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Tradução, posfácio e notas de Carlos Vaz Marques. LISBOA tinta da china mmxxii

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Academic year: 2022

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L I S B O A tinta ‑da ‑china

m m x x i i

Tradução, posfácio e notas de Carlos Vaz Marques

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© 2022, Edições tinta ‑da ‑china, Lda.

Palacete da Quinta dos Ulmeiros Alameda das Linhas de Torres, 152 — E. 10 1750 ‑149 Lisboa

Tels: 21 726 90 28

E ‑mail: info@tintadachina.pt www.tintadachina.pt Título original: Mortal y Rosa

© Francisco Umbral, 1976

© Ediciones Destino, S.A., 1976 Barcelona Título: Mortal e Rosa

Autor: Francisco Umbral

Tradução, posfácio e notas: Carlos Vaz Marques Revisão: Tinta ‑da ‑china

Composição: Tinta ‑da ‑china Capa: Tinta ‑da ‑china (V. Tavares) 1.ª edição: Fevereiro de 2022 isbn 978 ‑989‑671‑665‑3 Depósito Legal n.º 494208/22

... esta corporalidade mortal e rosa onde o amor inventa o seu infinito.

Pedro Salinas

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Quando me arranco ao bosque dos sonhos, à selva escura do sono, e me reanimo a mim mesmo, vou ‑me completando lentamente.

Porque deixei de me interessar pelos meus sonhos. O Freud que vá à merda.

Tudo o que somos tem, de facto, esse reverso de sonho, esses alicerces ou essa confusa lixeira, e alguém se interrogava, irónico, sobre os sonhos de Kant, de Descartes, de Hegel. Que tipo de so‑

nhos não teriam esses monstros da razão? Toda a repressão mental dos seus sistemas tinha de ter, sem dúvida, um reverso caótico, doloroso e intranquilo. Como negar a metade da vida na sombra, se é lá que estão os sonhos. Há um período da existência em que nos decidimos a ser só os nossos sonhos e o surrealismo é uma forma de adolescência ao querer alimentar ‑se de sonhos. Há uma maturidade, um classicismo — em qualquer idade da vida — em que optamos pela nossa própria razão, pelo nosso próprio rigor, pela nossa própria estatura. Que importa. Tão pueril é viver de sonhos como de silogismos. Claro que cada um vive do que pode e é demorado aprender a viver de realidades, de coisas, de objectos, tal como vivem os seres naturais. O homem é um ser de lonjura, como dizia o outro. Sim, o homem é um ser de utopias, de distân‑

cias, de «projectos líricos». O homem tem de aprender a ser uma criatura de proximidade, pastor do imediato.

Os meus sonhos dão ‑me apenas uma versão confusa do que para mim é claro. Quando sonho sou o exegeta confuso de mim

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f r a n c i s c o u m b r a l

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m o r t a l e r o s a

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próprio, o amanuense indecifrável e molengão que quer anotar tudo e tudo baralha. O sonho comenta a minha vida de um modo ocioso e obscuro, sem segredos, mas com sombras.

Concordo, neste aspecto, com monsieur Sartre, que nega ao sonho qualquer significado e que lhe atribui a impossibilidade de formular uma única imagem coerente, porque quando formulo uma imagem coerente «já estou acordado». Os meus sonhos não me interessam como já quase não me interessa o meu próprio passado. Da prosa da vida faço em sonhos poemas surrealistas.

Breton vive à minha custa e sai, à noite, para me comer aos peda‑

ços. O Breton que vá à merda. Sei que consisto numa cloaca, num lamaçal, em putrefacção, mas já me aborrece constatá ‑lo e perdi o fascínio pelas minhas próprias fezes, que é um fascínio infan‑

til perpetuado no poeta, no neurótico e no psicanalista. Só gente sem imaginação precisa de recorrer aos seus sonhos. De certeza que a Breton e a Freud nada lhes acontecia, nunca. Tão primitivo é interpretar os sonhos em relação ao passado como era interpretá‑

‑los em relação ao futuro, nos tempos de José. A lanterna surda do sonho não alumia sequer um único adarme* do futuro e, so‑

bre o passado, projecta apenas sombras confusas, vultos e versões equívocas daquilo que era claro. Sonhar com a minha mãe morta ou com os aquecedores que tinha de acender quando era peque‑

no, e com os milhares de escadas que tinha de subir, não é mais do que repetir fastidiosamente, num mau filme e com as bobinas trocadas, uma vida que não desejo recordar. Já é suficientemente surrealista que nos morra a mãe enquanto se têm de subir milha‑

res e milhares de escadas como moço de recados. Que surrealismo pode o sonho acrescentar a uma realidade tão pouco real?

