderão ser considerados “Terrorismo”; além, claro, das polícias militarizadas que reprimem manifestes e comunidades pobres sitiadas.

A promulgação do USA PATRIOT ACT pelos Estados Unidos parece ter inaugurado uma nova era de guerra planetária, com sofisticados mecanismos eminentemente bio-anatomopolíticos. Nesse sentido, é de interesse investigar esse novo momento de reflexões “pós-11 de setembro” para tensionar conceitualmente o biopoder assim como Foucault (1984) havia originalmente pensado. Se o biopoder descreve um movimento no interior dos Estados modernos que transforma o cuidado vida em eixo central de regulação, cálculo e cuidado, nos parece que a morte produzida em larga escala, seja na guerra ao terror ou na guerra diária travada nas favelas brasileiras, demanda repensar os termos da gestão da vida e morte2. O objetivo dessa investigação será opor duas visões recentes e distintas sobre aquilo que nos referíamos, a fragilidade da vida: por um lado, Giorgio Agamben (2002, 2008a, 2008b) e seu conceito de Vida Nua; por outro, Judith Butler (2002, 2004, 2009) e as Vidas Precárias. O que está presente na reflexão de ambos é que teorizar sobre vida e a morte requer também uma analítica do poder; por isso é preciso também passar pelo Estado de Exceção, em Agamben, e a “Soberania Anacrônica”, de Butler.

Já nas primeiras páginas de o Estado de Exceção (Agamben, 2004, p. 15), livro recente e já influente na filosofia política e do direito, Agamben cita Butler como uma autora que descreveu, a partir de Guantánamo, “a máxima indeterminação” que caracteriza o Estado de Exceção. É curioso perceber, contudo, que esta parece ser a única citação do livro sem referência bibliográfica explícita; tampouco nas referências finais consta algum livro ou texto da filósofa. Não estamos em condições de determinar como que Agamben tomou contato com essa reflexão; é seguro, porém, utilizar como referência estável das noções de Butler sobre Guantánamo, naquele momento, um texto intitulado Guantánamo Limbo (2002). Esse texto antecede temporalmente o Estado de

Exceção (2004), e podemos supor, com alguma segurança, que Agamben tinha em mente as ideias

contidas nele. Também analisaremos como Butler posteriormente desenvolve seu argumento em

Precarious Life (2004), em que há um diálogo com Agamben, e uma revisão dos conceitos de

governamentalidade e soberania de Foucault. Depois, percorreremos a teorização de Agamben para, enfim, sintetizar os termos do diálogo entre os filósofos.

2 Não nos escapa que o próprio Foucault (1987) estava atento a este paradoxo, mas sua análise indiscutivelmente é mais voltada para as condições nas quais o cuidado da vida começa a se tornar preocupação da “arte de governar” dos Estados-nação.

(3)

Do limbo de Guantánamo à Vida Precária

Em março de 2002, meses após o atentado de 11 de setembro e a promulgação do USA PATRIOT ACT, Judith Butler publica um artigo de opinião no jornal The Nation (2002) em que discorre sobre a situação jurídica dos detentos3 de Guantánamo. Nesse texto já podemos encontrar as preocupações que vão guiar a filósofa em obras subsequentes, especialmente Precarious Life (2004) e Frames of War (2008); portanto, pode-se dizer ali temos os primeiros passos de sua inflexão ou “virada” ético-política, distanciando-se dos temas de gênero e se aproximando da filosofia política. O argumento central do texto é que os detidos de Guantánamo estariam num “limbo” jurídico-político, pois não são enquadrados na categoria de prisioneiros de guerra. Butler comenta que embora os Estados Unidos reconheçam que os detidos devem ser tratados pela Convenção de Genebra, o governo recusa o reconhecimento da hipótese de PG. A justificação jurídica é que, para ser reconhecido como tal, é preciso que se faça parte de um Estado-nação, com exército convencionalmente estabelecido; os detidos que pertencem a organização Talibã, porém, não cumprem esses requisitos (Butler, 2002).

