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Do pai da infância ao pai do Alzheimer: um olhar psicanalítico sobre a representação paterna

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Academic year: 2021

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DO PAI DA INFÂNCIA AO PAI DO ALZHEIMER: UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE A REPRESENTAÇÃO PATERNAI

FROM CHILDHOOLD FATHER TO ALZHEIMER'S FATHER: A PSYCHOANALYTIC VIEW ON PATERNAL REPRESENTATION

Fabrício de Souza SantosII Adriana de Oliveira Limas CardozoIII

Resumo: A Doença de Alzheimer é um transtorno neurodegenerativo caracterizado pela perda

progressiva de neurônios responsáveis pelo funcionamento da mente e do corpo, tendo como consequência, destituir a pessoa de sua autonomia de vida. Portanto, é necessário um outro que trabalhe em prol dos cuidados para a pessoa acometida pela doença. Além das implicações na saúde, oferecidas pelo Alzheimer, essa prática de cuidados também traz aos cuidadores um forte desgaste físico, psíquico e emocional. A Psicanálise propõe-se a pensar esses sintomas a partir da subversão da representação dos pais, quando esta posição de cuidador, é assumida principalmente pelos filhos. Desta forma, buscou-se verificar na perspectiva psicanalítica, como está instituída a representação paterna por parte dos filhos-cuidadores de pais com o diagnóstico de Alzheimer. A pesquisa de campo caracteriza-se como qualitativa e os resultados foram obtidos por meio da análise de conteúdo, discutidos através das bases teóricas, descritas por Sigmund Freud, Jacques Lacan e Melanie Klein. Pôde-se verificar que a representação paterna, para os filhos-cuidadores, antes e depois do diagnóstico têm ressonâncias na vida psíquica do sujeito. Pois, a perda do Pai da Infância e a perda do Pai do Alzheimer, como mortes simbólicas significativas, levam o sujeito a experiências devastadoras nessa relação de cuidados. A importância deste trabalho é primordial para justificar outros estudos mais aprofundados acerca da temática, bem como, fundamentar a criação de programas e ações que direcionem um olhar para a família que convive com o Alzheimer, afim de propor melhorias e uma saúde mais satisfatória.

Palavras-chave: Alzheimer. Filhos-cuidadores. Psicanálise.

Abstract: Alzheimer's disease is a neurodegenerative disorder that affects the progressive loss

of neurons responsible for the functioning of the mind and body, resulting in a person being deprived of his or her life capacity. Therefore, it is necessary that another work for the care of a person affected by the disease. In addition to the health implications offered by Alzheimer's, this care practice also brings workers a strong physical, mental and emotional strain. Psychoanalysis proposes to think of these symptoms from the subversion of parental representation, when this caregiver position is assumed mainly by the children. In this way, you can see from the psychoanalytic perspective, how a parental representation is instituted by the

I Artigo apresentado como trabalho de conclusão de curso de graduação em Psicologia da Universidade do Sul de

Santa Catarina (UNISUL), como requisito parcial para obtenção do título de Psicólogo.

II Acadêmico do curso de Psicologia. E-mail: f-souza@outlook.com

III Professora orientadora. Doutora em Ciências da Linguagem (UNISUL). Mestre em Ciências da Linguagem

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children of parents of parents diagnosed with Alzheimer's. A field research characterized as qualitative and the results were analyzed through content analysis, discussed through theoretical bases, published by Sigmund Freud, Jacques Lacan and Melanie Klein. It was possible to verify the paternal representation, for children-caregivers, before and after the diagnosis of these resonances in the subject's psychic life. In this case, the loss of the father of the disease and the loss of the father of Alzheimer's disease, as symbolic deaths caused, lead or begin to suffer devastating damage in this care relationship. The importance of this work is essential to justify further studies on the subject, as well as to support the creation of programs and actions that direct a look at the family that lives with Alzheimer's, and propose improvements and a more satisfactory health.

Keywords: Alzheimer. Caregivers children. Psychoanalysis. 1 INTRODUÇÃO

O envelhecimento é um processo natural da vida e este ciclo é marcado por uma diversidade de transformações do corpo, tanto físicas quanto psíquicas e emocionais. Sendo assim, para adoecer de forma mais positiva é necessário manter um movimento contínuo de cuidados com a própria saúde. De acordo com Neto (2014-2016) durante os próximos vinte anos, o Brasil terá um aumento significativo da população idosa. Sendo que, atualmente, o país não se encontra preparado para cuidar destas pessoas, já que o sistema de saúde vigente não atende todas as necessidades que elas possuem (CESÁRIO et al., 2017).

O processo do envelhecer é constante e demarca um forte desgaste do corpo, que quase sempre vem acompanhado por diferentes patologias, entre elas a Doença de Alzheimer que está num crescente avanço em nosso país. Definida como uma das mais populares síndromes demenciais1, o Alzheimer se caracteriza por uma neurodegeneração progressiva e irreversível do funcionamento dos neurônios cerebrais, acomete mais as pessoas idosas e muitas vezes seus sintomas podem ser confundidos com os próprios aspectos da fase de senescência2, e caso o diagnóstico não seja bem formulado pode vir acarretar em complicações maiores para a saúde do sujeito, como por exemplo a utilização inadequada de medicamentos, prejudiciais ao organismo. Esta doença neurológica se apresenta em diferentes níveis de gravidade, conforme sua intensidade e o aparecimento dos quadros sintomáticos, assim, ela pode variar do nível mais leve até o mais severo. Sendo que, nas formas mais graves, pode destituir o sujeito de sua própria autonomia, já que o faz perder integralmente suas habilidades de linguagem,

1 Na literatura, alguns autores apresentam como um transtorno.

2 A fase de senescência é uma outra terminologia para se pensar o processo do envelhecimento e os fenômenos

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psicomotricidade, cognição e outras funções primordiais para lidar com o cotidiano, exigindo assim a necessidade da presença de um cuidador (ILHA et al., 2016).

Com frequência, o familiar mais próximo é quem se depara com a doença e que muitas vezes nega essa realidade, o que dificulta o manejo dos cuidados e da própria convivência. Segundo Brasil e Andrade (2013) alguns fatores são muito importantes para auxiliar na prática de cuidados com o paciente, como adquirir informações acerca da patologia, trabalhar a aceitação do diagnóstico e envolver os demais familiares nesta realidade para compreender a importância do suporte familiar na vida da pessoa com o Alzheimer. Entretanto, quando a família não está presente com o cuidador, deixa sobre este, uma sobrecarga extremamente grande, trazendo manifestações de angústia, já que passa a assumir um lugar de dependência para com o paciente e vice-versa.

O cuidador pode apresentar um alto nível de ansiedade, tanto pelo sentimento de sobrecarga quanto por constatar que a sua estrutura familiar está sendo afetada pela modificação dos papéis sociais. Ele é cotidianamente testado em sua capacidade de discernimento e adaptação à nova realidade, que exige, além de dedicação, responsabilidade, paciência e, mesmo, abnegação. Assume um compromisso que transcende uma relação de troca. Aceita o desafio de cuidar de outra pessoa, sem ter qualquer garantia de retribuição, ao mesmo tempo em que é invadido por sua carga emocional, podendo gerar sentimentos ambivalentes em relação ao idoso, testando seus limites psicológicos e sua postura de enfrentamento perante a vida (LUZARDO

et al., 2006, p. 589).

Devido a intensa dedicação à pessoa com a Doença de Alzheimer, a vida do familiar cuidador se reconfigura trazendo uma diversidade de implicações, dentre elas, e que será objeto de estudos investigativos neste trabalho, são os efeitos psíquicos da representação paterna que se subverte diante do diagnóstico, onde o familiar se experimenta cuidando daquele que um dia foi o seu cuidador. A dedicação extrema e o desgaste enfrentados pelo familiar-cuidador são fatores importantes a se considerar, uma vez que levam o sujeito ao adoecimento, e consequentemente, à procura pelos dispositivos públicos de saúde. Como uma teoria bem fundamentada, entende-se que a Psicanálise pode contribuir dando suporte, junto de outras áreas da saúde, para promover uma saúde mental mais satisfatória (BARRETO, 2016).

