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A escola, a diferença, o sujeito: tessituras da inclusão

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Academic year: 2021

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JULIANA NASCIMENTO DE LIMA

A ESCOLA, A DIFERENÇA, O SUJEITO: TESSITURAS DA INCLUSÃO

IJUÍ 2011

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A ESCOLA, A DIFERENÇA, O SUJEITO: TESSITURAS DA INCLUSÃO

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Psicologia como requisito parcial para obtenção do título de Psicólogo junto ao Departamento Humanidades e Educação - DHE da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUI.

Orientação: Professora Dr. Lala Catarina Lenzi Nodari

IJUÍ 2011

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Na busca de compreender a inclusão das “necessidades educacionais especiais” em escolas comuns, se realizou o trabalho intitulado “A escola, a diferença, o sujeito: tessituras da inclusão”. Com base em pesquisa bibliográfica, partiu-se da história da “deficiência”, chegando à luta por direitos e a conquista legal destes A “deficiência” foi marcada pela exclusão, que repercute na cultura até os dias de hoje. A própria escola foi constituída dentro desta cultura e sofre influência de elementos que circulam no discurso social, marcada pela tendência à homogeneidade. Esta instituição precisa trabalhar com o heterogêneo, com a diversidade. A diferença é palavra chave ao pensar a inclusão, bem como o modo com que as subjetividades podem operar diante dela, envolvendo mecanismos de defesa e a própria constituição psíquica determinante na possibilidade de inclusão. A pesquisa realizada permitiu compreender a inclusão como um processo ainda em construção, estar na escola comum não significa necessariamente estar “incluído” (expressão utilizada com banalidade no meio escolar). Incluir envolve; poder investir no sujeito, acreditar que a diferença e a diversidade podem permitir a aprendizagem. É indispensável poder atribuir um novo olhar sobre a diferença, que não o da segregação. Construir recursos, inclusive subjetivos para conviver e operar com esta diferença.

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INTRODUÇÃO ... 4

1 CONTEXTUALIZANDO A INCLUSÃO: UM BREVE RECORTE HISTÓRICO E A LEGISLAÇÃO ATUAL ... 7

1.1 Aspectos históricos... 7

1.2 Aspectos legais ... 12

2 A INCLUSÃO: PARA ALÉM DE UMA IDEALIZAÇÃO ... 19

2.1 A escola: meio de inclusão/exclusão ... 19

2.2 A questão da diferença e sua incidência nos sujeitos ... 23

2.3 O Espelho e o Outro: o que isso tem a ver com a inclusão? ... 25

2.4 Mas, afinal, por que incluir?... 31

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 35

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 40

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O tema inclusão escolar instiga questionamentos a todos aqueles que estão de alguma forma, inseridos nesta instituição. A experiência de estágio de Psicologia com Ênfase em Processos Educacionais, realizada no ano de 2011 fomentou o desejo de pesquisar acerca deste tema. A inclusão de alunos com necessidades educacionais especiais, muitas vezes denominados como “incluídos” no meio escolar, gera movimento, em função da necessidade de adaptações demandadas, sejam físicas ou metodológicas, além da angústia que desperta nos professores e familiares, com dúvidas freqüentes sobre qual trabalho vai se desenvolver com este sujeito e com a turma que vai recebê-lo.

A questão da inclusão dos portadores de necessidade educacionais especiais na rede regular de ensino, dentro das classes comuns é tema atual, embora venha sendo discutida já há algum tempo. O desafio agora é deparar-se com a exigência da lei, especialmente no que diz respeito à inclusão dos portadores de necessidades educacionais especiais em classes regulares. A lei brasileira prevê a inclusão, garante a igualdade de direitos, de tratamento e oportunidade. Assim, a questão da inclusão nas escolas constitui-se em um tema de grande relevância social e, vai ao encontro da constituição Brasileira que está baseada nos princípios da cidadania e da igualdade de direitos.

Não é de hoje que a inclusão está em pauta, mas, ao longo do tempo ela assumiu diferentes configurações. Por anos a fio, a escola foi para aqueles que estavam de acordo com o ideal proposto pela sociedade, um número limitado. Aos poucos a escola foi se tornando mais aberta e passou a preocupar-se com quem ficava à margem do processo de escolarização. Surgiu a proposta do trabalho com classes especiais. Turmas formadas com os alunos que possuíam alguma “deficiência”1 e não acompanhavam o rendimento das turmas regulares.

A educação especial que iniciou como local de passagem acabava por substituir o ensino comum. Existiam políticas especiais voltadas especificamente ao trabalho com alunos ditos “deficientes”, educação pensada no sentido de preparar estes alunos para o retorno às classes comuns, tal como elas se organizavam para os ditos “normais”. A nomenclatura utilizada também passou por modificações sempre na tentativa de abordar a inclusão sem

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Aqui utilizado entre aspas, para destacar o estigma presente em se referir a alguém como “o deficiente”. Mostra-se adequado utilizar a expressão pessoa com deficiência, sem preconceito, definida pela Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva como aquela “que tem impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental ou sensorial que, em interação com diversas barreiras, podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade” (BRASIL, 2007, p.9).

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provocar mais exclusão ou produção de rótulos, e assim se falou e fala a respeito de deficientes, portadores de necessidades especiais, portadores de necessidades educacionais especiais.

Atualmente quando alguém se refere às necessidades educacionais especiais, é importante frisar a necessidade educacional especial, e o trabalho da escola para contemplar as necessidades implicadas no processo de aprendizagem. Existem necessidades educacionais especiais decorrentes de limitações sensoriais, especialmente a audição e a visão. Necessidades educacionais especiais decorrentes de limitações na cognição; Necessidades educacionais especiais decorrentes de limitações no aspecto físico. Que necessitam de recursos específicos a fim de possibilitar a aprendizagem.

A legislação tem impulsionado o movimento no sentido de uma educação inclusiva ao propor que as classes e escolas especiais sejam superadas, oferecendo ensino para todos preferencialmente nas escolas e classes comuns. O atendimento especializado em salas de recurso constitui na alternativa apresentada para suprir necessidades educacionais especiais.

Assim, o foco da pesquisa é o processo de inclusão e como ele acontece nas escolas, com suas possibilidades e dificuldades. A obrigatoriedade de matricula deveria assegurar a inclusão, contudo, é necessário pensar em qual conceito de inclusão está se falando. Estar em turmas regulares é ser incluído ou é necessário ir além e considerar a inclusão como um processo amplo, no qual conflitos são inerentes?

Portanto, inicialmente, o projeto de pesquisa foi pensado para além da pesquisa bibliográfica, propunha uma pesquisa de campo a ser realizada na forma de entrevistas com professores de escolas públicas, que trabalham com alunos portadores de necessidades educacionais especiais em suas turmas. Com base na idéia de compreender como acontece o processo de inclusão nas escolas, abrangendo as questões psíquicas e sócio-históricas, envolvidas neste. Entretanto, realizar a pesquisa prevista se inviabilizou e então o presente trabalho foi organizado com base em uma pesquisa bibliográfica, em literatura que pudesse contribuir para a compreensão das questões a serem discutidas.

As questões que surgiram deram espaço para a proposição de objetivos: investigar as questões sócio-históricas e culturais presentes no processo de inclusão, analisando os efeitos sociais e culturais construídos ao longo da história e que repercutem no atual processo de inclusão, estudar e analisar a inclusão em suas relações com a subjetividade, em especial as questões psíquicas envolvidas no processo de inclusão nas escolas e também compreender como ocorre a inclusão prevista em lei na prática do cotidiano escolar.

