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Considerações sobre as teorias das relações interétnicas

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Academic year: 2022

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Considerações sobre as teorias das relações interétnicas

Prof. Jacó César Piccoli – UFAC

O estudo das relações entre sociedades, entre culturas e entre etnias tem sido uma preocupação constante da história das ciências sociais e, particularmente, da antropologia.

Em alguns países, como por exemplo a França, estas questões foram estudadas sob o prisma da interpenetração de civilizações, enquanto que, em outros, especialmente nos Estados Unidos da América, o tema foi investigado sob um viés eminentemente cultural e serviu para justificar o desenvolvimento da escola culturalista americana. Contudo, a tradição antropológica não se limitou as explicações fornecidas por estas orientações e, desde o início deste século, vem acumulando, seletivamente, múltiplas contribuições teóricas e metodológicas sobre o problema.

Este trabalho tem por objetivo examinar e avaliar as principais correntes da tradição antropológica que abordaram a questão do contato interétnico, bem como situar e discutir a idéia de resistência (social) e a possibilidade de sua inserção no conjunto de procedimentos operativos à análise das relações interétnicas. No sentido de precisar as contribuições que serviram de base à elaboração desta análise, procedeu-se, inicialmente, a uma breve revisão crítica da documentação bibliográfica disponível sobre o tema, procurando não apenas examiná-las mas também avaliá-las. Em seguida, procurou-se estabelecer algumas inferências relativas à idéia da resistência e suas implicações para o entendimento das situações de contato.

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A teoria da aculturação

A teoria da aculturação foi a primeira tentativa de se sistematizar um quadro de referências teórico-metodológicas para analisar e interpretar a questão do contato. Esta teoria tem sua origem a partir das pesquisas e estudos antropológicos elaborados, nos Estados Unidos, a partir do início do século XX, por pesquisadores filiados ao difusionismo e ao funcionalismo.

A ênfase em descrever os fenômenos do contato cultural e em explicar os fatos relacionados à mudança cultural como um troca de traços culturais deram origem a inúmeras pesquisas de campo que foram sistematizados e difundidos internacionalmente pela escola culturalista norte-americana.

Os conceitos elaborados por esta escola privilegiam a dimensão cultural, partindo do pressuposto de que a sociedade nada mais é que um conjunto funcional de instâncias culturais e de que todo o processo de mudança resulta da simples transmissão e aceitação de traços culturais que causam alterações nos padrões de cada cultura.

Ralph Linton, Robert Redfield e Melville Herskovits foram os pioneiros do culturalismo, os primeiros antropólogos a sistematizar um conceito para explicar o contato entre sociedades dentro de uma perspectiva intercultural. Em “Um memorando para o estudo da aculturação”, publicado em 1936, assim definiram a aculturação:

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O conjunto de fenômenos que resultam de grupos de indivíduos, de culturas diferentes, quando entram em contato contínuo de primeira mão, acarretando mudanças subseqüentes nos tipos culturais de cada grupo1.

Posteriormente, os culturalistas reelaboram o conceito de aculturação. Primeiro, considerando não ser mais necessário contato direto e contínuo para a existência do processo aculturativo. Procuram, desta maneira, enquadrar os contatos culturais que não dependem da intervenção física dos agentes culturais: é o caso do contato através dos meios de comunicação.

Assim, através de um novo memorando, publicado em 1954, os culturalistas procuraram enfatizar e reforçar o caráter autônomo da cultura nos processos de contato e, após um amplo levantamento sobre a aculturação, realizado nos mais diversos países, redefiniram o conceito como:

uma mudança cultural produzida pela conjunção de dois ou mais sistemas culturais autônomos2.

Alguns autores culturalistas, preocupados em interpretar uma série ampla de fatos interculturais, que fugiam ao modelo teórico proposto conceberam e desenvolveram a idéia da

1 LINTON, Ralph; REDFIELD, Robert and HERSKOVITS, Melville. A Memorandum for study acculturation. American Anthropologist, 1936, Vol. XXXVIII, p. 149.

2 SIEGEL, VOGT, WATSON and BROOM. Aculturation: An Exploratory Formulation. American Anthopologist, Vol. 56, nº 6, 1954. Wisconsin.

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bidirecionalidade. Assim, Herskovitz concebeu a aculturação como um processo de dupla direção. Com isso pretendia dar conta de uma série de fatores intervenientes no processo de contato como, por exemplo, as reações das sociedades tradicionais face às influências externas produzidas por sociedades de cultura ocidental, a rejeição das inovações, enfim, a não passividade diante dos fatos do processo aculturativo entre culturas diferentes3.

