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CIP-Brasil. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

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Academic year: 2022

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Copyright © 2018 by Ibi Zoboi. All rights reserved.

Título original: Pride

Todos os direitos desta publicação são reservados à Casa dos Livros Editora LTDA.

Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou ameio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copyright.

Diretora editorial: Raquel Cozer Gerente editorial: Alice Mello Editor: Ulisses Teixeira

Copidesque: Peróla Gonçalves Revisão: Thaís Carvas

Capa: Jenna Stempel-Lobell Ilustrações: Billelis e T.S. Abe Adaptação de capa: Julio Moreira Diagramação: Abreu’s System

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Z72o

Zoboi, Ibi

Orgulho / Ibi Zoboi; tradução Giu Alonso. – 1. ed. – Rio de Janeiro: HarperCollins, 2019.

Tradução de: Pride ISBN 9788595080584

1. Ficção haitiana. I. Alonso, Giu. II. Título.

19-58324 CDD: 840.3 CDU: 82-3(729.4)

Vanessa Mafra Xavier Salgado – Bibliotecária – CRB-7/6644

Os pontos de vista desta obra são de responsabilidade de seu autor, não refletindo necessariamente a posição da HarperCollins Brasil, da HarperCollins Publishers ou de sua equipe editorial.

HarperCollins Brasil é uma marca licenciada à Casa dos Livros Editora LTDA.

Todos os direitos reservados à Casa dos Livros Editora LTDA.

Rua da Quitanda, 86, sala 218 — Centro Rio de Janeiro, RJ — CEP 20091-005 Tel.: (21) 3175-1030

www.harpercollins.com.br

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SUMÁRIO

Um Dois Três Quatro Cinco Seis Sete Oito Nove Dez Onze Doze Treze Catorze Quinze Dezesseis Dezessete Dezoito Dezenove Vinte

Vinte e um Vinte e dois Vinte e três Vinte e quatro Vinte e cinco Vinte e seis Vinte e sete Vinte e oito Vinte e nove Trinta

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Agradecimentos Sobre a autora

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Para Joseph, meu eterno amor

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UM

É UMA VERDADE universalmente conhecida que, quando gente rica se muda para aquela parte da cidade que é meio ferrada e esquecida, a primeira coisa que esse pessoal quer fazer é arrumar.

Mas eles não querem se livrar só das coisas baratas. Pessoas também podem ser jogadas fora, que nem o lixo de ontem largado na calçada ou empurrado para o cantinho onde as coisas quebradas sempre são deixadas. O que essas pessoas ricas em geral não sabem é que bairros ferrados e esquecidos foram construídos com amor.

Os novos donos da mansãozinha do outro lado da rua estão se mudando hoje. Nos últimos meses, vários pedreiros repaginaram completamente a casa, como se ela tivesse sido inscrita em um reality show. Eles destriparam e reformaram a melhor coisa que tinha no quarteirão: a construção caindo aos pedaços e coberta de mato, as janelas todas tapadas com tábuas. Agora parece uma propriedade que deveria estar em um bairro rico, com portas duplas enormes, janelas brilhantes, um gramadinho todo arrumado.

Puxo as cortinas para dar bom-dia à minha esquina na avenida Bushwick com a Jefferson, meu jeito especial de esticar os braços e bocejar ao sol da manhã. É aqui que vejo as palavras nadando pelo bairro que nem o pó que chove quando o trem passa nos trilhos elevados. É tudo poesia. Então junto minhas palavras e tento compreender tudo aquilo: meu bairro, meu Brooklyn, minha vida, meu mundo e eu nele.

Tudo é como deveria ser — tirando a mansãozinha, que é como um par de Air Jordans novinho em folha jogado no meio de um monte de tênis falsificados gastos.

Mesmo assim, eu me lembro de que hoje é um dia especial, e não vou deixar a mudança dos novos vizinhos estragar isso. Minha irmã mais velha, Janae, vai voltar para casa depois do primeiro ano de

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faculdade, e, quando ela terminar o estágio, vai passar o resto das férias de verão comigo. Mama já planejou um jantar especial para a volta dela. Eu passo a mão em meu black e visto um short jeans velho. Eram da Janae, e estão ainda mais apertados do que no ano passado. Mama brincou que minhas curvas finalmente pegaram no tranco depois de eu fazer 17 — não que eu estivesse esperando por elas. As irmãs Benitez, dominico-haitianas, já recebem atenção suficiente na rua e na escola sem isso.

Fiquei dormindo até mais tarde, mas consigo ouvir minhas irmãs menores, Marisol, Layla e Kayla, brincando e rindo na cozinha enquanto ajudam mama com o jantar de boas-vindas — descascando as batatas, temperando o frango, fervendo as habichuelas e deixando o bacalhau de molho para dessalgar. Papi ainda deve estar dormindo, porque trabalhou até tarde ontem, e sei que ele quer fugir da confusão. Eu entendo bem.

Às vezes, prefiro ouvir o ronco dos ônibus e dos carros ou música bem alta a ter que aguentar o falatório constante das minhas irmãs, e até de mama. Ela é a mais escandalosa de todas, e, de vez em quando, a que me dá mais vergonha. Eu, papi e Janae somos os tímidos da família. Preferimos ficar largados no sofá, lendo ou vendo um documentário na TV, a fofocar com mama.

Estou a caminho da cozinha quando vejo uma coisa. Do outro lado da rua, um carrão de janelas escuras para na frente da nova mansãozinha. Eles chegaram! A gente apostou quem seriam aqueles trouxas — pretos e ricos ou brancos e ricos. Uma coisa é fato: eles têm que ser ricos para se mudar para aquela casa. A porta do passageiro se abre, e eu — que nunca fui de perder aposta — grito o mais alto que posso:

— Os ricos chegaram!

Em um segundo, Marisol, que é dois anos mais nova que eu, está bem do meu lado. Não porque ela é a mais rápida, mas porque é a que tem mais a perder nessa aposta. Eu e a minha irmãzinha interesseira, também conhecida como Mari Ama Grana, apostamos vinte dólares que vai ser uma família jovem e branca entrando na mansãozinha, porque é isso que vem acontecendo aqui em Bushwick.

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— Bora, branquelo, bora… — diz Marisol, batendo palmas e ajeitando os óculos grossos. — Vem me dar uma graninha!

Mas é uma mulher negra que sai do assento do passageiro, bem na hora que Layla chega e grita:

— Ah! Ganhamos! Podem passar o dinheiro!

Ela e a gêmea, Kayla, apostaram que seria um rapper ou um jogador de basquete com uma esposa supermodelo, e que a gente ficaria famosa por associação só por morar na mesma rua.

Mas quando o motorista sai do carro, junto com outros dois passageiros, a gente nem consegue acreditar no que está vendo.

Desembarcando das portas traseiras estão dois dos caras mais gatos que a gente já viu. Dois garotos adolescentes negros bem gatos. Marisol e eu com certeza perdemos a aposta, mas ninguém liga.

A família toda se reúne na calçada. Parece mais que acabaram de chegar em um país estrangeiro. Olhando para eles, percebo que existe uma diferença entre roupas que parecem caras e roupas que são caras de verdade. A mulher está toda de branco, como se estivesse indo para alguma festa chique em um barco, e colocou os óculos escuros na cabeça, presos no cabelo comprido e brilhoso. O homem usa uma camisa azul-céu com as mangas dobradas e está com os óculos no rosto. E tem os garotos.

— Ai. Meu. Deus! — Layla é a primeira a falar, como de costume.

— Quem são eles?

— Rappers e jogadores de basquete! Pode passar a grana, Marisol — diz Kayla.

— Não são, não. Esses garotos parecem que são do One Direction ou sei lá — responde Layla. — Olha as roupas deles! Eu conheço um jogador de basquete quando vejo um. E nenhum rapper ia usar um sapato daqueles.

— Eles estão mais para Sem Direction, isso sim. Não têm nada a ver com nosso bairro — falo.

— Mas são fofos. Será que têm a nossa idade? Vamos falar com eles.

Kayla agarra a mão da gêmea e as duas saem correndo do quarto.

Elas acabaram de sair do Fundamental II, e desde que fizeram 13 anos, viraram o maior clichê da adolescência — só pensam em

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roupas, músicas e garotos. Elas têm mais estilo que eu, Marisol e Janae juntas, com as roupas e os penteados combinando.

Corro atrás das minhas irmãs, mas mama sai da cozinha e me interrompe, erguendo a colher de pau na minha frente.