Para Butler (2002), o governo americano, personificado, à época, na figura de Donald Rumsfeld, criou uma nova categoria jurídica para enquadrar os presos da guerra contra o Talibã: “combatentes ilegais” ou “detidos em campo de batalha” (2002). Essa caracterização definiria uma zona ou fora da lei, ou ainda não abarcada pelas hipóteses jurídicas contidas na Convenção de Genebra. Isso deu margem ao entendimento que os “combatentes” poderiam ser presos por tempo indeterminado pelos Estados Unidos, sem acesso à defesa e ao devido processo legal. Os detidos, portanto, vivem num limbo jurídico-político: são presos em uma situação de guerra, em conflito aberto contra os EUA, mas não conseguem ascender à categoria jurídica de presos de guerra, sendo sujeitos a tribunais e procedimentos secretos. A convenção de Genebra, comenta Butler, em vez de garantir direito indistinto aos combatentes, diferencia-os em razão da pertença (ou não) a um Estado-nação reconhecido. Ainda que o instituto do “prisioneiro de guerra” abarque a hipótese de um combatente afiliado a uma autoridade não reconhecida, os Estados Unidos ignoram essa cláusula, invocando para si a autoridade de decidir sobre o futuro e a vida do detido (Butler, 2002).

(4)

Uma distinção importante é que os Estados Unidos estariam apenas agindo “nos termos” da Convenção de Genebra, não se obrigando, na prática, a segui-la à risca. Para Butler (2002), a partir das estipulações desatualizadas de guerra, que tomaram como modelo os conflitos das Guerras Mundiais, a Convenção de Genebra é instrumentalizada para diferenciar o status legal de combatentes, oferecendo um quadro jurídico diferencial de reconhecimento daqueles que são legais (ou seja, os que pertencem ao Estado-nação) dos que são ilegais. Portanto, membros do Talibã usam da força ilegítima, por não pertencerem propriamente a um Estado-nação4. Butler é clara ao conceituar o status dos presos em Guantánamo: exceção. Além disso, na Convenção há diversas menções à “civilização”, diferenciando o que seria uma guerra “civilizada” de uma “incivilizada”, não sujeita, portanto, às mesmas restrições legais da primeira. O argumento de Butler como veremos, aproxima-se analogamente a posição de Agamben (2004) sobre o Estado de Exceção, cuja aplicação mantém o direito “desaplicando-se”. Para a filósofa, a noção de guerra civilizada na Convenção de Genebra

[…] trai a pretensão hegemônica do próprio acordo, um documento e um contrato que almeja definir a civilização nos seus modos de guerra e nos seus procedimentos de responsabilização sobre e contra uma ordem bárbara, ocluindo, portanto, sua própria barbárie, ou melhor, codificando-a em um minucioso procedimentalismo que arbitrariamente aplica e suspende (BUTLER, 2002).

Butler ainda aponta uma operação discursiva em jogo que alarga o conceito de “terrorismo”, e por outro lado, torna imune quem pune os terroristas. Os Estados Unidos, embora escolham não aplicar a Convenção de Genebra, ainda estão juridicamente protegidos por ela. Os terroristas, portanto, são quase como povos apátridas, destituídos de garantias legais. Isso explicita o momento de guerra civil global contra esses grupos, e a invasão e desrespeito à soberania das nações que abrigam os assim chamados terroristas. A discussão para Butler, é no fim das contas, uma discussão sobre quem conta ou não como humano, e a descaracterização do humano como tática de guerra (Butler, 2002).

É no livro Precarious Life (2004), um ano após a publicação de Estado de Exceção (2004 [2003]), que Butler tentará oferecer uma explicação teórica mais aprofundada sobre os temas que

4 Discussão claramente reminescente de Arendt (1987) e sua observação sobre os estatutos que distinguiam entre povos estatais e não-estatais, na época da Segunda Guerra Mundial.