Portanto, é necessário se debruçar sobre alguns escritos de Sigmund Freud, em que descreve a figura do pai como fundamental para a constituição do psiquismo do sujeito. Isso aparece, essencialmente, no pai da horda primitiva, onde revela essa figura como um homem de autoridade suprema, do qual possuía todas as mulheres e que pela via do ciúme afastava todos os seus filhos, quando mais adultos. Assim, na ordem do simbólico, os filhos assassinavam o pai e na tentativa de invalidar a culpa do ato instituíam regras de não matar o

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totem e não estabelecer relações incestuosas entre os membros do clã (FREUD, 1990). Logo, a representação paterna traz muitas significações para a vida psíquica do sujeito e a ambivalência – amor e ódio – é uma delas, uma vez que os filhos veem o pai como a figura de lei, possuinte do falo sem limites. Estes são tomados pelo sentimento de inveja e tendem a um desejo de assassinar o pai com a intenção de assumir seu lugar. Dessa forma, o sujeito é inscrito na identificação com o tirânico que edifica o pai simbólico do qual todos precisam adorar e obedecer. Em outras palavras, assumir a posição do falo castrador. O que nos faz pensar, em seguida, na estruturação do complexo de édipo, fase em que a representação paterna, também compreendida como figura de lei, funciona como interditor da relação mãe-criança e que é estabelecedora do Ideal do Eu. A função materna também é pensada como de extrema importância para o desenvolvimento do sujeito, é através do vínculo amoroso estabelecido pela mãe para com o filho(a) que há a possibilidade deste, construir sua realidade com o mundo através da linguagem. Outros autores, além de Freud, também propõem teorias que podem contribuir com a investigação do tema em questão – como Jacques Lacan e Melanie Klein – e que serão melhor explicitados no desenvolvimento deste trabalho.

Na busca para a fundamentação teórica, alguns achados demonstraram-se relevantes na contribuição para definir o conceito da Doença de Alzheimer, sua manifestação na cultura, a realidade vivenciada por familiares que cuidam, além de mencionar também, o atual cenário do sistema de saúde vigente. (BRASIL; ANDRADE, 2013; BARRETO, 2016; CESÁRIO et al., 2017; ILHA et al., 2016; LUZARDO et al., 2006; NETO, 2014-2016). Para tal, as pesquisas se deram nas bases de dados BVSPSI, PEPSIC e SCIELO, utilizando-se das palavras-chaves: Alzheimer, cuidadores e Psicanálise, aleatoriamente. Como filtro, apenas materiais no idioma português-brasileiro. É importante ressaltar que não foram encontrados artigos relacionados ao tema que investigasse à luz da teoria Psicanalítica, como está estabelecida a representação paterna no manejo dos cuidados por parte dos filhos sobre o pai com a Doença de Alzheimer.

A pesquisa em questão, aconteceu com um grupo de apoio à cuidadores-familiares, cujo familiar foi, preferencialmente, o(a) filho(a) que convive e presta cuidados ao pai ou a mãe, acometidos pela doença, tendo como critério os pacientes que encontram-se no início das fases moderadas até as mais graves. Isso porquê, como citado acima, nestas fases é onde se faz necessário a presença de um cuidador. Sendo assim, propõe-se a seguinte questão de pesquisa: qual a perspectiva psicanalítica, sobre a representação paterna no manejo dos cuidados por parte dos filhos sobre os pais com a Doença de Alzheimer? O presente trabalho buscou identificar os efeitos psíquicos da “queda do pai” na relação familiar após o diagnóstico do Alzheimer e

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verificar os efeitos emocionais que circundam a relação estabelecida entre o cuidador-familiar e a pessoa com a doença de Alzheimer.

1.1 A DOENÇA DE ALZHEIMER E A INSTITUIÇÃO DO CUIDADO FAMILIAR

O Ministério da Saúde define que a Doença de Alzheimer é caracterizada como um transtorno neurodegenerativo progressivo que atua principalmente no sistema nervoso central. A doença afeta as funções cognitivas e causa alterações comportamentais que são essenciais para o bom funcionamento do corpo, dificultando o dia a dia de quem é acometido pela doença. Cabe especificar que a demência é um quadro de sintomatologias e sinais que acometem as pessoas e que, normalmente, são vivenciadas na velhice. Neste sentido, a Doença de Alzheimer é uma das doenças que podem causar demência (MS-BRASIL; TALHAFERRO et. al., 2015). O Alzheimer causa uma série de perturbações neuronais do sistema nervoso central, onde ocorre a produção excessiva de proteínas tóxicas que tendem a se instalar entre os neurônios e que impedem a interação entres eles. Como consequência, ocorre a perda progressiva de neurônios, já que suas ligações são interrompidas, causando implicações por todo cérebro, atingindo funções executivas importantes, como a memória, a linguagem, o raciocínio, bem como funções sensoriais e de pensamento. A doença atinge tanto mulheres quanto homens e aparece, geralmente, em pessoas com mais de 60 anos de idade, numa fase chamada senil. Isso porque, como o envelhecimento traz um corpo fragilizado, acaba se tornando alvo dos desgastes do tempo, bem como de outras doenças. Não é raro também, a doença surgir em pessoas mais novas, por volta dos 40 anos de idade, fase chamada de pré-senil. Os sintomas da doença, em sua maioria, se apresentam de formas diferentes em cada indivíduo, mas pode haver similaridades. Dessa forma, é possível se obter um quadro sintomático que descreve a patologia, que está dividido em quatros estágios, são eles: a forma ou fase inicial, a forma moderada, forma grave e a terminal. Tais fases variam conforme a gravidade e consequências ocasionadas pela doença. Na forma inicial do transtorno, o paciente sofre por alterações de memória, perda das habilidades visuais e espaciais. Já no segundo estágio, denominado de forma moderada a pessoa apresenta complicações na fala, não consegue realizar atividades cotidianas, perda da coordenação dos movimentos, agitação e insônia. Na forma grave o paciente não executa mais suas atividades diárias, apresenta incontinência urinária e fecal, não conseguem se alimentar sozinhas e perdem gradualmente as funções motoras. Na última fase, caracterizada como fase terminal, o paciente tende a ficar acamado,

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perde totalmente a fala, tem muita dificuldade de ingestão e pode entrar em estado mórbido (ABRAZ, [201-]).

No cotidiano, é possível notar sinais e sintomas comuns que podem indicar a presença da instalação do Alzheimer, como: a pessoa não lembrar de coisas que aconteceram recentemente, a repetição das mesmas falas várias vezes, a dificuldade para manter um diálogo ou pensamentos mais complexos, dificuldades para dirigir veículos e localizar-se em caminhos que até então eram conhecidos, sentimentos de irritabilidade, agressividade, passividade, tendem a fazer interpretações errôneas de estímulos visuais e auditivos e passam a se isolar. Segundo o Ministério da Saúde, a Doença de Alzheimer é crônica e incurável. Os tratamentos existentes tendem apenas a retardar a sua evolução, ou seja, se os casos forem tratados já na fase inicial é possível reduzir a sintomatologia, afim de preservar o máximo do funcionamento psíquico do sujeito. Dentre as formas de tratamento, temos à disposição tratamentos medicamentosos, a estimulação cognitiva e o acompanhamento multidisciplinar com profissionais da área da saúde. Não menos importante, o auxílio da família neste processo como suporte para propiciar ao paciente meios de alcançar um estado de bem-estar e sobrevivência mais satisfatório. Considera-se o familiar que convive com a pessoa acometida pela doença, aquele determinado cuidador principal (MS-BRASIL, [201-]).

Neste sentido, pensar sobre o sujeito que cuida é importante, uma vez que este faz parte de um grupo familiar, cujo papel é fundamental na constituição subjetiva de cada pessoa. A família é considerada o primeiro grupo do qual o indivíduo é inserido e é dentro dela que se estabelece suas primeiras relações e contato com o mundo, que neste momento tem a ver mais com o mundo próprio dos pais, já que está imerso na realidade psíquica deles. O grupo familiar possibilita a criança se desenvolver e aprender a lidar com o meio e tudo o que lhe é demandado, é de onde vem o amparo e os cuidados (LACAN, 2002). O cuidado pertence à ordem cultural e é passado de geração para geração. É uma das necessidades mais básicas e fundamentais, pois é ela que propicia o desenvolvimento do corpo biológico tanto quanto da estruturação psíquica, e que também é organizadora do funcionamento social. Conforme Lacan (2002, p. 10) a família é:

[...] um grupo natural de indivíduos unidos por uma dupla relação biológica: por um lado a geração, que dá as componentes do grupo; por outro as condições de meio que postula o desenvolvimento dos jovens e que mantêm o grupo, enquanto os adultos geradores asseguram essa função.