— Ô, pode parar — fala ela, com a mão no quadril, para depois se virar à porta. — Kayla! Layla! Voltem agora!

As gêmeas voltam para a sala batendo os pés.

— Mas mãe! — choraminga Marisol. — Os vizinhos novos chegaram! E são negros!

Mama baixa a colher de pau e ergue a sobrancelha. O cabelo está preso em uma echarpe de cetim colorida, e suas argolas douradas quase chegam nos ombros. Ela está arrasando na calça de plush cor-de-rosa que é a sua marca registrada, mesmo que a cozinha esteja um forno. Uma mancha de batom vermelho cobre o lábio inferior dela, e o blush acobreado mostra que ela está se esforçando para parecer bonita para o papi. Eu sei exatamente o que ela vai dizer, então começo a contagem regressiva na cabeça. Cinco, quatro, três…

— Zuri, você devia estar na lavanderia. Todas as secadoras vão estar cheias. Marisol, já separou as roupas escuras? Layla e Kayla, tirem a roupa de cama do quarto de vocês e do meu também, se o seu pai já tiver levantado. Zuri, dá uma varrida na calçada e na escada quando voltar. Quero que tudo esteja perfeito pra Janae — diz mama, quase que em um fôlego só. Então passa pela gente e entra no quarto para olhar pela janela.

Depois que mama só teve meninas, nossos pais decidiram transformar a sala de estar grande em um quarto para nós cinco. Ela e papi dormem no quarto dos fundos, perto da cozinha e do banheiro, e o que era para ser a sala de jantar é onde a gente se junta para ver TV e comer no sofá.

Em menos de um minuto, mama volta do quarto com um sorrisão.

— Pensando bem, acho que vocês deviam, sim, ir cumprimentar os novos vizinhos. Podem varrer a calçada enquanto isso.

Deixo as minhas irmãs correrem na frente, e papi sai do quarto dos fundos arrastando os pés.

— Janae já chegou? — pergunta ele, coçando a barriga de chope.

O cabelo crespo e cheio dele está todo amassado de um lado, e um

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dos olhos está vermelho. Ele não dormiu o suficiente. Está trabalhando no turno da noite na lanchonete do hospital de novo.

Mama balança a cabeça.

— Não, mas você pode se apresentar para o pessoal simpático aí da frente.

Ele faz um aceno.

— Já fiz isso. Eles vieram dar uma olhada na casa semana passada.

— Papi! Por que não falou nada? — reclamo.

— O que tem para falar?

Ele se joga no seu lugar de sempre, a poltrona reclinável, e pega um livro velho de Howard Zinn que já deve ter lido mil vezes. Papi lê como se o mundo estivesse ficando sem livros. Às vezes, ele fica mais interessado nos livros e na história do que nas pessoas.

— Zuri! Você vem? — grita Kayla lá debaixo.

A rua toda está acostumada com os gritos da nossa família, mas eu me pergunto o que os vizinhos novos vão pensar quando virem a gente gritando umas para as outras das janelas, do meio da rua e até do mercado da esquina.

Lá fora, Marisol e Layla estão do outro lado da rua, falando com os meninos. Os pais deles devem ter entrado. Kayla agarra o meu braço e, antes que eu perceba, também estou atravessando a rua. Minha irmãzinha segura a minha mão como se eu fosse criança, mas, quando chegamos na outra calçada, largo e cruzo os braços.

Os dois meninos parecem ser da minha idade, uns 17 anos. Eles têm uma pele tão lisa que parece de mentira — a testa, as sobrancelhas e as maçãs do rosto de modelos. Um deles é um pouco mais alto e magro, mas definitivamente são parecidos. Com certeza são irmãos. O mais baixo tem um cabelo alto e bagunçado, e, apesar de ser o menor, ainda é bem mais alto que eu e as minhas irmãs. O garoto mais magro tem um corte baixinho e um queixo bem- definido que fica se mexendo de um lado para o outro, como se estivesse rangendo os dentes. Tento não ficar encarando, mas não importa muito — minhas irmãs já estão dando toda a bandeira possível.

— E essa aqui é a ZZ da área. Zuri Luz Benitez. — Layla declara o meu nome inteiro enquanto aponta para mim.

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— É só Zuri — falo, estendendo a mão para o menino mais alto, de cabelo curto. — Meus amigos me chamam de ZZ.

— Darius. — Ele aperta a minha mão, mas pega só a ponta dos dedos, quase sem mexer o braço. Eu puxo logo a mão, mas ele continua me observando de canto de olho, através dos cílios grossos.

— Que foi?

— Nada — diz o garoto chamado Darius enquanto coça o queixo, depois ajeita a gola da camisa. Ele ainda está olhando para mim.

Então, eu reviro os olhos, mas ainda sinto que ele está me encarando, mesmo quando me viro totalmente para o irmão dele.

— Meu nome é Ainsley — diz o outro menino, apertando a minha mão com firmeza. — A gente, hã, acabou de se mudar. Obviamente!

— Prazer em conhecer vocês — respondo, usando as boas maneiras que mama tanto nos ensinou.

— Total! Mal posso esperar para explorar Bushwick. Sua irmã estava contando para a gente como são as coisas aqui — diz Ainsley. Ele está sorrindo demais. O tipo de sorriso que vai fazer ele levar um soco na cara se trombar com os caras errados desse lugar.

Ainda assim, ele é simpático, como um cachorrinho feliz usando um casaco feito à mão, tipo os que as pessoas brancas daqui têm, enquanto Darius está mais para um gato de bar mal-humorado. — E, por favor, ignorem o meu irmão mais novo, ele só está irritado porque tivemos que sair de Manhattan.

— Eu não estou irritado, cara. Só vou ter que… me acostumar — diz Darius, cruzando os braços.

— Vai ser muito difícil para você se acostumar — digo, minha curiosidade sobre os dois desligando como um interruptor. Não gosto de gente falando mal do meu bairro, especialmente quem fala “total”

e “cara”. Faço a minha cara feia de Bushwick para Darius, mas ele não parece perceber. Só continua parado lá, com o lábio superior levemente erguido, como se estivesse sentindo o cheiro da própria atitude de merda.

— A gente mora aqui desde sempre, então podem me perguntar o que quiserem — diz Layla. — Posso mostrar onde ficam as quadras de basquete e apresentar vocês para os garotos daqui. Vocês precisam conhecer o Colin, ele é legal. Mas a Marisol sabe onde tem

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o melhor preço de pão e leite. É melhor nem ir no mercado do Hernando, viu? Ele aumentou demais os preços desde que colocou aquela placa de “orgânico”.

Estou prestes a interromper Layla para ela parar de passar vergonha quando Marisol fala primeiro, pronta para começar mais uma das suas transações financeiras.

— Eu sou a Marisol, mas podem me chamar de Mari Ama Grana, por motivos que logo vão compreender. Posso oferecer algum serviço de aconselhamento financeiro? Talvez pensem que não precisam, mas as coisas aqui são um pouco diferentes. Vão querer fazer que um milhão de dólares renda na periferia. Cobro por hora.

Dinheiro trocado, por favor — diz ela, abrindo seu sorriso metálico típico e ajeitando os óculos.

— Fazer um milhão de dólares render na periferia? Tá bom. — Ainsley dá uma risada. — Mari Ama Grana. Gostei.

Marisol sorri e baixa os olhos, cruzando os braços. Ela não esperava por isso — um elogio, seguido por um sorriso brilhante de covinha. A menina nem consegue olhar na cara dele.

— Ei, é bom vocês virem aqui me ajudar! — grita alguém do outro lado da rua. Um táxi para em frente ao nosso prédio, e vejo Janae enfiar a cabeça pela janela de trás.

Tento atravessar a rua correndo, mas um sino de bicicleta faz o meu coração pular. Paro bem na hora que a bicicleta freia, e nem consigo reagir até um dos meninos me tirar do caminho. A bicicleta dispara por mim, o cara levantando o dedo do meio como se eu fosse atropelar a bicicleta dele com o meu 1,65 metro de altura.

Sabia que essas ciclovias seriam um problema. Ninguém mais olha para onde vai.

Recupero o fôlego, até perceber que é Darius que ainda segura o meu braço, enquanto as minhas irmãs me rodeiam. O choque passa, mas ele ainda está segurando o meu braço com um pouco de força demais.

— Hum, pode me soltar agora.

— Certo. — Darius abre a mão. — De nada, aliás.

— Ah, obrigada — balbucio, tentando ser educada. Ele se afasta de mim, com a expressão mais relaxada, mas ainda sinto o fedor da atitude dele. Obrigada por nada, penso.

