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A intolerável tolerância da era moderna

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Academic year: 2021

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Perspectivas, Sao Paulo, v. 14, p. 69-79,1991.

A I N T O L E R Á V E L T O L E R Â N C I A D A E R A M O D E R N A

M ô n i c a G . T . do A M A R A L *

RESUMO: As teses de Foucatdt sobre a constituição do dispositivo da sexualidade encon-tram-se referenciadas em uma dupla crítica — histórica e metodológica — à hipótese repressiva da sexualidade. Trata-se de uma concepção positiva de poder que pretende dissociar dominação e repressão. A partir das idéias de Foucault sobre sexualidade e poder, o artigo procura estabe-lecer um contraponto entre suas concepções easde diferentes autores do campo marxista, como Marcuse e Adorno (identificados com a Escola de Frankfurt) e Pier Paolo Pasotini. Argumenta-se que as contribuições destes últimos parecem Argumenta-se inscrever em um registro que difere das teArgumenta-ses foucaultianas acerca da produtividade do poder e, ao mesmo tempo, supera os limites impostos

pela hipótese repressiva.

UNITERMOS: Dispositivo da sexualidade; hipótese repressiva; ciência e ideologia; verdade e poder; falsa tolerância; narcisismo; subjetividade moderna.

1. I N T R O D U Ç Ã O

Pretende-se, no presente ensaio, estabelecer r e l a ç õ e s entre a crítica d a cultura feita pela E s c o l a de Frankfurt** e a que f o i formulada por Pier Paolo Pasolini em uma c o -letânea de artigos conhecida como Escritos Corsários — d é c a d a de 70 (9). Procura-mos, de outro lado, assinalar as diferenças entre essas duas posturas, além de contra-por seus pontos de vista à s idéias de Foucault a esse respeito.

Percebe-se que cortes distintos na Historia s ã o identificados por Foucault e Paso-l i n i , e m r e Paso-l a ç ã o à temática d a sexuaPaso-lidade. Torna-se pertinente retomar a anáPaso-lise crí-tica de Foucault acerca d a hipótese repressiva, face à leitura sobre o "regime de to-l e r â n c i a " próprio do capitato-lismo tardio, que Pasoto-lini o p õ e à era j á uto-ltrapassada d a repressão sexuaL

Iniciamos nossa e x p o s i ç ã o pelas teses defendidas por Foucault em sua obra História da Sexualidade I... (4), em que ele faz uma e s p é c i e de introdução à s analises h i s t ó

-* Departamento de Psicologia da Educação - Faculdade de Ciência e Letras- UNESP -14800- Araraquara, SP.

** "Escola de Frankfurt", como já foi salientado por diversos autores, refere-se menos a uma localização geo-gráfica e mais ao pensamento de um grupo de intelectuais marxistas, que formularam em Frankfurt, no período anterior a Hitler e depois no exílio, uma teoria social denominada "teoria crítica".

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ricas do poder. Objetivando obter uma explicitação da p r o d u ç ã o de saberes, o autor investiga, particularmente, a constituição do dispositivo da sexualidade.

Preocupa-se em fixar princípios metodológicos para reescrever a histórica d a se-xualidade, que seria a história das instâncias de p r o d u ç ã o discursiva do saber e do poder sobre a sexualidade e suas transformações. C o m o afirma o próprio autor em algumas de suas entrevistas, publicadas em Microfísica do poder (5), tratava-se neste primeiro volume de estabelecer um m é t o d o de investigação de como as nossas socie-dades, ao longo de tantos s é c u l o s , relacionam a q u e s t ã o do sexo c o m a busca da ver-dade. P r o p ô s - s e a fazer uma espécie de "genealogia" das relações de força embuti-das nos discursos sobre o sexo, o u seja, "distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a que pertencem e reconstituir os fios que se ligam e que fazem c o m que se engendrem, uns a partir dos outros" (5: 5).

