• Nenhum resultado encontrado

lisboa tinta-da-china mmxxi

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2022

Share "lisboa tinta-da-china mmxxi"

Copied!
16
0
0

Texto

(1)
(2)

coordenador da colecção pedro mexia

l i s b oa

tinta-da-china m m x x i

p o e m a s e s c o l h i d o s

(3)

© 2021, Herdeiros de António Quadros e Edições Tinta -da -china, Lda.

Palacete da Quinta dos Ulmeiros Alameda das Linhas de Torres, 152, E. 10

1750 -149 Lisboa Tels: 21 726 90 28/29/30 E -mail: info@tintadachina.pt

www.tintadachina.pt Título: Odes Didácticas — Poemas Escolhidos

Autor: João Pedro Grabato Dias Coordenador da colecção: Pedro Mexia

Revisão: Madalena Alfaia Composição: Tinta -da -china (P. Serpa)

Capa: Tinta -da -china (V. Tavares) 1.ª edição: Novembro de 2021

isbn 978-989-671-654-7 depósito legal n.º: 492268/21

ÍNDICE

de 40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada (1970)

Humor, minha automática secreta Auto-retrato com cheirinho Livre-trânsito

Termómetro em forma de soneto Mátria

Motorizada 50 cm3

Pulcro sepulcro caiadinho e tudo Jorro jocoso, expulsa o clarim PUeTA

Só/netos Sebastião Magoo

Da história historiada os uivos épicos Paisagem com 1.º plano em cardos

Mártirmonial, matriarmorial, matrihormonal Biografia para um português muito alegre Aos cujos lusos, lusicús de sujos

Pública forma de 3 demissionetos em papel selado merdólicoso hindu e ainda mais

Allranço Mortos, vinte e sete, Agosto Ária em el apoetése de plurais de O Morto — Ode Didáctica (1971)

Devo velar os meus mortos

Um morto esquecido é tantíssimo perigoso Detesto parecer didáctico, mas eu conheço-os E depois, o morto é sem gesto e sem fala

11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30

35 36 37 38

(4)

Olhamos o morto horizontal, e, com surpresa, constatamos

Olhamos o morto horizontal e a dor que sentimos O som breve da caldeirinha reflecte-se

Quero explicar-lhes, Venho a explicar-lhes A noite é uma coisa em que estamos não é um ser Súbito estou inteiramente contigo

O olhar do morto bóia à flor das tábuas ah! rebobinar a vida toda, montar tudo de novo Falava-vos duma lágrima, é isso, mas já esqueci a clave Sim, era eu agachado entre os caixões dos primos Dai ao morto o espaço que merece, na memória

de A Arca — Ode Didáctica na Primeira Pessoa (1971) Estrofes I a XIV

Estrofes CLXXXIV a CXC Estrofes CCLXXIV a CCC de Uma meditação — 21 laurentinas e dois fabulírios falhados (1971)

Laurentina desagravada Necrologia laurentina

Laurentina do, branco é galinha, etc.

Baixa laurentina

Ronda dos leques ou terapêutica da ocupação laurentina a partir do litoral

de Pressaga — Ode Didáctica (1974) Acabou a era do pequeno torcionário

de abalada, de abalada badalando, balindo balanceando

39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49

53-66 67-73 74-100

103 104 105 106 109

113 116

lá vai, já lá vai o repórter lírico da palavra fofa Comecei há duas horas a fazer um poema épico Um pouco desamparado por sentir-me tão lúcido

Eis o bulício da rua, de novo o trabalho ininterrupto da folga Estou agora só no fim da avenida. Minha casa é aqui Enquanto acendo o fogo com os comunicados partidários É tudo um problema de inteligência, afirmam-me da

esquerda destra

Mil novecentos e quarenta em lisboa. Lisboa após Expo Claro que sei que o freud explica tudo isto muito bem Deixá-los denunciar-se quando são obrigados a mudar de

tom de voz

sinto que estou alegre num tempo vertical, que sou

Esquecem, e nem é por mal, que o verso dele é um perpétuo emigrante

Terra para quem a ame. Terra para quem a abrace com seus braços

Ó Terra, catano, quem me dera ser poeta lírico ou épico Suspeitava muito tudo o que sabemos hoje melhor Dêem-lhe lá a volta histórica que quiserem Que se liquide o império com a educação desejável De que maneira curiosa seremos bocados de coisas Meus abençoados tenentes coronéis generais ou isso As circunstâncias? Eu conheço também as circunstâncias Todos os versos do mundo foram escritos para dizer isto de Facto / Fado — Piqueno Tratado de

Morfologia — Parte VII (1986)

Vai abrir-se a porta. Vai entrar a Avó Nunca me libertei da infância

E porquê, a escrita? Por fácil? Por função gráfica cósmica?