(5)

discorreu em Guantánamo Limbo. Percorre nesse texto um certo tom de denúncia em relação aos Estados Unidos praticar um ilícito ao descaracterizar o status de prisioneiro de guerra, estando o debate eminentemente centrado no âmbito de interpretação jurídica. Em Precarious Life, porém Butler desloca-se em direção à governamentalidade em sentido foucaultiano. A filósofa recupera uma palestra de Foucault (1979) em que ele elabora uma distinção teórica e temporal entre o que chamou de “governamentalidade” e a “soberania”; o segundo caracteriza um momento pré-moderno dos Estados, enquanto o primeiro descreve o surgimento de uma certa “razão de Estado” que passa a incorporar uma arte de governar no seio de suas estratégias. Embora Foucault reconheça que as duas características podem co-existir temporalmente, há claramente uma sobreposição histórica da governamentalidade.

Para Butler, porém, o que caracteriza as estratégias de guerra governamentais contemporaneamente é o surgimento do que chama “Soberania Anacrônica” (Butler, 2004, p. 66); para ela, é preciso problematizar a noção de uma certa “substituição” da soberania clássica (o direito sobre a morte) pela governamentalidade (gestão das coisas e dos viventes). Argumenta que, na verdade, a soberania subsiste no seio das próprias estratégias da governamentalidade, surgindo em “desaplicações” estratégicas e elaboradas de garantias legais em meio às táticas governamentais (Butler, 2004. p. 62). É que, importante dizer, a própria governamentalidade é, via de regra, extra-legal; ela não é encontrada explicitamente em leis promulgadas no âmbito de um Estado-nação, mas faz parte de estratégias mais amplas que passam desde a economia política até o direito administrativo. A administração dos detidos em Guantánamo revelaria esse jogo, argumenta Butler, pois cabe aos funcionários e administradores da prisão decidir se os aprisionados têm direito ou não a um julgamento, a um advogado etc (Butler, 2004. p. 58). É uma situação em que a separação dos poderes parece não existir mais, que legislativo, executivo e judiciário confundem-se na figura do administrador da prisão, remetendo a uma época eminentemente pré-moderna; o ato que confere ao administrador esse arbítrio estaria no âmbito da governamentalidade, mas sua decisão é eminentemente soberana. É justamente esse surgimento da soberania sobre a vida dos detentos que Butler caracteriza como “Soberania Anacrônica”; um uso estratégico da soberania em meio às táticas de administração e gestão do Estado. Nas palavras da filósofa:

Minha própria visão é que uma versão contemporânea de soberania, animada por uma nostalgia agressiva que almeja acabar com a separação dos poderes, é produzida no momento dessa retirada, e que temos que considerar o ato de suspender a lei como um ato performativo que traz a configuração contemporânea de soberania à cena ou, mais

(6)

precisamente, reanima uma soberania espectral dentro do campo da governamentalidade. O Estado produz, através do ato da retirada, uma lei que não é lei, uma corte que não é corte, um processo que não é processo. O estado de emergência faz retornar a operação de poder de um conjunto de leis (jurídicas) para um conjunto de regras (governamentais), e as regras reinstalam a soberania: regras que não são vinculantes em função da lei estabelecida ou por modos de legitimação, mas completamente discricionárias, até arbitrárias, exercidas por oficiais que as interpretam unilateralmente e decidem a condição e a forma de sua invocação (BUTLER, 2004, p. 62, tradução nossa).

O fato de usar o conceito “governamentalidade” é por si só interessante. Se outros autores, como o próprio Agamben (2004, 2008), preferem descrever a gestão da vida a partir da noção de biopoder, também foucaultiana, para Butler é importante frisar a governamentalidade como uma característica mais ampla dos Estados modernos, que abarca não só a gestão dos viventes, mas também das coisas, dos bens, do comércio, da economia política – pois se os sujeitos são desumanizados, sua gestão já não é igual àquela conferida ao bios politikon. O biopoder parece ser a descrição dessa “razão de Estado” a partir do eixo da gestão populacional e disciplinar dos viventes. Salientar a governamentalidade é apontar para o jogo estratégico maior da própria arte de governar, que passa a utilizar os administradores da prisão como prepostos de uma violenta soberania incontida. É uma descrição claramente análoga ao O Processo de Kafka (2008), em que K. vê-se assujeitado aos desmandos de um tribunal quase místico, misterioso. Os procedimentos secretos e obscuros pelos quais os administradores da prisão podem decidir o destino dos detentos evoca essa característica mística da lei e da autoridade.