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Janae salta do táxi, olha para um lado e para o outro da avenida movimentada e corre até mim.

— Zuri! — diz ela enquanto me abraça. — Eu sei que você estava com saudade, mas não pule na frente de um carro só para me ver!

— Estava com saudade mesmo, Nae-nae — digo, apertando-a. A gente se balança um pouco antes de se soltar, mas Ainsley já tomou a atenção da minha irmã. Ela está de olho nele, e sei que, em menos de um segundo, ela já absorveu todo o estilo do menino: o corte de cabelo, o rosto, o corpo, as roupas, o sorriso, até os dentes. Não posso culpá-la.

— E você é? — pergunta Janae, sorrindo de orelha a orelha.

— Ainsley — responde ele, só sorrisos de volta. — Ainsley Darcy.

A gente acabou de se mudar. Esse é o meu irmão mais novo, Darius.

— Ah, oi — diz Janae com a sua atitude de sempre, toda arco-íris e unicórnios. Então tem um momento de um silêncio constrangedor (quer dizer, se você não contar o ruído de fundo costumeiro de Bushwick). Eu sei que Janae está procurando alguma coisa interessante para falar, como se ela não tivesse acabado de voltar de outra cidade, depois de conhecer um monte de gente e ter experiências diferentes e aprender coisas novas. Minha irmã não é nada boa nisso, embora tenha passado um ano na faculdade.

Ainsley segura a mão dela e fala:

— Desculpa, você não disse o seu nome.

— Essa é a nossa irmã mais velha, Janae Lise Benitez! — apresenta Layla. — Ela estuda na Syracuse.

— Na Syracuse? — comenta Ainsley. — Eu estudo perto, na Cornell.

— Que legal — responde Janae, se esforçando muito para parecer descolada, enquanto as gêmeas começam a rir.

Eu estaria mentindo se dissesse que Janae não era tipo uma segunda mãe para mim, para nós — principalmente depois que mama teve as gêmeas e ficou ocupada fazendo tudo por elas. Nae- nae nunca tentou tirar o lugar de mama, era só nossa irmã mais velha — dois anos a mais que eu e seis a mais que as gêmeas. Ela arrumava o nosso cabelo, ajudava a escolher as roupas, nos dava conselhos, mas ainda nos deixava decidir as coisas sozinhas. Ela era a adorável cola que nos mantinha unidas.

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Minhas irmãs se debulharam em lágrimas quando ela foi para a faculdade. Eu fiz uma longa caminhada, daqui até a ponte do Brooklyn, porque é assim que lido com as coisas. Agora que ela está em casa para passar as férias, vamos voltar a ser as Super Irmãs Benitez, como as gêmeas dizem. É tudo sobre as Irmãs Benjamin Benitez, de acordo com Mari Ama Grana. Ou as Cinco Amadas, de acordo com Janae, porque ela diz que a gente mora no coração dela.

Pelo canto do olho, vejo que Darius balança a cabeça, como se essa cena toda fosse loucura. Olho para ele e balanço a cabeça também, para mostrar que estamos de acordo, que todo mundo, tirando nós dois, está sendo ridículo. Mas ele não retribui o gesto.

Ele desvia o olhar. Tanto faz.

O taxista dá uma buzinada, ainda esperando o dinheiro.

— Eita, esqueci de pagar — diz Janae, atravessando a rua, eu e as meninas logo atrás.

— Tchau, Ainsley! Tchau, Darius! — diz Layla por cima do ombro.

— Tchau… Janae! — diz Ainsley.

Ela estica o braço e aperta a minha mão, como se para dizer que não acredita naquilo — que aqueles garotos são tão gatos, e que eles vão morar ali do outro lado da rua, e que Ainsley estava de olho nela.

É só quando chego aos degraus que olho de volta, para ver se Darius sorriu, acenou ou ficou me olhando do outro lado da rua, ou se só ficou parado ali, frio e imóvel como uma árvore no inverno. Mas ele já entrou em casa.

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DOIS

ALGO NA MUDANÇA dos Darcy me faz querer permanecer em Bushwick um pouco mais, como se o bairro estivesse aos poucos escapando das minhas mãos — como se Janae, a escola, e eu fôssemos pequenas o bastante para deitar entre os braços do papi enquanto ele lê o The New York Times. As ruas estão cheias de vida na noite quente de verão, barulhentas com o som das rodas dos carrinhos de mercado passando pelas calçadas irregulares, o trem J atravessando o trilho acima da ponte, além do hip-hop e reggaeton pulsando por alguma janela aberta.

Nosso apartamento está movimentado com mama terminando o jantar de boas-vindas de Janae.

Mama trata os jantares especiais da família como se fossem uma festa para o quarteirão inteiro — ela convida todo mundo do prédio, e, às vezes, até gente da Jefferson e da avenida Bushwick. Então se as minhas irmãs e eu não fizermos os pratos antes da madrina e do sobrinho dela, Colin, chegarem, não sobra nada para a gente.

Embora o jantar seja para a Janae, é bem possível que ela fique sem comida também.

É assim que mama é — o coração do bairro, bombeando galinhada, bananas fritas, sancocho, bacalhau, pastelitos e arroz negro para quase todas as casas do quarteirão. Em troca, ela recebe todas as fofocas.

Madrina, a dona do prédio, que deixa a gente ficar aqui por um aluguel superbarato, tem que recuperar o fôlego quando chega no nosso apartamento. Ela acabou de fazer 65 anos e quase nunca sobe porque tem um joelho ruim e o coração fraco. Está usando vestido e turbante brancos, como sempre. A madrina só se veste de branco porque, de acordo com ela, precisa ser uma bola de cristal ambulante e falante, por causa de todas as bruxarias que faz (embora odeie quando a gente chama de bruxaria). “Es para los

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espíritus”, diz ela, para que os orixás possam vê-la quando pedir favores.

Seus elekes, os fios de contas coloridos, são longos, pendurados em volta do pescoço, e balançam como um pêndulo quando ela anda. Madrina diz que foi miss quando jovem lá em San Juan. Foi assim que ela foi coroada sacerdotisa de Oxum na Santería. Ela tem tudo a ver com o amor e com a beleza, então está sempre muito maquiada. O pó compacto que ela usa é uns dois tons mais claro do que deveria, a sombra azul é tão pesada que quase fica azul- marinho, as sobrancelhas são desenhadas com uma linha fina e um pouco do batom vermelho dela mancha os dentes.

— Ah, mija! Olha só para você, universitária! — grita madrina quando vê Janae. Seus braços gordos quase dão duas voltas na minha irmã. Ela vai bamboleando até o sofá em que Marisol, as gêmeas e eu estamos emboladas, comendo. Todas temos que levantar para abrir espaço quando ela se reclina devagar perto do braço do sofá. A gente se senta no chão de carpete, e, quando a madrina enfim se ajeita, parece que o apartamento inteiro dá um suspiro longo e aliviado.

Os aromas acolhedores e defumados no apartamento são um abraço apertado também. As risadas agudas de mama e as palavras ribombantes de madrina são como música — bongôs e congas em uma banda de merengue. Quando ela canta os seus hinos aos orixás durante as cerimônias no porão, sinto o chão tremer aqui do terceiro andar. E quando papi levanta os olhos da comida para dar a sua opinião na conversa, as palavras dele são como um tambor adicionando uma grande sabedoria àquela fofocaiada toda. As risadinhas das minhas irmãs são como reco-recos, e todos juntos fazemos uma festa, mesmo sem ter música.

Embora queira estudar em uma faculdade distante, sei que toda essa música vai continuar aqui, me esperando para quando eu voltar.

— Beni! — A madrina chama o papi. — Viu as bênçãos que Oxum deixou na sua porta? Dios mío! Suas preces foram atendidas!

— Do que está falando, madrina? — resmunga papi. Ele está no seu lugar de sempre, a poltrona reclinável no canto da sala, onde pode ficar afastado da confusão, mas ainda de olho em tudo. Sua xícara de café Bustelo puro está apoiada em uma pilha de livros ao

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lado, e ele devora um prato de arroz com feijão. Todo mundo sabe que papi não gosta de ser interrompido enquanto come, mas madrina não está nem aí.

— Seus genros ricos acabaram de se mudar para o outro lado da rua. O pai deles é investidor. Oxum trouxe maridos para as suas filhas cedo, para vocês terem alguns anos para se conhecerem melhor. Vocês deviam convidar o pessoal.