Foulcault concebe a sexualidade n ã o enquanto uma categoria ontológica, mas c o -mo sendo constituída pelo próprio discurso sobre sexo, presente na hipótese repres-siva. A proposta de reconstrução de uma história da sexualidade inscreve-se em uma tentativa de liberar o discurso sobre a sexualidade da hipótese repressiva. Segundo as palavras de Foucault: " N ã o se trata de negar a miséria sexual, mas também n ã o se trata de explicá-la negativamente por uma repressão. O problema e s t á em apreender quais os mecanismos positivos que, produzindo a sexualidade desta ou daquela ma-neira, acarretam efeitos de m i s é r i a " (S: 232).

N ã o pretende defender que a interdição do sexo seja uma ilusão, "e sim que a ilusão e s t á em fazer dessa interdição o elemento fundamental e constituinte a partir d o qual se poderia escrever a história do que f o i dito do sexo a partir da Idade M o -derna" (4: 17).

Para o autor, t é c n i c a s polimorfas de poder estariam penetrando nas condutas as mais individuais, chegando a t é mesmo a controlar desejo e prazer, seja por sua recusa e desqualificação, seja por meio da incitação à sua satisfação.

Nesse sentido, o autor p r o p õ e uma ruptura c o m as teses tradicionais do poder, que postulam uma o p o s i ç ã o entre* c i ê n c i a e ideologia, operando c o m as categorias de falso e verdadeiro. N a introdução à MicrofCsica do Poder, Roberto Machado nos oferece algumas indicações sobre o caráter produtivo do poder para Foucault: " A uma con-c e p ç ã o negativa que identificon-ca o poder con-c o m o Estado e o con-considera essencon-cialmente como aparelho repressivo no sentido em que seu modo básico de intervenção sobre os c i d a d ã o s se daria em forma de v i o l ê n c i a , c o e r ç ã o , o p r e s s ã o , ele o p õ e , ou acres-centa, uma c o n c e p ç ã o positiva que pretende dissociar d o m i n a ç ã o e repressão. O que suas a n á l i s e s querem mostrar é que a d o m i n a ç ã o capitalista n ã o conseguiria se man-ter se fosse exclusivamente baseada na r e p r e s s ã o " (5: x v i i ) .

N a primeira entrevista, "Verdade e Poder", deste livro (Microfísica do Poder, 5), Foucault e x p õ e os motivos de sua recusa em utilizar as categorias de ideologia e de r e p r e s s ã o . S u a o p o s i ç ã o ao conceito de ideologia se d á por três motivos. E m primeiro lugar, porque s u p õ e uma o p o s i ç ã o entre ideologia e verdade — esta última associada ao discurso cientifico; e m segundo, porque se refere ao sujeito; e, em terceiro, porque a ideologia ocupa uma posição secundária ao ser referenciada à infra-estrutura e c o n ô m i c a .

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A o que o autor e x p õ e os argumentos contrarios que se seguem. Segundo Foucault, trata-se, ao contrario, de " v e r historicamente como se produzem efeitos de verdade no interior dos discursos que n ã o s ã o e m s i nem verdadeiros, nem falsos" (5: 7). D e outro lado, n ã o se deve buscar o sujeito d a Historia, mas desvendar a rede de pro-dução da subjetividade. E , ainda, que o poder n ã o e s t á localizado no Estado, o u na superestrutura, mas haveria uma rede do poder que se alastra por toda a sociedade e da qual n i n g u é m pode escapar.

À clássica antinomia entre c i ê n c i a e ideologia, Foucault o p õ e verdade e poder. Trata-se, n ã o de u m combate em favor d a verdade, "mas em torno do estatuto d a verdade e do papel e c o n ô m i c o e político que ela desempenha" (5: 13). E conclui o seguinte a esse respeito: " E m suma, a q u e s t ã o política n ã o é o erro, a i l u s ã o , a cons-ciência alienada o u a ideologia; é a própria verdade" ( 5 : 1 4 ) .

