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Revisitando a tese da indeterminação da referência de Quine

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CDD: 191

REVISITANDO A TESE DA INDETERMINAÇÃO DA REFERÊNCIA DE QUINE

ARACELI ROSICH SOARES VELOSO Departamento de Filosofia

FAFIL, UFG Goiânia, GO, Brasil ar.velloso@gmail.com

Resumo: Neste artigo, procuramos tornar mais clara a tese da indeterminação da referência de Quine. Para explicar a tese de Quine, vamos considera-la como um “teorema” que chamaremos de “teorema do automorfismo de Quine”. Segundo esse teorema, haveria maneiras alternativas de se reconstruir a estrutura gramatical de qualquer língua, incluindo aí a predicação, maneiras essas que seriam compatíveis com todas as nossas predisposições para comportamento verbal, porém incompatíveis entre si. Ou seja, haveria uma indeterminação intrínseca na estrutura gramatical interna de qualquer língua. Essa indeterminação será mostrada, como faz Quine, através da possibilidade de se construir manuais alternativos que se adéquem a totalidade de proferimentos às estimulações disponíveis. Ao “provar” esse teorema, estaremos mostrando como a tese da indeterminação da referência de Quine projeta uma indeterminação em princípio no próprio coração da teoria das extensões, qual seja, a ideia de que não é só a intensão que pode ser indeterminada, a extensão também sofre da mesma dificuldade. Para tornar mais clara e compreensível a construção dos manuais alternativos, usaremos noções da lógica como, por exemplo: “estruturas”, “modelos” e “morfismos”.

Palavras-chave: Quine, tese da indeterminação da referência, modelos.

Abstract: In this paper we will try to propose a theorem, which we will call “Quine’s automorphism theorem”. According to this theorem there are alternative ways of reconstructing the grammatical structure of any language, including the predicative structures which would be compatible with the totality of speech dispositions to verbal behavior, yet incompatible with each other. In others words, we find an intrinsic indetermination in the grammatical (predicative) structure of any language. As in Quine, this indetermination will be presented by the possibility of alternatives manuals, compatible with the totality of speech acts and stimulations, yet incompatible with each other. Our point is that, to prove this theorem is to show how Quine’s thesis of the indetermination of reference introduces an indetermination at the very heart of the

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theory of extensions, i.e., not only the intension of predicates is indeterminate, its extension suffers a parallel difficulty. To make the construction of the alternatives manuals more clear and comprehensible we are going to use some notions taken from logic as for example: “structures”, “models” and “morphisms”.

Key words: Quine, the thesis of the indetermination of reference, model theory.

INTRODUÇÃO

A tese da indeterminação da referência de Quine, estabelecida pela primeira vez no segundo capítulo do livro Word and Object, tem suscitado uma série bastante grande de comentários e tentativas de esclarecimento. Por sua natureza ousada e crítica em relação a toda uma tradição que remonta a, pelo menos, Frege, se não ao próprio Platão, mesmo o seu autor sentiu necessidade de explicá-la e esclarecê-la inúmeras vezes. Suas consequências, frequentemente mal compreendidas, levam a um descrédito generalizado na comunidade filosófica em relação à validade mesma da tese, bem como a uma má compreensão e uma consequente avaliação crítica dos propósitos de seu autor.

O modo mais comum de se ler as propostas de Quine é vê-las como um questionamento a respeito da viabilidade de usarmos a linguagem, através de seu aparato sub-sentencial – nomes e predicados, para falarmos do mundo. Quando aplicada a uma mesma língua, a tese postularia a impossibilidade mesma de uma comunicação bem sucedida graças a uma reinterpretação maliciosa dos significados das palavras do outro falante, situação que Peter Hylton (2007, p.209-210) chama de “a ameaça da incoerência”. As implicações dessa leitura negativa, no entanto, nos parecem desastrosas. Alguns críticos de Quine1 concluem

1 Segundo Hylton (2007, p.210), esses comentadores (com efeito ele sugere apenas um: Simon Blackburn, com o qual manteve discussões sobre o assunto, cf. 2007 (p. 379, nota 12 e 13) sugerem que, para escaparmos do que ele chama

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de modo negativo que, a despeito das tentativas de esclarecimento feitas pelo filósofo americano, a tese da indeterminação da referência acaba por implicar a constatação da impossibilidade, em princípio, de uma comunicação bem sucedida entre falantes e, mesmo, de se estabelecer uma semântica minimamente estável para uma linguagem qualquer, capaz de viabilizar essa comunicação. De certa maneira, é como se tivéssemos “perdido o mundo” e não mais pudéssemos falar de um conteúdo objetivo que estivesse de alguma forma conectado às nossas experiências imediatas. Tais consequências são obviamente inaceitáveis e, por essa razão, gostaríamos de dedicar esse artigo a mais um esclarecimento de como melhor compreender a tese de Quine, evitando assim as mencionadas consequências desastrosas.