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Dessa forma, cuidar é essencialmente um ato humano, que acontece em diversas instâncias da vida. Cuidar significa promover recursos de acordo com as necessidades daquele que demanda, ou seja, é atender as necessidades do outro. O papel do cuidador de uma pessoa com demência surge quando este não consegue mais controlar suas ações e administrar suas responsabilidades do cotidiano. Ou seja, é auxiliar a pessoa doente em sua sobrevivência (TALHAFERRO et al., 2015). Neste sentido, o cuidador pode ser qualquer indivíduo que se preste à essas funções, sendo remunerado ou não, como membros da família ou um profissional devidamente capacitado.

Cuidar de pessoas com a Doença de Alzheimer é uma tarefa difícil que envolve limitações voltadas às próprias necessidades daquele a quem se coloca neste desafio, além de, gerar sentimentos negativos, como frustrações e angústias frente à realidade vivenciada. Considera-se que este papel surge essencialmente quando o Alzheimer já está em níveis mais avançados e cuja autonomia do paciente esteja comprometida. Normalmente, os cuidadores principais são da família, pessoas que além de se deparar com a aceitação e de todas as mudanças que ela propõe à pessoa com a doença, precisam tomar conta e se apropriar de manejos de cuidados, como forma de auxiliar no tratamento do paciente. Afirma Seima et al. (2014, p. 234) que

O quadro clínico da DA [Doença de Alzheimer] é variável, tem início lento e insidioso e à medida que a doença progride, aumenta a demanda de cuidados e supervisão constante, papel desempenhado, na maioria das vezes, pela família inserida no domicílio. A Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso, em conjunto com a sociedade e Estado, considera a família responsável pelos cuidados e atendimento às necessidades dos idosos no domicílio. No momento em que o familiar assume o papel de cuidador do idoso com DA [Doença de Alzheimer] este passa a vivenciar uma cascata de mudanças em sua rotina social, financeira, emocional e familiar.

Os cuidadores que estão frente a realidade de pessoas com a Doença de Alzheimer se deparam com uma enorme sobrecarga, uma vez que enfrentam dificuldades e limitações que impedem uma boa qualidade de vida, já que é preciso abdicar de uma boa parte do seu próprio tempo para dedicar-lhes à realidade do outro. Essa sobrecarga pode oferecer aos cuidadores chances maiores de desenvolver problemas psíquicos e emocionais, bem como, implicações na saúde física. O que pode levar este sujeito que sofre, a procurar por auxílio nos dispositivos de saúde pública. Estudos apontam que em países desenvolvidos, a literatura que discute a temática sobre os cuidadores é muito mais extensa do que no Brasil, que é consideravelmente escassa, o que é preocupante já que a população idosa está em um crescente aumento (CRUZ; HAMDAN, 2008). Desse modo, a Psicanálise pode ser uma ferramenta importante para compor o suporte

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multidisciplinar de atendimento básico à saúde dessas pessoas, pois através de suas concepções teóricas sobre o inconsciente, a linguagem, as resistências, o infantil, a repetição, a transferência, a escuta clínica e outros, é possível ampliar e colaborar para o conhecimento médico, especialmente para a área da neurologia. Logo que, grande parte do conhecimento da medicina está nos livros, nos dados e exames, ou seja, o paciente muitas vezes é colocado em um lugar “coisificado”, genérico. Por isso, é importante dar outro lugar a esse paciente, de reconhecer a si em sua queixa, e vê-lo em sua própria subjetividade.

A seguir, será descrito em um breve recorte, como a Psicanálise pode fazer uma leitura sobre os cuidados provindos desde a relação mãe-bebê, no desenvolvimento infantil, os sentidos que o ato de cuidar tem com a cultura, além de, investigar como está representado a subversão da função paterna e materna, quando os filhos precisam assumir o cuidado para com seus pais. 1.2 DO PAI DA INFÂNCIA AO PAI DO ALZHEIMER

A Psicanálise busca compreender como se dá a trajetória de subjetivação através da linguagem e do desenvolvimento infantil, incluindo neste processo as representações maternas e paternas. O sujeito ao estar no meio social formado pela cultura, só se torna sujeito quando este for atravessado pelos significantes3. É pela via das relações – mais propriamente do grupo familiar – onde o recém-nascido está inserido, que são idealizados os desejos e fantasias que formarão as representações simbólicas importantes para a constituição do Eu da criança. A mãe por ser a figura que concebe o filho, tende a estabelecer uma relação simbiótica da qual se mostrará necessária nos primeiros meses de vida, de modo que possibilite sua nutrição e sua implicação com a linguagem.

Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura. Se as tradições espirituais, a manutenção dos ritos e dos costumes, a conservação das técnicas e do patrimônio são com ela disputados por outros grupos sociais, a família prevalece na primeira educação, na repressão dos instintos, na aquisição da língua acertadamente chamada materna. Com isso, ela preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, preside esta organização das emoções [...] (LACAN, 2002, p. 13).

Para Freud e Lacan a subjetivação se funda através da construção do inconsciente como instância psíquica, da qual detém os impulsos mais primitivos, bem como todos os demais

3 Os significantes de acordo com Barroso (2015) são representações que operam entre as pulsões e a linguagem, e

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significantes advindos dos acontecimentos resultantes da relação familiar. O inconsciente surge através dos estudos de Sigmund Freud sobre as histerias, denominadas como doenças dos nervos e que se expressam em forma de sintoma representadas no corpo. Ao descrever, posteriormente, a técnica analítica, o autor pôde perceber que ao “falar livremente” era possível identificar traços da vida infantil. Isto o levou a pensar sobre uma possível sexualidade infantil, que se define como propulsora e organizadora do psiquismo humano (FREUD, 2006). A criança ao nascer, é percebida como um corpo repleto de impulsos nervosos, que levam este a uma dependência total por parte do outro na tentativa de que este supra as suas necessidades. Por isso, a função materna é de extrema importância, uma vez que tende a atender as demandas da criança e inaugura as relações de cuidado que estabelecemos, posteriormente, na vida adulta. Neste sentido, busca-se compreender através da Psicanálise, os possíveis efeitos produzidos na relação de cuidado com a figura paterna e materna introduzida, principalmente, na relação mãe-bebê.

O bebê que é dependente da figura materna tem como sua primeira necessidade a fome e estabelece sua primeira relação com o seio, que nutre e o protege, trazendo a sensação de completude, objeto este, que sacia sua necessidade, e que faz o contato entre a mãe e ele se estreitar cada vez mais. Porém, passa a perceber que nem sempre a mãe se fará presente. O seio nem sempre estará disponível para ele, e que ele precisa demandar isto ao outro. É neste movimento que a mãe possibilita a construção da falta do objeto amado. Lacan propõe que estes movimentos que a mãe faz durante o cuidado da criança é que o revelará um sujeito faltante, e que isto será marcante e, essencialmente, fundamental para instituir o sujeito do inconsciente. Klein (1974) em sua obra “Inveja e Gratidão” afirma que a primeira relação objetal, ou seja, a relação com o seio materno e com a figura da mãe, que é introjetada no bebê, tem função de instaurar no ego um desenvolvimento satisfatório, o que em sua teoria irá chamar de seio bom. É através dos impulsos orais da criança e da percepção instintiva que o seio pode nutri-lo, e assim propriamente dar-lhe vida. Desse modo, a criança passa ter a mãe dentro de si. Um movimento seguinte que a mãe faz, é interromper a disposição do seio, para dar fim aos impulsos do bebê que o levam a ansiedade. O que para sua teoria seria compreendido como o seio mau. A maternidade é o campo da extrema paciência e da generosidade, e são tais coisas que levam, posteriormente, o sujeito a desenvolver esperança, confiança e a bondade. Em outras palavras, a mãe satisfaz a fome da criança e retira o seio, fazendo com que a criança busque, em meio a falta, um objeto de satisfação.

