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Os homens do futuro - as crianças de hoje! : debates sobre infância nos quadrinhos de Luís Loureiro (1907-1919)

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ALEXANDRE ROCHA DA SILVA

OS HOMENS DO FUTURO – AS CRIANÇAS DE HOJE! Debates sobre infância nos quadrinhos de Luís Loureiro (1907-1919)

CAMPINAS 2019

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OS HOMENS DO FUTURO – AS CRIANÇAS DE HOJE! Debates sobre infância nos quadrinhos de Luís Loureiro (1907-1919)

Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em História, na Área de História Social da Cultura.

Orientador: RICARDO FIGUEIREDO PIROLA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO ALEXANDRE ROCHA DA SILVA E ORIENTADA PELO PROF. DR. RICARDO FIGUEIREDO PIROLA

CAMPINAS 2019

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Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Silva, Alexandre Rocha da,

Si38h SilOs homens do futuro - as crianças de hoje! Debates sobre infância nos quadrinhos de Luís Loureiro (1907-1919) / Alexandre Rocha da Silva. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

SilOrientador: Ricardo Figueiredo Pirola.

SilDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

Sil1. Loureiro, Luís Gomes, 1889-1981. 2. Histórias em quadrinhos - Brasil. 3. Infância - História. 4. Imprensa - Brasil - Séc. XX. 5. Brasil - História - Séc. XX. I. Pirola, Ricardo Figueiredo, 1980-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The men of future, the children of today! Debates on childhood in

Luís Loureiro's Comics (1907-1919)

Palavras-chave em inglês:

Comic books, strips, etc. - Brazil Childhood - History

Press - Brazil - 20th century Brazil - History - 20th century Post Emancipation

Área de concentração: História Social Titulação: Mestre em História

Banca examinadora:

Ricardo Figueiredo Pirola [Orientador] Rodrigo Camargo de Godoi

Marcelo Balaban

Data de defesa: 22-03-2019

Programa de Pós-Graduação: História

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a) - ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-4236-5043

- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/2370642639205892

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INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 22 de março de 2019, considerou o candidato Alexandre Rocha da Silva aprovado.

Prof. Dr. Ricardo Figueiredo Pirola (IFCH/ UNICAMP) Prof. Dr. Rodrigo Camargo de Godoi (IFCH/ UNICAMP) Prof. Dr. Marcelo Balaban (Universidade de Brasília)

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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dez anos que me separam desta memória, lembro ainda com certa nitidez do dia em que uma de minhas professoras, da Escola Estadual Professora Maria Augusta de Ávila, disse abertamente, diante de outros alunos, que eu havia sido o terceiro aluno da história da escola a ingressar em uma universidade pública. A ocasião em que esta frase foi dita tinha relação com uma atividade realizada pelos professores para convidar os alunos e alunas a sonharem com as utopias da educação superior pública e, mais importante, gratuita. Em todos os anos, o “projeto vestibular”, como chamava-se naquele tempo, acendia os interesses daquela juventude, às vezes tão sonhadora, mas quase sempre, tão desacreditada, a pensar nas possibilidades de, deixando a escola, sonhar e imaginar um futuro um pouco mais distante daquela realidade áspera e acinzentada. Ainda me dá calafrios a afirmação da professora, de nome Ângela, aliás. Como poderia eu, em mais de trinta anos de funcionamento de uma escola que deveria atender mais de 2mil alunos por ano, ter sido um golpe de feliz acaso? Como poderia esta escola ser portadora de um histórico tão cruel e desanimador?

Apesar dos sonhos que ali foram sonhados, e ali morreram também, aquela escola de paredes sempre azuis me fez desejar caminhar longe. E toda as vezes em que volto a pensar onde estive, penso em meu trabalho como acadêmico como uma retribuição, e uma justiça histórica, ao “Ávila”, uma escola que ainda continua esquecida, em meio ao centro de Artur Alvim, na Zona Leste de São Paulo.

Por isso, meus agradecimentos, no início deste trabalho, começam de lá tão longe. Agradeço aos professores da minha educação primária, especialmente à professora Neusa – hoje, uma senhorinha – , que, sempre que me vê nas ruas de Artur Alvim, faz questão de me saudar com muita alegria. Agradeço às professoras Sirley, Luciene Bonfim, Kelly, Edvane, Valéria, Ângela, Luzinete, Cláudia, Ivonete, Soraia – professores que me acompanharam no ensino fundamental dois e ensino médio, e com quem aprendi coisas que não couberam nos cadernos. Aos que omiti, peço desculpas, por falhas evidentes da memória. De todo modo, não poderia ter ido tão longe sem vocês. Vocês me deram o saber. Dou-lhes, em retribuição a esperança. Hoje também me uno às fileiras das educadoras e educadores desse Brasil.

Agradeço também aos meus amigos do Artur Alvim, em especial ao “bonde”: Fernanda, Thiego, Karina e Rafael, que sempre acreditaram que todos nós éramos capazes. Estimulamo-nos mutuamente, nos apoiamos, mesmo dez anos depois de tudo o que vivemos juntos. Sempre desejando o desenvolvimento feliz de cada um, com sinceridade própria aos irmãos.

Para a realização deste trabalho, foi fundamental a contribuição e o entusiasmo de meu orientador, Professor Ricardo Pirola, que me ofereceu amparo, ao mesmo tempo que liberdade e confiança; agradeço aos comentários generosos dos professores Rodrigo Camargo de Godói, e Ana Flávia Cernic Ramos, que foram leitores rigorosos e necessários, como as ripas que erguem os brotos e as plantas frágeis de um terreiro. Na pessoa de Leandro, estendo meus agradecimentos aos funcionários do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas que, dos bastidores, tornam toda a produção de conhecimento possível. Também reconheço o papel fundamental, para a consecução desta pesquisa, do amparo financeiro oferecido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento

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dividir os momentos de redação da dissertação com as longas horas da jornada de trabalho de professor. Além disso, não poderia deixar de reconhecer o pronto serviço oferecido pelos funcionários da Biblioteca Nacional, que disponibilizaram seu acervo para consulta e reprodução no presente trabalho. Em nome de Carolina Barbosa, estendo meus agradecimentos a todos os funcionários da referida instituição, pelo gentil apoio, sugestões e recomendações, e pela licença de reprodução das imagens que conduzem a dissertação deste trabalho; não seria possível falar de tantas imagens se o leitor ou a leitora não pudesse apreciá-las.

Retorno e me abrigo em meus antepassados. Naqueles que vieram antes de mim, e tornaram possíveis as condições para que os “condenados da terra” pudessem pisar nos terrenos das universidades. Agradeço, portanto, aos homens e mulheres que fugiram das estatísticas; aos militantes, tanto aqueles que lutaram nos escritórios da política, como aqueles que lutaram pela nossa sobrevivência. As políticas públicas de inclusão social e racial foram definitivamente divisores de água em minhas vidas, e de tantas outras meninas e meninos das periferias brasileiras. Agradeço aos queridos colegas Lívia Tiede, Thamires Sarti, Felipe Bastos, Bruno Lima, Guido Santos, William Soares, Sebastião Castro e Laila Correa, pelas discussões sérias, entremeadas de notas sobre astrologia. Agradeço também ao querido Matheus, à Ana Paula, à Luana, ao Ciço e à Márcia pela amizade em tempos tão difíceis.

Não menos importante foi, e continua sendo, o amparo das mulheres que me criaram, Laura e Wania; há muito de vocês neste trabalho. De minha vó, não poderia deixar de dizer que seu interesse sempre vivo pelo passado, e pelo registro, me fascinaram. E de minha mãe, seu amor à leitura cotidiana, sua generosidade e profunda doação. Agradeço também ao companheirismo de Ana e Adriano, meus queridos. Seguimos juntos!

Ao querido Júlio Valle, nos encontramos aqui, nestas páginas, outra vez. Meu sentimento é repartido, um pedaço é pra você.

