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ENTRE PHÝSIS E NÓMOS: UMA CONSIDERAÇÃO EPICURISTA SOBRE AS AGREGAÇÕES HUMANAS

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ENTRE PHÝSIS E NÓMOS: UMA CONSIDERAÇÃO EPICURISTA

SOBRE AS AGREGAÇÕES HUMANAS

Renato dos Santos Barbosa1

RESUMO: Epicuro (341-270 a.C) reflete, sobretudo em suas Máximas

principais, sobre as agregações humanas e se posiciona no cerne do problema da

oposição entre natureza (phýsis) e convenção (nómos). De um lado tem-se a dinâmica necessária, eterna e imutável da natureza e, de outro, os pactos mutáveis e dependentes das circunstâncias e do entendimento entre os homens. Epicuro harmoniza a aparente discórdia entre a vida segundo a natureza e a vida em sociedade com seus intrínsecos acordos para a utilidade mútua. O espaço para acordos sociais é garantido pela concepção epicurista de natureza. Segundo esta, a necessidade inflexível (anánke) não interfere nas relações humanas, visto que há na natureza um espaço para aquilo que concerne aos homens (pár’hemás).

Palavras-chave: natureza, pactos, necessidade, par’hemás.

ABSTRACT: Epicurus (341-270 BC) reflects, mainly in the Principal Doctrines, on the human aggregations and places himself at the core of the problem of the opposition between nature (phýsis) and convention (nómos). On one hand we have the nature: necessary, eternal and unchangeable. On the other we have agreements which are changeable and dependent on circumstances and understanding among men. Epicurus harmonizes the apparent discord between life according to nature and life in society with its intrinsic agreements for mutual utility. The realm for social agreements is guaranteed by the Epicurean conception of nature. According to it, the inflexible necessity (anánke) does not interfere in human affairs, since there is a space in nature for that which concerns men (pár'hemás).

Keywords: Nature, Agreements, Necessity, par'hemás.

Epicuro, na Carta a Heródoto2, discorrendo sobre a formação dos mundos (kósmous), afirma que “esses compostos separam-se de conglomerados (systrophé) especiais de átomos maiores e menores” (DL, X, 73). É curioso notar que o termo systrophé também é usado para descrever as relações humanas: “A justiça não era algo em si e por si, mas nas relações (systropháis) recíprocas dos homens em qualquer lugar e a qualquer tempo é uma espécie de pacto no sentido de não prejudicar nem ser prejudicado” (Máximas principais, XXXIII). É possível, assim, imaginar uma analogia entre o nascimento dos mundos e as agregações humanas3. Ou melhor, uma analogia entre os átomos e os indivíduos

1 Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 2 DL, X, 35-83, Carta na qual Epicuro resume sua física.

3 Cf. MÜLLER, 1980, p. 337; SILVA, 2003, p. 90: “O modelo se expõe enquanto uma analogia

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isolados. Uns formando mundos e corpos compostos, outros formando comunidades humanas. O epicurismo não é avesso a essa imagem, desde que a vida do epicurista deve ser regida pelos limites naturais, como um “átomo dotado de consciência” 4

, atingindo, assim, o fim (télos) da natureza. Epicuro afirma que “A pobreza, medida conforme o fim da natureza (to tés phýseos télei), é grande riqueza; a riqueza sem um limite é grande pobreza” 5

(SV, 25). Esta passagem das

Sentenças se relaciona com o passo 130 da Carta a Meneceu em que Epicuro tece

comentários acerca da administração autárquica de nossos desejos, da lapidação de nossas paixões em busca do limite da satisfação da carne, em busca da atomização de si mesmo. A afirmação que segue desse comentário do passo 130 é paradigmática: “tudo que é natural é fácil de satisfazer (eupóriston), mas o desejo vão é difícil de conseguir (dyspóriston)”. As máximas VI, VII e XV apresentam, respectivamente, as expressões katá phýsin, katà to tés phýseos e hó tés phýseos6. Essas expressões revelam uma característica comum a algumas escolas7 do período helenístico, o preceito que exorta: viva segundo a natureza.

No entanto, viver de acordo com a phýsis não significa desprezar tudo o que advêm de acordos e convenções humanas. Pelo contrário, viver segundo a natureza não é nada mais que compreender o espaço natural destinado ao bem agir do homem. O conceito de phýsis, para Epicuro, não dispensa o de nómos. A reflexão de Epicuro, segundo P.-M. Morel, “está no centro da problemática, tornada clássica a partir da expansão do movimento sofístico no século V, da oposição entre natureza e convenção”. (GIGANDET & MOREL (orgs), 2011, p. 208). Em tempos sofísticos os termos nómos e phýsis se tornaram antitéticos8.