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O bebê só pode experimentar satisfação completa se a capacidade para o amor achar-se suficientemente deachar-senvolvida; e é a satisfação que forma a baachar-se da gratidão. Freud descreveu a felicidade do bebê em ser amamentado como o protótipo da gratificação sexual. [...] estas experiências constituem não apenas a base da gratificação sexual, mas também de toda felicidade ulterior, tornando possível a sensação de unidade com outra pessoa; tal unidade significa ser plenamente compreendido, o que é essencial para toda relação amorosa ou amizade feliz. Na melhor das hipóteses, essa compreensão não necessita de palavras para expressá-la o que demonstra sua derivação da mais primitiva intimidade com a mãe no estágio pré-verbal. A capacidade de desfrutar plenamente da primeira relação com o seio forma a base para experimentar prazer de diversas fontes (KLEIN, 1974, p. 46-47).

Dessa forma, a criança vê a mãe como uma figura de amor, que através do acalento, da nutrição, atende às necessidades mais básicas de sobrevivência do bebê. Afirma Klein (1974, p. 45-46) que a

capacidade de amar é o sentimento de gratidão. A gratidão é essencial à construção da relação com o objeto bom e fundamenta também a apreciação da bondade nos outros e em si próprio. A gratidão tem suas raízes nas emoções e atitudes que surgem no mais primitivo estágio da infância, quando para o bebê, a mãe constitui o único e exclusivo objeto. Referi-me a este vínculo primevo como base para todas as relações ulteriores com determinada pessoa amada.

Essa talvez seja a primeira marca que se inscreve no corpo da criança e que mais tarde, quando adulto, possibilitará este de operar através do compromisso de voltar seu cuidado para os pais, como forma de retribuição. As marcas são transformadas em traços de memória que seguirão para toda a vida do sujeito (FREUD, 1996).

Nesta relação de dependência entre mãe e bebê permeia a lógica do desejo e é onde o pequeno inicia suas experiências frente as suas zonas erógenas, que vão fundamentar, as fases psicossexuais de Freud, sendo elas: a fase oral, anal, fálica, o período latente e a fase genital. O processo de maturação tanto biológica quanto psíquica do sujeito não acontece de forma linear, mas sim, num movimento atemporal. Logo, as fases psicossexuais identificadas por Freud podem acontecer ao mesmo tempo conectadas e posteriormente, podem retornar na fase adulta ligadas à algum sintoma psíquico ou no modo de funcionamento de cada pessoa. Estas são fundamentalmente importantes, já que permitem organizar a representação paterna para o sujeito na infância, demarcando-o como uma figura forte e de grande poder. A fase fálica é a que nos debruçaremos mais, uma vez que é onde acontece o complexo de Édipo.

O complexo de Édipo, descrito por Freud, se dá a partir da tríade relacional entre mãe, filho e o pai. E foi desenvolvida a partir do mito grego de Édipo rei, escrito por Sófocles, cuja história provoca uma implicação frente a culpa e que inscreve no sujeito a lei. De forma breve, a trama se refere ao envolvimento incestuoso de Édipo, filho, com sua mãe Jocasta, onde casa-se com ela após matar casa-seu pai, casa-sem saber que estas figuras eram de fato casa-seus pais. Como

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autopunição, Édipo fura seus olhos pela culpa que sentia por ter assassinado o pai e se casado com a mãe, que ao saber desta verdade, veio a cometer suicídio. Ainda como parte de sua angústia frente a culpa, Édipo também se isola. Freud toma essa história para falar de um possível trajeto que o sujeito tende a fazer, de modo que uma “normalidade” se instaure em seu modo de operar, ou seja, que o sujeito se inscreva numa estrutura neurótica que vai em busca de completar seu furo (a falta) fora da relação familiar (KERÉNYI, 2015).

Logo, é nesta relação do grupo familiar que o sujeito é desejado, mas também separado dos seus objetos de desejo e que o levam à sentimentos de amor e ódio, fundamentais para estabelecer o complexo de castração. Em outras palavras, a criança que era dependente e objeto de desejo da mãe, agora passa a ter a interdição do pai, que diz que esta mãe também pertence a ele, provocando sentimentos de rivalidade. O objeto que supõe atender à falta da mãe, denomina-se falo. E é deste lugar que o filho precisa deixar de ocupar e ir para a posição de objeto faltante. A figura paterna, por sua vez, é também parte importante neste processo, já que é sua função interditar, através da fala da mãe e inscrever no psiquismo do filho o pai simbólico – que se trata da função e não pelo pai do real. O pai ao privar a criança faz uso da interdição do incesto, ou seja, institui a lei do pai.

Pensar sobre o incesto em Freud nos remete a um lugar da história que se fez importante, quando o autor descreve o pai interditor e instituinte da lei no mito da horda primeva, em sua obra “Totem e Tabu”, da qual relata que o pai era o único a desfrutar de todas as mulheres do seu clã e se constituía violento e cheio de ciúmes. E por isso expulsava os filhos de modo a repelir qualquer possível rivalidade. Em certo momento da história, os irmãos que foram expulsos se unem, assassinam e devoram o corpo do pai, de modo a internalizar, o poder de posse sobre o gozo das mulheres, passando assim a se identificar com o pai primevo. Posteriormente, essa identificação com o pai gozador e a culpa frente ao assassinato, conferem sentimentos de ambivalência e a instituição das leis morais, como a proibição do incesto. O que nos leva ao complexo de Édipo, que fundamenta o homem pelo desejo tanto quanto pela sua proibição e estabelece o Ideal do Eu (FREUD, 1990). Declara Násio (1995, p. 147) que

[...] são as proibições parentais que permanecem inscritas no sujeito após o declínio da relação edipiana. [...] A criança renúncia à satisfação de seus desejos edipianos atingidos pela proibição, abandona o objeto de amor e de desejo incestuoso e transforma seu investimento nos pais em identificação com os pais; [...], ela internaliza a proibição.

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E é somente com a inscrição destes significantes no psiquismo do sujeito, que é possível se fazer sujeito da cultura, ou seja, ser parte da civilização, do qual tenderá a buscar um outro para além da tríade familiar, que o possibilite se relacionar.

O percurso realizado até este momento, declarado por meio da descrição de conceitos que fornecem informações sobre a Doença de Alzheimer, bem como suscitar a importância dos cuidados provindos do familiar ao paciente, além de, conceber recortes teóricos para explicar a constituição subjetiva, teve como intenção investigar como a Psicanálise propõe o desenvolvimento infantil e como se dá a instauração psíquica através da relação mãe e bebê e da interdição do pai, como representações fundamentais para a inscrição da marca, que posteriormente, possibilitará o filho adulto de voltar aspectos de cuidado para o pai ou a mãe, quando estes encontrarem-se em posições vulneráveis e de sobrevivência.

Muitos dos aspectos envolvidos na prática de cuidados do familiar-cuidador e o(a) pai/mãe com Alzheimer podem ser pensados como uma experiência vivenciada na infância e que agora retorna como uma forma de compromisso. Este que opera numa lógica de amor e ódio e que tem como consequência uma diversidade de efeitos, dos quais o presente trabalho se propôs a pesquisar.

2 MÉTODO

Foi realizado uma pesquisa de campo de nível exploratório, pois assim, é possível aprimorar as ideias e/ou se lançar para a descoberta de intuições, além de, também possibilitar uma maior familiaridade com a problemática em questão (GIL, 2002). Dentro da abordagem qualitativa, uma vez que é preciso “[...] incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas” (MINAYO, 2004, p.10). Considerou-se que, durante a busca por materiais que discutissem o problema de pesquisa, não houveram resultados satisfatórios, já que nenhum trabalho faz uma leitura psicanalítica sobre como está instituída a representação do pai no manejo dos cuidados por parte dos filhos cuidadores sobre a pessoa com a Doença de Alzheimer.

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Participaram da entrevista 03 filhos-cuidadores. Os participantes possuíam idade entre 40 e 50 anos. Sendo que um deles era homem e as outras duas, mulheres. Essas pessoas faziam parte de um Grupo de Apoio à Cuidadores de Pessoas com Alzheimer (GACPA), dos quais foram convidados para participar da pesquisa.

O GACPA é um projeto da UNISUL de Tubarão/SC, desenvolvido pelo curso de Psicologia para atender familiares ou cuidadores profissionais que atuam nos cuidados com pessoas com Alzheimer. Caracterizado como um grupo de apoio aberto à comunidade, tem como principais objetivos: oferecer cuidados e bem-estar aos cuidadores de pessoas com Alzheimer, proporcionando uma relação intra-grupal de fortalecimento, troca de experiências e possibilitar escuta atenta ao sofrimento de quem presta os cuidados.