Arranco ‑me, pois, à selva pantanosa dos sonhos e recompo‑

nho ‑me como posso, recolho pedaços de realidade que jazem

* Peso equivalente à décima sexta parte de uma onça ou pouco mais ou menos dois gramas; expressão usada para designar uma coisa mínima e sem importância.

tristes pelo quarto, dobro ‑me ao meio e os meus rins, carre‑

gados de passado e de licores, gemem docemente. Já estou de pé.

A primeira felicidade do dia é ter escapado aos perigos pue‑

ris do sonho, aos terrores convencionais do pesadelo. Mais vale a lucidez medíocre do que o delírio. Quase sempre os sonhos são maus, mas ainda nos resta a imaginação imprescindível para in‑

ventar machadianamente* a realidade, embora com menos mos‑

cas e menos imundície do que a realidade inventada pelo poeta arábicosorianoandaluz. Dói ‑me o olho direito, como todas as ma‑

nhãs, porque é lá que está a prosa lida na noite anterior, coagula‑

da, inflamando o olho, esse olho que trabalha e sofre, e nada me chegou ao cérebro, ficou ‑me um livro inteiro debaixo da pálpebra, a pressionar o trigémeo. Outro acidente diário é a erecção desne‑

cessária, agressiva e ostensiva de que se sofre depois de várias ho‑

ras na cama. Não há no mundo destinatária digna de tais erecções.

Este alarde eréctil é dirigido ao nada, a uma mulher inexis‑

tente de sombra e sonho, inútil fantasma becqueriano de névoa e luz. É a prepotência sem desejo, a pura mecânica do sexo que descobre em mim o que tenho de êmbolo, de máquina e de antro‑

póide. Com uma mulher à frente, tudo isto teria dimensões hu‑

manas, seria correcto, eficaz e razoável. Assim, não passa de um último alarde desnecessário da selva que me habita, uma natureza desastrosa, uma barbaridade. A este mecanismo autónomo, a este conjunto de alavancas atribuímos nós literatura, florilégios, ale‑

xandrinos. O que é o amor quando amor algum poderá alguma vez conseguir uma demonstração como a que é obtida pela pressão do sistema intestinal e das fezes contra a espinha dorsal?

Felizmente, a realidade apaga em mim o antropóide tal como a lucidez apaga os sonhos. Já não sou Breton nem um macaco nu.

* Relativo ao poeta espanhol Antonio Machado (1875 ‑1939).

† Designação do nervo trifacial.

‡ Relativo ao poeta espanhol Gustavo Adolfo Bécquer (1836 ‑1870).

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f r a n c i s c o u m b r a l

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O sofrimento incompreensível que descobri num livro que me chegou assim, sem qualquer tipo de filtro nem aviso, marcou‑me como muito poucas leituras, antes ou depois desta.

A linguagem simultaneamente velada e crua com que é con‑

tada a morte de um filho, repassada de dor e transtornada pela alucinação da dor, fez‑me sentir, no momento‑choque da primei‑

ra leitura do livro, a verdade profunda e profundamente literária daquelas páginas, independentemente da maior ou menor corres‑

pondência biográfica contida nele.

Mortal e Rosa é a morte do filho e, mais do que isso, uma mun‑

dividência desesperada que decorre dessa tragédia, entendida não apenas como tragédia pessoal, existencial, mas como tragédia uni‑

versal, cósmica, definitiva. Nada faz sentido depois disto e se nada faz sentido há que inventar sentidos mínimos, funcionais, numa pantomima de esperança que, sendo máscara, disfarce a verdadei‑

ra face do esqueleto que todos trazemos por dentro.

Não saber quem era Francisco Umbral permitiu‑me lê‑lo como um espectro, destituído de presença social, voz de uma autentici‑

dade literária ditada por um fantasma que não me é exterior, mas que descobri escondido dentro de mim.

Por uma vez, contrariando o lamento habitual que a morte de um escritor sempre convoca, podemos agradecer, neste caso, sem fugir a uma certa dose de crueldade que Umbral não enjeitaria, o facto de já não o termos entre nós, no mundo dos vivos.

A figura pública — equívoca e extraliterária — deixará, pro‑

gressivamente, de turvar a leitura de um livro‑relâmpago como o devastador Mortal e Rosa.

Carlos Vaz Marques

foi composto em caracteres Hoefler Text e impresso pela Rainho & Neves, Artes Gráficas,

sobre papel Coral Book de 80 g, em Janeiro de

2022.

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