Nómos9 significa crença, costume, hábito, lei, mas pode ser compreendido, em sentido largo, por convenção. A discussão adquire o status de filosófica ao chegar ao ponto em que nómos adquire o sentido de falso em detrimento do phýs(ico) em que repousa a verdade e o ser10. O problema pode ser representado por Protágoras, de um lado, explicando as leis e valores por sua relatividade no tempo e no espaço11; e, do outro lado, Platão que passa ao largo da relatividade das convenções e quer encontrar uma base segura para política no ser e na verdade. Compreender a relação entre nómos e phýsis, por meio da filosofia de Epicuro, é compreender também a natureza da justiça, da linguagem, da educação, enfim, de tudo aquilo que depende do homem (par’hemás) e seu agir como componente da agregação dos homens.

1. Nómos e phýsis no atomismo

Demócrito de Abdera (460-360 a.C.), antecessor de Epicuro na compreensão atomista da phýsis, dizia: “Por convenção (nómoi) existe o frio, por

composições físicas, chamadas corpos, é a responsável pelos agregados de sábios, que vivem ou buscam viver de acordo com a compreensão de phýsis e dos modos como ela se realiza”.

4

Cf. DUVERNOY, 1993, p. 91.

5 Tradução francesa de CONCHE, 1977, p. 253, vertida para o português. 6 Todas essas expressões podem ser traduzidas por “segundo a natureza”.

7 Cf. DL, VI, 87. Nesse passo Diógenes afirma que Zenão, o estoico, foi o primeiro a definir o fim

supremo como viver segundo a natureza.

8

Cf. W.K.C. GUTHRIE, 1991, p. 57.

9 ISIDRO PEREIRA, S.J. Define nómos por: uso, costume; opinião geral, máxima; lei; modo de

música, canto (1998, p. 391).

10 Cf. W.K.C. GUTHRIE, 1991, p. 58. 11

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convenção existe o calor, mas em verdade existem apenas os átomos e o vazio12” (DL, IX, 72). Nesta passagem, nómos está relacionado com as qualidades sensíveis. O testemunho dos sentidos como os que atestam a existência de cores, sabores e sensações térmicas não merecem confiança, desde que os sentidos nos enganam frequentemente e as sensações variam de acordo com o tempo, lugar, indivíduo e comunidade na qual são experimentados. Não se pode, portanto, atribuir a condição de ser, reservada aos átomos e ao vazio, a coisas tão inconstantes e mutáveis. Como diz Morel: “as qualidades sensíveis se relacionam simultaneamente à comunidade dos homens, que concordam sobre seu valor, e aos indivíduos, que não os experimentam de maneira idêntica” (2000, p. 95). Em contraposição, Epicuro redime as sensações, estabelecendo-as como critério de verdade e desloca o erro e a falsidade para a opinião que não foi atestada pela confirmação (prodoxazómeno) sensorial13.

A posição de Epicuro decorre de uma mudança fundamental em relação ao atomismo pré-socrático. Os compostos atômicos têm propriedades que os átomos isolados não possuem14, e estas não são inscritas na ordem do não-ser, embora não possuam a mesma realidade que os elementos que as tornam possíveis15. Os compostos e suas propriedades são, pois, uma realidade de segunda ordem16. Para Epicuro as qualidades que percebemos não são apenas convenção, mas são radicadas também na ordem do ser.

No entanto, a origem dessas novas propriedades além da forma, peso e tamanho dos átomos, só podem ser explicadas pela intervenção do acaso (týche) na natureza. Pois nada explica porque os átomos que formam agregados como a lua e o sol, por exemplo, também são os elementos constitutivos do composto anímico. O acaso se expressa na própria ideia de uma natureza sem propósito e finalidade na formação dos compostos. Os átomos viajam no vazio infinito, repelindo-se se não houver afinidade entre eles ou formando corpos quando suas formas são favoráveis entre si. Não há intenção nem na formação nem na destruição dos corpos17. Assim como somos, poderíamos não ser. Desse modo, a natureza não predetermina um modo de vida segundo um programa específico.18 É devido a esse aspecto da phýsis19 que, na compreensão epicurista, há um largo e natural espaço para a convenção, para os acordos mútuos, para a elaboração de ideias e variadas possibilidades de interpretação de fenômenos, para a criação

12 Cf. DK B 6-11 “Convenção o doce, convenção o amargo, convenção o frio, convenção a cor. Na

realidade, não há senão átomos e vazio”.