Apesar de podermos considerar que o segundo capítulo de

Word and Object seja o lócus clássico no qual o filósofo apresentou pela

primeira vez seus argumentos, não nos deteremos apenas nesse texto. Com efeito, daremos bastante relevância a um texto posterior (Ontological Relativity, 1969), no qual Quine é bem mais explicito a respeito das implicações ontológicas de sua tese, chegando mesmo a usar noções tais como a de “modelo”, frequentemente empregadas, também, nesse artigo.

O TEOREMA DE QUINE

A tese da indeterminação de Quine, que aqui nos propusemos a tratar como um teorema a ser demonstrado – o “teorema do automorfismo de Quine”, recebe por ele próprio pelo menos três formulações diferentes no inicio do terceiro capítulo do W&O,

de “ameaça da incoerência” devemos apelar para uma espécie de “linguagem privada” que garantiria um significado estável em nossas mentes a despeito das indeterminações intersubjetivas. Hylton, no entanto, é o primeiro a reconhecer o absurdo de tal solução no contexto da filosofia de Quine. (cf. 2007, p.211-212)

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segundo o autor, em grau crescente de adequação. Concentrar-nos-emos na terceira e última formulação, por ser também a que usa diretamente as noções de “mapeamento” e, por tanto, estar mais próxima da abordagem que adotaremos neste artigo. Segundo essa terceira definição, há maneiras alternativas de se reconstruir a estrutura gramatical de qualquer língua, incluindo aí a predicação, maneiras essas que poderiam ser compatíveis com todas as nossas predisposições para comportamento verbal, porém incompatíveis entre si. Dito nas palavras do próprio Quine:

[…] a totalidade infinita de sentenças de certo falante de uma língua pode ser permutada, ou mapeada em si mesma, de tal modo que (a) a totalidade de disposições do falante para comportamento verbal permanece invariante, porém (b) o mapeamento não é uma mera correlação de sentenças com sentenças equivalentes, em nenhum sentido plausível de equivalência. (1960, p. 27)

Segundo esse “teorema”, a visão fregiana composicional da linguagem deveria ser questionada. De acordo com essa visão, a linguagem é uma estrutura e seus elementos constituintes, os termos (singulares e gerais) e as proposições por eles compostas, são organizados funcionalmente de tal forma que para cada termo e sua respectiva referência teremos apenas um resultado semântico e de valor de verdade, quando esse termo for avaliado nas proposições das quais fizer parte. Assim, em decorrência dessa estruturação funcional, os elementos mais simples, os nomes, conectados referencialmente aos objetos “no mundo”, seriam os argumentos de funções nominais e proposicionais que, por terem elas próprias um significado próprio, determinariam por sua vez, um outro elemento constituinte dessa estrutura – nomes complexos ou proposições – e esses, por sua vez, poderiam saturar novamente outras funções (PORTO, 2005). Assim,

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segundo essa visão, sempre poderíamos determinar o significado2 (e o

valor de verdade) de uma sentença3 complexa (ou termo complexo) a

partir do significado (e da referência) de suas partes. Falamos em função, porque o resultado não pode ser ambíguo. Assim, esse procedimento envolveria funções que poderíamos chamar de semânticas, ou seja, funções que produziriam o significado e o valor de verdade de uma sentença qualquer a partir apenas dos significados e referências de suas partes – objetos e propriedades – sem qualquer outro elemento de ordem contextual, convencional ou biológico. A visão em questão, que chamamos de composicional, envolveria também, é claro, que a base desse processo recursivo – as extensões dos termos singulares e gerais – fosse estável, i.e., determinada.