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(Carolina Álvarez, 7 anos)1

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A presente pesquisa objetiva investigar a produção de quadrinhos do cartunista Luís Gomes Loureiro (1889-1981) durante sua atuação no empreendimento O Tico-Tico, periódico semanal dedicado às crianças brasileiras, publicado no início do século XX. Loureiro foi o principal responsável pela adaptação e construção da famosa historieta em quadrinhos “As Aventuras de Chiquinho”, publicadas semanalmente na gazeta infantil mais popular da Primeira República. Notadamente engajada na construção de ações pedagógicas que pudessem “instruir e deliciar as crianças”, a equipe de editores, desenhistas e redatores imprimia no conteúdo da gazeta suas aspirações em torno do futuro das crianças brasileiras, compreendidas como os “homens do amanhã”. A infância, valorizada como período fundamental da vida para a construção de uma sociedade forte e sadia, tornava-se alvo de políticas de controle social que buscavam delimitar o modo de vida das crianças brasileiras. As tensões vividas no período, e que motivaram a ação destes artistas, refletem os temas e problemas circunscritos ao marco temporal cunhado pela historiografia como pós-abolição. Nesse sentido, distintos projetos de infâncias disputavam as páginas da imprensa para crianças, que se constituíra, naquele momento, como um instrumento de lazer e pedagógico, e que buscava apresentar soluções para os problemas relativos aos conflitos e tensões raciais e de classe. A imprensa para crianças surgia, nas primeiras décadas do século XX, como um campo de disputas onde literatos, artistas e intelectuais organizavam seus ativismos em torno de projetos pedagógicos para as crianças brasileiras. A partir do estudo da produção de Luís Gomes Loureiro, pretende-se compreender o modo como o artista se posicionava diante dos debates entre quadrinistas, literatos e artistas em torno das expectativas de futuro para as crianças brasileiras, sobretudo no que diz respeito às relações raciais, ao trabalho e à instrução, e suas interlocuções com o público infantil, uma vez que a imprensa ilustrada para crianças se configurava, no período, como um meio de comunicação que dispensava a mediação de educadores ou mestres.

Palavras-chave: Infância; História da Imprensa; Quadrinhos; Estereótipos raciais; História do Brasil; Século XX; Pós-Abolição.

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The present research aims to investigate the comic production of the cartoonist Luís Gomes Loureiro (1889-1981), during the period in which he worked at O Tico-Tico, a weekly magazine dedicated to Brazilian children, published in the early 20th century. Loureiro was responsible for the adaptation and construction of the famous comic strip "The Adventures of Chiquinho", published weekly in the most popular children's gazette of the First Republic. Notably engaged in the construction of pedagogical actions that could "instruct and delight children," the team of editors, drafters, and copywriters printed their aspirations about the future of Brazilian children, understood as the "men of tomorrow". Childhood, valued as an elementary period of life for the construction of a strong and healthy society, became the target of social control policies which sought to delimit and control children’s way of living. The tensions experienced during the period, which motivated the action of these artists, reflect the themes and problems circumscribed to the temporal framework coined by historiography as "Post-abolition". In this sense, different childhood projects disputed the pages of the children’s press, which at the time was constituted as an instrument of leisure and pedagogy, and sought to present solutions to problems related to class and racial conflicts and tensions. The children's press appeared in the first decades of the twentieth century as a field of disputes where writers, artists and intellectuals organized their activism around pedagogical projects for Brazilian children. From the study of the production of Luís Gomes Loureiro, we intend to understand how the artist was positioned in front of the debates among comic artists, writers and artists around the expectations of future for Brazilian children, especially as regards race relations, work and education, and their contacts with children's audiences, since the illustrated children's press consisted, in the period, as a means of communication that dispensed the mediation of educators or masters.

Keywords: Childhood; History of Press; Comics; History of Brazil; Ethnic Stereotypes; 20th Century; Post-Abolition.

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INTRODUÇÃO………. 12

CAPÍTULO I: EXTREMOS PALADINOS DA CLASSE INFANTIL ……….25 I.1. Um artista dos subúrbios à Rua do Ouvidor………. 29

I.2. Não queremos nem a atenção nem o aplauso de gente grande………. 41 I.3. Artistas e intelectuais na imprensa para crianças………. 54

CAPÍTULO II: BUSTER BROWN NA AVENIDA CENTRAL………. 67

II.1. O popular Chiquinho………. 74

II.2. Suzettes, Little Nemos e Buster Browns………. 83

II.3. Inovadores ou imitadores?………. 94

II.4. Chiquinho e a cor local………. 116

CAPÍTULO III: O TRABALHO É O TESOURO QUE NUNCA FALTA………. 132

III.1. Desenhos para a instrução………. 147 III.2. Petizes de todas as cores………. 159 III.3. Homens úteis à pátria………. 168

CAPÍTULO IV: CRIA NACIONAL AUTÊNTICA………. 190

IV.1. Sambos made in Brazil………. 197 IV.2. Os tipos d’O Tico-Tico………. 217

IV.3. Uma lição de civismo, ou sobre como ser gente………. 238

CONSIDERAÇÕES FINAIS………. 252

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Loureiro, numa caricatura de Max Yantok. O Malho, 26/10/1933, p. 25. Autografia.

Segundo legenda: “Jantar no Restaurant Assírio (Theatro Municipal, Rio de Janeiro), oferecido ao caricaturista Storni, em regozijo pelo seu regresso do Sul. Sentados, a contar da esquerda: Alfredo Storni, comandante Severo Grivicich e caricaturistas Loureiro, Yantok, Leônidas e Aryosto.” O Malho, ed. 600, 14/03/1914, p. 45. Fotogravura, s/c

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INTRODUÇÃO

Talvez seja razoável afirmar que as histórias em quadrinhos têm sido objeto do fascínio de muitíssimas crianças brasileiras, meninas e meninos, ricas e pobres, brancas e negras, desde os primeiros anos do século XX. As narrativas visuais, tão logo circularam nas páginas dos impressos, receberam acolhida calorosa das mãos e dos olhos infantis, que apreciavam as histórias fantásticas e bem humoradas representadas nos quadrinhos, realizados por verdadeiros artistas. O fenômeno dos quadrinhos movimentou grandemente a indústria gráfica no Brasil e caracterizou-se como um nicho da cultura dos impressos que, embora assegurassem o sucesso financeiro de grupos editoriais, sempre despertou pouco interesse da intelectualidade brasileira. Os quadrinhos foram historicamente relegados às periferias do campo da pesquisa em ciências humanas, assim como no campo da estética e das artes. O que estes artistas faziam era compreendido ora como ofício de pouco prestígio social, ora como obra destituída de qualidades estéticas, ora como produção artística despolitizada e desconectada dos grandes problemas que engajavam os intelectuais e ativistas de seu tempo.

Para um bom leitor de quadrinhos, como eu fui quando era criança e jovem, eles apresentam uma eloquência significativa e um potencial de tematizar questões sociais e políticas. E tive certeza destas hipóteses quando li, pela primeira vez, a obra maravilhosa de Marjane Satrapi, Persépolis (2000), e de Art Spiegelman, Maus (1991), que conheci em uma de minhas visitas constantes à Gibiteca Henfil, talvez um dos maiores acervos públicos de quadrinhos acessíveis ao público, disponíveis no Centro Cultural São Paulo, no coração da capital paulista. Nestes quadrinhos não havia nem um pouco de alienação política. Pelo contrário, injustiças sociais, relações de opressão e violência eram debatidas, por meio de uma narrativa envolvente e dinâmica, como são os quadrinhos. Não obstante, estes quadrinhos sempre foram compreendidos pela crítica como distintos da maioria da produção gráfica, justamente porque eram abertamente engajados e contrastavam com a massa de entretenimento barato em que consistiam a maior parte da produção de quadrinhos mundo afora.

Nos últimos anos este cenário tem apresentado mudanças significativas. Pesquisas sérias e comprometidas, desenvolvidas por historiadores e entusiastas dos quadrinhos, vêm problematizando concepções sobre a arte sequencial e seus produtores. Investigações sobre a obra destes artistas, e o envolvimento destes em debates de seu tempo, demonstram que os artistas

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produziam seus enredos ilustrados.1

Esse movimento de inserção da cultura visual e da produção de imagens como temas e problemas da pesquisa histórica é relativamente recente. Em se excetuando as obras de arte, que constituíram objeto da pesquisa histórica desde a modernidade, os impressos cotidianos, os livros ilustrados, a imprensa ilustrada e os quadrinhos são objetos de pesquisa que ganharam maior visibilidade na historiografia, sobretudo brasileira, apenas nos últimos anos.