No quadro teórico do culturalismo ainda se podem situar as contribuições de Bronislaw Malinowski, ainda que preso à sua teoria funcional da cultura. Procurou interpretar os fatos resultantes do contato de forma diversa daquelas até então realizados pelos demais autores culturalistas. Para explicar o contato toma como exemplo a África Colonial, afirmando que no contexto africano devem-se distinguir três conjuntos culturais coexistentes: a antiga cultura africana, a cultura importada da Europa e a nova cultura compósita. Segundo Malinowski, a cultura compósita ou cultura de contato resulta das trocas e substituições culturais realizadas ao nível de cada instituição cultural entre as demais culturas envolvidas na situação de contato. A partir da substituição de traços e valores culturais resultaria uma nova cultura como se fosse um composto das duas anteriores. Utiliza para explicitar os fatos relativos à mudança cultural um esquema metodológico próprio, à semelhança de uma tabela de três entradas, onde cada um dos três conjuntos culturais ou culturas participantes integram três colunas verticais, tendo

3 Ver neste sentido HERSKOVITS, Melville. Man and Hits Works: Antropologia cultural, Tomo II, São Paulo, Mestre Jou, 1973, p.342-5.

Também: MALINOVSKI, Bronislaw. Dynamics of Culture Change..

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correspondentes homólogos nas diversas entradas horizontais que representam o conjunto dos traços culturais4.

No Brasil a corrente culturalista constitui o primeiro referencial teórico para entendimento dos fenômenos relacionados ao contato sociocultural e à mudança cultural.

Influenciados e até formados de acordo com os princípios da escola da aculturação, diversos antropólogos nacionais desenvolveram estudos e pesquisas de campo através dos quais procuraram interpretar uma série de situações de contato, sobretudo aquelas entre índios e brancos, sob um prisma eminentemente cultural. Ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960 surgem diversos autores da mudança cultural a partir dos paradigmas culturalistas, tomando como universos de investigação os diversos contextos culturais do Brasil multiétnico:

índios, negros, etnias de origem européia etc. Gilberto Freire, um dos mais destacados culturalistas, dedicou-se a estudar as influências da miscigenação social e cultural entre índios, negros e europeus (portugueses, holandeses, franceses, etc) na formação da nacionalidade brasileira. Fundamentado nos conceitos e princípios da escola culturalista, abstraiu todo processo de conflito e contradição que envolveu a formação da nacionalidade brasileira. Arthur Ramos, por sua vez, ao discutir o problema do negro no Brasil, chegou a elaborar um esquema teórico-

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metodológico para entendimento da aculturação negra5. Entre 1950 e 1959 Eduardo Galvão realizou inúmeras pesquisas de campo, algumas em parceria com o antropólogo culturalista americano Charles Wagley, sobre os fenômenos de mudança cultural observados na região do rio Negro, na região do alto Xingu e no Pará. Nestes estudos Galvão já constatava aspectos críticos nos modelos teóricos tradicionais para a compreensão da totalidade de situações de contato experienciadas pelas sociedades tribais brasileiras6. Egon Schaden contemplou prioritariamente as transformações sofridas entre as diferentes parcialidades guarani;

desenvolveu estudos não apenas de caráter etnográfico sobre a aculturação, mas também trouxe contribuições teóricas que renovaram esta linha de investigação antropológica7.

Após esse breve esboço dos diferentes enfoques da teoria da aculturação, faz-se necessário um balanço dos seus pressupostos e argumentos. A avaliação que segue possui um caráter geral.

1º. Embora seja possível ver nos estudos da aculturação o mérito de descrever e caracterizar o processo de mudança cultural através de conceitos como “assimilação”, “aculturação”,

“sincretismo”, “transmissão”, “atualização”, “invenção”, etc., eles não são suficientes para explicar a complexidade de relações que caracteriza o contato entre diferentes conjuntos sócio- culturais. Os fatos aculturativos não supõem, em última instância, a natureza e o tipo de situação em que o contato e a mudança se efetuam. Assim, para os estudos da teoria da aculturação

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resulta desnecessário considerar, por exemplo, as situações e relações históricas e sociológicas que definem e determinam o contato cultural.

2º. A aculturação parte do pressuposto ideal da bilateralidade do contato intercultural. Isso somente teria validade se o processo de relações interculturais se realizasse dentro de um quadro de trocas mútuas e sem contradição alguma. Entretanto, uma rápida análise dos processos de intercâmbio cultural em curso leva a constatar a unilateralidade de tais processos. Esse fato foi desqualificado pelos culturalistas. A realidade de todo tipo de contato intersocial é historicamente pautada pela troca desigual. Esse fato serve por si só para antecipar que o conceito da “aculturação” não dá conta do fenômeno das relações intersociais e interétnicas em toda sua totalidade. A tentativa de enquadramento de fatos novos e atípicos foi resolvida sem prejuízo do caráter de reciprocidade dos efeitos do contato entre duas ou mais culturas e da persistência das antigas noções difusionistas sobre mudanças. Essa reciprocidade era, na realidade, negada pelos próprios fatos de relação, uma vez que não há um ideal de reciprocidade ou troca equivalente mas, sempre, um grau maior ou menor de desigualdades no jogo das relações intersociais e, conseqüentemente, nas relações interétnicas e interculturais.