Ficamos todas bem quietinhas como uma panela de arroz fumegando enquanto esperávamos a reação de papi à palavra

“maridos”.

Então, madrina solta uma gargalhada ribombante, fazendo o apartamento inteiro tremer. Ela ri tanto que nenhum outro som sai da sua boca aberta. O rosto se enruga e uma lágrima corre pela bochecha.

— Olhem a cara do seu pai, meninas! Ele não quer vocês namorando. Quer que fiquem aqui, embaixo da asa dele, até todas estarem velhas e grisalhas que nem eu.

— Não se eu puder evitar — diz mama. Ela sempre tenta superar madrina, gritando mais alto, mas a voz dela não é tão grave, então acaba sendo só estridente. — Não me importo nem um pouco se as minhas filhas todas forem playas. Divirtam-se, namorem, vejam o que tem por aí. Não se prendam cedo como eu. Os meninos são bonitinhos, não são, Janae? De qual você gostou? Eu acho que o de black combina com você. Vi que ele ficou acenando.

Papi balança a cabeça para a mama.

— Tô fora — resmunga ele, saindo da poltrona e levando o prato junto.

Janae e eu trocamos olhares, porque já temos as nossas vidas planejadas, e elas não envolvem os garotos do outro lado da rua.

Depois da faculdade, ela vai arrumar um emprego de professora e um apartamento em Bushwick. E eu vou para a universidade Howard e vou morar no campus, em um dormitório em que poderei esticar as pernas sem bater em uma irmã menor. Depois que me formar, vou arrumar um emprego e um apartamento aqui também. Nenhum desses cenários envolve um namorado ou marido. Então respondo:

— Não tenho interesse em nenhum daqueles meninos, madrina.

Vou para a faculdade, depois vou arrumar um emprego. Não preciso

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de investidor nenhum para cuidar de mim.

Papi sai da cozinha, onde começou a lavar a louça, chega perto e me dá um dos seus fist bumps bobos.

— Essa é a minha garota! Essa aqui tem cérebro.

— Então para quem são os garotos, madrina? Para mim e Kayla?

— pergunta Layla. É claro. Ela é a que mais se interessa por namorados.

— Ah, devagar, apressadinha! — responde madrina. — Você está na fila depois de Marisol. E a mais nova, Kayla, logo depois de você.

— Então só vou casar depois da Marisol? — choraminga Layla. — Olha pra ela, madrina! Vou ter que esperar séculos!

— É isso mesmo. E existem duas formas de examinar a instituição do casamento — diz Marisol, e todo mundo suspira porque ela vai começar a declamar mil fatos, números e estatísticas sobre a coisa que mais ama no mundo: dinheiro. — Pode significar que o casamento é a falsa noção de que o amor dura para sempre e que a mulher deve depender do marido financeiramente. Ou que duas fontes de renda são melhores que uma. Amor é abstrato. Dinheiro, não.

— Rá! Essa aí é que vai casar por dinheiro — diz madrina. — Pode apostar nisso, Beni.

— Ah, por favor! — fala Janae finalmente, e todo mundo fica quieto. — Estamos no futuro, madrina. Estamos pensando nas nossas carreiras, nos nossos objetivos, em superar barreiras. E sim, Marisol, estamos pensando em ganhar dinheiro!

— Carreira antes da família? Que nem uma gringa?

— Não, madrina — digo. — Não que nem uma branca. Que nem…

uma mulher. Qualquer mulher!

— Que nem a Beyoncé e a Jennifer Lopez — diz Janae.

— Minha filhota — diz mama, sorrindo e inclinando a cabeça. — Passa um ano na faculdade e acha que já sabe tudo!

Janae faz uma expressão estranha, e sei que ela ficou magoada.

Minha irmã mais velha é quem tem maior responsabilidade intelectual na casa agora, já que é a primeira da família a entrar na universidade.

Mama teve Janae quando era adolescente, e fez só dois semestres da faculdade antes de largar quando ficou grávida de

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mim. Papi fez dois anos de uma escola técnica e tem orgulho do seu diploma. Eles se casaram quando eram muito, muito jovens. E, graças a los espíritus, como diz madrina, pelo menos se gostam.

Eles mais que se gostam, na verdade. Eles se amam.

Sei disso porque, enquanto estamos todas fofocando na sala, papi está lavando a louça e limpando a cozinha, e volta com um copo d’água quando vem pegar o prato da mama. Outros homens das redondezas — Bobbito, Wayne e Hernando — sempre brincam que ele é todo mole. Passei a vida vendo papi fazer essas coisinhas por ela. E sei, do fundo do coração, que o tipo de amor que eles têm é raro.

Enquanto madrina e mama ainda estão falando sem parar, faço um gesto para Janae. Ela levanta para lavar o prato e, quando termina, sai sem chamar atenção. Fico de olho nas gêmeas porque sei que elas seriam as primeiras a perceber, mas as duas estão mexendo no celular, provavelmente olhando o fluxo constante de selfies. Espero mais alguns minutos antes de sair pé ante pé da sala apertada, e fecho a porta devagar.

Janae está no corredor me esperando. Sorrimos uma para a outra.

— Ora, ora, olá, senhoritas — diz alguém do segundo andar, nos assustando.

Olhamos para baixo e vemos o cabeção do Colin subindo as escadas. Janae e eu suspiramos e reviramos os olhos ao mesmo tempo.

— Com todo respeito, você está sensacional, Janae — fala ele ao chegar na nossa porta.

— Ah, cala a boca, Colin — reclamo.

Ele simplesmente me ignora e vai direto na minha irmã, pegando a mão dela e dando um beijo, fingindo ser um cavalheiro e não o babaca pentelho que é.

Nós conhecemos Colin desde criança, porque ele é sobrinho de madrina. Como ela não tem filhos, meio que adotou ele — ela até diz que é Colin quem vai herdar o prédio. Todo verão, ele passava semanas aqui com ela, com a gente. Quando éramos crianças, Colin era como um irmão mais velho que nunca tivemos. Ele batia a corda quando a gente precisava de mais alguém na brincadeira, fingia ser o vilão que fosse — um monstro, o chupa-cabras, um Comensal da

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Morte — e ficava correndo atrás da gente no parque Maria Hernandez. Mas três verões atrás, quando ele fez 18 anos, veio morar com a madrina e começou a agir de um jeito todo esquisito perto da gente — agora usa barba e tem uma voz grave. Ele parou de brincar e um dia chegou para Janae com uma carta dizendo que era totalmente apaixonado por ela. Desde então, as coisas nunca mais foram as mesmas.

— Bem-vinda de volta, Janae — diz ele, todo sedutor, olhando para ela com cara de cachorro que caiu da mudança.

Ela puxa a mão e balança a cabeça.

— Vai logo ou a comida vai acabar.

Quando ele abre a porta, a primeira coisa que a madrina diz é:

— Colin, mi primo! Viu os novos vizinhos com quem vai ter que competir agora?

A porta bate atrás dele, e finalmente eu e Janae temos um momento a sós para rir da palhaçada que é a nossa casa, a nossa família e a nossa vida.

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TRÊS

UMA PORTA ESTREITA no fim do corredor leva a uma escada até o terraço. Esse é o nosso porto seguro, bem acima de tudo. Também é o nosso esconderijo, porque, por motivos óbvios, papi nos proibiu de subir: podemos cair e morrer. Então, apesar de ele ter passado um cadeado na porta alguns anos atrás, a gente conseguiu destrancar e escapar para as nuvens.

Se o porão da madrina é onde os tambores, los espíritus e as antigas memórias ancestrais vivem, então o terraço do prédio é onde o vento canta, sonhos e possibilidades flutuam entre as estrelas, onde Janae e eu dividimos segredos e planejamos viajar pelo mundo, tendo como primeira parada o Haiti e a República Dominicana.

Janae sempre tem um grampo no cabelo e leva apenas um segundo para abrir o cadeado. Subimos a escada, abrimos a porta horizontal e saímos para o ar quente da noite.

O fim de junho no Brooklyn é como o comecinho de uma festa — a música já está ótima, mas você sabe que ainda vai melhorar muito, então só fica dando uns passinhos para lá e para cá antes de começar de verdade. Ainda está claro às oito da noite, e, daqui do terraço, a gente consegue ver todo mundo indo e vindo nas avenidas Bushwick e Jefferson.