De certo modo o emprego da imagem reproduzida e da ilustração como fonte histórica constitui uma demanda contemporânea de uma sociedade cada vez mais estruturada a partir de relações humanas mediadas pelas imagens. Prenunciada por Walter Benjamin,2 no início do século XX como uma reviravolta das relações humanas, e nas relações humanas em relação à arte, os processos técnicos de reprodução da imagem, aprimorados qualitativamente com a gravura e com a fotografia, conduziram a relações ainda mais estreitas entre as imagens e o cotidiano. Dali em diante, com a redução dos custos de produção e reprodução das imagens, elas se espalharam rapidamente pela vida social. Hoje, em tempos de mídias digitais, as imagens ocupam centralidade nas relações sociais, empregadas como instrumentos de ação política e de intervenção social. Não é por acaso que as sociedades ocidentais têm constituído contemporaneamente tantos acervos visuais.

Em minhas incursões aos arquivos, sobretudo os arquivos digitais, que também são uma novidade no ofício de historiador, me deparei com uma grande quantidade e diversidade de imagens. Sobretudo na imprensa dos últimos dois séculos, as imagens ocupavam espaços privilegiados, à medida que os processos técnicos de reprodução aprimoravam-se. A publicidade na imprensa do século XIX passa a ocupar meias páginas, páginas inteiras e até mesmo páginas duplas. Para a produção extensiva de tantas e tão diversas imagens, as companhias editoras contratavam artistas que construíram experiências sólidas no campo das artes gráficas. O potencial das imagens na imprensa é logo reconhecido, e surgem por todo o mundo as folhas ilustradas que

1 Para citar algumas obras, que foram contribuições importantíssimas para a realização deste trabalho, menciono as pesquisas de Marcelo Balaban, Poeta do Lápis: Sátira e Política na Trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial, Edição: 1. Campinas, SP, Brasil: Editora da Unicamp, 2009; idem, Estilo Moderno: Humor, literatura e publicidade em Bastos Tigre, [s.l.]: Fundação de Desenvolvimento da Unicamp - Funcamp (UNICAMP), 2017; Gilberto Maringoni, Angelo Agostini: A Imprensa Ilustrada Da Corte A Capital Federal. 1864-1910, São Paulo: Devir, 2010; e Jill Lepore, The secret history of wonder woman, Melbourne: Scribe, 2015.

2 BENJAMIN, Walter; SELIGMANN-SILVA, Márcio; SILVA, Gabriel Valadão, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Porto Alegre: L & PM, 2013.

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prometiam democratizar o acesso aos restritivos códigos do mundo escrito, transformando-os em imagens. Acreditava-se, portanto, que as imagens poderiam ser o veículo da democratização da informação. Concebidas como as iluminuras medievais, as imagens seriam o instrumento do conhecimento ao qual teriam acesso os pobres e os analfabetos.

De fato, ao mesmo tempo em que a imprensa tomava os moldes de um empreendimento de massas, com grande circulação, os modos de reprodução técnica de imagens e textos concorriam para o aumento e vulgarização dos papeis entre outras camadas da sociedade brasileira, sobretudo urbana. A partir da crença daquilo que Emannoel Alloa definiu como o potencial transitivo das imagens, isto é, na suposição de que as imagens consistiam como pretendentes, simulacros de objetos aos quais elas se referem, em sua ausência,3 editores, artistas e redatores empregaram as imagens na imprensa como representações e substitutos de objetos, pessoas e ideias concebidas para além de suas páginas.

Nesse oceano de imagens que pululavam das páginas da imprensa dos séculos XIX e XX encontrei uma revista em cuja capa se liam as indicações: jornal das crianças. Compreendidas no seu potencial pedagógico, isto é, como instrumento de instrução das crianças, as imagens e, mais precisamente, a arte sequencial, eram empregadas como instrumento de “instrução amena” das crianças, como diziam. Tacitamente, muitas destas imagens expressavam uma tensão racial e social, muitas vezes negada e silenciada em outras fontes, como muitos historiadores têm discutido em suas pesquisas nos últimos trinta anos4. Interessava-me, portanto, resgatar a eloquência destas imagens que emergiam em meio aos silêncios da cor que se sucederam à abolição da escravidão no Brasil.

A aparente ingenuidade dos jogos infantis deve ser subtraída das fontes que lidam com representações sobre e para a infância. Pesquisadores do campo da História social da infância e da juventude defendem que a ideia de “infância” foi, e vem sendo forjada em meio a disputas; isto é, as representações sobre a infância, assim como os objetos feitos para a infância (livros infantis, imprensa para crianças, brinquedos etc.) são responsáveis por constituir o próprio objeto ao qual eles se referem, justamente porque a infância não constitui etapa natural da vida social, mas

trata-3 ALLOA, Emmanuel, “Introdução. Entre a transparência e a opacidade – o que a imagem dá a pensar” in Idem(org.), Pensar a Imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015, pp. 7-22.

4 Hebe Mattos discutiu amplamente em seu estudo o silenciamento das tensões raciais em registros civis em finais do século XIX e início do século XX em Das cores do silêncio - os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil, século XIX, 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

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de desigualdade pautada em diferenças etárias, ou seja, a criança está sob a responsabilidade de um adulto, que ajuíza sobre aquilo que é competência da criança. Esta relação autoridade/submissão, portanto, evidencia que as concepções adultas sobre as crianças são impingidas verticalmente, a partir das expectativas do mundo adulto sobre o mundo infantil. No início do século XX, o que observamos correntemente é o modo como os adultos, sobretudo das classes dirigentes e da intelectualidade, concebiam a criança como um devir, um vir a ser para o país que buscavam construir. Cabia aos adultos, portanto, deliberar sobre o futuro das crianças, que seriam os “homens do amanhã”.

Tornou-se corrente, neste período, a associação da criança à imagem do futuro republicano. As expectativas otimistas em relação ao futuro da nação se associavam à premente necessidade de se atentar às crianças brasileiras, que seriam as responsáveis pela realização da pátria. Os projetos de “modernização” da sociedade brasileira, sonhados e debatidos pela classe política e pelos intelectuais se mostraram estreitamente associada a uma crença no potencial transformador da educação – sobretudo a educação escolar. Crença, aliás, que muitas vezes não excedeu os limites do verbalismo. De todo modo, dizia-se que a “instrução” da infância seria instrumento privilegiado para a intervenção social, e não por acaso muitos pedagogos, médicos e sanitaristas atribuíram a si próprios papel de destaque neste processo. Mesmo diante do grande distanciamento entre os grupos intelectuais e os espaços institucionais da política na Primeira República, muitos intelectuais envolveram-se na publicação de manuais escolares e materiais paradidáticos, e foram defensores ferrenhos da educação pública e gratuita como dever do Estado. Nesse sentido, a imprensa era compreendida como um meio de instruir a nação, e a cultura e o conhecimento publicados nas páginas de periódicos seriam os instrumentos necessários para a realização desta difícil tarefa.

É no começo do século XX que pude observar uma proliferação de publicações destinadas ao público infantil, com objetivos marcadamente pedagógicos. Constitui-se uma definição de

5 Ver, por exemplo, RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (Orgs.), A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil, São Paulo: Cortez Editora, 2009; NUNES, Eduardo Silveira Netto, A infância como portadora do futuro: América Latina, 1916-1948, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2011; BRITES, Olga, Infância, trabalho e educação: a Revista Sesinho (1947/1960), Bragança Paulista: EDUSF, 2004; FREITAS, Marcos Cezar de (Org.), História social da infância no Brasil, 2. ed. São Paulo: Cortez, 1999; HANSEN, Patrícia dos Santos, Brasil um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na Primeira República, Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São Paulo, 2007; SCHREINER, Davi Félix; PEREIRA, Ivonete; AREND, Silvia Maria Fávero (Orgs.), Infâncias brasileiras: experiências e discursos, Cascavel: Ed. UNIOESTE, 2009.

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infância como uma classe etária de contornos definidos e que, portanto, demandaria receber uma atenção específica. Desenvolvem-se métodos de alfabetização cada vez mais especializados e a escola é concebida como uma instituição com regras e procedimentos definidos e funções específicas. Nesse sentido, a infância passa a ser associada imediatamente à escolarização. Acreditava-se que a infância seria o período ideal para desenvolver certas competências naquele sujeito que viria a ser adulto no futuro.