Nesse sentido, o esquema proposto por Malinowski para apreensão dos fenômenos de mudança cultural permite estabelecer, a priori, que essa tentativa de resolver o problema das culturas em contato e da mudança cultural é amplamente tributária da sua teoria funcional sobre a sociedade. Com base nela é que extrai a teoria das necessidades e da compartimentalização das

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esferas culturais, necessárias ao entendimento da sua concepção sobre mudança social. Em decorrência, ao analisar o contato, concebe-o como fato ao mesmo tempo integrado e coerente, apesar de contraditório e heterogêneo. Ao considerar as situações de contato enquanto sobreposição de três conjuntos culturais, cai no artificialismo e na explicação fundada num modelo naturalizado de sociedade. Criar um terceiro modelo mantendo as mesmas bases naturalizantes da sociedade significa subtrair à realidade do contato sócio-cultural aquilo que a constitui e forma sua essência, e seu dinamismo: as contradições e os conflitos sócio- econômicos. Há que se reconhecer, no entanto, que Malinowski foi o primeiro a se referir sobre a assimetria no processo de mudança social.

3º. Da postura culturalista deriva uma concepção unilateral e parcial da realidade de contato resultante da supervalorização da idéia de cultura. O culturalismo supõe, no processo de mudança cultural, a inter-relação de duas culturas como autônomas e independentes. Ao estabelecer e fundar o contato sobre a autonomização da cultura, a teoria da aculturação deixa de considerar outros fatores que intervêm na constituição da realidade de contato e deixa persistir uma certa lacuna na sua interpretação. A perspectiva de uma abordagem unilateral restringe uma compreensão total do fato de contato. Decorre daí que os estudiosos dos fenômenos aculturativos operam com culturas dadas, autonomizadas, sem preocupar-se com a dinâmica da sua origem e constituição. Ora a mudança cultural não pode ser entendida apenas através da descrição de empréstimos, transmissões, difusões e rejeições culturais, é preciso explicar as suas determinações, condições, processos, relações e implicações. Isto, só se é possível através de

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uma interpretação do contato enquanto fenômeno histórico, dinâmico, resultante de um conjunto amplo de determinações e não enquanto simples conjunção ou resultado de instituições ou configurações culturais concebidas estaticamente. Ignorar os fatores que dão organicidade e constituição ao contato significa negar a possibilidade da sua explicação e sentido. Isso equivale a dizer que as mudanças de ordem cultural não ocorrem isoladamente, elas têm na própria dinâmica e contradição inerente ao ser social, sua causa e seu fundamento explicativo.

4º. A resultante lógica da teoria da aculturação e das suas premissas são o desaparecimento ou a assimilação de um dos conjuntos culturais intervenientes no processo de contato. No caso das sociedades indígenas brasileiras, por exemplo, elas estariam fadadas ao destino final da assimilação como única alternativa razoável possível. Ao longo de um processo que poderá ser longo ou lento, a sociedade nacional envolvente, formação social constituída de maior poder aculturador, findaria, de acordo com as próprias condições e situações do contato, por absorver as formações sócio-culturais nativas, conduzindo-as à miscigenação e assimilação plenas.

Entretanto, a realidade sociológica e antropológica dos índios brasileiros nega essa tendência.

Durante mais de quatro séculos de contato as sociedades indígenas não foram assimiladas à sociedade nacional ou regional. Nesse período o que predominou foram o extermínio e o genocídio em ampla escala. As sociedades que lograram sobreviver permanecem indígenas.

Mesmo transfiguradas resistem enquanto indígenas, na sua auto-identificação e reconhecimento externo, diferenciando-se, nitidamente, da sociedade nacional, apesar do amplo processo de

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dominação a que foram submetidas8. A assimilação e miscigenação só podem ser constatadas a nível individual e jamais a nível coletivo. Na verdade, o que explica a diferenciação e a não diluição das sociedades e culturas indígenas na sociedade ou cultura envolvente é a capacidade de luta e resistência, ativa ou passiva, restaurada e renovada, oferecida pelas sociedades indígenas ao processo de dominação e colonização que caracteriza as relações interétnicas e, conseqüentemente, as relações interculturais. Esta evidência não integra o conjunto teórico da aculturação.

Antropologia dinamista.

A Segunda e principal tentativa de análise e interpretação do contato interétnico resulta das elaborações da antropologia dinamista.

Durante os anos 50 e 60 surgem uma série de estudos que estabelece uma ruptura teórica com a tradição funcionalista e culturalista e renova os fundamentos da antropologia. Entre os autores que se destacaram nesse momento e nas décadas seguintes e cujas contribuições trouxeram novas perspectivas ao fazer antropológico, estão Max Gluckman e, particularmente, Georges Balandier.

8Ver crítica desenvolvida sobre a aculturação. RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. Petrópolis, Editora Vozes, 1977, p.8

Referências

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