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O primeiro capítulo, intitulado “Contextualizando a inclusão: um breve recorte histórico e a legislação atual”, busca através do resgate histórico acerca da “deficiência” compreender como foi se constituindo a idéia de inclusão apesar da exclusão, e como os movimentos ao longo desta história levaram à luta por direitos, hoje garantidos por lei. A fim de situar o panorama atual, dentro do tema mostra-se fundamental resgatar a questão dos direitos conquistados no campo da legislação.

No segundo capítulo, intitulado “A inclusão: para além de uma idealização” entra em pauta a escola enquanto instituição e, portanto compreendida como parte do social que a circunda. Além disso, a questão da diferença é ponto fundamental quando se fala de inclusão, neste caso enfocada a partir do sujeito que precisa haver-se com ela. Também a constituição do sujeito psíquico, segundo a teoria psicanalítica vem somar nesta reflexão. Por fim, ainda neste capítulo se reflete sobre os motivos para se sustentar uma proposta de inclusão e possíveis contribuições neste sentido.

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1.1 Aspectos históricos

A educação inclusiva é uma questão amplamente discutida nos diferentes segmentos sociais pelos educandos, pais, professores, associações e no meio político. Muito já foi construído na luta pelos direitos dos ditos “deficientes”2, hoje amparados através da legislação, seja em acordos internacionais ou documentos oficiais brasileiros. Cabe situar a existência de um percurso sócio-político-econômico que possibilitou a construção do panorama atual, questões históricas determinantes no processo de inclusão que foram assumindo diversas configurações com o passar dos anos.

Portanto, ao falar da inclusão dos portadores de necessidades educacionais especiais na escola regular torna-se necessário situar a relação desta proposta com o ‘lugar’ oferecido aos “diferentes” pelo social, pensando dentro de qual concepção foram colocados diante daqueles que se julgavam “normais” ao longo da história da humanidade. É preciso pensar no humano como um ser histórico que se constitui também a partir da cultura e daquilo que circula no meio social. Conforme as necessidades apresentadas em determinada época, foram criados sistemas e concepções organizadores da vida em comum, da inclusão ou exclusão de alguém dentro dos padrões instituídos.

Historicamente houve muita segregação, associação das pessoas deficientes a vergonha e perigo, elas foram escondidas, isoladas e trancafiadas. Por vezes, resquícios desta época estão presentes no preconceito e na falta de conhecimento daqueles que encontram dificuldades em incluir.

É de conhecimento público a postura tomada diante da não correspondência ao ideal proposto pelas sociedades, práticas de exclusão e condenação. A prática do infanticídio foi utilizada, e os que não foram condenados a este fim, iam sendo paulatinamente (em alguns casos, sumariamente) afastados, escondidos ou abandonados à própria sorte.

A escola como local por excelência da transmissão3 traz questões que perpassam o processo da educação inclusiva, não ditos hoje considerados politicamente incorretos,

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Novamente destacando o estigma ao fazer referência a alguém como “o deficiente”. 3

Transmissão simbólica para além da transmissão de conhecimentos prevista no currículo escolar, que perpassa o discurso e a linguagem enquanto constituintes do sujeito “é a partir da transmissão simbólica que algo pode ser

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recalques4 que retornam e repercutem nas instituições. Como aponta a Declaração de Salamanca (1994) “a reforma das instituições sociais não constitui somente uma tarefa técnica, ela depende, acima de tudo, de convicções, compromisso e disposição dos indivíduos que compõem a sociedade”.

A questão da ‘diferença’ está colocada, então, diante dela foram buscadas explicações, formas de interpretar e compreender o que se apresentava fora do esperado. Para compreender as implicações do processo de construção de uma educação inclusiva, estas interpretações e as consequentes posturas assumidas a partir delas podem ser analisadas a partir de elementos históricos relacionados aos “deficientes”. Propõem-se então a realizar um pequeno resgate histórico a fim de construir uma leitura crítica desta realidade construída ao longo da história da humanidade a respeito da atual questão da educação inclusiva.

Em Esparta as aptidões físicas para ser um guerreiro eram condição de reconhecimento e aqueles que não as possuíam eram eliminados. Em Roma crianças “deformadas” eram descartadas nos esgotos.

Na antiguidade a sociedade se estruturava a partir da agricultura, pecuária e artesanato. Existiam os senhores e do outro lado, servos e escravos, estes últimos nas palavras de Aranha (2001) considerados sub-humanos, dependentes economicamente. Assim como situa o autor, a vida só tinha valor à medida que era ligada a nobreza, os que não possuíam tal título valiam à medida que produziam para os nobres. Como para o restante do povo, a vida dos deficientes não representava uma perda significativa, abandoná-los ou eliminá-los não consistia em uma questão ética para tal organização social.

Na Grécia antiga berço da civilização ocidental existia a idealização da república, Platão escreve sobre as ocupações da medicina e da jurisprudência: “cuidarão apenas dos cidadãos bem formados de corpo e alma, deixando morrer os que forem corporalmente defeituosos [...] é o melhor tanto para esses desgraçados como para a cidade em que vivem” (PLATÃO apud AMARAL, 1995, p. 44).

O infanticídio consistia em uma prática no início da Era Cristã (4-65 d.C.) e foi regido por Sêneca: “Nós sufocamos os pequenos monstros; nós afogamos até mesmo as crianças

passado, evidenciando-se o elo entre gerações, que liga o passado e o presente através de marcas simbólicas em um sujeito, definindo o seu lugar em sua história, em sua cultura” (COSTA, 2009, p. 15).

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Roudinesco e Plon (1998) referem se a Freud, explicando o mecanismo do recalque como um processo que visa manter no inconsciente, idéias e representações que causam desprazer no psiquismo, o conteúdo recalcado tem ligação com a pulsão e primeiramente havia produzido prazer.

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quando nascem defeituosas e anormais: não é a cólera e sim a razão que nos convida a separar os elementos sãos dos indivíduos nocivos” (SÊNECA apud AMARAL, 1995, p. 46)

Com o advento do cristianismo segundo Aranha5 parece que todos passaram a ser considerados filhos de Deus e os deficientes tornaram-se então merecedores da caridade. Entretanto, existiam diferentes formas de compreensão de acordo com cada comunidade, uma delas consistia na noção de assistencialismo e caridade em relação aos deficientes, por compreender que “eles eram instrumentos de Deus para alertar os homens, para agraciar as pessoas com a possibilidade de fazerem caridade. Assim a desgraça de uns proporcionava meios de salvação de outros” (ROCHA, 2000, p. 4).

Por outro lado a segregação foi justificada pela ideia do “homem à imagem e semelhança de Deus”. E desse modo podemos compreender que “a concepção de deficiência variou em função das noções teológicas de pecado e de expiação. A explicação reside na visão pessimista do homem, entendido como uma besta demoníaca, quando lhe vem a faltar à razão ou ajuda divina” (PESSOTI apud NOGUEIRA, 2008, p.4).

Na idade média, com a inquisição católica, muitos foram considerados criaturas demoníacas, condenados à torturas e à fogueira. Parafraseando Aranha (2001, p.5) os abusos da igreja católica tiveram como consequência a reforma protestante, e esta, embora fosse socialmente esperado, continua admitindo a concepção dos “dementes” como criaturas diabólicas, pecadores condenados por Deus, portanto, nesse aspecto a nova igreja não diverge daquela que se separa.

Após a idade média6, acontece o advento do renascimento e a aposta no homem, na sua liberdade de pensamento e na racionalidade como meios de transformação do mundo, caracterizando assim a revolução científica na qual os dogmas religiosos são superados. As pesquisas científicas puderam se desenvolver no sentido de compreender e tratar as limitações dos ditos “deficientes”, principalmente a partir do século XVI.