Recusa t a m b é m a categoria r e p r e s s ã o , porque esta p r e s s u p õ e uma c o n c e p ç ã o j u r í -dica do poder (lei que d i z n ã o ) . A esta n o ç ã o negativa do poder, embutida n a catego-ria de r e p r e s s ã o , Foucault o p õ e a positividade do poder, c o m sua eficácia produtiva: "Produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso" (5: 8). Considera necessário investigar os procedimentos técnicos do poder que realizam u m controle m i -nucioso do corpo, em seus gestos, atitudes, comportamentos, h á b i t o s e discursos.

E m História da Sexualidade I... (4) inicia esse trabalho por meio de uma verdadei-ra desmontagem do discurso sobre o sexo, proposto pela hipótese repressiva. O autor descreve inicialmente a histórica da sexualidade de acordo c o m a h i p ó t e s e repressiva para, aos poucos, contestar esta v e r s ã o e explicitar os cortes que ele próprio visualiza na história d a sexualidade. A s s i m , segundo a h i p ó t e s e repressiva, a t é o século X V I I , os c ó d i g o s d a sexualidade eram mais liberais. P o r é m , a partir do século X V I I , mas principalmente desde o século X I X , a sexualidade é "cuidadosamente encerrada", o u seja, suas manifestações saem do d o m í n i o p ú b l i c o e se recolhem à esfera privada. " A família conjungal a confisca, passando a proclamar o decoro das atitudes e a d e c ê n -cia das palavras" (4:9-10).

C o m que ironia Foucault discursa sobre as bandeiras liberalizantes levantadas pela esquerda. N a verdade, faz uma análise extremamente crítica à q u e l e s discursos mecanicistas, que associam, sem m e d i a ç õ e s , a repressão sexual ao capitalismo, condicionando sua s u p e r a ç ã o à d e s r e p r e s s ã o , sexual, inclusive. " H á dezenas de anos que n ó s s ó falamos de sexo fazendo pose: c o n s c i ê n c i a de desafiar a ordem es-tabelecida, tom de v o z que demonstra saber que é subversivo, ardor e m conjurar o presente e aclamar u m futuro cujo apressamento se pensa contribuir. A l g u m a c o i -sa da ordem da revolta, da liberdade prometida, da proximidade d a é p o c a de uma nova l e i , passa facilmente nesse discurso sobre a o p r e s s ã o do sexo... Para a m a n h ã o bom sexo?" ( 4 : 1 2 )

Resumindo, teríamos basicamente três críticas levantadas por Foucault à h i p ó t e s e repressiva. U m a de ordem histórica: " A r e p r e s s ã o do sexo seria,- mesmo, uma evidência h i s t ó r i c a ? " ; outra de ordem histórico-teórica: " A m e c â n i c a do poder e, e m particular, a que é posta em jogo numa sociedade como a nossa, seria mesmo,

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essencialmente, de ordem repressiva?"; e uma terceira, de cunho históricopolítico: " E x i s -tiria mesmo uma ruptura histórica entre a Idade d a R e p r e s s ã o e a análise crítica da r e p r e s s ã o ? " (4: 15).

Foucault n ã o c r ê que exista propriamente uma ruptura entre a repressão e a crítica à r e p r e s s ã o , j á que ambas se remetem à hipótese repressiva, além de contribuir para a incitação ao discurso sobre o sexo. A s s i m , o autor lança-nos sua hipótese acerca da história da sexualidade, que, a t é o final do século X V I I , inscrever-se-ia nos quadros das relações de aliança, regidas pelo c ó d i g o j u r í d i c o . " O sexo dos cônjuges era so-brecarregado de regras e recomendações... O resto permanecia bem mais confuso: atentemos para a incerteza do status da sodomía ou a indiferença diante da sexuali-dade das c r i a n ç a s " (4: 38). N o entanto, a e x p l o s ã o discursiva sobre o sexo, presente nos séculos X V I I I e X I X , provocou duas modificações: o c ó d i g o j u r í d i c o que legisla sobre a r e l a ç ã o matrimonial, c o m suas regras e coerções em torno da monogamia he-terossexual, d á lugar à incitação à sexualidade perversa. " O casal legítimo, com sua sexualidade regular, tem direito à maior discrição, tende a funcionar c o m uma norma mais rigorosa talvez, p o r é m mais silenciosa. E m c o m p e n s a ç ã o , o que se interroga é a sexualidade infantil, a dos loucos e dos criminosos; é o prazer dos que n ã o amam o outro sexo; os devaneios, as o b s e s s õ e s , as pequenas manias ou as grandes raivas" (4: 39).