As demandas prementes e cada vez mais comuns desde os anos finais do século XIX, que se referem à defesa da instrução elementar pública e gratuita eram concebidas justamente em um momento de crises e tensões estreitamente vinculados aos anos finais da escravidão no Brasil. Os temas associados à infância e à instrução aparecem com maior frequência na documentação a partir dos anos 1870, na condição de objeto da investigação e da ação política de intelectuais e estadistas, como também dos grupos abolicionistas e das associações negras do início da república.6 Muito se tem discutido sobre como os debates sobre instrução no final do império e no período das lutas pela abolição se imbricam aos debates que pretendiam definir em quais termos seria compreendida a cidadania no Brasil. Evidentemente, a Lei de 28 de Setembro de 1871, ou Lei do Ventre Livre, ao dispor sobre o exercício de uma emancipação gradual no Brasil, expressava a centralidade que a criança livre viria a ocupar na vida social. Afinal, qual seria o destino de um grande número de crianças que, portadoras de experiências de cativeiro herdadas das relações de seus pais com seus senhores, teriam diante de uma sociedade na qual exerceriam as atribuições de cidadãos? Entre os senhores de escravos, e entre os grupos abolicionistas era premente refletir sobre o futuro destas crianças, seja para assegurar a manutenção da ordem social, seja para garantir o acesso à cidadania.

A instrução primária, na condição de requisito básico para o exercício da cidadania, estava associada às preocupações de diversos grupos em instrumentalizar os futuros cidadãos brasileiros na cultura do trabalho assalariado. O acesso à escola pública, portanto, era de extremo interesse de setores como republicanos, abolicionistas, trabalhadores e movimentos sociais negros. Era interesse comum, portanto, inserir as crianças brasileiras, sobretudo as mais pobres, em uma cultura letrada. Revistas infantis como O Tico-Tico atribuíam a si a tarefa de educar as crianças brasileiras ao regime de trabalho assalariado, segundo concepções pedagógicas que preconizavam o

6 Ver SILVA, Noemi Santos da, O “Batismo na instrução”: projetos e práticas de instrução formal de escravos, libertos e ingênuos no Paraná Provincial, Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.

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de trabalho. Os “paladinos da classe infantil”, como assim se consideravam os artistas e intelectuais da revista O Tico-Tico, concebiam a si mesmos como protagonistas deste processo, uma vez que o Estado falhava na concretização de um modelo de instrução pública, gratuita e universal.

Luís Loureiro, autor dos quadrinhos aos quais este estudo toma como fonte privilegiada para a análise, compôs esta fileira de artistas gráficos que se engajou nas lutas pela defesa de seus ideais de infância na imprensa para crianças. Brasileiro, filho de portugueses, residente na região do Rio de Janeiro popularmente conhecida como Pequena África, e nascido no primeiro ano do regime republicano, Loureiro era um homem pobre que conquistou grande expressão e popularidade pelo trabalho gráfico que desenvolveu em O Tico-Tico e para a empresa O Malho. Seu trabalho mais querido entre os leitores da revista das crianças foi, definitivamente, as “Aventuras de Chiquinho”7. O garotinho louro e seus companheiros foram tema de propagandas na imprensa, troféus de futebol, blocos carnavalescos e, ainda mais surpreendente, foram tema do primeiro desenho animado ao qual se reportam os registros da Cinemateca Brasileira.8

O tão famoso Chiquinho, contudo, era acompanhado cotidianamente por uma personagem que Loureiro, e seus contemporâneos, insistiam em categorizar como “genuinamente nacional”. Tratava-se do moleque Benjamin, criado negro de sua família, e comparsa nas suas aventuras e desventuras. Benjamin, aliás, era muito semelhante aos outros personagens negros que apareciam constantemente na revista, sob a forma de criadinhos, escravizados e selvagens africanos. Num país em que houve esforço diligente das classes intelectuais e políticas para escamotear os efeitos da escravidão e a onipresença da população negra, instigava-me compreender o motivo pelo qual as diferenças raciais foram objeto constante dos lápis e pinceis dos artistas gráficos da imprensa para crianças. Interessava-me compreender o modo como Loureiro e outros artistas da imprensa para crianças, deram forma às diferenças raciais em suas ilustrações, e de que maneira estas diferenças expressavam expectativas acerca das desigualdades raciais vividas no Brasil pós-abolição.

7 Por vezes, os enredos são intitulados como “Desventuras de Chiquinho”. Não há um padrão na seleção dos títulos; o fato de ser “Desventuras” ou “Aventuras”, contudo, não implica em mudanças significativas em cada história. As “Aventuras...”, contudo, são mais frequentes.

8 Ver CINEMATECA BRASILEIRA, Base de dados. Filmografia, Chiquinho e Jagunço. Disponível em: <http://bases.cinemateca.gov.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/?IsisScript=iah/

iah.xis&base=FILMOGRAFIA&lang=P&nextAction=search&exprSearch=ID=001596&format=detailed.pft> Acesso em: 10 jan. 2019.

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Uma das maiores dificuldades em analisar este repertório vasto de imagens era o fato de que muitas das narrativas ilustradas não possuíam autoria declarada. A situação ficava ainda mais complexa quando comparei algumas das histórias mais famosas da revista O Tico-Tico com revistas estrangeiras, a partir da sugestão de historiadores que já haviam trabalhado com este acervo, argumentando que enredos inteiros teriam sido decalcados de páginas europeias. Confrontar as produções brasileiras com as versões estrangeiras evidenciava o modo como se constituía um trânsito intenso e confuso entre imagens autorais, produzidas por artistas brasileiros, e uma porção imensa de decalques, feitos por artistas brasileiros a partir de referenciais estrangeiros, e foto reproduções de imagens estrangeiras, nas páginas de O Tico-Tico.

Sem assinaturas, parecia quase impossível descobrir as origens daquelas imagens. Por meio de uma observação dos padrões estilísticos empregados, reconstituí históricos de circulação de imagens estrangeiras em meio às páginas nacionais de O Tico-Tico. Muitas gravuras reproduzidas nas páginas da revista para crianças haviam sido copiadas integralmente a partir de periódicos estrangeiros dedicados às crianças. Em meio a uma nebulosa relação acerca dos direitos autorais e de uso de imagem que imperava nos primeiros anos do século XX, observa-se a constituição de um circuito de imagens e representações que circulavam pelo Atlântico, sobretudo nos países que possuíam grandes contingentes de população negra livre, e países europeus que possuíam colônias no continente africano.

Nos quadrinhos de Loureiro, contudo, era curioso observar o modo como se constituíam relações tensas e ambíguas entre hierarquização e relativização das diferenças. Observei nas narrativas sequenciais de Loureiro uma tendência a minimizar as diferenças raciais de Benjamin e Chiquinho, que operavam pela valorização do caráter de Benjamin, a despeito de sua origem racial. Vê-se, portanto, a constituição de uma lógica muito particular de interpretação das diferenças raciais que está em jogo nos quadrinhos de Loureiro, que constituem uma chave de interpretação para as relações raciais no período que procede à abolição da escravidão.

No capítulo I, pretende-se apresentar um quadro acerca da pouco conhecida vida de Luís Gomes Loureiro, e de sua atuação como artista gráfico na gazeta infantil O Tico-Tico. Nos últimos vinte anos, algumas pesquisas têm se debruçado sobre a imprensa para crianças, empregando-a como fonte e objeto de análise. A revista O Tico-Tico, mais popular e longeva entre todas estas, atraiu o interesse de muitos historiadores, interessados em compreender seus projetos pedagógicos e as redes de atuação política nas quais se inseriam seus intelectuais. Pouco se sabe, no entanto,

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procedimentos que envolviam a produção de narrativas ilustradas e sobre as ideias, conflitos e disputas entre estes artistas nas páginas da imprensa para crianças.

Embora Loureiro não tenha deixado fortuna em registros escritos, pretendemos investigar sua trajetória como artista na revista infantil, por meio de uma compilação de informações presentes em textos de edições comemorativas do jornal (como o Cinquentenário do Tico-Tico), colunas de folhas de grande circulação que mencionam sua atuação, dados coletados por Hermann Lima e registrados em “História da Caricatura no Brasil” (sujeito que, aliás, fez parte dos espaços de sociabilidade nos quais circulavam artistas da gazeta infantil), e de uma entrevista do próprio Loureiro concedida ao MIS – Museu da Imagem e do Som, em 1974, quatorze anos antes de sua morte.