Assim como da nossa janela, é impossível ignorar a mansãozinha toda chique do outro lado da rua. A vida toda olhei para o buraco no telhado, as janelas com tapumes, a floresta que aos poucos começava a sufocar a construção. Uma vez, eu e as minhas irmãs apostamos que uma árvore ia nascer bem no meio da sala e ia subir sem parar, levando a casa junto. Aí a gente ia dizer que era a nossa casa na árvore — nosso lar nas alturas.

Mas não. É uma mansãozinha agora. O buraco foi consertado, a floresta ao redor da casa foi podada até virar um gramado perfeito

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demais para a nossa vizinhança e as janelas novas são tão grandes que dá para ver o primeiro e o último andar da casa, com pisos de madeira brilhantes, paredes brancas, estantes imensas, quadros que parecem ter sido pintados por crianças pequenas e móveis que parecem de consultório de dentista.

Por semanas, tanta gente entrou e saiu dessa casa para pintar, montar móveis e decorar, que achamos que ia ser um museu ou, como Janae sugeriu quando mandei uma foto, um hotel.

— Eu não acredito que pagaram outra pessoa para decorar a casa

— falo quando me aproximo da beirada. — Tipo, eles têm tanto dinheiro que dão dinheiro para alguém fazer o que poderiam fazer sozinhos.

Janae me puxa devagar para longe da beirada.

— Eu só me pergunto por que tiveram vontade de se mudar para cá. Quer dizer, poderiam ter feito tudo isso no norte do estado, sabe?

Quando pego o ônibus para a faculdade, vejo que tem um monte de casarões tipo esse no topo dos morros, Z.

— Sério? Você fez novos amigos que moram nessas casas?

Algum deles era… negro? — pergunto, sarcástica.

— Você sabe que tem gente negra com dinheiro no mundo, né, Z?

— É claro. Mas por que vir para cá? Achei que todo mundo estava querendo tirar a gente daqui.

Janae fica parada do meu lado. Nossos ombros se tocam, então passo o braço por cima dela e a puxo para perto. Ela abraça a minha cintura e apoia a cabeça no meu ombro.

— A gente pode tentar perguntar para eles — diz ela, bem baixinho.

— Perguntar para quem?

— Ainsley e Darius. Eles parecem legais, Z.

— Não acho, Nae — digo. — Eles moram perto demais. Vai ser estranho.

No momento em que falo isso, vemos Ainsley em uma das janelas.

Ele está passando os dedos pelo cabelo, e até eu tenho que admitir que isso deixa ele bem gato. Janae e eu trocamos um olhar, e ela sorri. Ainsley não olha para cima, mas, mesmo assim, nos afastamos para não sermos vistas.

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Tem uma lona azul escondida embaixo de uma tábua velha no telhado. Janae me ajuda a tirar e a esticá-la no piso aquecido pelo sol, longe da beirada do prédio em que meio metro de tijolos e concreto nos separa do vazio. Sento de pernas cruzadas, e Janae traz os joelhos até o peito.

— Por que gente rica não gosta de cortina? — pergunto para ninguém em especial.

— Eles querem se mostrar — responde ela, tirando a cabeça do meu ombro.

— Você acha que eles são tão ricos assim?

— Não. Provavelmente compraram a casa barato.

— Com certeza compraram a casa barato. Então só são ricos para o nível daqui.

— Eles são mais ricos que isso, Z. Mas, seja como for, Ainsley pareceu legal — diz ela enquanto estica as pernas.

— Janae… — digo. — Primeiro as irmãs, depois os crushs! — Chego mais perto e, dessa vez, coloco a cabeça no ombro dela.

Depois de um tempinho absorvendo o ar cálido e os sons da vizinhança, pergunto: — É legal estar em casa de novo?

— É, mas mal posso esperar para voltar — responde ela.

Tiro a cabeça do ombro dela e a encaro.

— O quê? Você acabou de chegar.

— Eu sei, Z, mas preciso de espaço. Preciso poder esticar os braços. Preciso de silêncio para me ouvir pensar.

— Ah, não, Janae! Mama tinha razão. Um ano na faculdade e você já decidiu que não quer mais ficar aqui?

Ela para e me encara, séria, antes de responder com a voz calma e doce.

— Sinceramente, não. Estou me inscrevendo em alguns programas de intercâmbio. Quero viajar, Z. Ver o mundo. Aí eu posso voltar.

Eu não sabia que ela queria fazer isso. Mal consigo imaginar…

minha irmã, do outro lado do mundo? E se ela decidir que nunca mais quer voltar?

— Ah, Nae, que isso. Você já viajou. Vamos ver — digo, contando nos dedos. — Teve aquela vez que fomos com mama no shopping em Nova Jersey, o parque aquático na Pensilvânia… — Fico com os

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dois dedos erguidos, tentando pensar onde mais já fomos que possa contar como viagem.

— Nem precisa se esforçar muito, Z, porque é isso aí. A gente foi a um shopping e a um parque aquático fora daqui. Não serve de nada.

— Droga — reclamo, suspirando, porque ela tem razão. Uma vez, mama e papi foram de ônibus passar um fim de semana em Syracuse. Seria caro demais levar a família toda, então a gente ficou em casa, e eles mandaram vídeos e fotos da viagem, passando por florestas, cidadezinhas e lugares bem diferentes de Bushwick ou do Brooklyn. “Leia para viajar”, é o que papi sempre diz. Cada livro é uma vizinhança, um país, um mundo diferente. Ler é a forma como eu visito lugares, pessoas e ideias. Quando algo me impressiona ou me intriga, marco a frase com marca-texto amarelo para que ela se acenda na minha mente, como uma lâmpada ou uma vela, iluminando o caminho para algo novo. Em geral, é o suficiente para me fazer esquecer que quase nunca saí de Bushwick.

— Certo, Z. Chega de se lamentar. Seu último ano está chegando.

Qual é o plano? Porque você precisa sair desse apartamento.

— Eu tenho que sair desse apartamento — repito. — Nossa. Nem acredito que daqui a um ano vou para a faculdade. Marisol e as gêmeas vão pirar, vão ser menos duas pessoas em casa!

— Eu falei a mesma coisa sobre você antes de me mudar.

— Mas eu não pirei. Só senti a sua falta, Nae-nae.

— Não, não, não. Você não tem permissão para sentir a minha falta. Tem que se concentrar, Z. Comece a estudar para o vestibular, prepare as listas de escolas e de empréstimos estudantis, pesquise as bolsas de estudo…

— Eu sei, eu sei.

— É sério, Z. Se não fizer isso, nunca vai conseguir sair deste lugar. Nossa casa sempre vai estar aqui, e Bushwick sempre vai ser Bushwick.

— Será?

Ela fica quieta por um instante e olha para a paisagem de prédios e casas.

— Tá, tudo bem, mas se você voltar para casa e começar a sua carreira, vai poder comprar um apartamento aqui em Bushwick e

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fazer compras no mercado do Hernando não importa quantas placas de “orgânico” ele coloque.

Dou uma risada, então me lembro do que eu deveria estar fazendo durante as férias.

— Você acha que esse pode ser um bom assunto para a minha redação da faculdade? — pergunto. — Como salvar o bairro?

— Depende da forma que você trabalhar a questão. Qual é o seu argumento, a sua tese? O que está tentando dizer?

Eu paro por um segundo, pensando no bairro e como, mesmo conforme as famílias cresciam e se mudavam, as coisas meio que permaneciam iguais… até agora.

Descruzo as pernas e, no mesmo momento, a porta do casarão em frente se abre, e os Darcy saem. Eles trocaram de roupa. A mãe está usando um vestido leve florido, e o pai, uma camisa cor-de-rosa com calças cáqui. Ainsley usa uma camiseta branca bem-passada e jeans, e Darius, uma roupa igual à do pai.

— Oi, Darius! Oi, Ainsley! — A gente escuta alguém gritar lá debaixo. É Layla, claro, berrando da janela.

Os dois meninos erguem os olhos, mas apenas Ainsley sorri e acena. Então ele olha ainda mais para cima e vê Janae. Ela fica paralisada, e percebo que está na dúvida entre acenar ou se esconder para não ser vista. Mas aí ela relaxa e fica olhando até Ainsley sumir no banco traseiro do carro dos Darcy, junto com Darius, que nem olhou para a gente.

O carro dá partida e vira na avenida Bushwick. Eu me pergunto onde estão indo. Acabaram de chegar naquela mansãozinha, por que sairiam tão cedo, mesmo que fosse só por uns minutos? Eu me pergunto se eles já viajaram, visitaram outro estado ou país. Eu me pergunto que tipo de lugares, coisas e experiências novas o dinheiro deles pode comprar.