O c ó d i g o j u r í d i c o é substituído pelo c ó d i g o a partir da ordem natural do desejo, que será definido por uma ciência da sexualidade. Esta procura classificar e especifi-car os sem-números de perversões contribuindo, pois, para desencadear uma verda-deira proliferação das sexualidades periféricas. "Trata-se, através de sua dissemi-n a ç ã o , de semeá-las dissemi-no real, de idissemi-ncorporá-las ao i dissemi-n d i v í d u o " (4: 44).

Por f i m , dirige questionamentos àqueles que postulam a existência de uma re-p r e s s ã o maior ainda na era moderna. Esta, de acordo com essa corrente, seria res-p o n s á v e l res-pelo regime de falsa tolerância. N o último res-parágrafo do segundo cares-pítulo da Historia da Sexualidade I..., Foucault explicita tais questionamentos, ao mesmo tempo que e s b o ç a sua própria c o n c e p ç ã o acerca da sexualidade moderna: " N ã o so-mente assistimos a uma e x p l o s ã o visível das sexualidades heréticas mas, sobretu-do — e é esse o ponto importante — , a um dispositivo bem diferente d a l e i : mesmo que se apoie localmente em procedimentos da interdição, ele assegura, através de uma rede de mecanismos entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de sexualidades disparatadas" (4: 44).

Esta crítica elaborada por Foucault muito bem se aplicaria a Pasolini, na medida em que este, a partir da hipótese repressiva, condena a sociedade moderna conceben-do-a como falsamente tolerante.

Passaremos .agora a expor as idéias de Pasolini, contrapondo-as à s da Escola de Frankfurt, para depois tecermos algumas considerações finais em que se pretende alinhavar os pensamentos das três tendências em pauta neste artigo.

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2. D A H I P Ó T E S E R E P R E S S I V A À S U A S U P E R A Ç Ã O - U M A T E R C E I R A C O R R E N T E N Ã O I D E N T I F I C A D A P O R F O U C A U L T ?

Para fazermos essa d i s c u s s ã o , seria interessante recorrer à s i d é i a s d a Escola de Frankfurt e à s de Pasolini a respeito d a ideologia do capitalismo tardio e , c o m isso, contribuir para o esclarecimento d a crítica deste último ao "regime de t o l e r â n c i a " .

Em linhas gerais, pode-se afirmar que a Escola de Frankfurt e s b o ç a uma dupla concepção de ideologia, que corresponde à análise elaborada por esta corrente das diferentes fases do modo de p r o d u ç ã o capitalista. D e acordo c o m a Teoria Crítica, a concepção marxista de ideologia é apropriada ao estágio do capitalismo concorren-cial. Refere-se a u m discurso que justifica e camufla a realidade v i v i d a , seja no plano da vontade, seja no plano d a p r o d u ç ã o do saber, encontrando-se, pois, determinada pelas relações sociais de p r o d u ç ã o e pela situação de classe do sujeito d o conhecimento.

Adorno e Horkheimer (3) afirmam que, no estágio do capitalismo monopolista, uma outra tendência estaria se e s b o ç a n d o , qual seja a de que a ideologia passaria a se configurar como a totalidade dos produtos culturais, sob a forma fetichizada da mer-cadoria, promovendo dessa forma uma integração das forças que se o p õ e m ao siste-ma. Ideologia e realidade correm uma em d i r e ç ã o à outra. A primeira n ã o é mais o invólucro de uma imagem ameaçadora de mundo, mas é essa p r ó p r i a imagem. A reali-dade converte-se em ideologia de s i mesma, o que vem dificultando sua crítica e supe-ração. H á u m verdadeiro deslocamento g e o l ó g i c o d a superestrutura à infra-estrutura.