Loureiro foi celebrado, nestes registros, como sujeito singular para que a gazeta infantil tivesse tamanha adesão de seu público leitor. Nutria um interesse vivo pelos potenciais pedagógicos das artes gráficas em prol da educação brasileira, sem a qual, pensavam tantos intelectuais da época, seria impossível elevar o Brasil à condição de nação em progresso. Em seus discursos e práticas, Loureiro foi um dos defensores da necessidade de “abrasileirar” a literatura infantil. Nesse sentido, compreendia seu ofício como instrumento de transformação social, na medida em que engajava seu fazer nas principais discussões de seu tempo.

Não se pode negar que, pela função que exercia na revista como artista gráfico, Loureiro despertou pouco interesse, seja na crítica da época, seja nos gabinetes de pesquisa acadêmica dos últimos anos. Atividade ainda associada aos fazeres “menores”, porque manuais, Loureiro não deixou admiradores, tampouco extensa produção biográfica. Justamente por isso, para compreender melhor a sua posição enquanto artista gráfico, e como agente histórico, as lacunas de notas biográficas foram preenchidas com comparações entre Loureiro e seus colegas da imprensa, de modo que pudesse enriquecer nossa compreensão acerca das experiências vividas pelo artista.

Neste capítulo, ainda, objetiva-se compreender quais discussões estavam em curso entre intelectualidade e artistas, que culminaram na idealização de uma gazeta exclusivamente dedicada às crianças. Para isso, será necessário compreender os modos como a imprensa para crianças condensa uma série de experiências precedentes na imprensa de massa, observáveis pela constituições de grandes empresas jornalísticas, como a Empresa O Malho, matriz donde se originou O Tico-Tico. Além disso, é importante pontuar brevemente o modo como se constituiu a

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imprensa para crianças no Brasil no final do século XIX, identificando outras gazetas infantis e publicações para crianças que lograram objetivos semelhantes e que foram, provavelmente, referenciais para a equipe editorial do Tico-Tico. Não se pode deixar de mencionar a importância do sucesso de publicações de natureza semelhante que surpreendiam pela sua ampla circulação na Europa e que certamente interessaram aos empresários brasileiros.

O contato e interlocução empreendido pelos editores brasileiros e as revistas estrangeiras também é tematizado neste capítulo. Discutiremos com a produção historiográfica acerca da revista O Tico-Tico, problematizando as teses da alienação e do internacionalismo, sucedâneos das práticas de alusão e referência às produções estrangeiras, que, segundo essa perspectiva, denunciavam o desinteresse destes artistas pelas questões e problemas locais.

No capítulo II, pretende-se compreender o modo como Luís Gomes Loureiro e tantos outros artistas que ingressaram nos primeiros anos na revista O Tico-Tico trabalhavam com as autografias. Seus procedimentos, seus referenciais e suas redes de interlocução com intelectuais da época serão explorados, na tentativa de reconstituir as experiências que nutriam as páginas da revista infantil. Loureiro, assim como Leônidas Freire, Alfredo Storni e Renato de Castro, empregaram-se inicialmente na revista executando decalques de desenhos estrangeiros que imprimiam as páginas do jornal das crianças.

As primeiras década de publicação do semanário infantil, objetos da presente pesquisa, foram marcadamente um momento em que O Tico-Tico olhava para o mundo da imprensa ilustrada para crianças. Justamente por isso é um período em que grande parte da sua produção era decalcada de materiais estrangeiros, numa rede intricada e complexa de reproduções que seguiam uma lógica muito ambígua de direitos autorais. Contrapondo a hipótese proposta por alguns estudiosos, pretende-se investigar traços de autoria na produção destes sujeitos que, supostamente, estariam meramente copiando narrativas estrangeiras para o público leitor. Para isso, investigaremos quais demandas orientavam a seleção das narrativas decalcadas e os processos de tradução (termo aqui concebido numa acepção mais ampla, que considera a atuação do tradutor como parte fundamental do processo de adequação de uma linguagem a outra) que os decalcadores empreendiam no ato de produzir autografias. Loureiro pode ser compreendido como um caso muito interessante, no qual percebemos o modo como ele propõe situar seus personagens em dinâmicas locais, seja na adequação das cores, dos traços, ou até mesmo das narrativas, que ganham novas configurações completamente diferentes das anteriores.

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ofícios de menor prestígio no rol de atividades exercidas dentro das redações e oficinas, de modo que era inevitável carregar a pecha do anonimato. Por consequência, a tarefa de atribuir autoria às produções dos decalcadores se torna muito dificultosa, embora não impeça conjecturar autorias a partir da observação do emprego de traços autorais por parte dos decalcadores. O importante é poder observar o modo de funcionamento destas atividades em meio ao cotidiano da imprensa ilustrada, para observar como estes trabalhadores e trabalhadoras imprimiram nas traduções atributos que lhes interessavam.

Caso exemplar e bastante instigante desta produção é o modo como Buster Brown, publicado por Richard Felton Outcault em New York Herald e, posteriormente, em New York World se transfiguram em Chiquinho e Jagunço nas páginas de O Tico-Tico. Passando por muitas mãos que lhe dariam os atributos definidores dos personagens mais queridos da revista, Chiquinho, Jagunço, Papai, Mamãe, as criadas e o jardineiro foram criação de muitas mãos anônimas, dentre as quais, seguramente, as de Loureiro. Alimentando-se de um repertório construído a quilômetros de distância, nos Estados Unidos, estes e estas artistas adaptaram uma história com contornos burgueses a uma realidade local, que capturou os afetos da comunidade de pequeninos leitores e leitoras brasileiros.

Em seguida, pretende-se compreender o processo de tradução de narrativas estrangeiras para o conteúdo da revista semanal. Será necessário observar o modo como os decalcadores procediam à tradução de historietas publicadas em páginas estrangeiras, as quais os trabalhadores das artes gráficas recorriam para munir suas penas de conteúdos inéditos para os leitores. Para isso, análises comparativas entre os decalques publicados na revista e produções estrangeiras, as quais os decalques fazem referência, podem ajudar a compreender a que materiais estes sujeitos tinham acesso, quais critérios de seleção operavam, e como o processo de tradução transformava o objeto decalcado em algo que, embora guardasse nexos com seu original, produzia significados inteiramente novos, que estavam em diálogo com necessidades locais.

Por fim, objetiva-se debruçar-se mais detidamente acerca dos diálogos possíveis entre os conteúdos propostos pelos artistas da revista e debates acerca de projetos de nação e sociedade que circulavam na imprensa. Nesse sentido, propomos selecionar alguns eventos que mobilizaram a imprensa no período, e que foram figurados pelos artistas e intelectuais da revista. Consonantes ou não, estes trabalhadores da imprensa, como Loureiro, recorriam a moldes de histórias

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estrangeiras ao mesmo tempo em que se posicionaram em casos como as novidades da aviação, vícios da infância abandonada e trabalho infantil. Nesse sentido, pretendemos observar concretamente o modo como esses debates estavam em curso a partir das interlocuções das histórias de Chiquinho e Jagunço com dinâmicas locais. Confusões em que se meteram com a prefeitura de Pereira Passos e as manifestações populares são alguns casos instigantes que contribuem para refletir o quão incrustadas na vida cotidiana estas narrativas se apresentavam, além de refletir os propósitos pedagógicos que orientavam a seleção das temáticas.

No terceiro capítulo, vamos investigar os posicionamentos de Loureiro em relação às questões relativas ao trabalho, adulto e infantil. Nas historietas em quadrinhos e nas colunas da gazeta infantil, “trabalho” se constituía como uma das principais tônicas morais. Recorrentemente, as narrativas exaltavam a importância do gosto pelo trabalho e as crianças que trabalhavam, e preveniam as crianças dos vícios da preguiça, da indolência e da falta de estudo. Uma das percepções obtidas por meio da análise das fontes é a variedade de expectativas que a equipe editorial defendia para as suas crianças leitoras e o modo como estas eram orientadas segundo critérios de gênero, raça e classe.