Então me viro para perguntar, achando que Janae talvez saiba as respostas, mas os olhos dela estão fixos no pôr do sol, e tenho certeza de que os sonhos da minha irmã são tão altos quanto as nuvens.

Vejo uma lua fraca ao longe, o céu azul-alaranjado, ouço a confusão de Bushwick ao nosso redor e é como se este terraço

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tivesse virado duas mãos segurando eu e ela bem no meio das palmas.

— Z? — chama Janae sem olhar para mim.

— Oi?

— Você acha que eu tenho chance?

— De quê?

— Com o Ainsley — diz ela baixinho.

— Merda. — E isso é tudo que consigo responder.

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QUATRO

É A PRIMEIRA MANHÃ de sexta-feira das férias de verão, e o apartamento é uma bolha delicada: silenciosa, cheia e redonda, com todas as irmãs Benitez no mesmo quarto. Temos mais ou menos o mesmo tamanho e a mesma altura agora, mas ainda dormimos nas mesmas camas desde que éramos pequenas.

Dois beliches ficam encostados nas paredes e a cama de Janae fica bem embaixo da janela da frente.

Acordo antes das minhas irmãs e já estou na metade do meu livro, com lápis e marca-texto em mãos, que nem o papi ensinou. Estou lendo Entre o mundo e eu, pensando na meca de Ta-Nehisi Coates, a Universidade Howard, e como vou me sentir como se estivesse entrando em um país totalmente diferente, sem forasteiros aparecendo para mudar tudo e jogar as coisas fora; onde os rostos são os mesmos desde 1867, quando a faculdade foi fundada; onde, embora as pessoas venham de todos os lugares do país e do mundo, ainda assim falam a mesma língua — que é negra, africana, caribenha, afro-latina, todas as coisas que me fazem quem eu sou:

haitiana, dominicana, negra.

Termino o capítulo e olho pela janela — quero ver se já tem alguém arrumando a festa da rua. Mas só vejo os meninos Darcy na frente de casa. Ainsley está pulando no mesmo lugar, socando o ar como se estivesse pronto para lutar. Darius está alongando as pernas, e os dois têm manchas de suor na gola das camisetas. Algo em como eles estão vestidos me diz que com certeza não estavam só jogando basquete no parque ou fazendo barras que nem os outros caras daqui.

Na esquina, uma mulher branca cata cocô de cachorro com um saco plástico. Ela tira o saco da mão, dá um nó e joga em uma lixeira próxima, então faz um carinho no cachorro como se ele estivesse de parabéns. Vejo o sr. Turner, do fim da rua, parado na frente do

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Hernando’s com o seu café. Logo ele vai pegar os engradados de plástico, virá-los de lado e esperar o señor Feliciano, Stoney, Ascencio, o sr. Wright e alguns outros vovôs para o jogo diário de dominó ou de baralho enquanto discutem política ou o último jogo de futebol.

No fim da tarde, eles vão dar lugar aos caras mais novos — Colin e os amigos, que ficam ali parados olhando as garotas, bebendo

“suco alcoólico”, e também discutindo política e o último jogo de basquete. Então a festa e a música vão começar, e todo mundo vai dançar e comer até tarde. É um dos meus dias favoritos do ano. É como uma versão menor dos meus outros dias favoritos: ir à parada do dia dominicano com papi, à parada do dia porto-riquenho com madrina e caminhar com a bandeira do Haiti na parada do dia caribenho com mama. Nossas festas de rua reúnem todo mundo da área: dominicanos, haitianos, jamaicanos, porto-riquenhos, mexicanos, panamenhos, afro-americanos e até alguns brancos, que compraram várias casas no fim da rua.

Meu bairro é feito de amor, mas é o dinheiro, os prédios, a comida e os empregos que o mantêm vivo — e até eu preciso admitir que pessoas novas aparecendo, com dinheiro extra e sonhos, às vezes, podem tornar as coisas melhores. Vamos ter que descobrir uma forma de fazer os dois lados de Bushwick funcionarem.

Isso me dá uma ideia. Pego o meu pequeno laptop e digito as primeiras palavras da minha redação para a Howard.

Às vezes, amor não é o bastante para manter uma

comunidade unida. Precisa haver algo mais tangível, como habitação justa, oportunidade e acesso a recursos.

Minha irmã mais nova, que se autoproclama uma especialista financeira, diz: Amor é abstrato. Dinheiro, não.

Eu digito, deleto, digito e deleto tudo de novo. Respiro fundo.

Fecho os olhos. Deixo os meus dedos dançarem pelo teclado.

Como salvar o bairro

Se meu nome fosse Robin, eu roubaria as esquinas fechadas Em que a esperança e a certeza se encontram

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Formando tijolos tão perfeitos e altos

Quanto os muros que cercam o meu Bushwick.

Às vezes, não vou para o outro lado

Em que Bed-Stuy ou Fort Greene são guardados E armados com cafés e poodles em coleiras.

Eu nunca vi um vira-lata, cão ou gato de rua

Como os que ficavam no terreno baldio da avenida Wyckoff Debaixo dos trilhos de trens como as cicatrizes dos viciados Que participavam dessas reuniões de cães-e-gatos quando papi era jovem.

A esperança é torcer que essas esquinas virem longas, serpenteantes ruas

Com todos os sinais sempre verdes.

A certeza é saber que as esquinas sempre serão o lar Em que ângulos de noventa graus são as formas mais constantes da nossa vida.

Sempre uma virada brusca.

No fim da tarde, nosso apartamento mais parece uma sauna com mama cozinhando para a festa da rua. Já me acostumei com os cheiros, o pessoal da rua também, e provavelmente o bairro inteiro.

Todas as janelas foram abertas para a fumaça sair, e eu e as minhas irmãs estamos só de short, camiseta e avental, além de rede de cabelo e luvas para quando precisarmos mexer na comida.

As pessoas novas que se mudaram para cá provavelmente acham que a nossa parte de Bushwick não tinha como ser mais barulhenta do que em uma noite de sábado qualquer em julho.

O baixo está tocando desde o meio-dia, e com esse barulho não tem como ler, pensar ou sonhar acordado. O DJ colocou seus equipamentos na frente do nosso prédio, que parece estar dançando todo no ritmo da música. Ninguém consegue ficar parado. Mesmo enquanto ajudo na cozinha, estou balançando a cabeça, estalando os dedos, fazendo passinhos e seguindo Layla e Kayla enquanto elas praticam os passos para o show de talentos da festa mais tarde.

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A festa da rua é algo que fazemos nos últimos anos, desde que mama virou o comitê de planejamento de festas da associação do bairro. Ela consegue reunir as moças da Jefferson e da Bushwick para cozinhar e arrumar as mesas no fim da rua, enquanto papi e os amigos montam as churrasqueiras na calçada e colocam os isopores de cerveja perto do nosso prédio. As pessoas das outras ruas trazem cadeiras de praia para sentar nas calçadas. As crianças ficam correndo e andando de patinete. Nas extremidades da rua, dois ou três carros fecham o trânsito. A festa é tipo um jantar da mama versão megalomaníaca.

Enfim terminamos de cozinhar e tudo está pronto para ser colocado nas quentinhas de alumínio. A gente ajuda a carregar as coisas lá para baixo, e aí podemos aproveitar a festa. Janae vai arrumar a maquiagem antes de me encontrar na calçada, com um copinho plástico de sorvete na mão. Ela senta ao meu lado e fica balançando a cabeça no ritmo da música. Atrás do DJ tem um pequeno palco em que as pessoas do show de talentos vão se apresentar, bem em frente à casa dos Darcy. Isso nunca foi problema, porque a casa estava abandonada.

— Você acha que eles vão ficar putos? — pergunta Janae ao comer uma colherada de sorvete.

— Quem? — falo, me fazendo de burra.

— Você sabe. Os Darcy. Não faz nem uma semana que chegaram aqui, e o pessoal já está fazendo essa bagunça toda bem na frente da casa deles.

— Não ligo nem um pouco — respondo.

— Liga, sim.

— Não ligo, não.

— Você devia ter visto a sua cara quando Darius salvou você daquela bicicleta.

— Não tô nem aí para a minha cara, Janae!

Ela só ri de mim, então desisto e caio na gargalhada também. Não dá para ficar com raiva da minha irmã por muito tempo.

Vejo Charlise se aproximando pela calçada da avenida Bushwick.

E, como se já soubesse que estou olhando para ela, a garota me encara e dá aquele seu sorriso: um aceno de cabeça e só um lado da boca se erguendo.