Já Pasolini m a n t é m a c o n c e p ç ã o marxista do real alienado mesmo no que d i z res-peito à análise dos produtos culturais p r ó p r i o s do capitalismo tardio. A era da to-lerância sexual caracteriza-se, de acordo com Pasolini, por uma nova forma de totali-tarismo, a do consumo, que é "alienante a t é ao extremo limite d a d e g r a d a ç ã o antro-pológica, a t é ao g e n o c í d i o (Marx). A ' sua permissividade é falsa; é , na verdade, a mascara da pior repressão que jamais algum poder exerceu sobre as massas" (10) — (grifo nosso). A ideologia converte-se em irrealidade, ou seja, uma realidade que se desrealizou.

Mesmo diante de tais p o n d e r a ç õ e s acerca da diferença fundamental entre a leitura crítica de Pasolini sobre a sociedade de consumo do capitalismo tardio, e a d a Escola de Frankfurt a respeito d a sociedade afluente, encontramos nessas a n á l i s e s pontos de identidade que, muitas vezes, se complementam. N ã o h á d ú v i d a de que ambas se remetem à hipótese repressiva criticada por Foucault, pois realizam uma crítica i d e o l ó -gica que se encontra no mesmo registro da repressão que se quer anular.

Vejamos, e n t ã o , como a Teoria Crítica trabalha c o m a categoria de r e p r e s s ã o , n ã o se atendo apenas à esfera da sexualidade como o faz Pasolini.

A Teoria Crítica denuncia que uma outra forma de d o m i n a ç ã o v e m se e s b o ç a n d o na sociedade afluente, passando a interferir na p r ó p r i a dinâmica individual. N o que se refere à integração no âmbito cultural, h á que se elucidar o processo de "dessu-blimação repressiva", que, de acordo c o m Marcuse, predomina nas regiões mais avançadas do capitalismo monopolista.

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A d o r n o (1,2) anuncia o surgimento d a " s í n d r o m e do narcisismo", semelhante à i d é i a de " d e s s u b l i m a ç ã o repressiva", termo utilizado por Marcuse para explicitar o modo como a sociedade afluente controla diretamente desejos e pulsões individuais. T a l controle viabiliza-se por meio d a satisfação imediata das p u l s õ e s , eliminando assim a necessidade de m e d i a ç ã o das instâncias institucionais (família, escola, r e l i -g i ã o ) , que no está-gio do capitalismo concorrencial eram responsáveis pelo contra-controle ideológio. Isto ocorre, porque o sistema tende a eliminar as próprias instân-cias p s í q u i c a s (Ego, Superego), pois estas, ao censurarem o inconsciente, t a m b é m censuram o censor, o que, em última instância permitiria a c o n t e s t a ç ã o . N ã o havendo interesse em que isso ocorra, procura-se administrar os impulsos de cada um.

H á , p o i s , ao c o n t r á r i o do que postula Foucault, u m lugar de verdade — de pro-d u ç ã o contra-ipro-deológica — , que se o p õ e ao popro-der instituípro-do pela classe pro-dominante, mesmo quando assume formas bem mais eficientes de dominação ideológica, tal c o -mo a descrita acima.

D e acordo com a Escola de Frankfurt, ocorre uma dessublimação institucionaliza-da, em que a liberação d a sexualidade e d a agressividade se realiza de modo imedia-to, o que poderia elucidar " o poder repressivo do universo de satisfação estabeleci-d o " (8).