A indeterminação semântica e gramatical que Quine procura estabelecer com seu teorema, contrariamente à mencionada visão composicional da linguagem, demonstraria uma falha em todo esse procedimento linguístico de obtenção de significados mais complexos a partir dos mais simples e remontaria inicialmente à referência dos termos individuais. A indeterminação pressuposta pelo teorema de Quine seria demonstrada pela possiblidade de se construir manuais alternativos, compatíveis com a totalidade de proferimentos e estimulações disponíveis, mas incompatíveis entre si. Os manuais alternativos revelariam justamente uma “instabilidade” na própria base da linguagem, advinda da possibilidade de reinterpretação das extensões de seus termos. Assim, teremos “demonstrado a tese de Quine” se, ao construir esses manuais, pudermos mostrar: primeiro, que há uma

2 Por “significado”, entendo o conteúdo cognitivo, i.e., tudo o que for relevante para a determinação das condições de verdade da sentença (QUINE, 1981, p. 48).

3 A tradução mais próxima do que Quine quer dizer com a expressão em inglês “declarative sentence” é “frase declarativa”. Usaremos a expressão em português mais curta “sentença”, dicionarizada no Houaiss em português com esse sentido.

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equivalência entre eles, i.e., que ambos são adequados para a linguagem em questão, tornando a totalidade das sentenças compatíveis com as situações estimulativas; e que, em segundo lugar, contrariamente ao esperado, ao nível sub-sentencial eles são incompatíveis. Se, no caso da

compatibilidade ao nível sentencial, as mesmas situações estimulativas

provocam assentimento a ambas as sentenças de ocasião, no caso da

incompatibilidade sub-sentencial, os mesmos termos podem ter

referências (ou extensões) diferentes em cada manual.

Podemos ainda explicar a indeterminação implicada pelo teorema de Quine, usando a noção de “modelo”. Dito nesse novo vocabulário, o teorema de Quine rezaria que, para cada manual, poderíamos construir um modelo diferente, alterando, desse modo, as extensões dos termos e, consequentemente, o significado das sentenças teóricas das quais eles fazem parte, sem, no entanto, alterar o significado estimulativo4 das sentenças de ocasião de cada um dos

manuais. As sentenças de ocasião de manuais diferentes, quando consideradas holofrasticamente, permaneceriam equivalentes entre si. Na seção seguinte, explicaremos como pode ser feita a construção desses manuais.

A CONSTRUÇÃO DOS MANUAIS

A construção dos manuais alternativos sugerida por Quine é, com efeito, bastante simples e segue um procedimento metódico e sistemático. O primeiro desideratum importante a ser respeitado é que tenhamos uma situação de intercâmbio: dois falantes e uma situação estimulativa que afete a ambos concomitantemente. Essa situação, que

4 O “significado estimulativo” de uma sentença seria constituído pelo par ordenado composto pela classe de estimulações que induziriam o assentimento do falante e pelas estimulações que induziriam o seu dissentimento. (QUINE, 1960, pp. 32-33)

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poderíamos chamar de “triangular”5, servirá de pano de fundo para

testarmos nossos manuais. O segundo desideratum importante para a construção de manuais alternativos é que ambos os falantes disponham de observações sobre o comportamento verbal e gestual do seu interlocutor frente a essas estimulações. Assim, um deles pode se colocar na posição de interprete e inquirir o outro falante, observando se ele assente ou dissente.

Tendo em mente esse cenário, podemos agora propor as interpretações alternativas que, segundo Quine, comprovam o seu teorema. Pensemos inicialmente na sugestão do próprio filósofo: a sentença de ocasião “Gavagai!”. Como sentença de ocasião, “Gavagai!” (com letra maiúscula e um ponto de exclamação no final para indicar seu “sentido sentencial completo”) tem um significado estimulativo determinado, o mesmo de “Coelho!”. Ou seja, na terminologia de Quine (1992b, p. 7), “Gavagai!” e “Coelho!” são duas holófrases sinônimas e seus significados estimulativos são determináveis empiricamente. Nesse primeiro caso, como dissemos, as duas linguagens são compatíveis, se considerarmos apenas suas sentenças de observação e sem que analisemos a estrutura interna das mesmas.

A questão colocada por Quine surge quando consideramos a ocorrência de “gavagai” (agora começando com letra minúscula e sem ponto no final, i.e., como um termo que possa ocorrer no interior de uma sentença). Nesse nível, já sub-sentencial, várias opções são sugeridas pelo filósofo como sendo igualmente compatíveis com a situação presente. O termo “gavagai” poderia ser traduzido, é claro, pelo termo geral “coelho”. Mas, nos lembra Quine, poderia também ser traduzido por outros termos: o termo geral “partes não destacadas de coelho”, o termo singular abstrato “a coelhice presente”, o termo geral “fatias espaço-temporais de coelho”, o verbo “coelhar”, e finalmente

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por “complemento cósmico de coelho”6 – um termo geral, aplicável ao

todo do universo subtraído de coelhos.