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Eu não avisei que os novos vizinhos tinham se mudado porque queria que ela visse por si mesma.

— Z! E aí? — diz ela quando chega na nossa calçada, me dando um aperto de mão forte com aquelas mãos masculinas dela. Charlise manda muito bem no basquete e recebeu uma bolsa para entrar na equipe da Duke. É um ano mais velha que eu e, com a ajuda dela e de Janae, sei bem como é tentar entrar na faculdade. Só que a Charlise também planeja voltar para cá depois que terminar os estudos.

Eu ajeito os ombros, bato palmas e, ainda sentada, faço um passinho para lá e para cá, balançando as mãos, e Charlise entende logo.

Ela abre a boca, dando um empurrãozinho em Janae para poder sentar entre nós duas, e pergunta, de olhos arregalados:

— O que foi, Z? É fofoca ou notícia? Pode ir liberando a parada, eu já tô com o meu chazinho pronto! — Ela finge beber de uma xícara, com o dedinho levantado.

Janae e eu começamos a rir. Assim como mama, Charlise ama uma fofoca.

Eu me preparo para começar a contar a história da vinda dos garotos Darcy para o bairro quando a música muda e um pessoal corre para perto do DJ para fazer os passinhos mais recentes.

— Ah, aí sim! Chegou a hora! — grita Charlise, e segura a minha mão para me levantar. É aí que vejo os Darcy saindo da casa. Na mesma hora paro de dançar e volto a sentar.

— O que foi? — pergunta Janae, terminando o sorvete.

— Nada — respondo, balançando a cabeça no ritmo.

Mas ela me conhece bem, então levanta e vê o que eu acabei de ver. É claro que ela acena.

— Eles estão vindo para cá.

— Tô fora. — Começo a andar de volta para o prédio, mas Janae me segura.

— Ah, que isso! Qual o seu problema, Zuri? A gente não pode evitar esses caras pelo resto da vida.

— Pelo resto da vida? Quem disse que vamos ter que lidar com eles pelo resto da vida?

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— Do que vocês estão falando? — pergunta Charlise, ainda dançando. Ela ainda não percebeu os garotos se aproximando.

Janae dá um tapinha no ombro dela e indica os Darcy com o queixo.

— Ah. Olha! — diz ela. — Quem são esses?

— São os meninos que se mudaram para a minimansão — explica Janae.

— O quê? Sério? — pergunta Charlise, sorrindo de olhos arregalados.

— Sério — dizemos eu e minha irmã em uníssono.

— Eita. Que gatos.

Janae me olha com uma expressão de “eu te disse”.

— Não sou cega, Janae. Sei que eles são gatos. Mas não são para o nosso bico.

— Zuri não gosta deles porque eles moram do outro lado da rua — fala Janae para Charlise.

— Eu te entendo, Z — diz ela. — Do jeito que as coisas são por aqui, vai ser meio como se eles fossem os seus primos.

— Muito obrigada! — digo. — Não, não. Espera. Quer dizer, é complicado. Não é como se eles fossem os nossos primos. Quer dizer, olha a casa deles.

— Tá, vai ser como se eles fossem os seus primos ricos — responde ela. — Mas eu não tenho nada a ver com isso. Me apresenta, Zuri.

— Não! — falo, quase gritando. — Você também não!

— Olha — diz Janae. — Se esses Darcy fizeram essa obra toda na casa, então planejam ficar aqui por um bom tempo. Melhor a gente fazer amizade.

— Eles não estão querendo fazer amizade com a gente, Nae. É, eles reformaram a casa, e, daqui a pouco, vão querer reformar o bairro todo. Acho que não estão nada contentes com a festa da rua.

— Ah, é? Dá só uma olhada — diz ela, apontando com o queixo.

Ainsley se juntou a um grupo de adolescentes dançando perto do DJ, com um sorrisão no rosto.

Janae começa a dançar também.

— Ei! Ei! Ei! Ei! — canta ela junto, tão boba quanto Ainsley.

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Charlise não vai para perto deles, graças a Deus. Só fica olhando para Ainsley e rindo.

Ele vira para a gente, ainda dançando, e, de alguma forma, ele e Janae começam a dançar juntos, embora Ainsley esteja a alguns metros, e ela ainda esteja sentada na calçada. O garoto chama ela.

Janae balança a cabeça e chama ele. Os dois estão agindo como completos idiotas.

— Não, Janae, por favor, não — resmungo.

Mas ele não se mexe, e rapidinho Layla chega perto e começa a dançar com ele.

— Ah, não acredito! — diz Janae.

— Sua irmãzinha não perde tempo — brinca Charlise.

A música muda para outra mais rápida, e, em vez de se afastar de Ainsley, Layla agarra Kayla e as duas dançam em volta dele.

— Ah, não — digo. — Cadê o papi quando a gente precisa dele?

— Elas só estão se divertindo — fala Charlise.

Ainsley continua como se estivesse acostumado a ser assediado por meninas de 13 anos. Ele conhece todos os passos, embora seja um pouco desajeitado, o que faz ele parecer ainda mais fofo. Fico com raiva de mim mesma só de pensar nisso.

Vejo Darius observando todo mundo também. Ele não está nem balançando a cabeça com a música, nem sorrindo, nem olhando para o pessoal ao redor. Só está ali, parado na calçada, os braços cruzados, agindo como se estivesse acima daquilo.

— Aquele é o irmão mais novo, de camisa branca. Darius — digo para Charlise. — Não suporto ele.

— Mas o menino não acabou de se mudar?

— É, mas olha só para ele!

— Eu entendo. Ele não tem estilo nenhum. Os dois, na real. Mas pelo menos Ainsley tenta. Por favor! Me apresenta ele!

De repente, Layla chega perto de Darius e começa a dançar com ele. Vejo do outro lado da rua que o garoto está com o nariz enrugado, a boca apertada e as sobrancelhas franzidas, como se a minha irmã o enojasse. Layla nem percebe.

— Está vendo a cara dele, Charlise? A família toda podia ser branca! — Eu me levanto do meio-fio.

— Z! Deixa eles em paz! Só estão se divertindo!

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Eu ignoro o que ela diz e atravesso a rua às pressas, cortando o grupo de pessoas dançando com passos firmes, indo direto na direção de Layla. Quando chego do lado dela, puxo o braço da minha irmã com força.

— Qual é o seu problema, Zuri? — berra ela.

— Desculpa — digo para Darius, antes de me virar para a minha irmã. — Você precisa se controlar. Ele não quer você aqui.

— A gente só estava dançando — reclama ela, esfregando o braço.

— Não, você estava dançando, e ele estava olhando para você como se fosse uma pilha de bosta.

— Com licença? — diz Darius, erguendo as sobrancelhas.

— Toda — respondo, lançando um olhar de canto de olho.

Irada com tudo aquilo, Layla se afasta de mim e volta para perto dos amigos. Mas ainda não acabei com aquele garoto, então lanço um olhar cheio de raiva para ele. Darius inclina a cabeça para trás e me encara como se eu é que estivesse fazendo algo errado.

— Perdão, mas com quem acha que está falando?

— Estou falando com você, Darius Darcy! Eu vi a forma como estava olhando para a minha irmã.

— Ela é que veio para cima de mim. Eu nem sabia que era sua irmã. — A voz dele é mais grave do que eu me lembrava, e Darius tem um sotaque leve que não consigo identificar. Definitivamente não é aqui de Bushwick nem de nenhum lugar do Brooklyn. — E não fale assim comigo. Eu não sou um dos seus caras daqui.

Jogo as minhas mãos para o alto e olho de um lado para o outro, tentando encontrar alguém que tenha ouvido aquilo.

— Ah, com certeza. — Dou uma risada. — Sei bem que você não é um dos meus caras. E não importa se ela é a minha irmã ou não.

Você já tinha conhecido ela antes! Se tivesse olhado para a gente, saberia disso. Mas acho que dinheiro não compra educação, não é mesmo?

Ele não sabe como responder, é claro. Fica com os dentes trincados e olhando por cima de mim, em volta de mim, talvez até através de mim. Por fim, ele fala:

— Bem, eu sei quando não sou bem-vindo. — E com isso ele se vira e volta para a minimansão.

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Fico encarando as costas dele, as unhas marcando as palmas das mãos. Respiro fundo para libertar a energia negativa, como a madrina me ensinou. “Seja como o rio, e siga o fluxo” é o que ela sempre diz. A festa está só começando, e não vou deixar Darius Darcy e a sua falta de educação estragarem a minha diversão. Então expiro com força.