118 121 123 124 125 126 127 128 132 133 134 135 136 137 140 143 144 145 146 148 149

153 155 161

(5)

de

40 E TAL SONETOS DE AMOR E CIRCUNSTÂNCIA E UMA CANÇÃO DESESPERADA

[1970]

Tudo é escrita. Tudo e até certas coisas escritas Instintivamente, instantaneamente, razoáveis,

as questões

ah! velho Tejo, velho Mondego

O que falta à grande pirâmide não é o projecto O facto é sem palavras. Não vive delas de SagaPress — Poesia com Datas (1992)

Poderá haver uma estética da sinceridade Vivo o provável. Sonho o plausível

Gostava que fosse de outro modo. Com os outros comigo Inalo a brisa como uma tisana de avó

Não há coisas «iguais». Nem há a «mesma» coisa Este sujo brocado de dúvidas paralelas

Estou num cume exaurido de referências Como uma esteira desenrolo o tempo A minoria migra no tempo

Aos que oferecem constantemente insignificâncias

Posfácio, António Cabrita

178 186 192 198 203

207 209 211 213 215 217 219 221 223 225

227

(6)

Humor, minha automática secreta unhas da minha fome mais madura marafona maninha, a reineta olorosa maçã, sanguínea escura rosa, giesta de ouro na secura hispânica, a sensitiva aleta ubíqua, a morcela na fritura mística das vésperas, a alforreca umbral do geloácido das vozes, súplices de pão, fermental de fezes anónimas, escroto da aflição, multímodo mulato do argumento orografia de guerrilha, unguento sinapismo, viático, extrema unção

{ 11 }

(7)

AUTO-RETRATO COM CHEIRINHO

Sublimado e corrosivo, noves fora três químicas cheirosas e incógnitas passeando-se do gesto ao rosto; nora chambona alcatruzada em mnemónicas saloias; cebolão do avô, com a hora exacta dum desjejum de tónicas arrogantes; três vinténs de pastora guardados em embalagens uótarpróficas dos velhos tip-top dos catorze;

água-régia do medo dos vizinhos;

sais de prata da cólera; cruel morse de ininterruptas pálpebras; cominhos temperando a bola-sanga; osmose de herbívoros, carnívoros e insectinhos…

LIVRE-TRÂNSITO

Ladrisco ou ladravaz, que importa ao gaio infernal do desejo, o objecto?

Viria auriflamante ou abjecto ringo de aventurinas, vale ao gaio

extremoso, o voo azul, só por que é maio.

Trintanário de maio, sem afectos recordáveis, evita os lamacentos artifícios da posta, a que maio

nostálgico adere, e adrega a cada curva solitária uma vítima mais. Turva insistência insidiosa e gratuita, tarda tão só o brilho da fortuita ornada vítima futura, ao gaio

ladrisco ou ladravaz que é tão só gaio.

{ 13 } { 12 }

(8)

TERMÓMETRO EM FORMA DE SONETO

Arvéola arvoada, sobre a eira esbarroada em grão: suor do escravo alegre — alheado e expatriado desatino amoroso sobre a leiva — rasa veloz, tão rápida e certeira o ponto mínimo onde a eira é saibro que o jeito suicida é já ressaibo duma dor sufocada ao derradeiro ponto. E ao vê-la, a arvéola milenar que o meu medo argiloso habita e guia credencio no escravo a indemne sinusóide do voo, e embargo o olhar no véu coalhado da lembrança amarga, traída a terra, o sangue, o cerne.

MÁTRIA

Balbuciante a cor aflora à flor da água quase líquida da memória.