Se voltarmos agora à nossa situação de teste – dois falantes e uma estimulação presente – o aspecto comum entre todas essas opções de tradução de gavagai-termo é o fato de serem simultaneamente compatíveis com os mesmos gestos de ostensão e as mesmas situações estimulativas, porém, incompatíveis entre si. É claro que elas nos parecem exóticas a primeira vista, mas, e esse é o ponto importante, se fizermos os reajustes necessários no contexto sentencial em que elas se encontram, obteremos sentenças que sejam alternativas viáveis diante da mesma situação estimulativa.

A incompatibilidade apontada por Quine não deve ser considerada como uma espécie de desafio, i.e., com uma incompatibilidade insuperável. Nossa hipótese de trabalho é a de que Quine não está propondo que a referência, ou extensão, de termos não possa ser encontrada, mas que esse procedimento não pode ser feito de modo independente da linguagem da qual os termos fazem parte e de todo o seu aparato conceitual, incluindo o individualizador. Assim, nessas condições, ou seja, considerando cada um dos contextos linguísticos adequados, não haveria, do ponto de vista exclusivamente comportamental, uma alternativa que fosse a melhor. A questão, como discutiremos em seguida, é semântica e não epistemológica: a dificuldade não está em descobrir uma alternativa que seja a correta, o que de resto seria bem fácil, se pudéssemos recorrer a um manual completo de tradução e incluir nele todos os conceitos envolvidos e necessários. A dificuldade é que, já em princípio, podemos concluir que não há uma alternativa correta, ou seja, que todas elas serão igualmente compatíveis com a situação estimulativa, mas incompatíveis entre si, caso sejam tomadas separadamente e conjugada as hipóteses analíticas

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que constituem o seu próprio manual. Vejamos em seguida como construir esses manuais.

Como prometemos, vamos agora explicar melhor essas alternativas. A sugestão de Quine é a de tratar cada uma delas como um exemplo que faz parte de um manual mais global de tradução para a linguagem em questão. Assim, teríamos o manual “coelho”, o manual “partes-não-destacadas”, PND, o manual “fatias espaço-temporais”, FET, o manual “complemento”7, C, e assim por diante. Mesmo a

função sintática de gavagai-termo poderia variar de manual para manual. Temos, em alguns manuais, traduções de gavagai-termo para termos gerais como, por exemplo, “partes não destacadas de coelho” ou “complemento cósmico de coelho”, mas temos também traduções para termos singulares como, por exemplo, “a coelhice presente” (QUINE, 1969, p. 3). Podemos até mesmo pensar numa abordagem mereológica como aquela apresentada por Goodman (GOODMAN, 1966) como um exemplo de manual completo no qual não temos termos gerais mais apenas termos singulares, nomes, de referência dividida.

Por que dizer que cada alternativa é um manual? Como sugere o próprio Quine, podemos construir uma espécie de “procedimento sistemático” (QUINE, Ontological Relativity, 1969, p. 34) que nos permitisse passar de um manual para outro. O aspecto sistemático se deveria ao uso de funções que viabilizassem um tratamento único para cada grupo de termos. Por exemplo, passaríamos do manual “coelho” para o manual “complemento”, prefixando expressões predicativas e nominais com o operador “complemento de” e traduzindo a expressão para cópula: “é”, pela expressão: “contém”. Aplicar esses operadores equivale a estabelecer uma função que correlacione os dois manuais em questão.

7 Para um exemplo completo do manual complemento (apelidado de manual dual pelo autor), conferir Massey (1974, p.148).

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Uma função substitutiva é qualquer transformação explicita um-para-um, f, definida sobre os objetos em nosso pretendido universo. Por “explicita” quero dizer que para qualquer objeto x, especificado numa notação aceitável, podemos determinar fx. Suponha agora que modifiquemos nossa ontologia, reinterpretando cada um de nossos predicados como sendo verdadeiros agora não dos objetos x, mas dos seus correlatos fx. Nesse caso, onde originalmente “Px” significava que x era um P, reinterpretamos “Px” agora como significando que x é um f de P. (QUINE 1995, pp. 31-32)

No caso de nosso exemplo, teríamos um manual A, no qual “gavagai” seria traduzido por “coelho”, e outro manual B, no qual o mesmo termo seria traduzido por “complemento cósmico de coelho”. Uma sentença que contivesse a expressão “gavagai” na língua desconhecida, ao ser traduzida segundo o manual A, estaria falando de coelhos, mas ao ser traduzida pelo manual B, passaria a falar de tudo, menos de coelhos. No entanto, também nesse caso,8 não teríamos

como determinar, comportamentalmente, a melhor dentre as duas interpretações possíveis. Ou seja, ambas seriam interpretações alternativas adequadas para se atribuir ao outro falante.