A revolução Burguesa possibilitou uma nova forma de pensar a deficiência, como questão orgânica, ligada a natureza. Nesta época, surge o primeiro hospital psiquiátrico, que funcionava conforme os asilos e conventos, ou seja, as pessoas eram lá confinadas sem que lhes fosse oferecido o devido tratamento. Neste modelo, a questão da deficiência era pensada a partir da perspectiva da hereditariedade e como tal algo dado, incurável.

5Artigo intitulado Paradigmas da Relação da Sociedade com as Pessoas com Deficiência, publicado na Revista

do Ministério Público do Trabalho, ano XI, n°21, em março de 2001.

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Período histórico em que a ciência foi desconsiderada e perseguida pelo clero que supunha ser detentor do saber e da verdade.

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Com o método científico “iniciam-se estudos em torno das tipologias e com elas a mentalidade classificatória na concepção das deficiências, decorrentes do modelo médico, impregnadas de noções com forte caráter de patologia, doença” (NOGUEIRA, 2008, p.4). Nos séculos XVII e XVIII, persiste o mesmo modelo de institucionalização das pessoas com deficiência a propósito de tratá-los; tratamento questionável e gerador de segregação, que mais consistia numa forma de afastar o deficiente da sua comunidade, como maneira de proteger a sociedade diante destes temidos, agora excluídos e enclausurado seres ‘anormais’. Rocha refere que:

Esquirol, Belhomme, Pinel, Fodéré, Morel, entre outros, colaboraram para a afirmação da visão fatalista da deficiência, onde o inatismo era utilizado como explicação aceitável e que pouco era possível fazer, sendo que o remédio era segregá-los, já que os excepcionais eram vistos como um perigo para si e para a sociedade (ROCHA, 2000, p.5).

Existiram avanços importantes, contudo o objetivo de tratar a doença mental não superou a condição de exclusão, com base em classificações e padrões de normalidade: “a repercussão moral desta proposta institui o objetivo de adequar o sujeito à normalidade social, sendo o espaço social indicador da (im)possibilidade de reconhecimento ou adequação do sujeito” (FREIRE, 2004 ,p.26).

É imprescindível colocar que tais concepções começaram de maneira tímida, e como escreve Mazzotta (1999) até o século XVIII as noções a respeito da deficiência (no Brasil em grande parte) ainda estavam baseadas nos misticismo e ocultismo, nas palavras do referido autor, sem base científica para desenvolver noções realísticas a respeito, neste caso o conceito de diferenças individuais não era compreendido ou avaliado.

De qualquer forma, o modelo de institucionalização passa a ser questionado somente a partir dos anos 60. Com o capitalismo comercial começa a se pensar que os indivíduos são diferentes e sobre a importância do respeito à diferença. A escola que era regida pela igreja, passa a ser responsabilidade do estado, como preparação para a necessária mão de obra ao capitalismo. No século XX passam a haver critérios sobre ser deficiente e o contexto no qual isto se aplica. Partindo daí, parece ocorrer uma visão mais crítica e contextualizada:

Com o extraordinário avanço tecnológico, liberta-se o homem de todo o trabalho repetitivo, desumano, e isso vai repercutir na questão da deficiência. Nesse contexto, a definição de deficiência perde o caráter oficial e universal, passando a ser contingencial, colocando que alguém é deficiente somente em um contexto temporal, espacial e socialmente determinado, começando a compreender a necessidade de se especificar critérios segundo os quais o indivíduo é deficiente (ROCHA, 2000, p.6)

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Aranha (2001) nos mostra que aconteceram varias ações, que refletem interesses implicados no processo de desinstitucionalizar, primeiramente o interesse do sistema em diminuir gastos diante do custo necessário para manter a segregação, já que as pessoas institucionalizadas eram improdutivas, assim a possibilidade de autonomia e produtividade os tornaria mais úteis; além disso, avançava o processo geral de reflexão e crítica (especialmente no caso dos direitos humanos e das minorias) acerca do efeito da organização político- econômica na sociedade e nas subjetividades; além das fortes críticas exercidas pela academia científica e categorias profissionais.

A desinstitucionalização é um movimento resultante de diferentes concepções e interesses, que foi constituído enquanto um processo diante do fracasso da segregação, que não cumpria com o papel de reabilitar o sujeito para a vida normal, para a produtividade. Aranha (2001) fala do início do processo de normalização, como sugere a palavra, compreende-se da deficiência a partir da norma, do dito “normal” e do desviante que deve adequar-se ao padrão da maioria.

Na proposta de normalização, os deficientes devem estar, nos mesmos ambientes que os ditos normais, participando da forma mais próxima possível do cotidiano social: residindo em seus próprios lares, estudando nas mesmas escolas e turmas, trabalhando sob o mesmo modelo de competitividade e para o próprio sustento. Nas palavras de Aranha (2001) esta proposta foi orientada pelo conceito de integração, oferecimento de serviços, com equipes de diferentes profissionais trabalhando no treinamento para a vida em comunidade, para as tarefas do cotidiano e para o mercado de trabalho. Ações foram desenvolvidas no sentido de concretizar a proposta de normalização e segundo Aranha, consistem em:

No âmbito da educação, as escolas especiais e as classes especiais, mais claramente voltadas para o ensino do aluno visando sua ida ou seu retorno para as salas de aula denominada normais; na área profissional, os melhores exemplos são as oficinas abrigadas e os centros de reabilitação (ARANHA, 2001, p. 16).

O objeto de transformação era o próprio sujeito em questão. Neste caso, a responsabilidade estava centrada no portador de necessidades especiais, existiam atividades para trabalhar a sociedade, porém com caráter secundário, complementar. Logo foram percebidas as dificuldades na implantação de tal modelo, manifestaram-se críticas vindas do meio acadêmico e das “pessoas portadoras de deficiências” que se organizavam em associações para buscar seus direitos. Ficava claro que a tentativa de “normalização” nem

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sempre era bem sucedida, seja em decorrência das especificidades das limitações ou em função da organização social (fator pouco questionado) muitos não obtinham sucesso.

A crítica questionava o critério de que para integrar-se e ter valor social é necessário ser igual, ignorando as diferenças existentes e próprias ao ser humano. Tais discussões proporcionaram a construção da idéia “portador de necessidades especiais” enquanto cidadão, pessoa de direitos, entre eles o de oportunidades iguais junto ao meio social. Deste modo, o foco da mudança se desloca do sujeito e passa abranger uma maior responsabilidade do meio social.

Assim, aos poucos se abrem brechas para questionar alguns paradigmas excludentes, a questão da inclusão ganha destaque de maneira mais crítica. Como produto da luta por direitos foram construídos acordos internacionais e leis vigentes no Brasil que orientam as práticas no país, com o objetivo de assegurar estes direitos. Passamos então a revisar aspectos relevantes no que diz respeito à inclusão enquanto luta por direitos.

1.2 Aspectos legais

A nível internacional foram pensadas importantes diretrizes que balizam os países na construção de suas próprias necessidades legislativas. A Declaração de Salamanca fala sobre princípios, Política e prática em Educação Especial. Constituindo-se num importante documento construído na conferência Mundial em Educação Especial organizada pelo governo da Espanha em cooperação com a Organização das Nações Unidas para a Educação -UNESCO, realizada em Salamanca entre 7 e 10 de junho de 1994.

“De acordo com a Declaração de Salamanca7 o termo “necessidades educacionais especiais” refere-se a todas aquelas crianças ou jovens cujas necessidades educacionais especiais se originam em função de deficiências ou dificuldades de “aprendizagem”. Enfrentar dificuldades de aprendizagem em algum momento de sua vida escolar é muito comum para as crianças e adolescentes. De certo modo, pode ser possível que, em algum tempo, todos venham a ter uma necessidade educacional especial, ou seja, ai é preciso construir alternativas para promover sua aprendizagem pensando em suas necessidades e especificidades.