Muitas histórias d’O Tico-Tico expressavam expectativas relativas ao trabalho na vida adulta e interessavam-lhes incutir nas crianças leitoras, sobretudo aquelas que poderiam vir acesso à instrução superior, atributos morais que valorizassem o trabalho manual, numa severa crítica à tradição brasileira do bacharelismo, herdada do período escravocrata. Curiosamente, tantas outras histórias valorizavam o trabalho infantil, e os atributos morais das crianças que já exerciam atividades laborais. Complementares ou antagônicas, estas expectativas exprimiam a posição de cada um destes artistas e intelectuais, que estavam engajados na militância de educar os pequenos brasileiros e brasileiras.

Observa-se que, tacitamente, as narrativas nas páginas da revista definiam os interlocutores com os quais queriam dialogar com mais veemência. A valorização do trabalho na infância operava muito mais no sentido de convencer as crianças pobres e negras, da importância de sua realização; por outro lado, pensar sobre as carreiras a serem escolhidas na vida adulta cabia melhor às crianças com melhores condições socioeconômicas e segundo critérios de gênero. A presença constante de “moleques”, criados negros e de pobres meninos e meninas brancas trabalhadoras construía no imaginário das crianças lugares que poderiam, e até mesmo deveriam, ser ocupados pelas crianças segundo sua condição de classe, raça e gênero.

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quais demandavam o controle social dos adultos. Os vícios da vagabundagem, do roubo, da bebida e do cigarro eram condenados nas crianças pobres, principalmente negras; e os vícios da indolência, da prodigalidade, da preguiça e da avareza eram condenados nas crianças mais abastadas. O controle social das infâncias, portanto, impregnava-se de uma conduta moral que preparava os pequenos e pequenas ao trabalho e à austeridade, embora seus alvos preferenciais e os modos de atingir tais objetivos pudessem variar segundo os interlocutores.

Assim, pretendemos, em primeiro lugar, ampliar a velha percepção de que a comunidade leitora do Tico-Tico se restringia a uma classe média letrada. A variedade de discursos e o diálogo da revista com leitores de outras camadas sociais indica uma pluralidade de interlocutores com os quais as narrativas construíam relações. Pretende-se, ainda, investigar o modo como os artistas e intelectuais da revista expressavam estas expectativas acerca dos ideais de “trabalho” e dos “trabalhadores”, e as motivações que os levavam a considerar a infância como classe etária indispensável para a consecução destas.

Outro objetivo deste capítulo é poder analisar comparativamente as representações acerca do trabalho infantil neste período presentes na página da revista. Observações minuciosas das fontes apontam que os discursos acerca de trabalho infantil branco numericamente desaparecem na década de 1910, ao passo que representações de crianças negras trabalhando continuam a povoar as páginas d’O Tico-Tico. Investigar as transformações que orientam as novas práticas é parte fundamental deste capítulo.

Por fim, no capítulo IV, abordaremos o processo de constituição da personagem Benjamin e as motivações possíveis de Loureiro para a inserção do “moleque” nas histórias de O Tico-Tico. O ano de 1914 significou, para as oficinas tipográficas e para a redação d’O Tico-Tico, período de adaptações técnicas e econômicas, consequentes da crise trazida pela Grande Guerra. A baixa disponibilidade de materiais gráficos e a pauperização da vida levaram a diretoria da revista a um processo de contenção de gastos com mão de obra e materiais. As equipes de artistas reduzem significativamente neste período e proporcionalmente a quantidade de trabalho de cada artista é significativamente aumentada. Justamente neste período, Loureiro conquista maior confiança dos editores, sendo-lhe permitido desenvolver maior quantidade de trabalhos autorais, nos quais imprime com veemência suas posições e ideias. É neste período que Loureiro assume integralmente a produção das “Aventuras de Chiquinho”, transformando por completo as

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histórias do menino louro em crônicas acerca da vida carioca ao dar novos contornos e personagens.

Neste sentido, as percepções acerca dos ideais de nação e raça ficam ainda mais complexos. Estereótipos raciais pautados em tipos como o americano “Sambo”, onipresentes nos decalques, passam a ser empregados na criação de histórias em que predominam concepções nacionais de raça, as quais defendem que, apesar das vicissitudes supostamente inerentes à identidade negra, atributos como retidão de caráter, esforço e trabalho podem transformar a nação em um povo sadio e forte.

Como pudemos apontar acima, a redução de narrativas sobre o colonialismo na revista é contemporânea ao aumento de narrativas de moleques negros, como Benjamin, criação das mais populares e bem acolhidas de Loureiro. Observa-se que algumas histórias de “As Aventuras de Chiquinho” conduzem diligentemente discussões acerca de ideias de pertencimento e exclusão racial, trazendo ideias que suplantam, no âmbito do discurso, a suposta inferioridade racial negra pelo discurso do mérito e do esforço pessoal. Nesse sentido, o trabalho e o estudo são alçados a papeis fundamentais na consecução da integração racial, do ponto de vista do autor. Em contrapartida, Loureiro reitera tacitamente relações de continuidade entre escravidão e liberdade, ao narrar em seus quadrinhos as histórias de um personagem coadjuvante que, embora criança, exerça funções laborais não remuneradas como criado de Chiquinho.

Do ponto de vista formal, é fundamental investigar a maneira como as representações dos africanos realizadas por artistas franceses e estadunidenses se tornam referenciais para estes artistas que criaram personagens negras segundo demandas nacionais. Observar, do ponto de vista da técnica, o modo como estes estereótipos raciais são ressignificados e moldados segundo demandas locais é um dos propósitos deste capítulo.

Por fim, objetiva-se analisar mais detidamente o episódio de “As Aventuras de Chiquinho – uma lição de civismo”, no qual, pela primeira vez, aparece um discurso racial positivando explicitamente a identidade negra. Esta história oferece elementos singulares para compreender o pensamento racial de Luís Gomes Loureiro, e as discussões em torno das hierarquias raciais que operavam naquele período.

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Extremos paladinos da classe infantil

“TENDO SIDO LOURO de olhos azuis… foi pai de um pretinho chamado Benjamin”. Assim Luís Gomes Loureiro era apresentado à audiência que compareceu ao Museu da Imagem e do Som, em 24 de julho de 1974, num dos eventos organizados pela instituição, intitulado “Depoimentos para a posteridade”1. Quem introduzia Loureiro, conhecidíssimo entre os palestrantes que compunham a mesa, e possivelmente um anônimo diante da maior parte da “gente moça” que assistia à conferência, era Álvaro Cotrim (1904-1985), jornalista, artista gráfico e amigo pessoal de Loureiro. Também faziam parte da mesa de conferência o cartunista Ziraldo Alves Pinto (1932), famoso Ziraldo, o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o artista e pesquisador de quadrinhos Herman Lima (1897-1981) e o artista plástico Quirino Campofiorito (1902-1993), convidados a registrar seus depoimentos saudosos sobre uma revista que impregnou suas experiências infantis e juvenis. O Tico-Tico, “jornal das crianças”, não era publicado há, pelos menos, 19 anos.

A temática daquele encontro de artistas gráficos, literatos e jornalistas tinha razão certa. Luís Loureiro era um dos poucos artistas gráficos que atuaram n’O Tico-Tico em seus primeiros anos e que conheceram a fundo as propostas de seus idealizadores, nos primeiros anos do novecentos. Os articulistas diziam que Loureiro fora um dos corresponsáveis pelo sucesso do jornal das crianças, um dos mais longevos na história da imprensa para crianças e da imprensa ilustrada no Brasil até então. O quadrinista convidado à prosa era um repositório da memória daqueles tempos, mesmo desfrutando dos seus avançados oitenta e cinco anos. Álvaro Cotrim, ou Alvarus, como era conhecido entre seus pares na imprensa, evocava um dos fatos memoráveis da trajetória profissional de Loureiro na imprensa para crianças: Loureiro teria sido criador, ou “pai”, de Benjamin.

1 Museu da Imagem e do Som, “Depoimentos para a Posteridade - Luís Gomes Loureiro”. Rio de Janeiro: Acervo do MIS-RJ, Museu da Imagem e do Som, n. 443., 1974. 1 CD-ROM.