Como critério de inclusão, foram considerados os filhos ou filhas que exercessem o cuidado a seu pai ou mãe4, acometidos pelo Alzheimer. O participante homem possui o pai com a doença há mais de 4 anos de diagnóstico; as participantes do sexo feminino, sendo irmãs, possuem a mãe com a doença há mais de 11 anos. Ambas são casadas e possuem família, o outro participante é solteiro e vive com os pais. Todos consentiram com a participação no estudo, tendo em vista, o sigilo e anonimato garantidos pelos parâmetros da lei.

2.2 INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS

A entrevista aconteceu em grupo, caracterizando grupo focal, onde o pesquisador utilizou de algumas questões norteadoras para iniciar as discussões. A atividade foi realizada em uma sala para grupos no Serviço de Psicologia da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL, Tubarão. As primeiras questões eram mais individuais, utilizadas para caracterizar os participantes, solicitando dados como: idade, estado civil e tempo de diagnóstico da pessoa com Alzheimer. Seguindo para temas abertos, afim de gerar discussões em grupo sobre a temática em questão. A entrevista foi conduzida e gravada pelo pesquisador e teve duração de aproximadamente 1 hora. O Comitê de Ética em Pesquisa da UNISUL aprovou este estudo, conforme o parecer final de nº 3.457.298.

Para analisar os dados, utilizou-se do procedimento de análise de conteúdo, onde foram estabelecidas categorias que discutissem o tema da pesquisa. Em seguida, foi realizado uma

4 A representação paterna discutida neste trabalho, aparece como uma metáfora para definir as funções materna

e paterna como primordiais na constituição do sujeito. Logo, qualquer pessoa, pai ou mãe, que exerça a função de cuidados, estão inscritas na metáfora da representação paterna.

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descrição a partir de citações referenciais dos autores psicanalíticos: Sigmund Freud, Jacques Lacan e Melanie Klein.

Abaixo serão apresentados os resultados e o que pôde-se obter de discussões acerca das informações coletadas.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS DADOS

Para pensar os resultados desta pesquisa e discutir acerca do tema, a análise de conteúdo foi elaborada sob os seguintes objetivos: 1) Efeitos psíquicos da “queda do pai” na relação familiar após o diagnóstico do Alzheimer e os 2) Efeitos emocionais que circundam a relação estabelecida entre o cuidador-familiar e a pessoa com a doença de Alzheimer.

Vale ressaltar, que ao se deparar com os resultados, obteve-se para além de efeitos emocionais, como sugere o tema 2, o surgimento de aspectos sentimentais. Freud em seus estudos sobre a Psicanálise, mais especificamente sobre a teoria das Pulsões, definiu que o corpo humano é tomado por impulsos nervosos, que atravessados pela linguagem fazem com que o sujeito se mantenha vivo e capaz de reproduzir-se. A energia psíquica passa a ganhar significado quando estabelece relações interpessoais com os outros. E é através da linguagem e das nomeações, que estes impulsos ganham significações conforme vão sendo experenciados pelos aparelhos sensoriais e pela via simbólica da cultura. Assim é possível, que ao simbolizar os afetos experienciados, estes sejam gravados como registros mnêmicos, para representar em outros momentos semelhantes. Por isso, sentimentos e emoções que apareceram serão tratados como oriundos de um único lugar: expressos dos impulsos inconscientes ligados à representação simbólica da consciência (FREUD, 1915).

Para tal, como informações obtidas, emergiram seis blocos de conteúdo a partir das questões que nortearam a entrevista, sendo elas: “Percepção sobre o Pai da Infância”, “Percepção sobre o Pai com Alzheimer”, “Representação do Alzheimer para o cuidador”, “Representação paterna para o cuidador”, “Responsabilidade de cuidar do pai acometido pelo Alzheimer” e “Descrição da rotina de cuidados com o paciente”.

Na tentativa de compreender os efeitos que a Doença de Alzheimer traz para a realidade familiar, apontam-se algumas discussões que investigam a relação interpessoal estabelecida pelos membros da família de antes do diagnóstico e após, e os efeitos psíquicos como possíveis consequências deste enredo.

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A discussão acerca do tema surgiu quando os participantes foram questionados sobre como eles percebiam a relação deles com seu pai/mãe na infância, tendo as seguintes respostas:

[...] tenho pouca recordação da infância, eu não consigo me lembrar de muita coisa, mas o que me lembro é ausência paterna né, ausência de afetos. [...] Foi com muita mágoa, muita mágoa, rancor, ódio, muita briga e foi, foi difícil, foi complicadinho, muito assédio emocional, sabe? Da parte dele, enfim. (P1).

[...] foi muito triste, muito triste e os meus irmãos saíram de casa com 18 anos, os três, e na ausência deles eu tinha 10 anos, era uma criança ainda, porque até os 10 anos eles me protegiam e me isolavam um pouco dessa situação familiar né. Isso contado por eles porque eu não me recordo de muitas coisas, acho que teve um processo aí de esquecimento involuntário, por parte, eu não sei como é que funciona isso. (P1). [...] eu sempre fui uma criança muito triste, ansiosa. Uma criança não medrosa, mas é, sem aquele, geralmente criança tem aquele ímpeto de desbravar e de lutar, lutar pelas coisas tal, sempre fui apático, letárgico, com uma dificuldade na escola e notas, incrível; falta de atenção, não falta não, déficit né, déficit de atenção. E foi até hoje eu carrego algumas coisas, enfim. Foi uma fase muito difícil, seria isso que eu me recordo né. (P1).

As outras participantes também narraram uma vivência escolar semelhante, embora demarcada por suas particularidades familiares e subjetivas:

[...] na minha infância a mãe era presente, mas ao mesmo tempo era ausente. Porque ela tinha muito filho né, escadinha, não tinha tempo, para dar atenção para a gente. Ela tinha uma vendinha também [...] ela deixava assim a gente livre, a gente brincava na rua direto e só chamava a gente para o almoço, almoço, café. Então, ao mesmo tempo que ela era presente ela era ausente para mim.(P2).

E continua: “[...] eu nunca levei para o lado [...] triste, só que eu tenho uma mágoa, ela nunca ia nas reuniões da escola, nunca. Ela sempre dizia: ‘as professoras que vão trabalhar, elas não têm o que fazer’. Eu via que todos os pais iam, a minha nunca foi. A mãe nunca foi nas reuniões da escola.” (P2).

Sua irmã, definida como P3 também comenta sobre como via sua infância com sua mãe:

Eu com a mãe sempre a gente se deu muito bem, [...] eu desabafava as coisas e hoje eu sinto muita falta disso. De conversar, de ouvir ela me dizendo alguma coisa, sabe? Essa semana eu chorei bastante porque eu olhava assim para ela eu sei que ela já não está entendendo mais nada, mas eu senti aquela falta de ouvir ela falar alguma coisa para mim e sabe hoje em dia para gente, às vezes, é contrariar e ela quer dar um tapa, e eu sinto muita falta assim, de ter a mãe assim, presente ali conversando comigo sabe, e a gente sempre conversava, ela sempre esteve comigo. (P3, grifo nosso).

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É possível perceber que na fala dos três entrevistados há uma narrativa em que revela a ausência paterna/materna por parte daqueles identificados como figura de pai ou mãe e que anuncia certos conflitos familiares resultantes de afetações que instituíram emoções e sentimentos em sua constituição subjetiva. Para a Psicanálise o discurso paterno é fundamental para a constituição do sujeito e sua relação com o mundo. Se há na família, um distanciamento da figura do pai com os seus membros, isso pode implicar em uma fragilidade no vínculo entre pai e filho. Isso porquê, a representação paterna é aquela que define força e poder e que sustenta a família. A cultura transmite que o pai é o agente instituinte dessas características, que inaugura na criança sua identificação subjetiva (FREUD, 1990).

Embora, no caso do P1 narrar que seu pai encontrava-se na maior parte do tempo ausente, ele tinha os cuidados dos irmãos até certa idade, desse modo, cabe discutir a ideia de que pelo fato de ter seu pai ausente não implica totalmente em uma defasagem do representante paterno no psiquismo do sujeito, pois a função paterna pode ser instituída por outras figuras, como os irmãos, por exemplo. De qualquer forma, pode se considerar uma ausência parcial, logo que a criança anseia por uma proteção paterna e seu olhar volta-se para a necessidade de ter aquela figura, dita pela família e pela cultura, de quem é o seu pai. Elementos citados pelo P1 podem desvelar uma fragilidade emocional, como quando fala sobre mágoa, rancor, ódio e de um esquecimento involuntário do período de vida em que vivenciava as cenas ditas insatisfatórias com o pai.