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A referência feita remete-se ao documento construído na conferência Mundial em Educação Especial, Governo Espanhol e UNESCO. Salamanca, de 07 a 10 de junho de 1994.

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Documentos do Ministério da Educação e Cultura - MEC complementam o que diz a Declaração se Salamanca. O termo necessidades educacionais especiais “é uma forma de reconhecer que muitos alunos, que apresentam ou não deficiências ou altas habilidades possuem necessidades educacionais que passam a ser especiais quando exigem respostas específicas adequadas” (BRASIL, 2006, p.42).

A escola encontra-se hoje diante de um desafio, “o de ser ao mesmo tempo igual para todos e única para cada um” (TIGRE; TEIXEIRA, 2005, p.57) a educação inclusiva é uma forma de pensar a educação para todos, respeitando singularidades. O MEC e a Secretaria de Educação Especial em seus cadernos “Saberes e práticas da Inclusão” falam do desafio de pensar, de trabalhar na construção de uma pedagogia capaz de atender as diferentes necessidades educacionais, abrangendo situações pessoais e características de aprendizagem. Quando for necessário deve se atuar de acordo com uma pedagogia diferenciada, e esta por sua vez também precisa ser válida para todos os alunos. Além disto, fala-se do desafio de colocar em prática de forma efetiva no ambiente escolar a proposta pedagógica.

Neste sentido o MEC situa que é dever da escola oferecer possibilidades aos educandos, incluindo aqueles que possuem desvantagens severas. Uma escola inclusiva deve trabalhar com as necessidades especiais respeitando a abordagem utilizada com a maioria. Para tal é necessária uma pedagogia centrada no educando, que possa contemplar amplamente a diversidade encontrada na realidade escolar, ou seja, uma pedagogia para todos.

De acordo com a Declaração de Salamanca a escola inclusiva vai além da qualidade de ensino sempre buscada, ela permite atuar na comunidade, na sociedade, modificando atitudes e preconceitos, combatendo a discriminação e promovendo o acolhimento, para que se constitua uma sociedade inclusiva. “Por um tempo demasiadamente longo, os problemas das pessoas portadoras de deficiências têm sido compostos por uma sociedade que inabilita, que tem prestado mais atenção aos impedimentos do que aos potenciais de tais pessoas” (SALAMANCA,1994, p.4).

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva refere-se à convenção da Guatemala de 1999, pensada com o objetivo de prevenir e eliminar todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência e propiciar a sua plena integração a sociedade e promulgada no Brasil pelo Decreto n° 3.956/2001. Citando o que esta convenção afirma:

As pessoas com deficiência têm os mesmo direitos humanos e liberdades fundamentais que as demais pessoas, definindo como discriminação com base na deficiência toda diferenciação ou exclusão que possa impedir ou anular o exercício

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dos direitos humanos e suas liberdades fundamentais. Este decreto tem importante repercussão na educação, exigindo uma reinterpretação da educação especial, compreendida no contexto da diferenciação, adotado para promover a eliminação das barreiras que impedem o acesso à escolarização (Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Especial, 2007).

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação inclusiva é um documento do MEC/SEESP (Secretaria da Educação Especial do Ministério da Educação e Cultura- SEESP) elaborado pelo grupo de trabalho nomeado pela primeira Portaria Ministerial n° 555, de 5 de junho de 2007, prorrogada pela portaria n°948, de 9 de outubro de 2007. Este documento apresenta e discute idéias fundamentais na construção da Educação inclusiva a nível de Brasil, portanto é válido retomá-lo em forma de síntese. Em conjunto com a obra de Marcos J. S. Mazzotta8 torna-se possível retomar fatos marcantes da história da educação especial no Brasil.

Segundo o mesmo autor (1999, p.27) a inclusão da educação especial na política educacional brasileira ocorre somente no final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta do século XX. Há a idéia de assistência aos deficientes em contraste com a educação de alunos que apresentam necessidades educacionais especiais. Mazzotta ainda, situa dois períodos referentes à educação especial no Brasil, de 1854 a 1956 um período marcado por iniciativas oficiais e particulares isoladas; de 1957 a 1993 marcaram as iniciativas oficiais de âmbito nacional.

Na época do império o Brasil passou a realizar os primeiros atendimentos a deficientes, através do Decreto Imperial n° 1428, Dom Pedro II fundou no Rio de Janeiro o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, hoje Instituto Benjamin Constant – IBC; em 1857 Dom Pedro II funda também no Rio de Janeiro o Instituto dos Surdos- Mudos9 atual Instituto Nacional da Educação dos Surdos – INES.

Estas iniciativas foram um primeiro passo para discussão da educação dos “portadores de deficiência” no Brasil, embora em 1872, com uma população de 15.848 cegos e 11.595 surdos, fossem atendidos 35 cegos e 17 surdos (MAZZOTTA, 1999, p. 29).

Até 1950 existiam cinquenta e quatro estabelecimentos de ensino regular e onze instituições especializadas. Existiam quarenta estabelecimentos regulares que atendiam deficientes mentais, quatorze instituições regulares que atendiam alunos com outras

8 Educação Especial no Brasil: História e Políticas Públicas.

9Na época utilizava-se a nomenclatura surdo-mudo, porém os surdos são pessoas que tem um déficit ou perda

total da audição e portanto podem vir a não falar e, então encontram outras formas de comunicação, como a conhecida Língua Brasileira de Sinais- LIBRAS.

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deficiências. Também haviam três instituições especializadas que trabalhavam com deficientes mentais e oito que atuavam com outras deficiências (MAZZOTTA, 1999, p. 31).

Em 1926, é fundado o Instituto Pestalozzi, instituição especializada no trabalho com os portadores de deficiência mental. Em 1954 é fundada a primeira Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais- APPAE. Assim como estas instituições, até 1956, a maioria das iniciativas aconteceu a nível privado ou de maneira isolada, institutos, associações, lares, fundações, a chamada Santa Casa e poucas escolas, incentivadas por pais e pessoas pioneiras que trabalhavam pelos direitos das pessoas com deficiência.

O chamado “atendimento educacional aos excepcionais” enquanto ação pública a nível nacional ganhou força a partir de 1957, iniciou com campanhas, a pioneira foi a “Campanha para a educação do Surdo Brasileiro – C.E.S.B.” instituída pelo decreto federal n° 42.728, de 3 de dezembro de 1957. Segundo Mazzotta (1999) a inclusão da educação especial na política educacional brasileira ocorre somente no final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta do século XX. Ainda com a idéia de assistência aos deficientes em oposição à concepção de educação dos alunos que apresentam necessidades educacionais especiais.

No ano de 1961 através da lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- LDBEN n° 4.024/61 o atendimento educacional ás pessoas com deficiência passa a ser fundamentado prevendo o direito dos “excepcionais” à educação, com preferência ao atendimento dentro do sistema geral de ensino.

Através do Decreto n° 72.425 de três de julho de 1973 o MEC cria o Centro Nacional de educação especial – CENESP “com a finalidade de promover em todo o território nacional, a expansão e melhoria do atendimento aos excepcionais” (BRASIL, 1973, p.1). O Centro Nacional de Educação Especial foi criado para gerenciar a educação especial no Brasil, suas ações eram pensadas e desenvolvidas a partir da perspectiva de integração, com campanhas assistencialistas e iniciativas isoladas do estado.

Como analisa o documento do MEC/SEESP (2007) neste momento uma política pública de acesso universal a educação não acontece, existem “políticas especiais”, para aqueles portadores de deficiências. Os que possuem altas habilidades têm acesso ao ensino regular, mas, sem um atendimento especializado que possa considerar suas singularidades de aprendizagem.