TRADUZIBILIDADE VERSUS NÃO TRADUZIBILIDADE

Uma observação importante: a conclusão a ser extraída do teorema de Quine não é a de que não sabemos o significado de gavagai-termo, ou a de que não conseguimos determinar qual seria a tradução

8 No caso do manual B, proposto por Quine, temos como alternativa de tradução para gavagai: “complemento cósmico de coelho”. O aspecto interessante desse exemplo está justamente na impossibilidade de se pensar uma ostensão normal, um apontar para uma porção espaço temporal do mundo. Em seu exemplo, Quine recorre, não a ostensão normal, mas a ostensão por deferência, ou seja, o que está sendo usado como referência é todo do universo subtraído da parte apontada. (QUINE, From Stimulus to Science, 1995, pp. 71-72)

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“correta” por uma mera questão de insuficiência de dados. Muito pelo contrário, temos várias alternativas que serviriam de modo igualmente satisfatório (mesmo que mais rebuscado) como traduções adequadas diante da situação estimulativa, tendo em vista o contexto de cada um dos manuais de tradução.

Outro ponto extremamente importante nesse caso é o fato de que estamos falando de uma situação estimulativa e não de objetos ou mesmo aspectos pontuais do cenário. A contrapartida linguística adequada para uma situação, considerada globalmente, ou ainda de um modo que não descrimine os objetos presentes nessa situação, é uma sentença inteira, verdadeira ou falsa, e não um termo, seja ele singular ou geral. Por essa mesma razão, a noção primitiva que estaria em jogo para Quine nesse cenário é a noção de “verdade”, e não a de “objeto” 9.

Nesse ponto de minha argumentação, gostaria de introduzir um vocabulário emprestado da teoria de modelos que penso ser útil para a compreensão do que está sendo dito e, mais importante, do que não está sendo dito pela tese de Quine. Continuando com a explicação, poderíamos pensar nos manuais como linguagens interpretadas. Cada manual seria um modo de interpretar a língua em questão, ou seja, um

modelo diferente. Mas, graças às funções substitutivas, poderíamos

estabelecer um automorfismo da estrutura que modela os dois manuais de tradução em questão. Essa hipótese interpretativa é perfeitamente compatível com o vocabulário anterior segundo o qual há uma

9 Sobre esse ponto, novamente vemos uma proximidade entre a nossa interpretação e a de Hylton: “[…] Por tudo isso, no entanto, o papel dos objetos na epistemologia e na semântica é secundário; a verdade das sentenças, e seus vínculos umas com as outras, são primários. A referência é derivada desses. A tese da indeterminação da referência – para falar novamente disso – reza que há mais de uma maneira como ela poderia ser derivada, mais de uma maneira pela qual poderíamos atribuir referência a nossos termos e ainda preservar as relações das sentenças com a estimulação sensorial e uma com a outra.” (2007, p.207)

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correlação um-para-um entre os dois manuais, sendo eles, portanto, empiricamente equivalentes.

A multiplicidade de manuais sugerida por Quine e associada à possibilidade de se estabelecer uma relação de mapeamento entre eles não significa, no entanto, que a correlação entre as sentenças de um e de outro manual seja estabelecida com base numa relação de equivalência de significado10 (QUINE, Word and Object, 1960, p. 27). O

que é dito por uma sentença de uma língua desconhecida (ou mesmo no próprio português) pode ser reinterpretado de diversas maneiras, à luz de manuais diferentes. Cada uma das interpretações possíveis de uma sentença numa certa estrutura, tomada isoladamente, é distinta das outras, ou seja, quando interpretadas à luz de manuais diferentes, essas sentenças falam sobre coisas diferentes.