Vem do pausado fundo onde sorri a cinza quente comum da raça. Por onde, em que caminhos, sarça em dor ardida, te ficou toda a alegria

espantosa do sorrir? É vã memória aquela que do gesto só recor- da o teor fluido e póstumo

da carícia. Ao charco adonde habita tua inútil presença me acostumo e assisto agoniado à quase trágica páscoa exposta insepulta. Vou só. Rumo ao cadáver paralelo que me habita.

{ 15 } { 14 }

(9)

MOTORIZADA 50 CM³

Seguro contra os riscos do costume

— inda tenho a saúde que o permite — abro ao vento o canal do apetite reabro a tempo o escape do azedume.

Acelero no tempo o extinto lume da cólera, alcanço-me num zénite de sossego zunindo, viro a térmite distanciada, interna, sob o cume da calote anti choque e flutuo

na paz sem tempo do saber-me sempre à frente da minha imagem vista. Refluo calmíssimo, cortando o gás pungente do existir. Aos outros me incluo no semáforo rubro. Morro. Sou gente.

Pulcro sepulcro caiadinho e tudo, neste monturo a que chamamos mãe, insisto em existir em tempo entrudo xibante máscara de enganar ninguém.

Eis por que a dor nada acrescenta ao mudo poço do eco tardo. Vem bellem

untuosa, no roxo cardealudo (luminiscente e tudo) da opulen- Cia desesperada e sem saída ratear ainda a rasa mal medida do exausto coração sem testemunho.

Queremos, sem mais razão do que nenhuma, rezar com fé à fé de termos uma

última fé em algo sem tamanho.

{ 17 } { 16 }

(10)

Jorro jocoso, expulsa o clarim

o medo dos meus ossos. Ouço-o e crio ganas de me ir por aí em desafio ousado, e tudo o que há pior em mim.

Suspeito muito, condicionado assim por este toque bárbaro, que o frio peixe que me habita, orla do estio é tão só uma ausência de clarim.

Aquartelados num imenso espanto de nada ser além do número, vamos marchando a par cantando ao vento.

Um tronco de cenário estende os ramos e as aves piam como canhões rolando

… erros dum sonoplasta que nem vemos.

PUeTA

Algómano engomado, o poetinha traja a rigor a dor do preconceito.

Atrela o cão cheirante do respeito à sintaxe, com a tosse da verrina sanguinolenta da furoa arminha polítricas, com pêlo de rafeiro, mirolha o aço oval do bengaleiro e empoa a proa, o naso, na farinha dos bolinhos do último repasto.

Ajeita as chumaceiras ao canastro e ele lá vai, o astro, ao ofício santíssimo de bem vermificar.

D’aquém-marte aponto o Palomar do espanto, e espero o novo solstício.

{ 19 } { 18 }

(11)

POSFÁCIO

I

«António Augusto Melo Lucena Quadros (1933 -1994) — aliás João Pedro Grabato Dias, aliás Frey Ioannes Garabatus, digo António Quadros ‘Pintor’, ‘fortuito’ companheiro de estrada de Mutimati Barnabé João; para além de argumentista (de O Senhor Ventura, para José Fonseca e Costa, projecto infelizmente nunca realizado); também conhecido como artista gráfico e pedagogo, antes e depois de ser apicultor, reputado conferencista sobre a abelha africana e ‘descobridor’ da Rosa Ramalho; tudo isto incu- bado no entreacto de privar com íncubos e súcubos da língua e das artes, como o Herberto Helder, o José Afonso, o Eduardo Luís, o José Forjaz, o Eugénio Lisboa, o Rui Knopfli, o José Cra- veirinha, o João Paulo Borges Coelho e a Amélia Muge, e de ter escolhido Moçambique como palco, horizonte e combate — era uma criatura assim: mais dada ao arquipélago e ao rizoma do que à raiz, com o mistério encravado nas clavículas.

Uma daquelas criaturas diante das quais o país fica aquém, pois, para glosar um dito de Camilo José Cela (sobre um país bastante maior que nosso), ‘este país é tão pobre que não dá para fazer -se duas ideias acerca da mesma pessoa’.»