Com o decreto n° 93.613 de 1986, a CENESP se tornou a Secretaria de Educação Especial, SESPE, esta secretaria chegou a ser substituída pela chamada SENEB (Secretaria Nacional de Educação Básica) e também pela DESE (Departamento de Educação Supletiva e Especial); em 1992 reaparece uma nova Secretaria de Educação Especial SEESP. O fato de

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existir uma Secretaria de Educação Especial indica uma separação em relação aos demais órgãos responsáveis pela educação, na chamada rede regular de ensino.

Existem documentos importantes que não dizem respeito especificamente à educação dos portadores de necessidades educacionais especiais, mas que, abrangem aspectos fundamentais. A constituição Federal de 1988 garante a todo país, leis que atuam de forma a promover e assegurar a inclusão na escola. No artigo 205, define a educação como direito de todos, dever do estado e da família. No artigo 206, inciso I, dispõe sobre a “igualdade de condições de acesso e permanência na escola”. Com o artigo 208, fica estabelecido o “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.

O estatuto da Criança e do adolescente - ECA lei 8.069/90, artigo 55, estabelece que “os pais tem a obrigação de matricular seus filhos e pupilos na rede regular de ensino”. No artigo 11, o ECA fala da saúde e garante nos parágrafos primeiro e segundo: “A criança e o adolescente portadores de deficiência receberão atendimento especializado”. No artigo 54, respectivamente em relação à educação garante “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino”.

Em 1994, é publicada a Política Nacional de Educação Especial, que previa a “integração institucional”, com o acesso a rede comum de ensino, contudo, esta integração compreendia somente os que pudessem acompanhar o ritmo do currículo previsto para o ensino comum, como é analisado na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2007). Mais uma vez, fica clara a tentativa de manter um padrão homogêneo na escola, sem provocar uma reformulação nas práticas educacionais, de modo a valorizar os diferentes potenciais de aprendizagem no ensino comum.

As Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, Resolução CNE/CEB n° 2°/2001, no artigo 2° determina que:

Os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizarem-se para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para uma educação de qualidade para todos (BRASIL, 2001, p.1).

Assim, o atendimento educacional especializado assume um papel complementar à escolarização. Entretanto, ao ser admitida a possibilidade de substituição do ensino regular, as diretrizes não potencializam o que é preconizado no artigo 2° de 2001, conforme analisa a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2007).

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A possibilidade de diferentes interpretações dos documentos que regem a educação dos portadores de necessidades educacionais especiais é uma questão importante, oferecendo margem a distorções e influência de interesses políticos e pessoais.

Apesar desta questão o Plano de Desenvolvimento de Educação-PDE atua de forma a superar a oposição: educação regular/ educação especial tão presente na história da educação brasileira. Este plano tem “como eixos a formação de professores para a educação especial, a implantação de salas de recurso multifuncionais, acessibilidade arquitetônica dos prédios escolares, acesso e a permanência das pessoas com deficiência na educação superior” (MEC/ SEESP, 2007, p.5).

O objetivo da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva elaborada em 2007 é:

O acesso, a participação e a aprendizagem dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/ superdotação nas escolas regulares, orientando os sistemas de ensino para promover respostas às necessidades educacionais especiais, garantindo: transversalidade da educação especial desde a educação infantil até a educação superior; atendimento educacional especializado; continuidade da escolarização nos níveis mais elevados de ensino; formação de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a inclusão escolar; participação da família e da comunidade; acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários e equipamentos, nos transportes, na comunicação e informação; e articulação intersetorial na implementação de políticas públicas (MEC/SEESP, 2007, p.8).

As ações propostas pelas políticas estão cada vez mais direcionadas para a reflexão acerca da aprendizagem do aluno portador de necessidades educacionais especiais. Para além do acesso, à rede regular de ensino, fica clara a importância da permanência nesta, bem como a qualidade da educação oferecida atendendo às necessidades educacionais de cada aluno. Um aspecto fundamental é sair do foco da limitação passando a ver as possibilidades, com ênfase na aprendizagem.

Estes são aspectos significativos diante do percurso brasileiro na questão da inclusão. Mazzotta as características das políticas de âmbito nacional até 1990 são: “centralização do poder de decisão e execução, atuação marcadamente terapêutica e assistencial ao invés de educacional, ênfase ao atendimento segregado realizado por instituições especializadas particulares” (op. cit. 1999, p.129).

Tanto os aspectos históricos acerca da “deficiência” como a luta e a conquista de direitos, permitem compreender as questões atuais e legais acerca da necessidade de incluir, constituídas historicamente como um processo. Ao mesmo tempo, a legislação tem impulsionado discussões e preocupações no contexto escolar.

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Pensar aspectos sociais e políticos envolvidos no processo de inclusão possibilita refletir sobre elementos fundamentais para a compreensão de interpretações e dificuldades encontradas acerca da educação dos portadores de necessidades educacionais especiais.

Fica a questão, a lei garante a inclusão dos sujeitos?

O fato de existir uma legislação que assegura a inclusão, pode pressupor a existência da exclusão, aspecto possível de ser confirmado quando se revisita a história da humanidade acerca da deficiência.

Seguindo o percurso histórico e legal da inclusão dos alunos portadores de necessidades educacionais especiais na rede regular de ensino, no segundo capítulo pretendemos analisar as discussões atuais acerca da educação inclusiva, articulando os campos da educação e da psicologia; considerando os efeitos do processo de construção histórica da exclusão/inclusão e a conquista de direitos sociais e buscando construir uma reflexão critica, contextualizada, estabelecendo pontes com a realidade que perpassa o cotidiano escolar.

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Além de pensar como se constituiu o atual panorama da inclusão, é imprescindível pensar a escola, enquanto espaço no qual se pretende incluir os portadores de necessidades educacionais especiais. O que significa a incluir na escola? Quais as condições que ela oferece àqueles que pretende incluir?

2.1 A escola: meio de inclusão/exclusão

Ariès (1981) escreve a respeito da história social da criança e da família, e nos situa a acerca da indiferença em relação às idades, existente na Idade Média, manifesta no tratamento dado às crianças, praticamente como pequenos adultos, a circular nos mesmos espaços que os adultos, utilizando as mesmas roupas, partilhando de tudo o que dizia respeito à vida em sociedade da época.

A compreensão do fenômeno da infância manifestou-se primeiramente através da “paparicação”10 surgida no meio familiar. Posteriormente, as crianças, (agora associadas à infância) passam a ser preocupação de “eclesiásticos e homens da lei que falam da necessidade de preservá-las e discipliná-las” (ARIÈS, 1981, p.163). A escola assume o papel de proteger a infância da vida leiga, como meio para preservar sua moralidade, estabelecendo uma lei diferenciada em relação à que regia a vida adulta:

O estabelecimento definitivo de uma regra de disciplina completou a evolução que conduziu da escola medieval, simples sala de aula, ao colégio moderno, instituição complexa, não apenas de ensino, mas de vigilância e enquadramento da juventude (ARIÈS, 1981, p.170).

Foi preciso um bom tempo para a escola ser compreendida como condição de boa educação. A organização das escolas foi levando gradualmente a separação em classes e por idades, pensando no desenvolvimento da criança:

Desde o século XV, pelo menos, começou-se a dividir a população escolar em grupos da mesma capacidade que eram colocados sob a direção de um mesmo mestre, num mesmo local (...) as classes e seus professores foram isolados em salas especiais – e essa iniciativa de origem flamenga e parisiense gerou a estrutura

10

A criança nas palavras de Ariés (1981) se torna fonte de distração e relaxamento para o adulto, através do prazer de paparicar sem preocupação moral ou educativa, divertindo-se diante da ingenuidade e da graça das crianças pequenas.

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moderna de classe escolar. Assistimos então a um processo de diferenciação da massa escolar, que no início do século XV era desorganizada. Esse processo correspondeu a uma necessidade ainda nova de adaptar o ensino do mestre ao nível do aluno (ARIÈS, 1981, p. 172-3).