13

“A falsidade e o erro dependem sempre da superposição de uma simples opinião quando um fato espera confirmação crítica, ou pelo menos espera não ser contraditado” (DL, X, 50).

14 “Devemos sustentar ainda que os átomos não têm qualquer qualidade das coisas do mundo dos

fenômenos, à exceção da forma, do peso e do tamanho e das propriedades necessariamente associadas à forma” (DL, X, 54).

15 Cf. DUVERNOY, 1993, p. 50.

16“Não devemos, todavia, crer que as formas e cores, e as magnitudes e os pesos e todas as

qualidades predicadas a um corpo enquanto são propriedades constantes de todos os corpos ou dos corpos visíveis, passíveis de ser conhecidas pela sensação dessas mesmas qualidades, sejam naturezas existentes por si mesmas (isto é inconcebível) nem totalmente inexistentes... (oúte hólos hós oúk eisín)” (DL, X, 68-69).

17 Cf. MOREL, 2003, p. 168. 18

Cf. MOREL, 2003, p. 187.

19 Sucintamente, phýsis no atomismo epicurista é o todo infinito e imutável, é princípio (arché) sob

a forma dos átomos e do vazio, e também é o eterno movimento de geração, corrupção e reorganização dos corpos compostos. Ademais, a phýsis se realiza de três modos, acaso (týche), necessidade (anánke) e por nós (par’hemás).

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técnica e para agir segundo princípios estabelecidos pelos próprios homens. E tal espaço é identificado nos textos de Epicuro pela expressão par’hemás.

Finalmente ele proclama que o destino, introduzido por alguns filósofos como o senhor de tudo, é uma crença vã, e afirma que algumas coisas acontecem necessariamente, outras por acaso, e que outras dependem de nós (par’hemás). (DL, X, 133)

Aécio20 pode nos ajudar a comentar a passagem acima, na medida em que veicula também a ideia de Epicuro acerca dos modos em que a natureza se realiza: “Epicuro diz que tudo acontece por necessidade, por escolha (proaíresin) ou por acaso” (Us. 375). Talvez haja uma equivalência entre par’hemás e proaíresin, no entanto, supomos que o sentido do primeiro é mais amplo, subsumindo em si o segundo conceito que, em contrapartida é o ponto de origem de todas as possibilidades de construção do sábio, desde que estas principiam numa escolha deliberada. Arriscamos afirmar que tal preferência de Aécio se deva as discussões sobre o destino, tão em voga em sua época, abordadas, por exemplo, por Cícero (106-43 a.C), Lucrécio (99-55 a. C) e Sêneca (4 a.C?-65 d.C). Assim, a

proaíresin, a escolha deliberada, seria a raiz original do espaço natural destinado

às construções humanas (par’hemás) e teria sido posta em evidência por Aécio pelo fato de remarcar a ideia epicurista de liberdade em contraposição ao destino dos megáricos, estoicos e da religião astral21.

Por outro lado, a noção de necessidade22 (anánke), expressa sob a ideia de destino, foi a causa de Epicuro criticar “o grande homem”, possivelmente Demócrito de Abdera, afirmando que este teria reduzido todos os acontecimentos à inexorável necessidade e, consequentemente, contradizendo suas palavras com seus atos.

Em verdade, o discurso que ensina isso (que o acaso e a necessidade são a causa de todas as coisas) é contraditório e impediu o grande homem de perceber que ele colocava sua doutrina contra os seus atos. (Sobre a natureza, C, 34.30)23

Epicuro limita a extensão dessa necessidade devido às evidências extraídas das próprias relações humanas. “A necessidade (anánke) é um mal, mas não há nenhuma necessidade de viver segundo a necessidade” (SV, 9). A neutralidade cosmológica24 expressa numa natureza sem propósitos deixa, justamente por isso, um espaço de construção de um modo de vida (par’ hemás), de acordos e conveniências exigidas pela ausência de um modo de vida segundo um programa específico. É preciso, pois, criar uma segunda natureza em detrimento da constituição inicial que herdamos da natureza primeva.

20 Doxógrafo que viveu entre o fim do séc. I a.C. e o início do séc. I de nossa era.

21 “Compreendemos, sem dúvida, que Epicuro tomou a religião astral por mais perigosa ainda que

as crenças do povo” (FESTUGIÈRE, 1946, p. 106-107).

22

“Nós podemos distinguir três (sentidos) gerais: a necessidade como princípio lógico, como princípio cosmológico, como destino”. MOREL, 2003, p.12.