Foi deste modo que o apresentei num texto que, vinte anos depois, continua a ser um dos poucos artigos que intentam uma panorâmica sobre a sua vida e obra. Este facto não é mérito meu mas sinal de uma desairosa, deprimente, desatenção colectiva,

{ 227 }

(12)

pois António Quadros é uma figura de proa e de uma rara con- sistência plural, como antes dele só houve um Almada Negreiros e depois só se conhece par, com idêntico eclectismo e idênticas qualidades — num outro artista/poeta/ensaísta de cujos atri- butos (sobretudo) poéticos, preguiçosamente, se desdenha —, em Pedro Proença.

Eis, portanto, a pequenez a arvorar -se, impante. O prejuízo é de todos.

Uma das coisas que nos assaltam, assim que sobrevoamos a obra de António Quadros / João Pedro Grabato Dias é a imediata certeza de nos encontrarmos diante de um caso em que a escolha da poesia configura um destino, uma forma de vida.

Assalta-nos também a evidência inesperada de que, sendo o seu autor um pintor consumado, a sua poesia não ancore, prefe- rencialmente, nas imagens. Se nos socorrermos da distinção tra- çada por Ezra Pound, em Grabato Dias prevalecem a melopeia e a logopeia sobre a fanopeia, e nele o ouvido sobrepuja o olhar (ainda que inúmeras imagens aflorem no seu tecido poético, sem pejo em contrariar-me, como esta, magnífica, num dos primeiros poemas que se lhe conhecem, e que sinaliza a atenção do olhar,

«Recortada no estanho da hesitação tremeluz a sardinha», creio que estatisticamente se confirmaria o que afirmo).

Inclusive, como já foi dito, há poemas que nascem de uma

«glossolalia específica: palavras inventadas segundo o princípio da onomatopeia», ou que se engendram no fio das «aliterações:

‘Houve véus e viúvas e ventos e eventualidades várias’» (Maria de Lourdes Cortez) e que fazem gala em pavonear -se como «objec- tos sonoros», numa pulsão antidiscursiva e ao arrepio da denota- ção e do molde canónico que os veste. É o caso de vários sonetos vindos à liça no seu primeiro livro, 40 e Tal Sonetos de Amor e Circunstância e Uma Canção Desesperada.

Como pôr o dente num poema como «Introdução a um pedido de asilo poli ético», pergunto: «Olho zanaga olhizaino e duro / labrusco joalheiro de praguedo / inventa o oligarca o medo.

O medo / guarda o medo, e o escuro esconde o escuro. // Apreen- são de apóstata prematuro / romeu repeso ansiando o ledo / quieto canto matutino, medo / urna do medo, eis -me […]» ou em «Livre trânsito»: «Ladrisco ou ladravaz, que importa ao gaio / infernal do desejo, o objecto? // Viria auriflamante, ou abjecto / ringo de aventu- rinas, vale ao gaio // extremoso, o voo azul, só por que é maio. […]»

Estes sonetos parecem glosar a ideia de George Steiner de que a poesia é «a música do pensamento» ou procurar efeitos de uma linguagem tanto inaugural como «coisificada», à maneira dos concretistas — muitos sonetos dão -se a ler como se fossem esculturas sonoras.

Atente o leitor noutros exemplos presentes nesta antologia, como em «termómetro em forma de soneto», ou «PUeTA», que assentam o seu estro tanto no ritmo e na vocalidade como no significado. Havia igualmente motivos políticos para esta orgia de exercícios rabelaisianos, mas já lá iremos.

Outra característica importante em Grabato é o entusiasmo com que ele se confiava a uma suposta fonte genética da língua, que lhe tornava possível cavalgar o ritmo que lhe conviesse para que os versos lhe despontassem como tendões de um organismo novo que despertava. O que nalguns livros se alia ao desenvolvi- mento de um estilo oral, rítmico e mnemotécnico, que se apro- xima duma respiração cadenciada e subordinada a escansão, a um modelo formal.

Mas atenhamo -nos por ora no problema da sua suposta identidade.

Aonde pertence, o  poeta? O  brasileiro Manuel de Sousa e Silva, num livro sobre a poesia moçambicana, não hesita:

{ 229 } { 228 }

(13)

«A poesia de Grabato Dias talvez venha a confirmar -se como pertença de país nenhum.»