A preocupação com o aluno marca uma mudança fundamental, e a passagem da repetição e métodos violentos utilizados na idade média, para a idéia de disciplina, de origem religiosa, para aperfeiçoamento moral. E também se coloca a noção de preparação para a vida adulta.

A escola começa então a separar através das classes organizadas por idades, e hoje é associada ao tempo de ser criança, como espaço da infância. Além disso, muitas vezes a aprendizagem acaba por ser condicionada ao espaço escolar, antes adquirida no cotidiano, nos espaços de convivência, em comunidade entre crianças e adultos. Assim, se inicia a escolarização, o enclausuramento das crianças, a fim de promover a aprendizagem necessária para constituir um adulto e prepará-lo para exigências da vida, como o trabalho.

Na atual organização social a escola é protagonista, direito garantido por lei, e muitas vezes ao falar em educação fica implícita a idéia da educação escolar. Mas nem todos estudam ou tem acesso à mesma qualidade de ensino. Fala-se em educação para todos. Mas, no Brasil, de quem se fala ao dizer todos?

Especialmente no Brasil, ao mesmo tempo que se debateu a extensão da escola a todos, também se produziu uma história social da infância na qual nossa sociedade se eximia da responsabilidade de educar expressiva parte da população quando classificada como “anormal”, como “delinqüente”, como “doente”, como “inferior” e, muitas vezes, simplesmente como “pobre”. (FREITAS, 2011, p. 46).

E para quem freqüenta a escola qual a realidade? A tendência do trabalho escolar é homogeneizar, dividir em classes, elaborar planos de trabalho com conteúdos específicos pensados para determinada série, a ser assimilado em determinado tempo, de forma gradual.

O que acontece então com o trabalho docente, com as técnicas, com o corpo do aluno, com a configuração do tempo, com a precisão instrumental, com os saberes reconhecidos é uma profunda impregnação da forma que a educação adquire porque praticada simultaneamente, no mesmo lugar, com a mesma contagem de tempo, com os mesmo objetivos, voltadas para os mesmos fins e, principalmente, baseada nas estratégias de agrupamento considerados homogêneos para que o trabalho do professor possa ensinar a muitos, no mesmo ritmo, o mesmo conteúdo (FREITAS, 2011, p. 39).

A escola possui um tempo próprio, organizado para promover a aprendizagem simultânea do mesmo conteúdo por todos. Persiste a generalização da educação em massa,

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feita na escola, a única reconhecida em nossa sociedade. Todos, no mesmo local aprendendo o mesmo conteúdo, ao mesmo tempo, partindo do pressuposto de que o ponto de partida é igual, bem como o ritmo de aprendizagem, com estratégias pensadas com base em níveis de aprendizado, como meio para atingir a etapa seguinte.

Freitas (2011) situa o tempo como decisivo na educação em massa, constituindo em estratégia multiplicadora. Neste modelo, o individual precisa adaptar-se ao tempo escolar, em ritmo e forma de aprendizagem. A educação escolar atua como um “todo concatenado”, exigindo disciplina, com fronteiras bem delimitadas que se aproximam de um conhecimento “engavetado”. Se “todos” precisam aprender simultaneamente, como a história de cada indivíduo vai trabalhar com esta exigência, já que “as desvantagens devem ‘sumir’ para que o trabalho escolar se realize” (FREITAS, 2011, p. 48).

A avaliação no modelo de reprovação para aqueles que não assimilam o conteúdo transmitido pelo professor e previsto no currículo é mais um exemplo da tentativa de homogeneização, avaliação que acontece através de provas, trabalhos escritos, de forma estanque, pelo menos a partir do quinto ano do ensino fundamental. Isto leva à direção contrária de um acompanhamento mais individual e que valorize todas as capacidades de expressão das crianças e adolescentes.

A inclusão na perspectiva legislativa atua na direção do acesso de todos à classe comum. Além disso, há a passagem da perspectiva de adequação do indivíduo à escola, para a proposição de que a escola se adapte, para oferecer condições adequadas ao aluno. Construir uma escola inclusiva implica modificar antigas estruturas, as diferenças precisam ser pensadas, a singularidade de cada um precisa estar no planejamento, na avaliação, nos estatutos, respeitando o desenvolvimento dos sujeitos no percurso do aprendizado, os diferentes ritmos e formas de assimilação e apropriação do conhecimento.

Emílio (2004) escreve apontando que não se trata apenas de modificar o conteúdo, a avaliação ou a formação dos professores. Para a autora, a legislação não vai garantir que as idéias de homogeneização e do aluno ideal sejam superadas. Os alunos com necessidades educacionais especiais possuem especificidades que dificultam a resposta às demandas da escola tradicional.

Diante do percurso feito pelas escolas tradicionais “a inclusão escolar dos alunos com necessidades especiais é um desafio porque confronta o (pretenso) sistema escolar homogêneo com uma heterogeneidade inusitada, a heterogeneidade dos alunos com condições de aprendizagem muito diversas” (BAPTISTA, 2006, p.81). ‘Flexibilizar’ o planejamento,

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pensar novas estratégias pedagógicas, estar disposto a mudar é um desafio. A tendência, tratando-se de educação é negar a diferença, homogeneizar.

Ao falar de inclusão fala-se do movimento que se opera no social como um todo e na escola, em relação à diferença, que possibilita um meio, uma sociedade inclusiva, disposta a acolher, dar lugar àquele que não corresponde ao padrão. Neste caso, os padrões passam a ser relativizados e a escola ganha flexibilidade.

Entretanto, é preciso analisar mais profundamente, a questão da inclusão para não se cair na armadilha da idealização ingênua. Diante do panorama que caracterizou e caracteriza a educação formal a inclusão precisa ser compreendida como um processo. A escola como uma instituição está inserida num contexto, o discurso social compõe a tessitura de suas relações.

Meira refere-se ao filme “Inteligência Artificial”, na cena em que David vê muitos iguais a ele.

O mérito do filme “Inteligência Artificial” talvez seja o de evocar, de forma fictícia e ao mesmo tempo atual, o quanto hoje a sociedade caminha na direção oposta à singularização, onde o sujeito é apagado em nome de ideais que revelam a prevalência da tecnologia e do domínio sobre os objetos. Os brinquedos de hoje, metáforas do social, são cada vez mais marcados por estes ideais. E as crianças acabam por ter que realizar verdadeiras epopeias para encontrarem, no meio deste universo de estereotipias, uma história que venha a lhes cobrir de palavras ali onde estão submersas em um universo interminável de objetos (MEIRA, 2001, p.39).

Vivemos em uma sociedade pautada por ideais de perfeição, começando pelo do corpo, passando pelo desejo do sucesso. A competitividade é fundamental quando as leis de mercado assumem tanta importância no discurso, na primazia do objeto, como algo desejado e valorizado pelo social, através de instrumentos como a mídia que programa os indivíduos para o consumo, a fim de garantir os lucros do capitalismo.

Na sociedade contemporânea, vemos os ideais sociais evanescerem a cada instante. Fazer frente a esta fragilização do laço social é um dos imperativos que cabe à escola responder. A constituição de laços sociais supõe uma posição desejante que se constitui na via discursiva e que funda se em referência ao desejo do outro (MEIRA, 2003, p.29).

Mena (2000) fala dos elementos constitutivos da cultura, que estão nas ruas, na televisão, na escola, no trabalho, no ônibus, “disponíveis a todos” ou que deveriam estar. Refere-se então a importância da inclusão simbólica, que seria a “autorização e a permissão para que os elementos culturais sejam compartilhados por todos, e através desse compartilhamento, possam ser reconhecidos como pertencentes, integrantes e representantes

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da cultura” (MENA, 2000, p. 131). O reconhecimento de si e do outro através dos elementos da cultura.