23 LONG, A. A. & SEDLEY, D. N, 1987, p. 104.

24 Essa construção precisamente, se torna possível pela neutralidade cosmológica (o espaço

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[E nós podemos opor ao argumento de que o nosso comportamento deve ser causado pela nossa constituição inicial ou por] fatores ambientais, através da qual nunca deixamos de ser afetados, [o fato de que] nós repreendemos, nos opomos e reformamo-nos uns aos outros como se nós tivéssemos a causa em nós mesmos, e não apenas em nossa constituição inicial e na necessidade mecânica que nos rodeia e penetra-nos25. (Sobre a

natureza, C, 34.26)

Essa passagem expressa o fato de que podemos alterar nossa natureza através da educação. Existe um espaço natural, elástico, que nos permite mudar, nos corrigir, educando nossos desejos. Dessa possibilidade depende toda ética e todo saber. “Não é necessário fazer violência à natureza, mas persuadi-la: nós a persuadimos nos contentando com os desejos necessários, e também com os desejos naturais se eles não forem prejudiciais, porém resistindo duramente aos prejudiciais” (SV, 21).

2. A justiça

Nesse ínterim, nos deparamos com a ideia de que a justiça, virtude indispensável para a vida de um epicurista26, tem, de certo modo, uma natureza convencional. “Em seu aspecto geral a justiça (díkaion) é a mesma para todos, pois representa uma espécie de vantagem recíproca nas relações dos homens uns com os outros; mas, com referência às peculiaridades locais e outras circunstâncias quaisquer, a mesma coisa não é justa para todos” (Máximas

principais XXXVI). Destacamos nesta máxima que a justiça tem um aspecto geral

e outro específico. Em seu aspecto geral (koinon) a justiça é passível de uma definição universal, e Epicuro a define como utilidade mútua (sympherón). É da impressão sensível advinda de um fato observado, em que dada ação se tornou útil para ambas as partes ou várias partes, que podemos falar na noção de justiça. Por outro lado, um ato justo em determinada localidade (ídion) pode não ser justo em outra, na medida em que era útil para aqueles e não para estes. Da mesma forma que o que era útil no momento t1 pode deixar de sê-lo no momento t227.

Entretanto, chocamos-nos com uma máxima enigmática:

O justo por natureza (to tes phýseos dikaion) é o símbolo (sýmbolon) da utilidade que descobrimos de não cometer injustiças entre nós nem sofrê-las (Máximas principais XXXI) Podemos entendê-la a luz da máxima XXXVI, afirmando que o justo por natureza é o aspecto geral da noção. No entanto, o justo parece ser simbolizado pela utilidade e não ser a própria utilidade. Passagem difícil, mas que podemos esboçar uma interpretação. Para tanto nos valeremos da concepção epicurista a respeito das origens da linguagem.

Epicuro e, seu epígono, Lucrécio estão em uníssono a respeito das origens e desenvolvimento da linguagem. Assim canta o poeta Lucrécio: “Quanto aos vários sons da linguagem, foi a natureza que obrigou a emiti-los e foi a utilidade

25 LONG, A. A. & SEDLEY, 1987, p. 103.

26 “Não é possível uma vida agradável se não se vive com sabedoria, moderação e justiça...”

(Máximas principais V).

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que levou a dar nomes às coisas” (DRN, V, 1030). Daqui, já podemos entrever uma solução para o problema da justiça natural. Assim como a linguagem finca suas raízes na natureza e depois a utilidade entra em cena, desenvolvendo esta capacidade inata do homem, assim é, pois, o que se dá com a justiça. Temos a capacidade inata para justiça que é (ou não) logo em seguida desenvolvida pelo

sympherón, pelo útil ou conveniente. E este é variável, dependendo da

comunidade e dos indivíduos que dela participam. Assim, a justiça é, ao mesmo tempo, natural e convencional, da ordem da phýsis e também da ordem do

nómos28. Nas palavras de Morel: “O justo é, portanto, ao mesmo tempo variável em suas manifestações e natural em seu princípio, porque não há necessariamente antinomia entre o natural e o que muda, entre a natureza e a diversidade” (GIGANDET & MOREL (orgs.), 2011, p. 218).