Butler vai chamar de Vida Precária essa vida que escapa da inteligibilidade do que é reconhecido como vida; trata-se de uma questão de reconhecimento em relação ao Outro cuja categoria de humano é-lhe subtraída por variados dispositivos políticos (Butler, 2004, p. 134). São vidas pelas quais não se pode realizar o luto; não têm acesso a direitos e garantias; não tem espaço de representação nas nossas comunidades políticas; vidas, enfim, que morrem e que não são choradas. É por isso que Butler terá a preocupação de questionar, em Frames of War (2008), os enquadramentos pelos quais certos sujeitos são representados, e como certas representações determinam a priori o qualificador (ou não) de humano. Essa argumentação surge nas páginas finais de Precarious Life, em que Butler evoca a noção ética de Rosto, de Levinas, sendo um significante ético de alteridade que impediria a agressão a um Outro reconhecido. Em Frames of

War, livro que é uma continuação direta de Precarious Life, Butler distingue dois âmbitos de nossa

(7)

compartilhada de exposição ao Outro e ao perigo; o segundo, precarity (precarização), dá conta de uma dimensão (politicamente) induzida de precariedade (Butler, 2008, p.25). É nesse segundo sentido, portanto, de indução à precariedade, que devemos compreender essas Vidas Precárias, como vidas cuja condição de exposição ao perigo é agudizada por estratagemas de poder.

O Estado de Exceção e a Vida Nua

Agamben inaugura, em Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (2002), um projeto filosófico de compreender o direito a partir de uma investigação arqueo-genealógica, no sentido metodológico tomado de empréstimo de Foucault. O Estado de Exceção (2004), na ordem lógica dos volumes, é a segunda obra, após o Homo Sacer. Nesse livro, Agamben procurará definir o Estado de Exceção para além da categoria jurídica usual, que meramente remete o conceito a uma “questão de fato”. Para Agamben, o Estado de Exceção, antes de ser uma lei ou um território, pode ser melhor definido como uma técnica de governo (Agamben, 2004, p.13). Se por muito tempo o conceito jurídico de Estado de Exceção esteve formulado de forma limitada, é preciso uma teorização que dê conta da indeterminação entre o jurídico e político que caracteriza o Estado de Exceção, isto é, a suspensão das leis e das garantias. Por contingências do período histórico, um líder ou um governo lança mão de técnicas que passam a suspender a aplicação do direito (em nome de sua própria aplicação). Quer isso seja feito pela decretação legislativa do estado de exceção/de sítio/ de guerra ou não, é indiferente. O que Agamben observa é a criação da zona de indiferenciação que se instaura entre o direito e a anomia, em que a vida é capturada pelo poder soberano. Essa vida, argumenta, estando na face oposta do poder soberano, tornar-se-á a Vida Nua, isto é, a vida desprovida de qualificação política, uma vez que direitos e garantias são suspensos e resta apenas uma “força-de-lei”, isto é, uma força de lei sem lei (Agamben, 2004. p. 61).