Assim tem sido, e grande o esquecimento e o desamparo.

Afinal, quem foi esta criatura que num desplante de «riva- lidade mimética» (René Girard), depois de ter «despachado»

o Camões mostrou uma idêntica habilidade à de Pessoa para criar heterónimos? O que o arrastou para a desmesura de tais empreitadas? Quem era esta criatura sem rosto social, como redigiu Eugénio Lisboa na badana do seu primeiro livro que, ganhando em 1968, por unanimidade, o primeiro concurso lite- rário da câmara de Lourenço Marques, nem sequer se deslocou para ir levantar o prémio e só dois anos depois se identificou ao ensaísta, apresentando -lhe outro conjunto de poemas, na tentativa de os publicar, tendo provocado naquele uma funda impressão: «Por uma vez o personagem correspondia ao texto e ‘o homem que a obra faz supor’ era igual ‘ao homem que fez a obra!’»?

As Quybyrycas, poema éthyco em oitavas que corre como sendo de Luis Vaaz de Camões em suspeitíssima athribuiçon de Frey Ioannes Garabatus terão sido lidas por causa do peso de Jorge de Sena, que lhes apôs um prefácio, também ele magnífico, em que cauciona o famigerado prolongamento «faceiro» de Os Lusíadas.

Contudo, ainda hoje se subestima a obra, devido ao rasto dene- gridor associado à paródia — leitura unidimensional para que involuntariamente Sena contribuiu. E  não são As Quybyrycas uma paródia? Sim e não. Já lá iremos. Primeiro, será útil per- guntar quantos, afinal, haviam lido no ano anterior, em 1971, A Arca — Ode Didáctica na Primeira Pessoa. Transcrição do Sâns- crito Ptolomaico e Versão Contida do Autor, outro longo poema unitário, uma saga, de outro tipo mas à altura de As Quybyrycas e outro tornado à procura de leitores?

Talvez a verve da primeira obra publicada, num país de bran- dos costumes, o tenha cotado de imediato como um osso dema- siado duro para ser roído. Veja -se este terceto: «Queremos, sem mais razão do que nenhuma, / rezar com fé à fé de termos uma / última fé em algo sem tamanho.» Fala de quê? Do absurdo da vidinha sórdida e embrutecida sob o regime da ditadura, em contraste aos «irreais» (Eduardo Lourenço) que decretavam como grandes quer a sua «fé», quer o Império.

A paródia, a sátira, o verrume pareciam ser as suas armas.

Lembra Alfredo Bosi, em Poesia e Tempo: «O lugar de onde se move a sátira é claramente um topos negativo: a recusa aos cos- tumes, à linguagem e aos seus modos de pensar correntes. […]

E a paródia, ‘canto paralelo’, só se faz possível quando uma for- mação literária e um gosto, outrora sólidos, entram em crise, isto é, sobrevivem apesar do quotidiano, sobrevivem como disfarce, véu ideológico.» E tais asserções acertam na mouche em relação ao tempo que foi dado a Quadros viver, nessa triste agonia do tempo colonial e sob o espectro de uma guerra sustentada por ideologias orgulhosamente anacrónicas.

Embora o engenho de Grabato supere em muito o cunho paródico, para a maioria o que importa são as primeiras impres- sões. Esta antologia, entre outros méritos, mostrará como ele era um poeta multifacetado.

Em 1972, por ocasião dos quatrocentos anos da morte de Camões, e  à margem do embalsamamento oficial, é  lançado o poema épico As Quybyrycas (aos 10 cantos e 1102 estâncias do poema de Camões, Garabatus contrapunha 11 cantos e 1180 estân- cias, algumas delas ditas e cantadas nas vozes de José Afonso, Maria do Céu Guerra ou Amélia Muge), e Grabato Dias dá uma entre- vista à revista Tempo, de Lourenço Marques, onde diz: «Atrevo -me a dizer que só Camões vale a pena, pois que só nele acharemos as

{ 231 } { 230 }

(14)

chaves e gazuas com que abriremos portas para os outros, ainda os que o antecederam. Mas lastimo confessar -lhe que nós não somos ainda seus contemporâneos.» [itálico meu]

Foi essa a desassombrada aposta de Grabato, constituir -se como contemporâneo do vate e contribuir para o engrandeci- mento do génio de Camões, executando a obra que este prome- tera ao rei D. Sebastião; aproveitando no mesmo passo o ensejo para, em prosopopeia, emprestar ao vate a voz que lhe consen- tisse encetar uma perspectiva crítica sobre a sua própria obra anterior. Daí que no poema se ouça, pela própria voz de Camões:

«destemperei outrora a lira asinha / cantando o luso surdo e endurecido / Mas hoje cantarei o error do homem. / Que os futu- ros, do error a lição tomem».