A P2 narra que sua mãe, na infância, era presente e ao mesmo tempo ausente, pois a família era grande e havia as demais funções da casa, e que por isso não tinha o contato desejado com a mãe. Neste recorte, suscita a função materna, também muito importante para o desenvolvimento psíquico da criança e lembra os descritos teóricos de Melanie Klein sobre o seio bom e o seio mau, que colocam o sujeito em posições de ansiedade e destrutividade perante o objeto amado/odiado. A P3 também relata uma falta que podemos referirmos a isto, quando fala sobre a falta que faz a mãe conversar com ela, como fazia na infância e que agora após o diagnóstico, não consegue mais. É nítido, a perda do objeto amado para as duas participantes e como isto possa estar inaugurando nelas sentimento de tristeza e mágoa.

A figura do pai e da mãe é primordial na estruturação psíquica do sujeito, Freud (1970) em um de seus estudos define que em qualquer tempo, alguns seres humanos necessitam se apoiar em uma figura de autoridade, logo que, se esta é ameaçada, o mundo do sujeito pode vir a desmoronar. É perceptível que na infância isso apareça nas situações conflituosas dos participantes, e hoje isso retorne ao se depararem com os pais acometidos pelo Alzheimer.

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3.2 PERCEPÇÃO SOBRE O PAI COM ALZHEIMER

Quando a questão era falar deste tema, o discurso de como se estabelecia a relação familiar deles parece ter se revelado mais forte, aparecendo assim, as seguintes falas: “A eu trato como um bebê. Como meu filho. E faz um bom tempo já.” (P1). Em seguida, a outra participante também concorda dizendo: “[...] eles voltam ser criança né. [...] A mãe fala como criança, tudo.” (P2). Afirma a outra irmã:

[...] hoje eu para mim assim eu trato a mãe, como se fosse um bebê, sabe, ela não entende, e eu faço assim, como se eu tivesse cuidando de um bebê. Que é totalmente diferente, mas, é assim que eu vejo. Só não boto no colo porque não dá, senão eu acho que andaria assim com ela. (P3).

Há uma concordância na narrativa dos três participantes, quando falam que os seus familiares acometidos pela doença de Alzheimer sofreram uma regressão, que fazem lembrar um funcionamento parecido com a de uma criança, e que hoje eles se veem pais daqueles que um dia foram os seus. Isso é explicado, pela via médica, pois a doença afeta funções do cérebro que refletem no corpo e que limitam o sujeito na sua atuação com o mundo. No nível psíquico, também se é possível compreender por meio das bases teóricas psicanalíticas, entretanto, não discutiremos a regressão aqui, servindo como referência a uma futura continuidade da pesquisa. O que está em jogo é a ideia que os participantes tem sobre os pais acometidos pelo Alzheimer, o que neste cenário trouxe a eles e o que precisaram fazer para lidar com esta situação. O P1 responde:

E assim ó, eu precisei fazer isso para poder perdoá-lo. Sabe purgar, purgar, exterminar, limpar. E esse esquecimento dele, nesse processo, está sendo benéfico para todos, para todos. [...] E eu não quero que ele se vá com um pingo de sentimento ruim que eu tinha por ele. Que eu já não tenho mais. Certo? [...] E aí eu fui, fui pesquisar, fui estudar, fui pedir auxílio, e meu coração está leve. Hoje eu entendo, consigo entender o porquê que ele era assim, [...] que ele tem problema de doença, alcoolismo, cuidar de cinco filhos, dar o de comer, enchente, perde tudo, financeiramente, tudo isso hoje eu consigo entender, então eu trato com o maior carinho possível. Pego no colo, eu consigo pegar no colo, ele está magrinho. Até hoje eu estava conversando né, troquei a fralda e tal, higienizei bem, coloquei na cama. Ele anda pouco agora, não conversa mais nada, aí eu estava conversando com ele. Alguma coisa lá no fundo eu sei, que eu acho que ele está entendendo. [...] ‘Ó tu foi um bom pai, eu não fui um bom filho, eu te peço perdão, eu te perdoo’. Aí ele fica me olhando, aí eu percebo que ele se emociona assim um pouco, ele fica feliz. [...] começo a conversar, fazendo carinho, que ele ainda é agressivo fisicamente na hora de um trato com ele né. Mas eu vou conversando, vou acalmando. Ele se acalma só comigo, então tem uma união ali gostosa, mas foi, foi trabalhado isso. Foi suado para chegar até onde eu cheguei. (P1).

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E continua: “E eu não quero que ele se vá com o meu coração carregado de coisas ruins, eu não quero, vai ser ruim para mim. Para ele né. Então esse esquecimento dele, essa doença

tem um propósito, uniu a família, foi um ponto que eu achei interessante.” (P1, grifo nosso).

As outras participantes disseram também ter tido uma aproximação afetuosa maior com a sua mãe: “Eu acho que hoje até por causa da doença mesmo, a gente está bem mais próxima

né. [...] a gente dá mais carinho do que quando ela era boa, mais carinho, mais afeto.” (P2, grifo

nosso). E lamentam por este momento só acontecer agora, após a aparição da doença da mãe:

É pena né, porque isso deveria vir antes né, da doença, veio só mais com a doença né. Não sei se é medo da perda, se é triste ver ela assim, que é muito triste ela se olhar no espelho, não se reconhece, não reconhece o pai. A gente é mais ligada, a gente beija mais, [...] fica ali em cima dela, dando carinho, coisa que antigamente era difícil. (P2, grifo nosso).

A irmã concorda e comenta: “É triste. A gente vive, ela não lembrar mais da gente [...].” (P3, grifo nosso).

Nos três discursos, embora a P3 não tenha dado muita informação, é percebido uma similaridade quanto à doença possibilitar uma maior aproximação deles e das suas respectivas famílias para com seus pais, a incapacidade de autonomia e o esquecimento trazidos pela doença à essas pessoas pôde tornar realizado, ainda que parcialmente, o desejo dos filhos em ter seus pais por perto. Pode-se fazer um contraponto com a percepção que tinham da infância, uma vez que “não havia aquele” que encarnasse as funções paternas, e que agora este está presente, mesmo que não se lembre de suas crianças, mas que podem ser alvo de um cuidado vindo delas e que revele um desejo de amor infantil. Em outras palavras, o cuidado com os pais pode refletir algo de uma cena idealizada na infância, como o afeto, o carinho, os abraços e a presença. Sentimentos estes, que podem segundo a Psicanálise, aparecer disfarçados de super compensação, ou seja, uma cena que era tomada pelo ódio agora se faz de amor.

Tal subversão faz com que agora os filhos-cuidadores tentem apresentar aos pais, algo de sua idealização objetal, ainda que parcialmente, de como gostariam de ser tratados na infância. Explica Freud (1976), em sua teoria da noção de objeto, que esta concepção é um elemento determinante na estruturação do sujeito. A criança tem como seu primeiro objeto o seio materno, que possibilita a este, uma satisfação sexual. Para o autor, essa representação que se dá à nível do inconsciente, faz com que o sujeito na vida adulta deseje reencontrar o objeto de amor. No caso dos participantes, a infância foi marcada por uma ausência parcial do objeto, e se imprime no tempo atual, cujo falecimento psíquico do pai acometido pelo Alzheimer reflete

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numa reatualização das angústias dos filhos. Assim, parte-se da premissa que estes estão por vivenciar um luto referente a perda do objeto amado. Tema que discutiremos mais adiante.

Cabe lembrar ainda, que a ausência, desta vez, é justificada pelo Alzheimer, que leva o filho a reatualizar suas fantasias infantis. Embora o corpo faça-se presente, os pais não conseguem falar devido aos prejuízos cognitivos causados pela doença, que impedem o sujeito de se manifestar, e se não há fala, sintomas aparecem no corpo (BARRETO, 2016), e esses sintomas parecem ser transferidos na relação dos cuidados para com os seus filhos.