3. As agregações humanas

A justiça pode ser explicada também pela inovação epicurista com relação às propriedades dos corpos compostos. Os sabores não tem a mesma realidade que os átomos e, do mesmo modo, a justiça não é em si mesma29, porque depende da agregação, agora não mais de átomos, mas de indivíduos. Na analogia entre átomos e indivíduos a justiça é como as propriedades dos compostos, uma realidade de segunda ordem, mas que nem por isso deixa de ser real e natural. As comunidades de sábios são como compostos de átomos unidos pela philía (amizade), os quais permanecem assegurados contra malefícios por meio de acordos para utilidade mútua. Cada indivíduo da comunidade está circunscrito a uma esfera de ação delimitada pelo pacto acordado entre amigos. Tal associação visa unicamente à manutenção do prazer e da felicidade. “De todos os bens que a sabedoria proporciona para produzir a felicidade por toda a vida, o maior, sem comparação é a conquista da amizade” (Máximas principais XXVII).

Entretanto, não é necessário que se façam pactos nem que se viva em comunidade. Por que não a solidão em vez da amizade? O próprio Epicuro disse que “a fonte mais pura de proteção diante dos homens, assegurada até certo ponto por uma determinada força de rejeição, é de fato a imunidade resultante de uma vida tranquila e distante da multidão” (Máximas principais, XIII). Por que não viver como o homem selvagem, natural até o último fio de cabelo, “que não podia compreender o bem comum nem sabia usar entre si de quaisquer costumes ou leis”? (DRN, V, 960)

O homem está entre a cruz e a espada, pois, ou vive só, escondido de todos, e, em contrapartida, submete-se a todos os tipos de perigos e vive atormentado ou psicologicamente perturbado pela desconfiança de um inimigo à espreita, ou então, une-se a companheiros que o manterão protegido pela força da lei, mas que no entanto, trarão consigo as mazelas da civilização: medos, supertições e desmedida.

28 Vemos nessas passagens que a linguagem teve sua origem na natureza, mas seu

desenvolvimento dependeu dos acordos realizados entre os homens. Do mesmo modo, a justiça tem seu “lado” natural na utilidade, na manutenção da vida e do prazer. Pois sem pactos para utilidade mútua os homens viveriam a mercê dos piores males. Já o caráter convencional da justiça reside nas múltiplas formas de se preservar a vida e o prazer. Esses são aspectos das agregações humanas, inicialmente o processo de agrupamento se deu naturalmente, posteriormente as relações se tornaram complexas.

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A saída para o sábio epicurista é unir-se a uma comunidade atômica, regida pelo princípio da amizade e do bem comum. Comunidade em que o prazer e a felicidade são o télos da convivência.

Assim, observamos como Epicuro une o convencional ao natural ao mesmo tempo em que diagnostica e afirma no agir humano o poder criador e solto dos fados de escolher seu modo de vida, uma vez que a natureza não o predetermina a um programa específico pelo qual ele deva viver. No entanto, Epicuro descobriu a melhor das vidas e a anuncia, fazendo jus ao seu nome, “aquele que vem em ajuda de outrem”.

REFERÊNCIAS

CONCHE, M. (1977) Epicure: lettres et maximes. Paris: éd. De Megare.

DIÔGENES LAÊRTIOS. (1988) Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UNB.

DUVERNOY, J-F. (1993) O Epicurismo e sua tradição antiga. Rio de Janeiro: Zahar.

EPICURO. (1980) Antologia de textos. In Epicuro, Lucrécio, Sêneca e Marco Aurélio. Trad. Agostinho da Silva. São Paulo: Abril Cultural.

FESTUGIÉRE, A.-J. (1946) Épicure et ses dieux. Paris : Presses Universitaires de France.

GIGANDET, A. & MOREL, P.-M. (Orgs.). (2011) Ler Epicuro e os epicuristas. São Paulo: Loyola.

GUTHRIE, William K. C. (1995) Os sofistas. Trad. de João Rezende Costa. São Paulo: Paulus.

ISIDRO PEREIRA, S.J. (1998) Dicionário Grego – Português e Português –

Grego. Braga: Livraria A.I.

LONG, A. A. & SEDLEY, D. N. (1987) The Hellenistic Philosophers vol. 1. Cambridge: Cambridge University press.

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____________. (2003) “Épicure et la « fin de la nature »”. Les Cahiers

Philosophiques de Strasbourg. Université Marc Bloch: printemps, p. 168 - 196.

MÜLLER, R. (1980) “Le rapport entre la philosophie de la nature et la doctrine morale chez Democrite et Epicure”. Siculorum Gymnasium XXXIII, p. 325 - 351. SILVA, M. F. (2003) Epicuro: Sabedoria e jardim. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

USENER, H. (1966) Epicurea. Stuttgart: E. G. Teubner.

Recebido em: 20/03/2013 Aceito em: 31/10/2013

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