Diz -me pessoa muito próxima de Quadros que este lhe teria desabafado algum incómodo em relação ao prefácio de Sena.

Não pela excelência da escrita ou a invenção do texto mas por- que o seu próprio carácter paródico adiaria outras leituras do poema e arriscava transformar a façanha num mero engenho, numa aventura lúdica, num pastiche.

Neste aspecto, foi mais certeira Maria -Benedita Basto, que, no melhor artigo que li sobre As Quybyrycas (a «homenagem dissi- dente» a Camões, como classifica a autora no seu artigo «Camões em Moçambique à procura d’As Quybyrycas de Frey Garabatus.

Cânone, geopolítica e descolonização»), coloca a questão no seu justo carril: «As Quybyricas vieram separar o texto d’Os Lusía- das da sua apropriação monumentalizada, patrimonializada, imperialista. As Quybyrycas são a criação de uma outra episteme, de um outro regime de verdade sobre Os Lusíadas, os lusos, os lusófonos, a lusofonia. As Quybyrycas ilustram essa tensão entre o poder da narrativa e as narrativas de poder que os prémios podem tão bem traduzir. E é um poder da narrativa o de des-

locar as narrativas de poder através das conexões inéditas que convocam entre a literatura, a história e a geografia, o cânone.»

[itálico meu]

Do mesmo modo que anteriormente, num soneto, Grabato se atrevera a «actualizar» Camões: «Actualização do soneto VII do luiz vaz / Mudam -se os templos, mudam -se as verdades / muda -se o crer, muda -se a mudança / e o pó facundo, imposto à confiança / geral, esporrinha (mal) liberalidades. // Continua- mente TêVêmos suaves / dirigentes na rota da esperança; / do aval esticam anáguas de faiança / que tem, o algum bem, das raridades. // Jumento -cobra cobre o cão, e o espanto / desta anti bio lógica heresia / em mim adverte o coro em que não canto.

// E afora este mudar de bateria / nenhuma outra mudança dá o arranco / final à encalhada ferraria.» O «insolente», agora, atrevia -se a atribuir a Camões uma suposta autocrítica, e, pior, com uma pertinência histórico -moral e uma qualidade prosódica que obrigava a que doravante a leitura de Os Lusía- das não dispensasse a sombra -comentário de As Quybyrycas.

O seu relativo apagamento (apesar de o livro ter conhecido em 1991 uma segunda edição, na Afrontamento, e de Jorge Sam- paio ter condecorado postumamente o poeta pela façanha de As Quybyrycas) é uma resposta ao escândalo que a ousadia de Grabato provocou e que o texto de Sena ampliou ao inventar todo um falso aparato crítico que escarnecia dos conhecimen- tos bibliográficos da intelectualidade lusa — aliás, justamente apanhada em contramão, tendo havido quem em artigos sobre o livro citasse os eruditos inventados por Sena.

Por outro lado, depois do 25 de Abril e da descolonização, emergiu na poesia portuguesa a busca por uma «identidade pátria» que punha em contracorrente a obra de Grabato, sobre- tudo com João Miguel Fernandes Jorge e António Barahona,

{ 233 } { 232 }

(15)

o que terá desviado o olhar desse «nativo» encalhado em terras longínquas. Some -se a esta circunstância que nenhum dos três grandes ensaístas de referência na literatura portuguesa durante vinte anos, Eduardo Prado Coelho, Vasco Graça Moura e Joa- quim Manuel Magalhães, dedicou qualquer texto de fôlego a Grabato Dias (JMM, provavelmente cansado com o comércio em Pessoa, terá inclusive lastimado que Quadros adoptasse uma feição heteronímica), e  essa omissão igualmente terá pesado.