3.3 REPRESENTAÇÃO DO ALZHEIMER PARA O CUIDADOR

Quando os participantes foram questionados sobre o que o Alzheimer representava para eles, identificou-se poucas similaridades entre as narrativas, mas que são importantes se olharmos de forma particular. O P1 respondeu:

No início eu achava uma tristeza, eu achava ingrato isso, mas hoje está sendo, não quero ser mal interpretado, mas, está sendo um aliado [...]. Interessante, porque ele está bem cuidado, está feliz, feliz não sei, mas ele está em paz, está em paz. Ele não precisa mais recorrer à bebida, nada. Ele está bem alimentado e com carinho e estou perdoando-o e ele está me perdoando. Tem uma razão para isso né. Tem, tem a parte física, mas não é gratuito isso, não vem. Isso é uma crença que eu tenho, procuro pensar dessa forma para facilitar as coisas, para facilitar a minha relação com ele. E com todos os outros né. E com a vida também. Facilitar minha relação com a vida. Mas também não deixa de ser triste. Não deixa de ser triste. Isso é meio confuso né. (P1, grifo nosso).

Neste trecho o P1 estabelece uma representação não muito clara sobre o significado da doença para ele, ao modo que ele revela que é uma condição triste o pai estar vivenciando isto, mas que ao mesmo tempo confere uma mudança positiva, que afastou o pai dos males e o aproximou dele. No complexo de Édipo, inaugurado por Freud, fica evidente que o corte feito pelo Nome-do-Pai5 é fundamental para destituir a criança como falo da mãe, colocando-a em sua posição de mulher/esposa, e de introjetar na criança um sujeito faltante, possibilitando que ele busque um objeto de amor fora da relação edipiana (LACAN, 1999). Assim, pode-se entender que a representação do pai impulsiona o sujeito para se relacionar com os outros no mundo.

5 Termo conceitual utilizado na teoria lacaniana para definir a interdição feita pela figura de um terceiro, no caso

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A outra participante também denota uma confusão, mas num cenário distinto como narra a seguir:

Para mim é uma das piores doenças, é muito triste, tu não te reconhecer, não reconhecer as pessoas, não saber o que está fazendo, aí é muito triste. Para mim é pior do que câncer. A doença, o paciente adoecem e vão adoecendo também a família. [...] As pessoas ao redor vão ficando e eu acho assim bem esquecidas também, bem não sei, eu não consigo saber se é por causa da doença ou porque a gente, aí não sei. Mas lá em casa estão todos muito esquecidos. Não sei se é genética isso, não sei, mas está. É muito triste essa doença. E foi até mesmo aprendizado né, porque conforme a gente vai entendendo, a doença, a gente vai aprendendo também a lidar com a gente né, se a gente vir a ter essa doença. (P2, grifo nosso).

A narrativa se faz confusa, pois ao vivenciar o Alzheimer da mãe – do qual se remete ao esquecimento como característica primordial – ela também se anuncia e teme passar por isso, sendo uma situação para ela angustiante. Podemos pensar aqui, nos processos de esquecimentos trazidos por Freud, cuja uma situação traumática pode levar o sujeito ao recalcamento daquela experiência e fazer-se então esquecer. Neste caso, o esquecimento pode implicar na sua identificação familiar, dando a impressão ao cuidador de que este por não ser mais reconhecida pela mãe, não pode mais fazer parte do grupo familiar. Freud (1969) em "Psicologia de grupo e a análise do ego", constrói a ideia de que o sujeito singular se caracteriza pelas identificações com a massa e com o seu líder, onde essa figura se inscreve ocupando o lugar do Ideal do Eu e do superego, instituindo em seu psiquismo uma figura paterna.

3.4 REPRESENTAÇÃO PATERNA PARA O CUIDADOR

O P1 não conseguiu trazer em palavras o que o pai significava para ele. Pois é visível que a representação do pai esteja esburacada, tornando-o assim incapaz de representá-lo em seu discurso.

Já a P2 declara: “Eu acho que eles são o alicerce da família porque eles vindo a faltar

olha. [...].” (P2, grifo nosso). Enquanto a P3, também não consegue nomear o que a mãe

representa a ela.

Pode-se perceber que antes do diagnóstico também houve uma dificuldade de representar os pais na infância, enquanto hoje por mais que estejam mais próximos, ainda há um distanciamento, logo que as pessoas acometidas pelo Alzheimer estão esquecendo dos filhos. A ausência ainda se faz presente, ainda que no nível da memória. Existe um objeto perdido, que se reatualiza sob uma nova condição, convocada pela doença. Sendo assim, surge um sentimento de angústia nos filhos-cuidadores que, talvez, não tenha sido nomeado.

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Retomemos aqui a noção de objeto em Freud, para discutir este recorte que promove no sujeito a falta objetal, tendo como consequência o luto. O luto para o sujeito nada mais é do que o sofrimento pela perda, no plano real, deste objeto amado, que separa o filho do pai e lhe causa desprazer. Logo, o anseio por reencontrar o pai da infância parece frustrar os cuidadores e trazer sofrimento psíquico para estes. O que torna a responsabilidade de cuidar bastante difícil. 3.5 RESPONSABILIDADE DE CUIDAR DO PAI ACOMETIDO PELO ALZHEIMER

Cuidar de alguém não é uma tarefa muito fácil, exige dedicação e comprometimento, principalmente quando este, é alguém que amamos e que nos “cuidou” desde a infância. Quando os participantes foram questionados sobre como era a responsabilidade de cuidar dos pais deles, responderam:

[...] me cansa um pouco, essa responsabilidade de mantê-los vivos, isso aí é o que me… São filhos que eu assumi, quase com quarenta e poucos anos de idade e mantê-los vivos né. Eles me fizeram reconhecer uma força que eu não tinha. De encarar as coisas, eu não fui criado para isso, encarar as coisas, uma responsabilidade que eu imaginava que era além das minhas forças, mas eu estou conseguindo, mas essa de mantê-los vivos, representa hoje uma responsabilidade enorme. (P1, grifo nosso).

Neste recorte o P1 fala sobre a “responsabilidade de mantê-los vivos”, onde ele tem que administrar a casa dos pais, com a condição de manter os cuidados com o pai com o Alzheimer além de ter que cuidar de si, o que justifica uma tarefa difícil a ser cumprida. P2 confirma essa dificuldade, quando diz: “Tive que assumir né. É difícil, a gente que tem família, é bem difícil. Estarmos lá e cá, mas a gente tem que assumir né. Como diz eles: eles assumiram a gente e a

gente também tem que, cuidar deles.” (P2, grifo nosso). Uma relação de compromisso se

estabelece e define que eles também precisam cuidar dos seus pais, o que novamente nos remete à noção de gratidão mencionada nos estudos de Melanie Klein (1974). Esta que parece ser incessante, como uma dívida impagável. Pois a P3 ressalta que durante os seus cuidados: “[...] a gente tira aquele dia para ficar ali. Até a Psicóloga falou para mim, ‘quando não é teu dia tu não coisa’, mas a gente não consegue. A gente não se desliga deles na verdade.” (P3).

Dessa forma, a gratidão frente ao compromisso de cuidar dos pais nos remete à ideia de completar um objeto faltante, àquele que depende do outro para viver, ou seja, nos faz pensar o quão angustiante é atender a esse desejo que retorna das cenas infantis.

O desejo que mencionamos aqui, advém antes mesmo do complexo de édipo, quando falamos de objeto originário, nas teorias de Melanie Klein. Assim, nos referimos ao que a autora

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explica sobre as posições que o bebê assume diante da presença e da ausência da mãe. O seio materno é o primeiro objeto que a criança internaliza. Desta forma, a ansiedade vivenciada pela ação das pulsões sobre o ego do pequeno, faz com que estas entrem em conflito, definindo ora objeto bom ora objeto mau, caracterizando-se como posição esquizo-paranóide.

Uma segunda posição, posterior a esta, é vivenciada, quando a ansiedade do bebê tende a ser diminuída e este passa a integrar mais as figuras parentais em seu psiquismo, configurando assim a posição depressiva. Nesta posição, há a possibilidade do objeto originário introjetado no bebê, revelar atitudes de bondade e dedicação para as relações ulteriores. Isto se dá, quando a mãe instaura confiança no bebê e quando este experimenta uma relação saudável com o objeto amado. Não se trata apenas de assumir o cuidado para com os pais com Alzheimer, mas talvez de reencontrar aquilo que, em algum momento da sua própria história, foi gratificante para eles. Quando convidados a falar sobre a rotina de cuidados com os pais acometidos pela doença, os participantes afirmaram que há uma certa divisão de tarefas na família da qual encontraram para não sobrecarregar apenas um membro, mas narram que mesmo assim, o peso da responsabilidade ainda recaí sobre si.