A s s i m , tanto Pasolini quanto a Escola de Frankfurt denunciam a forma de e x e r c í c i o do poder d a sociedade afluente como a mais repressiva de todas. A o que F o u -cault se o p õ e claramente. Depois de e s b o ç a r sua p r ó p r i a hipótese acerca da história d a sexualidade, apontando o século X V I I como o marco de uma crescente incitação ao discurso e à s práticas sexuais, de início restritos ao matrimônio, ampliando-se posteriormente ao universo das p e r v e r s õ e s . Foucault descarta a tese de que a era mo-derna seja caracterizada por uma repressão mais intensa do sexo. " É o inverso que aparece, pelo menos numa v i s ã o geral: nunca tantos centros de poder, jamais tanta atenção manifesta e prolixa; nem tantos contatos e vínculos circulares, nunca tantos focos onde estimular a intensidade dos prazeres e a obstinação dos poderes para se disseminarem mais a l é m " ( 4 : 4 9 ) .

A T e o r i a Crítica aponta para o uso social d a energia instintiva, em que o princípio do prazer se expande ao princípio de realidade. O universo em que se poderia obter prazer é reduzido, produzindo-se uma localização e uma contração libidinais, reduzindo a sexualidade à esfera genital. A o que acrescenta Pasolini: a liberdade de c ó -pula para o casal heterossexual tornou-se uma verdadeira o b s e s s ã o , pois é concedida, "inculcada e imposta" de modo permissivo pela sociedade de consumo.

O casal emerge como modelo gerando o conformismo d a maioria da p o p u l a ç ã o . A o lado desta falsa tolerância sexual para as r e l a ç õ e s heterossexuais, tudo o que é diferente do modelo é "ignorado o u repelido" c o m extrema violência.

Pasolini, considera ainda que haja distinções entre a ideologia d a classe dominante (essencialmente hedonista) e a das classes populares (clerical-fascista), que assumem para s i u m hedonismo alienado. J á A d o r n o v ê o narcisismo, por exemplo, como uma s í n d r o m e n ã o somente d a família burguesa como de toda a sociedade, na medida em que a classe dominante cria uma sociedade à imagem dela mesma.

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Para explicitar a análise política do coito feita por Pasolini, é interessante retomar suas análises acerca d a questão do aborto. Segundo o autor, esse mesmo povo que tem suas formas comunitárias de viver simplesmente aniquiladas pelo novo regime, passa a ser induzido a aceitar a legalização do aborto. Quer dizer, u m povo que se alienou de sua existência, de seu corpo, de seu sexo, é obrigado a aceitar o aborto, também de forma alienada. O u seja, alienando-se do fato que o precede, o coito, que no regime de falsa tolerância torna-se uma o b r i g a ç ã o social.

A s s i m , Pasolini considera extremamente conservador o fato de se isolar a luta pela legalização do aborto d o contexto político em que esta se estrutura, ou seja, do mo-mento político do coito. Distingue dois momo-mentos políticos do coito:

- Antes do advento do neocapitalismo, sob o regime de r e p r e s s ã o , o coito fora do casamento era considerado u m e s c â n d a l o . N o entanto, o casamento era uma fes-ta, e a c r i a n ç a , que era bem-vinda, se constituía em garantia de sobrevivência da e s p é c i e . E m é p o c a de escassez, a pobreza e a carência existiam, mas havia também verdadeira tolerância para com o diferente. A s pessoas eram mais f e l i -zes; o povo, ao menos;

- C o m o surgimento do neocapitalismo, sob o regime de falsa tolerância, o coito torna-se uma obrigação social. O casamento parece um "rito f ú n e b r e , apressado e cinzento", e a vinda de uma criança passa a ser considerada maldita.

A Teoria Crítica considera que a liberação sexual promovida pela sociedade afluente acaba reduzindo as possibilidades de s u b l i m a ç ã o , pois apenas aparentemente a satisfação erótica encontra-se liberada, quando o que ocorre é uma e x p a n s ã o sexual para além do privado.

A sexualidade, assim como a arte, ou mesmo a contestação operária s ã o integrados ao mundo da p r o d u ç ã o , perdendo todos seu poder de n e g a ç ã o ao existente.