Os Estados modernos são herdeiros das técnicas de guerra cujo laboratório foi a Segunda Guerra Mundial. Da zona de anomia que caracteriza o Estado de Exceção até a criação de Auschwitz, o campo de concentração tornou-se paradigma de governo (Agamben, 2004, p.13). Isso não quer dizer, por exemplo, que se deve investigar nas arbitrariedades modernas a concretização de Auschwitz. Auschwitz – o campo de concentração – é a concretização, aí sim, da técnica jurídico-política em seu modo mais perfeito, suspendendo completamente qualquer tipo de garantia, tornando direito e poder indiscerníveis, e fazendo da morte mera produção estatística de cadáveres. Sendo assim, à teorização sobre o biopoder se complementa a noção da tanatopolítica, a política e

(8)

gestão da morte. A questão essencial para Agamben é colocar em suspeição o próprio direito e o estado democrático de direito, de não ter ilusões acerca das garantias dos estados modernos e suas táticas de guerra e extermínio; cumpre investigar essa técnica moderna, que se opera no limiar jurídico-político, capaz de tornar a vida completamente descartável e vulnerável a ação de um soberano, e as variadas e múltiplas formas, insidiosas ou não, que essa técnica assume (Agamben, 2004, p. 133).

Para investigar essa captura da vida pelos Estados modernos, que resulta em vidas passíveis de serem matadas, Agamben (2002) retoma um obscuro conceito do direito romano: Homo sacer. O

Homo sacer poderia ser descrito como uma possível formulação antiga da vida nua moderna, essa

vida capturada pelo poder soberano, descartável. Pois o Homo sacer habita uma zona que não diferencia o jurídico e o político; trata-se de uma vida que perdeu qualquer qualificador, em termos jurídicos tradicionais, no mundo dos homens, tornando-se matável na urbe, mas improfanável (sagrado) no plano dos céus. Portanto, é um sujeito que não pode ser sacrificado em rituais religiosos, mas cuja matabilidade, fora disso, é permitida. Estudando o Homo sacer, segundo Agamben, podemos lançar luzes sobre a vida nua, e iluminar, nesse mesmo processo, a soberania. Como diz o filósofo: “Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrifiável, é a vida que foi capturada nesta esfera” (Agamben, 2002, p. 91). A respeito da vida, Agamben continua: “Não a simples vida natural, mas a vida exposta à morte (a vida nua ou a vida sacra) é o elemento político originário” (Agamben, 2002, p. 96). A assunção da vida pelos Estados e pelo poder soberano, argumenta Agamben, não é tanto originária de um liame social que assume formas político-jurídicas, mas decorre, ao contrário, de uma disrupção originária que incorpora, no âmbito de uma soberania, a Vida nua; para além do poder de vida ou morte, tão bem descrito por Foucault (1984), há, para Agamben, a instauração disruptiva de uma zona de indiferenciação generalizada.

Vidas matáveis e vidas vivíveis

Feita essa rápida passagem pelas noções principais dos autores a respeito de suas respectivas analíticas do poder e o status moderno dessa “vida à mercê”, podemos proceder ao diálogo entre os dois. Após a leitura de Estado de Exceção e sua compreensão enquanto um paradigma de governo, fica evidente que a posição teórica de Butler sobre Guantánamo é largamente dependente da recuperação de um direito legítimo anterior (status quo ante), fato que ela mesma reconhece

(9)

(Butler, 2004, p. 98). Parece, portanto, que Butler ainda aposta na função legitimadora da lei. Sua argumentação compreende que as arbitrariedades cometidas contra os detentos de Guantánamo tratam-se, na verdade, de exceção; Agamben, por outro lado, mostra que a indeterminação que o Estado de Exceção produz é, na verdade, a regra, o paradigma de governo – ecoando a tese benjaminiana –, sendo que o que está em jogo é a própria legitimidade da lei. Ainda nesse sentido, ao contrário de Butler, Agamben parece dar maior relevância à noção bio-tanatopolítica, pois se o Estado de Exceção representa uma zona de indistinção entre fato e norma, soberania e governamentalidade parecem estar irremediavelmente imiscuídos. Embora Butler dialogue com Agamben em Precarious Life, a análise da filósofa parece não compartilhar do diagnóstico do italiano, mesmo constando nas referências a versão francesa de Estado de Exceção, à época ainda não publicado e traduzido para o inglês. Butler cita Agamben, nesse sentido, para exemplificar a posição de um filósofo que, assim como ela, discorda da sobreposição da governamentalidade pela soberania. Embora o diagnóstico de Agamben pareça ser difícil de refutar, pensamos que a analítica de Butler, que procura discernir soberania de governamentalidade, pode oferecer um instrumental teórico útil para distinguir os vetores de poder que agem nos sujeitos.