3.6 DESCRIÇÃO DA ROTINA DE CUIDADOS COM O PACIENTE

Ao descreverem sobre como estabeleciam a rotina de cuidados com os pais, o P1 que iniciou a fala, coloca que por muito tempo tem sido difícil cuidar do pai sozinho, mas que recentemente tem tido a ajuda dos irmãos, dizendo:

[...] E aí esse rodízio começou agora há dois meses né. Mas para que ele aconteça, como os meus irmãos não tem a prática da coisa, até na forma de mexer com ele, tirar da cama. De janeiro para cá ele debilitou bastante, ele fica mais na cama, então eu tenho que deixar tudo pronto para o final de semana, comida, banho, mas durante o dia assim, essencialmente é comida né, e aí hidratando, higiene, as coisas da casa, limpar a casa, fazer comida, fazer comida para mim também que preciso comer, não consigo descansar, não consigo dormir, assim plenamente né, tenho dificuldade para dormir, qualquer barulho acordo. [...] Embora eles venham só final de semana, mas eles vêm ali e está tudo pronto. Remédios já separados, comida, que o pai já não se alimenta mais sozinho. Precisa colocar na boca, tem que colocar para sentar, então tudo isso eu tenho que deixar pronto. Aí mais uma responsabilidade, tem o dinheiro da aposentadoria, que eu sou o procurador dele, tem a aposentadoria da mãe, tem essa responsabilidade né, de fazer a casa gerir para não dar saldo negativo né. Porque se dá saldo negativo tem que recorrer aos irmãos e eu não quero isso, porque é chato. É puxado. (P1, grifo nosso).

A outra participante, parece vivenciar um sentimento parecido, quando diz: “O meu é corridinho né, a gente não tem tempo, para a gente e nem para a família, é só ali na casa deles, é atenção com a mãe, é almoço, é comida, é atenção para o pai, o meu dia eu esqueço, a

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minha família. Eu esqueço.” (P2, grifo nosso). Concordando com a irmã, a P3 ainda relata: “Eu tenho até uns cunhados que dizem, ‘vocês são tão apegados à família de vocês’. A gente é muito família. Então assim ó, eu não gosto nem de imaginar sem. Não gosto nem de passar por esse... Lá em casa somos todos assim”.

É evidente que uma série de emoções aparecem no trato com os pais acometidos pela Doença de Alzheimer, sendo que a mágoa marcada pelos conflitos na infância, a tristeza provinda do diagnóstico e o cansaço enfrentado rotineiramente pelos filhos-cuidadores demarca uma preocupação importante, logo que esses três momentos inferem em angústia que impedem uma vida mais satisfatória. Uma realidade tomada pelo amor e ódio, que se reatualiza a cada nova cena, pois esta ambivalência, descrita por Freud, propõe que todas as relações objetais se dão a partir de amor e ódio. Um movimento à nível inconsciente, mas que pode se tornar perceptível nas atitudes presentes nas relações. O que antes era marcado por ódio da ausência, hoje é marcado pela presença de afeição e amor. E sobre a ausência, parece que ainda há, só que desta vez, uma ausência da alma, do reconhecer, e não mais, somente do corpo.

O sentimento de saber que os pais estão perdendo a capacidade de reconhecê-los é factual para todos, pois revelam a tristeza de não ter mais o olhar de quem os cuidou e amou e que aos poucos estas pessoas estão morrendo. Ver os pais morrendo aos poucos é para eles uma situação bastante angustiante e que merece atenção, de modo que estas pessoas também não venham adoecer física e psiquicamente. Podemos pensar, que há um luto a ser vivenciado e elaborado, e isso implica, conforme diz Freud (2006) em “Luto e Melancolia”, é necessário desligar todo investimento libidinal no objeto, bem como, de suas representações para que assim seja possível investir em outros objetos. Romper vínculo, e nesse caso, vínculos primordiais, pode fazer surgir no eu uma falta insuportavelmente dolorosa. O psiquismo do sujeito é tomado por registros mnêmicos de relações objetais, cuja perda resulta em uma destruição do campo imaginário, que torna o sujeito vazio. O trabalho de luto é um processo lento, uma vez que a realidade desses filhos é vivenciar a degradação progressiva da imagem dos seus pais, como se a cada dia fossem perdendo parte do outro e de si.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É evidente que a Doença de Alzheimer traz sérias implicações não só para a pessoa acometida, mas também para todos os familiares envolvidos, principalmente para os filhos, que na maioria dos casos se submetem à prática de cuidados para com os seus pais. O presente estudo investigou a representação paterna estabelecida nesta relação de cuidados, bem como,

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verificou quais emoções estão envolvidas e que promovem no sujeito fortes sentimentos de angústia.

Como representantes emocionais, pôde-se verificar a tristeza relacionada à percepção do diagnóstico por parte dos filhos, além do ódio e da mágoa, demarcadas por experiências infantis que não tenham ganhado resoluções, e que parecem ter se reatualizados após o diagnóstico, mostrando-se mais intensamente; o cansaço, a ansiedade, e o medo da perda, inferidos na prática rotineira de cuidados com pai acometido pelo Alzheimer.

Além disso, foi possível estabelecer uma discussão em relação aos efeitos da “queda do pai” através da perspectiva psicanalítica, que define a constituição subjetiva como causa direta das relações objetais promovidas pela figura paterna e materna, no cerne infantil.

Constatou-se que a representação do pai, frente ao diagnóstico da Doença de Alzheimer, está subvertida, pensando que o filho assume a posição de pai e o pai “se torna criança”, assim como os efeitos da infância aparecem agora no cuidado com o pai.

Devido à escassez de material teórico que fale da temática em questão, – mencionado ao longo do trabalho – este estudo possibilitou buscar resultados que contribuíssem para o meio científico, como forma de suprir a defasagem teórica encontrada pelo autor.

Tem-se como uma possível continuidade de pesquisa, a concepção de regressão, que conforme os relatos, afirmam que o paciente assume posições infantis.

Durante a entrevista, observou-se a dificuldade de dois participantes que não conseguiram expressar em seu discurso a representação paterna para eles. Além dos furos de discurso em suas narrativas, que revelam algo da angústia e do possível processo de luto pela perda da imagem e das representações paternas que estão vivenciando. Que pode resultar em defesas psíquicas, levando ao adoecimento do sujeito. Por isso, é importante que se busque mais estudos acerca do Alzheimer e de como as famílias lidam com essa realidade enfrentada pela doença, bem como desenvolver, práticas que trabalhem com a promoção de alívio e bem-estar para os cuidadores.

Cabe mencionar, a importância de projetos sociais como o GACPA – Grupo de Apoio aos Cuidadores de Pessoas com Alzheimer – uma vez que possibilita a comunidade ter um espaço aberto que promova saúde, entendendo que nem todas as pessoas possuem condições financeiras para sustentar um processo de psicoterapia, além de que, pode oferecer aos acadêmicos uma aproximação com a práxis neste tipo de intervenção, de modo que contribua para a sua formação profissional.

Por fim, entende-se que a Psicanálise como base teórico-prática, possibilitou uma compreensão sobre o estudo realizado e possui ferramentas que podem auxiliar neste trabalho

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de intervenção. Ao dar ênfase na cura pela palavra, a Psicanálise tem como premissa compreender o sujeito pela linguagem, que se dá pelos gestos, pelo silêncio, pelo olhar, ou qualquer outra forma que possa revelar uma resposta do sujeito. Além disso, os casos de Doença de Alzheimer revelam o inconsciente e a força do infantil como efeitos que circundam a relação familiar, neste sentido é possível trabalhar com tais elementos articulados à metáfora da representação paterna. O contexto da saúde pública é um lugar onde a Psicanálise pode transitar, de modo a conversar com outras áreas de conhecimento, como a medicina, articulando saberes e tornando à prática de saúde mais humanizada.

REFERÊNCIAS

ABRAZ. [201-]. Disponível em: http://abraz.org.br. Acesso em: 04 jun. 2019.

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