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Ano seguinte, em um editorial não assinado, o Jornal do Brasil voltava a invocar a paternidade artística de Loureiro, ao lamentar o aniversário de morte de seu “filho adotivo”, que ocorrera há vinte anos. Tratava-se de Chiquinho, “garoto travesso que acompanhou várias gerações de crianças brasileiras nas páginas de O Tico-Tico”.2 Nos termos do(a) articulista, Chiquinho e seu jornal, O Tico-Tico “conheceram o Rio de Janeiro ainda meio provinciano, acompanharam a urbanização da

cidade, testemunharam duas guerras mundiais”, e ainda “refletiram a substituição da influência francesa sobre a nossa cultura, pela influência americana, que nos trouxe um mundo povoado de super-heróis.” Mais uma vez, reportavam-se a Loureiro como um senhor que, apesar da “aparência buliçosa de um menino”, era figura cuja história remetia a outros tempos. E Chiquinho, seu “filho adotivo”, deixara as páginas da imprensa, em uma morte simbólica, há pelo menos vinte anos.

Algo de memorável atraiu a atenção da imprensa carioca naquele período, que buscava em Loureiro e seus filhos, ou “crias”, lembranças de um passado relevante da história da imprensa brasileira. Chiquinho e Benjamin, ambos apresentados ao público daquele período como filhos adotivos, eram evocados porque possuíam algo de representativo de um passado que interessava rememorar. Loureiro, mesmo desconhecido àquele momento, e vivendo pacatamente os seus altos oitenta e tantos anos em um prédio na Avenida Princesa Isabel, em Copacabana, era possuidor de narrativas que interessavam, e muito, aos estudiosos da imprensa ilustrada, da caricatura e das artes gráficas. Por isso, expressou surpresa, ao confidenciar para o Jornal do Brasil: “Nunca pensei. Tanto tempo depois e alguém ainda se lembra de mim, do Chiquinho, do Benjamin”.3 Suas criações ainda ressoavam nas memórias, um tanto saudosas, de figuras de projeção no campo das artes gráficas como Ziraldo, que já publicava desde 1960 a “Turma do Pererê”, provavelmente a primeira história em quadrinhos do Brasil completamente a cores feita por um só autor.

Loureiro era visto por seus pares como um dos artistas – talvez o mais importante – responsáveis por dar ao Tico-Tico uma feição tipicamente nacional. Insistiam em categorizar a figurinha de “Benjamin” como a grande obra da produção artística de Loureiro nas páginas do jornal das crianças. Isso porque, como argumentou Alvarus, “vinham os desenhos americanos e havia um papel pelure, onde se copiava[...]”.4 Cotrim se referia à técnica amplamente difundida no período de decalcar desenhos estrangeiros, isto é, transferi-los para um papel especial, por meio do qual os artistas transferiam os desenhos para as pedras litográficas e, anos depois, para as chapas de

2 “O Tico-Tico – uma revista que se ausentou, não morreu”. Jornal do Brasil, ed. 186, 11/10/1975. p. 32. 3 Ibidem.

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pelos artistas d’O Tico-Tico para reproduzir quadrinhos e desenhos estrangeiros nas folhas do jornal O Tico-Tico. Justamente por isso, muitas querelas na imprensa deram origem a uma imagem de que o jornalzinho seria uma grande obra de copiadores, destituídos de autonomia, e apreciadores do cosmopolitismo da Belle Èpoque.

O Chiquinho, garoto atipicamente louro em terras tropicais, segundo Alvarus, denunciava a origem estrangeira ao ser um personagem que “evidentemente não era […] brasileiro pela indumentária e pelo cabelo louro […]”. Para Cotrim, Chiquinho se ligou a Loureiro por uma associação de ideias, embora fosse feito por várias pessoas.5

A polêmica em torno da imagem de Chiquinho, Benjamin e seu principal autor, Luís Loureiro, ganhou espaço na imprensa sempre quando os jornais rememoravam, em episódios como os aniversários de lançamento da revista, e nestes textos era comum que fossem tecidos comentários sobre Chiquinho e Benjamin, as personagens mais populares. As “Aventuras de Chiquinho”, celebradas pelas crianças de outrora, tornaram-se objeto da curiosidade de jornalistas, que esbarravam nesta polêmica acerca da autenticidade desta personagem. Seria Chiquinho uma criação nacional? Em que medida Benjamin adicionaria atributos nacionais a uma história estrangeira?

Embora nenhum dos entrevistadores tenha dado sentença definitiva a esta querela, autor ou não, Loureiro instigava a curiosidade daquela geração de homens da imprensa que cresceram lendo as páginas d’O Tico-Tico, o hebdomadário das crianças, publicado desde a quarta-feira de 11 de outubro de 1905 e que correu entre as mãos infantis, e algumas adultas também, até meados de 1956. Para muitos homens e mulheres contemporâneos àqueles sujeitos, O Tico-Tico era a mais popular revista infantil a qual tiveram acesso. Justamente pelo seu recente encerramento de atividades, e em vista de comemoração do septenário da revista, que se daria em onze de outubro de 1975, relatos saudosos das memórias de seus leitores e criadores oportunamente apareceram em algumas páginas da imprensa, e tornaram-se depoimentos para a posteridade.

A celebridade de Loureiro, contudo, não correspondia à sua longevidade como desenhista de

O Tico-Tico. Definitivamente não foi o quadrinista que mais tempo dedicou à produção em O Tico-Tico: sua atuação se deu entre os anos de 1907 e 1919, e nestes doze anos atuou em espaços

de maior ou menor relevância na revista, tendo passado pelas funções de decalcador, desenhista de

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histórias esporádicas e, por fim, desenhista de quadrinhos de maior projeção e presença no semanário das crianças. A popularidade da produção artística de Loureiro parecia contraditória, tendo em vista que, de um lado, não havia sido um dos artistas de maior longevidade nas páginas da revista, e de outro, a autenticidade de sua obra havia sido posta em questão pelos críticos que enxergavam-na como mero decalque de histórias estrangeiras.

Autênticos ou não, o fato é que os “filhos adotivos” do quadrinista foram parte dos motivos pelos quais O Tico-Tico obteve projeção nacional e internacional no passado. Chiquinho e Benjamin fizeram sucesso entre as crianças nas primeiras décadas do século XX e se tornaram presença tradicional na revista, de modo que, mesmo após a saída do desenhista do corpo editorial, outros artistas gráficos mantiveram-nos no rol de personagens protagonistas de O

Tico-Tico. Na seção de correspondências entre editores e os pequeninos leitores, pululam desenhos

realizados pelas crianças de Chiquinho e Benjamin em variadas situações. Chiquinho e Benjamin também foram garotos-propaganda das inúmeras páginas dos comerciais do pó de arroz “Lady”, do cinematógrafo da “Kirs Film” e das casas comerciais “Parc Royal”. Por esses motivos, Chiquinho, Benjamin e o cachorro Jagunço, os célebres personagens das “Aventuras de Chiquinho”, tornaram-se o símbolo daquele projeto editorial e estamparam indelevelmente as memórias das crianças de outrora.

É curioso notar, contudo, que as severas críticas que sua obra sofreu, ao ter questionada a autenticidade das personagens das “Aventuras de Chiquinho” e o fato de Loureiro ter tido uma carreira profissional comum e sem grande sucesso econômico e sem grande longevidade na redação d’O Tico-Tico, contrastam com a a imensa projeção de sua obra. Chiquinho e Benjamin tornaram-se parte constitutiva da identidade da revista. Esta tensão, portanto, motiva a curiosidade para que tentemos compreender melhor quem seria este senhor de olhos azuis, “pai” de Chiquinho e Benjamin.