Um exemplo talvez torne mais claro o que quero dizer. Consideremos uma sentença que contenha o nosso termo “gavagai”. Como disse no parágrafo anterior, no manual FET, estamos falando de um mundo composto de objetos não contínuos, cortes espaço-temporais distintos daquilo que ordinariamente consideramos um único coelho. No manual “coelho”, estamos falando de coelhos, considerados como objetos duradouros no tempo e no espaço. Já no manual complemento (o nosso manual B), estamos falando de tudo menos de coelhos. Se “gavagai” (termo) tivesse seu significado analítico traduzido por um falante por “coelho” e esse falante proferisse uma sentença em certa ocasião contendo “gavagai” (termo) – “gavagai é branco”, ele estaria falando de “coelhos”. Agora, se, na mesma ocasião, “gavagai” fosse interpretado por outro falante como “complemento cósmico de coelho”, essa mesma sentença – “Gavagai é branco” – estaria, na

10 Quine distingue duas noções de “significado”: a de significado empírico, determinável atributivamente, e a de significado analítico, indeterminada e dependente de uma teoria.

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mesma ocasião, fazendo referência ao todo do universo subtraído dos coelhos.

Mas então, porque a indeterminação da referência? Ou seja, porque não são simplesmente interpretações distintas para a mesma expressão linguística? Não estamos afinal conseguindo expressar essas interpretações contraditórias? Como insisti no inicio do artigo, o ponto de Quine não poderia ser o de que essas opções interpretativas fossem desconhecidas aos falantes, um problema que seria de caráter epistemológico. O que faz com que essas opções permaneçam como alternativas igualmente compatíveis, no nível sentencial (holofrástico), é a possibilidade de que também reinterpretemos os outros termos da sentença em questão de modo a manter a equivalência quanto as disposições para assentimento.

Por exemplo, quando traduzimos “gavagai” por “complemento cósmico de coelho”, ao invés de “coelho”, para manter a equivalência ao nível holofrástico, temos de trocar, numa sentença como, por exemplo, “Esse coelho é branco”, o verbo “é” pelo verbo “contém” e o predicado “branco” pelo predicado “complemento cósmico de brancura”. Estaríamos, segundo essas permutações, afirmando que “Esse complemento cósmico de coelho contém o complemento cósmico da brancura”.

Vale apena enfatizar que “Esse coelho é branco” e “Esse complemento cósmico de coelho contém o complemento cósmico da brancura” são indistinguíveis do ponto de vista atributivo-comportamental e, por causa disso, tem o mesmo significado estimulativo. Fazer esses reajustes é interpretar a mesma sentença à luz de manuais diferentes. E, ao fazer isso, podemos esperar que o falante assinta para essa mesma sentença, tendo em vista ambas as interpretações. Ou seja, embora falando de “coisas” diferentes, o falante deveria assentir para ambas nas mesmas situações, pois as duas

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interpretações seriam “verdadeiras”, tendo em vista o modelo em questão11.

Esses não são os termos nos quais o próprio Quine coloca o problema. Em seu vocabulário não encontramos referência a noções como “estrutura” e “morfismos”, embora ele fale em “modelos” e “permutações entre os modelos”.

É, portanto, sem sentido dizer, no interior de uma teoria, qual dos vários modelos possíveis de nossa teoria [linguagem] é o nosso modelo genuíno ou pretendido. Ainda assim, mesmo aqui podemos fazer sentido com a ideia de existirem vários modelos. Pois podemos ser capazes de mostrar que, para cada um dos modelos, tem de haver outro que seja uma permutação ou talvez uma diminuição do primeiro, mesmo que não seja especificável. (QUINE, 1969, p. 54)

Outrossim, Quine menciona em vários lugares as consequências ontológicas de sua tese, reforçando assim a importância de se considerar a tese desse ponto de vista e enfatizando um aspecto que nos parece essencial: o de ver a tese, não como uma tese epistemológica, mas como uma tese ontológica12. No artigo

“Ontological Relativity”, ele explicitamente afirma que:

11 Para uma explicação da tese da indeterminação da referência muito parecida com a que estamos oferecendo aqui, conferir o capítulo 8 do livro do Peter Hilton (2007) e sobre esse ponto em especial cf. as páginas 207-208. Minha interpretação geral da tese de Quine difere, no entanto, da dele em alguns aspectos. Quanto a ênfase, a dele acentua o aspecto que ele chama de “ontológico” e a minha o aspecto semântico. Introduzo também a noção de “modelo” e a analogia com a discussão sobre morfismos entre estruturas como modo de tornar mais clara a discussão de Quine para aqueles que trabalham com lógica e teoria das categorias.