Enquanto eu não estava olhando, Janae chegou perto de Ainsley para dançar. Ela está em um estupor aéreo quando ele a segura. É brega demais, e Janae está caindo que nem um patinho. Cruzo os braços e estreito os olhos.

Se Janae é a adorável cola que nos mantém unidas, então eu sou o escudo, a protetora. Se alguém quiser chegar perto das irmãs Benitez, vai ter que passar por mim primeiro.

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CINCO

ESTOU SENTADA NA ESCADINHA do prédio, e as palavras da redação da faculdade não vêm de jeito nenhum. Ou talvez estejam flutuando em volta da minha cabeça e eu só precise levantar os olhos e agarrar uma a uma.

Mudança. Dinheiro. Faculdade. Emprego. Espaço. Família. Casa.

Se prestar atenção, posso ouvir os sons de Bushwick diminuindo aos poucos. Cada vez menos barulho. Minhas irmãs não acreditam quando digo que, embora ainda seja barulhento, o bairro está ficando mais silencioso a cada verão, como se os sonzinhos musicais que enchem as ruas estivessem estourando como bolhas, uma a uma, desaparecendo em um silêncio vazio. Qualquer um que ficou tempo o bastante em Bushwick é como um músico, e toda vez que alguém vai embora, perdemos um som.

Nada transborda de mim. Nada escapa pelos meus dedos. Suspiro e fecho o laptop na hora em que a porta se abre e dela sai Janae, usando sandálias abertas, com as pernas recém-depiladas e brilhosas. Nem preciso olhar para a cara dela para saber que está usando a maquiagem de sempre, com um leve brilho e gloss.

— Por que está toda arrumada?

— Não estou arrumada — responde ela, se fingindo de boba.

Dou uma olhada rápida e vejo que eu tinha razão. Janae não planejara nada para as férias — nenhum emprego temporário ou estágio —, então ela definitivamente não tem para onde ir em uma segunda à tarde em julho. Ainda assim, o telefone dela não para de apitar, e ela está trocando mensagens como se não houvesse amanhã. Janae não tem tantos amigos assim. Na verdade, as duas amigas que tinha não moram mais por aqui e os amigos de faculdade estão todos viajando nas férias.

Ela olha para o outro lado da rua, e eu suspiro profundamente.

— O quê?

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— Eu que pergunto.

— Tá bom. Ele me convidou.

Aperto o meu laptop e encaro as portas duplas imensas. Como eu odeio aquelas portas.

— Janae, você acabou de chegar. Eu não te vejo faz meses. Por que não fazemos alguma coisa? E se a gente pegasse um ônibus para dar uma volta no centro, ver um filme, passear na livraria?

Qualquer coisa.

— Claro, com certeza. Temos o verão inteiro, Z — diz ela, sorrindo e encarando a casa do outro lado da rua.

— Você vai lá agora?

— Ah, vou. — Ela levanta e ajeita a parte de trás do vestido. — Quero ver a casa por dentro. Pensa, eles fizeram essa obra toda em o quê, alguns meses?

— Quase um ano. Eu vi tudo. Todos os dias. Consigo imaginar como a casa é por dentro. Posso desenhar para você.

Ela me ignora e desce a escada.

— Papi não vai gostar disso, Nae — digo como último recurso, tentando evitar que ela estrague a vida dela. A nossa vida. Nossa família se dá bem com todo mundo da rua, o que faz as festas funcionarem bem, o que faz a volta para casa à noite bem tranquila, o que faz ir ao mercado de pijama não ser nenhum problema. A chegada dos Darcy muda tudo isso.

— Eu preciso pegar algumas ideias do que fazer quando comprar a minha casa caindo aos pedaços em Bushwick e começar a reforma

— diz ela em uma vozinha cantarolante e sonhadora.

— Isso não vai acontecer, Janae, porque pessoas como eles não querem ficar perto de gente como nós — respondo alto. — Especialmente Darius.

— Zuri, você está sendo ridícula — diz ela, e sai rebolando com o seu vestidinho curto até a casa do outro lado da rua.

— Vai chover, Janae! — grito atrás dela.

— Que bom! — diz ela, sem olhar para trás.

Tento voltar a minha atenção à redação. Tento não ligar. Eu me forço a escrever e, como sempre, palavras estranhas transbordam.

Um poema torto e partido, como os degraus desta escada, como a calçada em frente ao prédio. Como tudo ao meu redor agora.

(39)

O amor é como a minha irmã, Janae. Ela é tulipas de primavera e cores pastel. É o raio de sol atravessando a janela em que partículas de pó dançam e se beijam contra a luz. Ela é cenas de beijos suaves na TV,

e a prática posterior em travesseiros no escuro. Ela é o lugar quentinho

entre mama e papi enquanto eles dormem

e as contas estão pagas e a geladeira está cheia.

Ela é de mel, açúcar e frutas de verão

escorrendo sumo doce que atrai abelhas e moscas.

Elas zumbem. Irritam. Como quem está naquela casa do outro lado da rua.

Nuvens escuras em Bushwick têm um quê de magia. Pelo menos é o que madrina diz. Nuvens nunca são apenas nuvens por aqui.

Então, quando o sol se esconde e os trovões começam, eu sei que vai rolar.

Começa a chuviscar e, em segundos, aquilo se transforma em um toró. A casa do outro lado da rua me chama. Talvez a minha irmã esteja querendo que eu estivesse com ela para ver todos os eletrodomésticos de aço e os móveis de consultório de dentista. Ou talvez ela não aguente ficar ali mais um segundo, mas não quer ser grosseira, então seria uma ajuda se eu fosse até lá.

Meu laptop está ficando molhado, então eu coloco ele embaixo da minha blusa assim que piso na calçada. Estou indo, Nae-nae!

Os vizinhos correm para as suas casas, e poças começam a se formar nas beiradas das calçadas. Nem tento proteger a cabeça.

Quando chego no portão do casarão, minhas tranças estão molhadas, pesadas e grudadas na testa e nas bochechas.

As portas são ainda mais bonitas de perto, mas continuo não as suportando, porque são como portões para outro universo. Não tem campainha, só um interfone com uma tela pequena. Aperto o botão e uma versão distorcida em preto e branco de mim mesma aparece na tela. Eu me viro para procurar a câmera, mas ela está bem escondida. É claro que esse pessoal teria uma câmera de segurança na porta. Provavelmente tem um sistema de alarme caro também.

Nem Hernando tem tanto equipamento de segurança assim no mercado.

(40)

A porta se abre e fico paralisada, molhada e com frio, com o laptop gelado grudado na pele embaixo da camisa. Foi Darius quem abriu.

Não me arrisco a olhar para ele; me concentro em encarar a casa estéril.

— Vim buscar a minha irmã — digo.

— Ótimo, pode ficar com ela — responde ele.

Dessa vez, sou obrigada a encará-lo.

— Sério?

— Sim. Sério — diz o garoto, me olhando de volta.

Ele abre ainda mais a porta, mas não entro. Ele só fica parado, me olhando, até que enfim estende a mão em uma recepção relutante ao seu humilde lar.

Piso com força no piso limpíssimo com os tênis molhados. Sinto ele me encarando, e quando dou uma olhada, ele baixa os olhos para o chão. Gotas de chuva estão pingando das minhas roupas na madeira brilhosa. Não ligo. Sem dúvida eles pagam alguém para limpar.

— Cadê ela?

— Onde você acha? — responde ele com um meio sorriso.

— Janae! — grito bem alto, minha voz ecoando pela casa. O pé- direito da sala é imenso, tem uma escadaria que leva a cômodos que são, tenho certeza, ainda mais bonitos e, no fim deste andar fica a cozinha, com janelas imensas dando para o que costumava ser um bosque infestado de ervas daninhas. Padronagens chiques em dourado e bronze emolduram as paredes e os tetos. A minimansão parece ter sido construída para príncipes e princesas. — Janae! — grito de novo.

— Você precisa mesmo gritar assim? — reclama Darius, indo até uma caixinha na parede perto da sala de estar e apertando um botão. — Ainsley. A irmã dela está aqui.

— “A irmã dela está aqui”? — repito. — Eu tenho nome, sabia? E a minha irmã também.

— Zuri — diz ele, assentindo. — E Janae. — Ele estende o braço em direção à escada como se dissesse “Primeiro as damas”, mas não fala nada.

— Ah, então você está prestando atenção — digo, abrindo um sorriso falso.

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