Há um momento em que Butler comenta o conceito de Vida nua, e que explicita uma divergência clara entre os dois. Para Butler, a Vida nua de Agamben representaria um “fora da polis”, uma condição meramente “universal”, fora do Estado de Direito, uma afirmação generalista que perderia de vista, como ela argumenta, as formas diferenciais como precariedade é alocada, como a arbitrariedade atua diferencialmente entre as populações (Butler, 2004, p.67). Por um lado, não nos parece justo ou conceitualmente correto dizer que Vida nua representa meramente um fora; a Vida nua nos Estados modernos depende necessariamente da produção da zona de indeterminação que é o Estado de Exceção. Essa produção depende de uma técnica, uma intervenção. Por outro lado, Butler está correta em apontar que há níveis diferenciais de produção de valores sobre as vidas, as vidas matáveis e as vidas vivíveis; a distinção entre vidas é a própria do biopoder. A produção das condições nas quais vidas são vivíveis ou não é essencialmente diferencial; podemos dizer, sem hesitação, racista.

O diagnóstico de Agamben, o paradigma do Estado de Exceção e a Vida Nua, é certamente generalista, e embora sua discussão seja conceitual, ele parece incorrer numa afirmação de cunho quase sociológico, especialmente quando afirma o caráter planetário do Estado de Exceção (Agamben, 2004, p. 13). Mesmo que Agamben reconheça que a biopolítica opera cesuras (Agamben, 2008), a dimensão da Vida nua carrega esse mesmo sentido de “afirmação sociológica”,

(10)

mesmo não pretendido; não há uma preocupação clara em apontar quais populações esse qualificador descreve. Se Agamben parece apontar para o Estado de Exceção e a Vida nua enquanto regra, isso parece perder de vista justamente as cesuras que o poder opera. É essa a preocupação de Butler a partir de Precarious life: compreender, no interior de uma comunidade política, quais vetores são responsáveis por realizar essa separação entre vidas possíveis e vidas impossíveis.

Há, porém, momentos claros de aproximação entre os autores. Em Precarious life, especialmente, Butler sugere que se o detento em Guantánamo está sujeito a uma detenção por tempo indeterminado, por não ocupar o qualificador jurídico de PG; então o estado de emergência que fundamenta o USA PATRIOT ACT também é indefinido (Butler, 2004, p.64); da mesma forma Agamben ao comentar o Estado de Sítio na Primeira Grande Guerra, comenta a tendência do Estado de Exceção se tornar política duradoura (Agamben, 2004, p. 19). Isso, porém, não nos deve levar a ter uma compreensão meramente jurídica sobre o Estado de Exceção/Sítio/Emergência, isto é, de inquirir sobre a legitimidade ou não de determinados atos ou leis, porque o que se questiona é a própria possibilidade de legitimidade. Quando Butler afirma que os Estados Unidos utilizam a lei e sua suspensão enquanto tática, ela de certa forma percebe isso; Agamben, em sentido parecido, afirma que o Estado de Exceção é uma técnica de governo. Por último, quando Butler percebe que a humanidade dos sujeitos é descaracterizada em Guantánamo e que suas mortes sequer são mortes, porque sequer são considerados como humano (Butler, 2004, p. 98), lembra imediatamente a reflexão de Agamben sobre Auschwitz e a descrição de seu funcionamento: não um lugar onde se matou pessoas, mas onde se produziu cadáveres (Agamben, 2008, p.82). Por último, tomar esse debate entre os autores como ponto de análise pode auxiliar a iluminar os conceitos dos dois autores mutuamente, e entender o motivo de certas opções teóricas. O que parece aproximá-los, para além de meras coincidências teóricas, nos dizeres do próprio Agamben, é o olhar eminentemente contemporâneo, que enxerga nas luzes partes das sombras que não cessam de surgir (Agamben, 2009, p. 64).