A alienação artística existente outrora é concebida como u m processo de subli-mação, pois cria imagens contraditórias ao princípio de realidade, p o r é m toleráveis como imagens culturais. N a sociedade unidimensional, c o m a incorporação d a arte à cozinha, ao escritório, aos a n ú n c i o s , ao mundo dos n e g ó c i o s , torna-se des sublimação por meio da substituição da satisfação mediata pela imediata. A t e n d ê n c i a narcísica da sociedade moderna caracteriza-se pela perda d a explosiva d i m e n s ã o individual d a sexualidade. A liberação sexual ocorre em meio ao uso repressivo d a libido, em que a sexualidade, é encorajada a canalizar-se socialmente.

Pasolini, quanto a esta q u e s t ã o , talvez preferisse se remeter a uma perda d a explo-siva d i m e n s ã o de uma sexualidade comunitária, que ocorreria sob o regime d a falsa tolerância. Enquanto A d o r n o e Marcuse recorrem ao modelo repressivo d a família patriarcal como p a r â m e t r o de crítica à permissividade da sociedade afluente, Pasolini prefere se remontar à liberação autêntica que u m d i a parece ter existido entre as c a madas populares, nas quais uma tolerância verdadeira emergia de suas formas de v i -da comunitária.

D e acordo c o m a Teoria Crítica, tanto a realidade quanto a fantasia comprimem o Superego, enfraquecendo-o. A idealização d a autoridade parental e sua

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intemali-z a ç ã o s ã o dificultadas pela p r ó p r i a indiferença de pais narcisos. Estes mantêm c o m os filhos relações de a p a r ê n c i a , c o m falta de calor, permeadas por uma agressividade n ã o verbalizada.

C o m o j á vimos, Pasolini fala da mesma indiferença nas relações matrimoniais, que se transformam em algo "sombrio e f r i o " .

Russel Jacoby considera impossível conceber esta nova estrutura familiar e o novo processo de i n d i v i d u a ç ã o p r ó p r i o ao narcisismo à parte do estudo das tendências do capitalismo. A f i r m a que, assim como nos primordios do modo de p r o d u ç ã o capitalis-ta exige-se o puricapitalis-tanismo e o sacrificio, no capicapitalis-talismo capitalis-tardio requer-se um hedonismo programado. O narcisishedonismo implica u m protesto em nome d a " s a ú d e " e da " f e l i c i -dade" individuais contra o sacrificio ' ' i r r a c i o n a l " , indo assim ao encontro dos dita-mes d a sociedade afluente, c o m a comodidade que esta propicia. U m hedonismo pro-palado pela burguesia, que em busca de autogratificação devora-se a s i mesma. A se-xualidade " n ã o pode mais ser separada dos cigarros, cervejas e shampoos" (7: 183).

Faz-nos recordar Pasolini quando este ressalta que n ã o mais existe a predominan-c i a d a pobreza: observa-se, ao predominan-c o n t r á r i o , 50 milhões de pequeno-burgueses. C o m o se a c a r ê n c i a de outrora fosse responsável por uma real tolerância, mas que atualmente é substituída por uma falsa tolerância que se d á junto com o esquecimento da antiga pobreza.

A d o r n o , em seu artigo "Sociology and P s y c h o l o g y " (Parte I), reconhece uma crescente racionalidade do sistema que permanece irracional quanto à autopreser-v a ç ã o , j á que a unidimensionalização falha em se materializar. Considera a t é mesmo que a irracionalidade do sistema toma-se responsável pela neurose; esta, derivada da estrutura de uma sociedade que n ã o se pode abolir. Nesse mesmo artigo, afirma: " A s necessidades foram sempre mediadas socialmente, mas hoje as pessoas e suas neces-sidades e s t ã o ficando cada vez mais divorciadas e sua gratificação vem se dando em o b s e r v â n c i a das regras que lhes s ã o impostas" ( 1 : 7 8 ) .

Encontramos nos Escritos Corsários de Pasolini (9) considerações semelhantes às de A d o r n o . Pasolini considera que o regime de falsa tolerância impede a emergência de alternativas ao modelo, cerceando, assim, a p r ó p r i a crítica ao sistema. Aponta t a m b é m uma "erotomania" sexual que vem se transformando em uma neurose coleti-v a , sendo esta r e s p o n s á coleti-v e l por intensas frustrações.