12 Essa é também a opinião de Peter Hilton em seu livro recentemente publicado Quine. No capítulo 8, “Radical translation and its indeterminacy”, Hilton enfatiza a necessidade de se compreender a tese de Quine no sentido ontológico, e não no sentido epistemológico, sob pena de que ela se torne incoerente. “Esse problema se conecta com a questão […] de se a

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Referência, extensão, vinha sendo a parte firme; significado, a infirme. A indeterminação da tradução que está diante de nós agora, no entanto, perpassa extensão e intensão da mesma maneira. Os termos “coelho”, “partes não destacadas de coelho”, “estágios de coelho”, não diferem apenas quanto ao significado; eles são verdadeiros de coisas diferentes. (QUINE 1969a, p. 35) [ênfase nossa]

CONCLUSÃO

Podemos agora usar nosso vocabulário de teoria dos modelos para compreender a tese de Quine de um ponto de vista menos negativo. Havíamos dito no início que o modo mais comum de se ler a proposta de Quine seria vê-la como um questionamento a respeito da própria viabilidade de usarmos a linguagem, através de seu aparato sub-sentencial – nomes e predicados, para falarmos do mundo. Teríamos “perdido o mundo”! Contudo, vista agora simplesmente como um estabelecimento de fronteiras: a fronteira entre a parte sub-sentencial da linguagem, que possui mais de um modelo, e a parte proposicional, que possui apenas um modelo, essa tese assume um caráter filosófico positivo. Qual seja: podemos, sim, falar numa parte “universal” da linguagem, a parte verídico-funcional, mas ela não inclui a distinção “predicado/sujeito”, ou, dito ontologicamente, a distinção “propriedade/objeto”. Podemos também falar do mundo, usando nosso aparato referencial, mas pagando o preço de não podermos considerar nossa linguagem/teoria como universal.

indeterminação deve ser entendida no sentido epistemológico, nos mostrando os limites do conhecimento do tradutor, ou no sentido ontológico, apresentando os limites do que pode ser conhecido. Apesar de Quine frequente falar nas justificativas empíricas do linguista, é bem claro que ele tem em mente a última opção.” (HILTON, 2010, p.212) Eu apenas acrescentaria que não é propriamente um problema do que é possível conhecer, mas dos limites semânticos da noção de “objeto”.

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Assim, ao falarmos em ontologia, estaríamos sempre do lado “não universal” de nossa nova fronteira. Desse “lado”, teríamos mais de um modelo para a nossa linguagem, mas esse fato não significa impossibilidade de comunicação, significa apenas que temos de recorrer a regras metalinguísticas para fixar o modelo pretendido, sob pena, aí sim, de uma indeterminação semântica que, no entanto, não teria repercussões para a testabilidade empírica e para a noção de “verdade” pressuposta por nossas teorias sobre o mundo.

Temos de aceitar também, é claro, os aspectos críticos do teorema de Quine. Como havíamos dito no início, esse modo “crítico” de compreender a tese da indeterminação da referência colocaria em jogo a própria visão composicional da linguagem, ou seja, a visão segundo a qual a linguagem é uma estrutura organizada de modo sistemático e funcional, de tal modo que sempre poderíamos determinar o significado de qualquer sentença, mesmo seja uma nunca antes pronunciada, a partir da referência de suas partes. Assim, interpretar uma sentença seria um procedimento que envolveria funções semânticas, ou seja, funções que produziriam o significado de uma sentença qualquer somente a partir das referências de suas partes – objetos e propriedades.

Essa visão funcional composicional envolveria também, é claro, que a base desse processo recursivo – as referências das palavras – fosse estável, i.e., determinada. A indeterminação proposta pela tese de Quine atinge, portanto, justamente essa base estável. Ao invés de um fundamento ontológico para a distinção conceito/objeto, teríamos apenas hipóteses interpretativas, ou modelos alternativos. A impossibilidade em principio de se falar em um domínio universal afetaria diretamente, como podemos imaginar, toda a interpretação extensional usada pela teoria dos conjuntos para a parte necessária da nossa linguagem (aqui pensamos basicamente nas sentenças matemáticas), nas sentenças sobre conteúdos perceptuais e nos famosos truísmos de Moore e Wittgenstein no Sobre a Certeza.

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Referências

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