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Luís Gomes Loureiro nasceu em 9 de setembro de 18896, carioca criado à Rua da Imperatriz de número oitenta e sete, no Bairro da Saúde, na freguesia de Santa Rita.7 Filho de Antonio Gomes Loureiro e Joanna dos Santos Loureiro, ambos naturais do Reino de Portugal, possuía sete irmãos, sendo quatro irmãs e três irmãos. Ao que constam os registros de nascimento de seus irmãos, Antonio era marceneiro, e casara-se com Joanna dos Santos na Igreja da mesma freguesia, residindo, ao menos, entre os anos de 1892 e 1899 no mesmo local. Tratava-se de família muito pobre, e sendo Luís Loureiro o mais velho dos irmãos, iniciara a vida profissional desde cedo.8

6 A maior parte dos biógrafos reproduzem equivocadamente que a data de nascimento de Loureiro teria sido a de 11 de setembro de 1889, provavelmente influenciados pela primeira nota biográfica realizada sobre Loureiro, publicada por Ruben Gill no periódico Dom Casmurro, em 1943. Herman Lima, em História da Caricatura no Brasil, em 1963, repete este e outros equívocos, que serão reproduzidos também na nota de falecimento de Loureiro, publicada no Jornal do Brasil em 1981, e posteriormente nos estudos de Zita de Paula Rosa. Este equívoco nos chama atenção de maneira contundente para a possibilidade de outras informações imprecisas que os textos biográficos sobre Loureiro poderiam reproduzir. Ver GILL, Ruben, Esquema biográfico, Dom Casmurro, n. ano 7, n. 311, 1943., Herman Lima. LIMA, Herman, HIstória da Caricatura no Brasil, Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1963.ROSA, Zita de Paula, O Tico-Tico: meio século de ação recreativa e pedagógica, Bragança Paulista: EDUSF, 2002.COTRIM, Álvaro, Morreu o Loureiro d’O Tico-Tico, O Estado de S. Paulo, 263. ed. p. 6, 1981. A data que aqui reproduzimos estava referenciada na entrevista que concedeu ao MIS, onde dizia: “nasci às 6 horas da tarde do dia 9 de setembro de 1889”. Ver “Depoimentos para a Posteridade”, op. cit.

7 Ruben Gill e Álvaro Cotrim afirmam que Loureiro teria nascido na Travessa das Partilhas, também no bairro da Saúde. Contudo, ao confrontar o logradouro dos pais de Loureiro descrito nos registros civis de seus irmãos, todos indicam a Rua da Imperatriz, número 87.

8 Em busca pelos registros de nascimento de Luís Loureiro, encontrei sete registros de nascimento cujos pais constavam como sendo Antonio Gomes Loureiro e, ora Joanna dos Santos Teixeira, ora Joanna dos Santos Loureiro; em todos os registros constava como logradouro do casal a Rua da Imperatriz de número oitenta e sete, na Freguesia de Santa Rita. Os irmãos seriam Alice dos Santos Teixeira Gomes Loureiro (1891), Antonio Gomes Loureiro (1892), Alzira dos Santos Gomes Loureiro (1897), Alberto dos Santos Gomes Loureiro (1893) , Jozé dos Santos Gomes Loureiro (1897), Maria Gomes Loureiro (1898) e Laurentina dos Santos Gomes Loureiro (1899). BRASIL, Rio de Janeiro, Registro Civil, 1829-2012, 01ª Circunscrição, nascimentos 1892, Fev-Ago, n. 303, p. 76,77. Database with images, FamilySearch (https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:QGVX-DHTF : 18 December 2017), Gomes Loureiro, ; citing 303, p. 76, Rio de Janeiro, Brasil, Corregedor Geral da Justiça, Rio de Janeiro; FHL microfilme 1,286,882.

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Bairro da Saúde. Fotografia, c. 1893, por Marc Ferrez. Instituto Moreira Salles.

Os parcos rendimentos do pai marceneiro provavelmente foram muito limitados para sustentar oito crianças e a mãe, sobre a qual não podemos afirmar se exercia alguma atividade remunerada.9 Como descreveu Loureiro em entrevista, “como menino pobre lutei como o quê”, quando falava de sua precoce carreira profissional. Conta que, sendo o irmão mais velho, logo se pôs a trabalhar, “procurando sempre ajudar os irmãos, que eram muitos”. Provavelmente cursara apenas o ensino primário, na capital, e logo ingressa no mercado de trabalho.10 Certamente, a família de Loureiro tivera vida econômica muito semelhante à população remediada que habitava a mesma rua, no bairro da Saúde.

A Rua da Imperatriz foi cenário da infância e juventude de Luís Loureiro e seus irmãos. Naquele espaço geográfico suburbano da capital carioca, Loureiro teve contato com a vida social de uma cidade em pujante transformação. Considerando a contribuição fundamental que pode oferecer o conhecimento do espaço geográfico onde habitava o futuro desenhista, podemos empreender um esforço para vislumbrar elementos significativos da história social daquela localidade, e dos sujeitos históricos que ali coabitaram.11

9 Nas certidões de nascimento dos sete irmãos de Loureiro, não consta a profissão da mãe.

10 O jornalista Ruben Gill declara que Loureiro teria cursado “estudos gerais nesta capital”. Supomos que o biógrafo se referisse à educação primária. GILL, Ruben, Esquema biográfico, Dom Casmurro, n. ano 7, n. 311, 1943. 11 Empreguei como referências os mapas interativos produzidos pelo projeto ImagineRio - RICE SCHOOL OF

HUMANITIES, ImagineRio: Um Atlas ilustrado e diacrônico da evolução social e urbana do Rio de Janeiro.; e CECULT, Lazer, cultura e sociabilidade: Cotidiano de trabalhadores em Santana, R.J., 1905. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/cecult/mapas/mapasgotto1905/introgotto1905.html. Acesso em 18/05/2018.

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organização urbana e de sua vida social. A Rua da Imperatriz, que após um plano de reestruturação urbana em 1909, passa a se chamar Rua Camerino, iniciava na Praça da Igreja de São Joaquim, e segue rumo ao Cais da Saúde, antes Cais da Imperatriz, diante do qual está o Armazém das Docas Pedro II. A longa rua possui ainda outro ponto relevante da vida social do bairro, a praça dos Estivadores, que surge na mesma década, na qual se fundara a União dos Operários Estivadores, “uma das mais poderosas e longevas associações de trabalhadores do Rio de Janeiro da Primeira República.”12

A presença constante de estivadores era uma das principais características da região portuária na qual o bairro da Saúde estava incrustado. Por este motivo, foi alvo da preocupação de parte dos setores dominantes da sociedade carioca.13 Esse contingente de trabalhadores, predominantemente negros, povoavam esta região, cuja extensão abrangeu os bairros portuários da Gamboa, Saúde e Santo Cristo à Cidade Nova, e que ficou conhecida como “Pequena África”, dada a expressividade da população negra na região.14

Aqueles homens do mar habitavam as imediações, construindo neste bairro espaços de sociabilidade fundamentais para a experiência da diáspora. No cotidiano da cidade, estes homens e mulheres conglomeravam-se, manifestavam sua espiritualidade e organizavam-se em espaços como a pequena associação carnavalesca “Chora na Macumba”, que se localizava na Rua Barão de São Félix, n. 10, desde o início do século; o terreiro de Mãe Aninha do Xangô, nas imediações da

12 CECULT, idem.

13 Em seu trabalho, o historiador Leonardo Pereira discute a presença de estivadores no bairro da Saúde, e a importância deste reduto da cidade na resistência ao estado de sítio imposto pelas autoridades, anos antes, durante a reforma na vigência do mandato do Prefeito Pereira Passos. Em um artigo anônimo da imprensa do período, destacado por Pereira, podemos verificar o contingente significativo destes trabalhadores: “Não se sabe se a resistência feita a todo transe pelos populares do bairro da Saúde, na sua maioria estivadores, pessoal do mar, é ou não o resultado de um entendimento com os conspiradores, mas o certo é que Porto Arthur seria uma plebenda se não houvesse uma ação enérgica da parte do governo.” Gazeta de Noticias , 17 de novembro de 1904 APUD PEREIRA, Leonardo, As barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.(grifos nossos)

14 Ao tratar da região portuária de Salvador, Wlamyra Albuquerque ressalta a onipresença negra nesta região da cidade, presença esta associada às ocupações e atividades desenvolvidas nas regiões portuárias, e por consequência, os incômodos gerados nas elites locais: “Produtos e costumes franceses eram as grandes aspirações das elites locais; o contraponto às pretensões de afrancesamento estava justamente nos indesejáveis ‘africanismos’ tão à mostra na zona portuária, local em que se podiam ver estivadores, vendedoras com seus balaios e bandejas, carregadores de toda espécie de carga, moleques em pequenas compras, todos a exibir trajes, vocabulário e comportamentos nada

‘civilizados’.” ALBUQUERQUE, Wlamyra, O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 213. Sobre a “Pequena África”, ver MOURA, Roberto M., Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: Funarte/INM/Divisão de Música Popular, 1983.

Referências

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