Voltar o olhar sobre a incidência do discurso social na instituição escolar é fundamental para compreender muitos entraves presentes no processo de inclusão. Aponta-se assim, uma possível discussão a qual não cabe deter-se mais profundamente neste trabalho.

2.2 A questão da diferença e sua incidência nos sujeitos

Emílio (2004) analisa que igualdade e diferença são defendidos praticamente na mesma proporção, expressas nas frases que circulam no social “somos todos iguais” e “somos todos diferentes”. Somos todos diferentes enquanto sujeitos com especificidades próprias, seja na forma de aprender ou no modo de relacionar-se. Somos todos iguais enquanto cidadãos com direitos, como a saúde e a educação. A autora preocupa-se com a negação explicita das diferenças, que são significativas.

Ao deparar-se com a diferença

Temos a incumbência de suportar a não-familiaridade do estranho, do exótico, de conviver com ela tornando-a familiar e conseqüentemente provocando uma transformação interna, mobilizando questionamentos de nossos próprios conceitos preconceitos e valores (EMÍLIO, 2004, p.66).

Freud aborda o conceito do estranho, permitindo a compreensão de que o diferente pode causar estranhamento. Mas o que poderia motivar tal reação? “Pode ser que o estranho [unheimlich] seja algo que é secretamente familiar [heimlich- heimisch], que foi submetido à repressão e depois voltou” (FREUD, 1919, p.262). O estranho nos remete ao familiar, conteúdo inconsciente, que fora recalcado, assim o outro é capaz de mobilizar estes conteúdos. O diferente, expõe as diferenças, dificuldades e limitações daquele que se confronta com ele. “Essa espécie de estranheza origina-se da sua proximidade ao complexo de castração11” (FREUD, 1919, p.261).

A diferença além de colocar o sujeito diante do estranhamento, pode mobilizar mecanismos de defesa inconscientes, abordados por Lígia Amaral (1995) e aqui retomados. Existe o abandono, a falta de investimento que caracteriza uma rejeição. Também a superproteção, formação reativa que permite transformar um afeto em seu oposto. A negação

11

“Sentimento inconsciente de ameaça experimentado pela criança quando ela constata a diferença anatômica entre os sexos” (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 105).

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da diferença em que vamos nos deter com maior empenho, é um meio de manter o equilíbrio intrapsíquico, na busca de eliminar a fonte de perigo, tensão. A negação pode acontecer através da atenuação, da compensação e da simulação.

Na atenuação, é como se houvesse a tentativa de dar menos importância à questão, afirmando não ser tão grave com base na existência de situações piores; Na compensação busca-se mascarar a realidade apontando o foco para aspectos positivos “é deficiente físico, mas é tão inteligente”, “tem dificuldade de aprendizagem, mas é o primeiro a se oferecer para ajudar quando a escola precisa de algo”, neste caso a palavra chave é o “mas”; A simulação é a tentativa de impedir a percepção das limitações, por exemplo: “é cega, mas é como se não fosse”.

A estes mecanismos Emílio (2004) acrescenta a idealização e a intelectualização. A intelectualização consiste em ater-se de modo ferrenho às explicações médicas e científicas acerca da “deficiência”, afastando-se do sujeito em questão em suas dificuldades e possibilidades, segundo a autora, são aqueles pais e profissionais incapazes de perceber o que acontece com seu filho, aluno ou paciente apesar de saber tudo sobre a patologia em questão.

A idealização eleva o objeto à perfeição, pensando em polarizações, melhor e pior, bom e mau e manifesta-se também na exaltação da deficiência e da diferença, necessário, então, ficar atento a estes discursos, que “nada contribuem para o respeito às diferenças, pois pulam de um lado para outro, mantendo o mesmo maniqueísmo” (EMILIO, 2004, p.70). Ao refletir com base nas idéias da autora é possível pensar no extremo cuidado ao se falar de deficiência como uma tentativa de disfarçar o preconceito latente.

Continuando a discussão acerca da dificuldade diante da diferença que é capaz de mobilizar tantos mecanismos de defesa, fica claro que:

O confronto com as diferenças coloca um néon nas nossas próprias limitações. Alguns escolhem tal confronto. Outros, a princípio, se batem com elas tal como Harry, ficam atravessados subjetivamente, e transformam seu olhar. Outros viram as costas e dizem que isso não é sua responsabilidade, evitam olhar, pois nunca se sabe o que poderá estar do outro lado do espelho (MILMANN, 2001, p. 110).

Aqui Milmann faz referência ao filme “O oitavo dia” do diretor francês Jacob Von Dormael.

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2.3 O Espelho e o Outro: o que isso tem a ver com a inclusão?

Incluir, mais que a disposição dos indivíduos, implica a disposição do sujeito psíquico, da consciência, mas também do inconsciente de cada um. Para pensar as questões psíquicas envolvidas no processo de inclusão, começamos por resgatar como o ser humano se desenvolve.

Jerusalinsky (2007) coloca que o ser humano quando nasce, ao contrário dos animais é um “deficiente instintivo”, ou seja, não há objeto de satisfação pré-determinado geneticamente. O bebê tem necessidades e não tem inscrição nem do que poderia lhe satisfazer, nem como alcançar a satisfação. Assim o bebê humano é totalmente dependente de alguém outro que satisfaça sua necessidade, que faça também a função de grande Outro12 para lhe apresentar o objeto de satisfação.

Inicialmente, a criança se encontra na condição de infans13 de esfacelamento, no sentido de que ainda não existe uma imagem unificada. Fase pré-especular na qual tudo é muito incipiente. Além da impotência motora, o psiquismo ainda não possui registros de identificação, pois não internalizou traços psíquicos.

No ser humano como aparece na obra de Freud (1905) a relação com o objeto é pulsional. Se constitui na relação com o Outro, a mãe (enquanto função) é o Outro primordial, segundo Jerusalinsky (2007) contorna a falta e faz a função de apresentação do objeto. Ela trabalha o mal estar do bebê constituindo fonte, força, objeto e fim para suas pulsões. Há uma suposição de sujeito por parte do adulto, ele lhe apresenta o mundo e a recebe em um berço de significantes.

A criança se apropria dos significantes que vêm do Outro e com a passagem pelo estádio do espelho vai poder construir seu eu. Para Lacan (1949) o estádio do Espelho funciona como uma Identificação, enquanto “uma transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, 1949, p. 97). Matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial, o eu ideal. Uma forma mais constituinte que constituída, uma Gestalt que tem efeito sobre o organismo.

12Grande Outro da linguagem, tesouro de significantes e condição para a existência de um sujeito, Outro que

funda a ordem simbólica por inscrever em uma cadeia significante “se num primeiro tempo o Outro é o lugar do tesouro dos significantes, num segundo tempo vai se instituir a subjetivação em que a falta vai implicar o desejo. De fato o grande Outro é a própria referencia do simbólico” (KAUFMANN, 1996, p.386).

13Lacan refere-se ao Infans em seu texto “O Estádio do Espelho como formador da Função do Eu Tal como nos

é Revelada na Experiência Psicanalítica” (1949), compreendendo este como um estágio mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação, característicos do bebê humano.

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O estádio do Espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem espedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica- e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. (LACAN, 1949, p. 100)

A antecipação no discurso parental é fundamental ao desenvolvimento, a função materna e paterna convoca um sujeito ali onde há um infans, um pré-sujeito. A mãe é formadora especular, ela serve de espelho. No próprio toque e ao enlaçar o discurso ao corpo e as sensações corporais, recobrindo um real de mal estar, dando início à formação da imagem corporal e apreensão corporal.