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. Tradução de Henrique Búrigo.

_______. Estado de exceção (Homo Sacer II, 1). São Paulo: Boitempo, 2008a. Tradução de Iraci D. Poleti.

(11)

_______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008b. Tradução de Selvino J. Assmann.

_______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos 2009. Tradução de Vinícius N. Honesko.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das letras, 1989. Tradução de Roberto Raposo.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasília: Editoria Brasiliense, 1987. Tradução de Sergio Paulo Rouanet.

BUTLER, Judith. Guantánamo Limbo. Publicado em 14 de março de 2002. Disponível em:

<https://www.thenation.com/article/guantanamo-limbo/>. Acesso em: 04/07/2017.

_______. Precarious life. London: Verso, 2004.

_______. Frames of war: when is life girevable? London/Newyork: Verso, 2009.

_______; ATHANASIOU, Athena. Dispossession: the performative in the political. Cambridge: Polity, 2013.

FOUCAULT, Michel. A governamentalidade. In FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, pp. 277-293. Organização e tradução de Roberto Machado.

_______. História da Sexualidade: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984a. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque.

KAFKA, Franz. O Processo. Organização, tradução e notas de Marcelo Backes. Porto Alegre, LP&M, 2008.

From bare life to precarious life: the debate between Giorgio Agamben and Judith Butler

Astract: From Heidegger, Benjamin, and Arendt, there is a diagnosis of modernity that points to the extreme fragility of life. Hannah Arendt describes the migratory crisis of the beginning of the last century in the following terms: the scrap of land that wandered through Europe. Millions of people, dispossessed of their assets and even the minimal legal qualifier: human rights. Giorgio Agamben, reanalyzing the Foucauldian Biopolitics, contours this diagnosis in the following terms: the State of Exception. It is a technique of government that has become the general rule of all the sovereign states of the planet. In the State of Exception, life, argues Agamben, is bare life: life devoid of political qualifiers. In other words, a disposable life. For Agamben, states are producers of "de-subjects". Butler seems to agree on parts with this diagnosis in "Precarious Life," but seems to offer disagreements that enrich the debate. For the author, one cannot think of these fragile lives without taking into account the different ways of allocating precariousness. These lives, subject to arbitrary violence are, the philosopher suggests, precarious lives. Still in this sense, "de-subjectivation" is at the heart of Butler's thinking about subjectivation processes, the consideration of the norms that cross and constitute the subject, launched into the world of symbolic exchanges. The objective of this work is to explore the terms of a possible debate between Giorgio Agamben and Judith Butler. Keywords: Bare life, precarious life, state of exception.

Referências

Documentos relacionados

b) Execução dos serviços em período a ser combinado com equipe técnica. c) Orientação para alocação do equipamento no local de instalação. d) Serviço de ligação das

O candidato deverá apresentar impreterivelmente até o dia 31 de maio um currículo vitae atualizado e devidamente documentado, além de uma carta- justificativa (ver anexo

V- Os atuais ocupantes da Classe Especial permanecem na mesma Classe. § 1º Os atuais ocupantes do Cargo de Escrivão de Polícia Classe Substituto que estejam cumprindo estágio

responsabilizam por todo e qualquer dano ou conseqüência causada pelo uso ou manuseio do produto que não esteja de acordo com as informações desta ficha e as instruções de

As empregadoras colaborarão com a entidade de classe no sentido de prestigiar as festividades da semana da enfermagem, anualmente entre os dia 12 à 20 de maio, liberando

The most popular approach for supervised learning is the Artificial Neural Network (ANN) [11]. Those networks have been used in a wide variety of problems with success

O estudo da propagação de desvios não intencionais como meio de identificação de aspectos requerentes de maiores detalhamentos para possibilitar resultados mais

Quanto a ação de uma equipe interdisciplinar no AEE, os profissionais acreditam que este deva ser realizado em seus atendimentos em vista à sua efetividade (Fig 10). Fazendo