3. C O N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S

Foucault, no artigo Porque investigo o Poder? (6), menciona sua oposição às for-mas de investigação d a r a z ã o iluminista propostas pela Teoria Crítica. Considera que n ã o se deve buscar uma c o m p r e e n s ã o totalizante d a racionalidade de uma dada so-ciedade o u cultura, mas sim investigar racionalidades específicas. Estas s ã o desenca-deadas a partir de lugares diferentes de p r o d u ç ã o do saber e do poder, tais como: a loucura, a enfermidade, a morte, o delito, a sexualidade, etc.

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De acordo c o m a Teoria Crítica, o positivismo, no plano filosófico, correspondia na verdade à c r e n ç a burguesa de que bastaría p ô r a c o nsci ên ci a em ordem para que a sociedade se organizasse. P o r é m , tal c o n c e p ç ã o correspondeu a um momento d a so-ciedade burguesa (capitalismo concorrencial), cujo desenvolvimento industrial n ã o era muito intenso (visava mais à p r o d u ç ã o ) . H a v i a , de outro lado, relativa liberdade baseada na igualdade formal entre os homens. A ideologia enquanto falsa c o n s c i ê n -cia era baseada em uma explicação racional d a sociedade. E é por isso que podia ser combatida por uma crítica ideológica (marxista), que também se apoiava em u m dis-curso racional.

Porém, a ideologia que se manifesta sob o capital monopolista, cujo á p i c e pode ser representado pela ideologia do nacional-socialismo, n ã o pode mais ser combatida por u m discurso racional j á que a manifestação de suas formas de consciência n ã o possui mais elementos racionais a serem refutados. A ideologia dessa nova era s ó poderá ser compreendida pelas disposições psicológicas implantadas nos indivíduos.

Parece-nos, pois, que Foucault tem e n ã o tem r a z ã o quando levanta tais críticas à Escola de Frankfurt. N ã o tem, pelo fato de n ã o distingui-la das análises marxistas e por deixar de salientar as análises que a Teoria Crítica faz acerca das relações entre subjetividade e poder. D e outro lado, tem r a z ã o quando a i n c l u i em análises do tipo globalizante, pois, realmente, a Teoria Crítica parte das determinações econômicas para compreender as formas de d o m i n a ç ã o ideológica de cada momento histórico.

Quanto a Pasolini, como j á vimos, faz uma análise marxista do "regime de to-lerância" das sociedades modernas. Trata-se, nesse sentido, de uma análise que também se inscreve na hipótese repressiva, t ã o criticada por Foucault. Pasolini propõe u m programa de tolerância verdadeira, sob o registro libertário. A liberdade e a verdade sobre o sexo se colocariam fora do âmbito do poder repressivo d a sociedade de consumo.

Para Foucault, a resistência é l o c a l , pontual: n ã o pode ser definida fora dos me-canismos de poder. Liberdade e sexualidade inscrevem-se no interior das instâncias do poder. D a í a inexistência, para o autor, de um lugar de verdade, externo ao p o -der, que aponte para uma utopia. Segundo Foucault, a resistência estaria n a recusa de todas as incitações promovidas pelo sistema valorizando o secreto e n ã o o c o n -fessional.

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ABSTRACT: The theses of Foucault on the constitution of the device of sexuality are based on a twofold critique — historic and methodologic — on the repressive hipothesis of sexuality. It is a positive conception of power that intends to dissociate domination and repression. From Foucault's ideas on sexuality and power, the present article tries to establish a comparison between his conception and those of afferent marxist authors like Marcuse, Adorno (who are indentifted which the Frankfurt School) and Pier Paolo Pasolini. We maintain that the contributions of these authors are of a different nature from that of Foucaults theses on productivity and power and, at the same time, overcome the limits set up by the repressive hypothesis.

KEYWORDS: The device of sexuality; repressive hypothesis; science and ideology; truth and power; false tolerance; narcissism; modern subjectivity.

R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S

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