Lacan utiliza a metáfora do espelho para explicar a relação eu – Outro. É neste estádio entre os seis e dezoito meses, que se dá segundo Carmen Backes a “fundação” do eu pela imagem especular, apresentada ao filho pela mãe como antecipação. Assim “a apropriação do eu se da de forma antecipatória, com um estado de insuficiência e uma antecipação de totalidade” (BECKER,1999, p. 68) o eu se constitui alienado ao Outro do espelho, idealizado pela mãe, a criança então se precipita em direção a esse ideal.

O infans se reconhece na imagem, mas esta vai além dele, é uma imagem ideal, de totalidade, a qual desperta “júbilo”. Ao mesmo tempo não se pode responder totalmente por ser prematuro. Isso gera uma relação conflituosa entre eu e outro do espelho “ao mesmo tempo especular, desejável e destruidor- desejável porque ideal; destruidor porque alienante” (BACKES, 2004, p.33).

Quando se dá a experiência do espelho, o infans olha para o Outro primordial, buscando confirmação, convocando seu olhar e sua voz. Ele precisa que alguém lhe diga ser ele mesmo quem esta ali, naquela imagem. Carmen Backes (2004) cita Freud, dizendo ser o signo à única resposta possível do Outro, remetendo a uma imagem, cada pai e cada mãe, costuma ter uma forma específica de chamar a criança, como um apelido carinhoso, “querida, amada, teimosinha, arteira”.

Quando um bebê vai aprender a caminhar, os pais demandam, antecipam, e a criança se precipita, ela se lança frente ao ideal do outro, antes mesmo de conquistar as condições biológicas necessárias. Existindo um intervalo simbólico entre condição atual do bebê e o que precisa se tornar, espaço necessário.

É o Outro especular que faz às vezes de espelho “o adulto vai inscrevendo uma imagem pela via do significante, pela via discursiva” (BACKES, 2004, p.31). Quando o infans sente um vazio e chora a mãe oferece, apresenta o seio, seu primeiro objeto. E com isto

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a criança experimenta a satisfação, o vazio se torna fome, e o mamar se associa ao prazer. A mãe atribui sentido às manifestações da criança, interpretando e atendendo, o choro e o balbucio como chamado, tomando o olhar como interpelação. Ocorre uma relação de S1, a criança se funde com o outro numa indiferenciação, ficando alienada. Seu desejo é o desejo do Outro e o infans recorta traços da voz e do olhar do Outro primordial, traços que ficam inscritos para futuras identificações.

O “mamanhez” é uma espécie de diálogo que a mãe estabelece com o filho antes mesmo de ele poder entender e falar. É um exemplo do investimento que o Outro materno realiza, supondo um sujeito que responde, colocando palavras no lugar de olhares, caretas... A mãe interpreta tudo que vem de seu bebê, nada é tomado como tal, entretanto como significação. O bebê “fala na medida em que é falado por Outro” (JERUSALINSKY, 2007, p. 28), ele está desta forma no campo da linguagem, embora não fale por si mesmo. O sujeito se constitui a partir da linguagem, sendo também efeito dela.

Ao dar banho, trocar, a mãe vai dando bordas, contornando fantasmaticamente o corpo, nomeando as partes, as sensações, proporcionando a formação da imagem, a apreensão corporal. Assim, como situa Jerusalinsky (2007) o Outro faz função significante, o autor fala da permeabilidade biológica ao significante, neste caso, o significante tem primazia sobre o orgânico. O desejo e a demanda atravessam o organismo, transformando necessidade fisiológica em apelo e demanda da presença do Outro. A linguagem organiza um corpo imaginário, sendo que é pela palavra do Outro que acontece a passagem do real ao simbólico.

Já antes do nascimento a família forma um pré-sujeito, presente no imaginário e no simbólico, além disso, o ideal de eu dos pais contém o eu ideal colocado para o filho no estádio do espelho, projetando o seu narcisismo14 sobre o filho. Os significantes são transmitidos inconscientemente e perpassam toda a relação familiar.

Quando o bebê não corresponde ao ideal projetado pelos pais e especialmente quando isto se apresenta no real do corpo, é preciso que se faça uma operação de luto, para a qual é necessário um tempo. Por vezes, os pais parecem não se implicar no processo de inclusão de seus filhos, mas o que ocorre é que ainda estão em processo de luto ou até mesmo, pode haver a possibilidade de nunca conseguirem superá-lo.

14A expressão narcisismo faz referência ao mito de narciso, que se apaixona pela própria imagem. Laplanche e

Pontalis (2001) o descrevem como uma fase intermediária entre o auto-erotismo e o amor de objeto, que permite uma primeira unificação das pulsões sexuais. No narcisismo primário a criança investe a libido em si mesma antes de poder investir nos objetos, com a passagem pelo Estádio do Espelho vão se dar as relações objetais. A partir do narcisismo secundário, a libido retirada dos investimentos objetais pode retorna para o ego.

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No estádio do espelho a mãe é interrogada, mudando sua posição de Outro primordial para mãe do espelho, deixando traços, importantes para futuras identificações. Segundo Carmen Backes (2004) a partir do estádio do espelho, o eu especular se torna um eu social e por fim se constitui um imaginário no qual se coloca a imagem de unidade. Pelo campo simbólico o sujeito pode lidar com a diferença entre o que realmente é e o que o Outro supõe, ficando o traço unário, registro e suporte a demais identificações.

“Esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial (...) a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas” (LACAN, 1949, p.101). O estádio do espelho permite estabelecer a relação do organismo com a realidade, relação entre Innenwelt, mundo interno, e Unwelt, mundo externo. A relação com o meio provoca mal – estar, dai a importância de estabelecer tal relação.

Quando o bebê interroga a mãe, a resposta do Outro é da ordem do signo, ideal de imagem (BACKES, 2004, p.33). Ficam traços de objetos pulsionais, com estas marcas, com o reconhecimento que teve, o infans vai conquistar condições para que construa seu lugar no mundo. Ficam traços fixados, determinantes nas futuras identificações. A identificação imaginária, que acontece em um primeiro momento está ligada à imagem unificada. A identificação simbólica por sua vez tem como referência o traço unário15, feita com o significante (Lacan apud BACKES, 2004, p.34).

Inicialmente acontece então a alienação imaginária, a criança prematura experimenta o júbilo diante da imagem de totalidade, narcisismo primário que permite o nascimento do eu, a imagem do corpo próprio é a imagem do semelhante. E posteriormente se coloca a alienação simbólica, que pede a confirmação de uma palavra no discurso do grande Outro primordial.

“É a consistência que o significante paterno tem no discurso materno que possibilitará a passagem deste primeiro momento identitário, da relação ao Outro primordial e de um lugar designado (identidade), para o lugar de identificações possíveis” (BACKES, 2004, p. 40). O estádio do espelho é fundamental à constituição psíquica, promovendo juntamente com Complexo de Édipo16 e o complexo de castração a passagem de infans para sujeito, com seu

15 Introduz um registro, dando início à contagem, suporte da identificação do sujeito, o que subsiste do objeto e

também o que dele se apagou.

16 Refere-se à conflitiva edípica trabalhada por Lacan (1999). Primeiramente a criança fica na condição de

alienação ao Outro materno, no primeiro tempo do édipo a criança já é introduzida no registro da castração e a

questão é ser o falo para a mãe. No segundo tempo, a função paterna vem ser um terceiro nessa relação até então

dual. O pai priva a mãe de seu objeto fálico, interdita e coloca limite na relação de gozo entre mãe e filho,

proibindo o incesto. A lei se coloca para a criança lhe privando a mãe, desvinculando a primeira identificação. No terceiro tempo é o momento do declínio do édipo, o pai intervém como aquele que tem o falo, objeto

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