Ensombra -se a situação se a aliarmos ao incómodo a que pouco e pouco a sua presença causava também em Moçambique. A sua assertividade, de um lado e de outro, era tomada como arrogân- cia, o que acabaria por condená -lo ao limbo.

Entenda -se, nesta condição de limbo, que Quadros não esteve sozinho. Nesse território de ninguém, transfronteiriço, entre a queda do império e os novos regimes de leitura da literatura se quedaram também Rui Knopfli e Glória de Sant’Anna.

Não há muito, escrevi num artigo para a Colóquio Letras sobre Rui Knopfli: «Há no panorama poético português do século xx três autores em quem o encontro entre a cultura europeia e o chão das colónias africanas foi decantado em iniludíveis ganhos expres- sivos: Fernando Assis Pacheco, e o seu Catalabanza Quilolo e Volta, que encenou o trágico, o absurdo e a violência da guerra; o verda- deiro acto de sabotagem simbólica que constituiu As Quybyrycas, de Grabato Dias; e o sedimento do fatum que se encontra em Rui Knopfli. E foi tardio o reconhecimento devido às três obras: gra- dual, distanciado, em surdina, às vezes reticente, podemos inclusive ler nesse embaraço bem como no seu posterior desenredamento um sinal das mudanças das pautas de leitura em Portugal. […]

Em Moçambique, na última década de colonialismo, consolidou- -se uma geração de ouro — Glória de Sant’Anna, Grabato Dias, José Craveirinha, Rui Knopfli, na crítica Eugénio Lisboa —, cujos

elementos seriam figuras de primeira linha em qualquer latitude, mas calhou -lhes coincidirem no rincão colonial de um império em falência. E esta circunstância prejudicou o timing de recepção destas figuras, atiradas para um certo limbo por desencaixe nas grelhas de leitura então em voga.»

Eram excelentes os primeiros livros de Knopfli, mas ao arre- pio das linhas dominantes de então. Nem lhe ter sido atribuído, em 1984 — a O Corpo de Atena — o Prémio de Poesia do Pen Clube o tornou mais lido, ou desencadeou a edição em Portu- gal de um volume que reunisse os quatro números dos Cadernos Caliban, uma das melhores revistas literárias do primeiro lustro de 70 no espaço da língua portuguesa, e que Knopfli coordenou com Grabato Dias.

Entre as razões para tal desatenção, acentuam -se as que o próprio poeta aponta numa entrevista a Patrick Chabal: «Nós conseguimos muito cedo libertar -nos da influência de França.

Portugal foi e será, durante muitos anos, uma colónia de França.

Isto é um aparte, mas é espantoso que, em Portugal, a geração dos indivíduos que nasceram entre 1940, 1945, não se tenha dado conta de que alguns dos poetas do século são anglo- -saxónicos, do Eliot ao Yeats. Ainda é o eco de Mallarmé…

E como esta gente se formou na universidade, a universidade passou a ser, em Portugal, o ditador da cultura. Enquanto a uni- versidade devia, humildemente, estudar a cultura, começou a ditar a cultura. […] Foi preciso afirmar -se a geração de 70 e ter- -se assistido a uma translação de influências do espaço francês para a cultura anglo -saxónica para se instalar o terreno favo- rável à escuta do seu timbre e da tradição que representava.»

O tempo de Rui Knopfli ser reconhecido e reivindicado pelas novas gerações já chegou. Esperemos que esta antologia resgate Grabato Dias do marasmo do olvido.

{ 235 } { 234 }

(16)

de João Pedro Grabato Dias foi impresso na Rainho & Neves, em papel CoralBook de 80 g, em Novembro de 2021.

Referências

Documentos relacionados

O projeto FaSMEd refere-se ao estudo de Wiliam e Thompson (2007), que identifica cinco estratégias-chave para as práticas de AF no ambiente escolar: (a) esclarecer e

O processo seletivo de captação de talentos será regido por este edital e coordenado pela Coordenação de Recursos Humanos do Ideas.. A captação de potenciais de que trata este

Américo Taipa de Carvalho, António Almeida Costa, António Castanheira Neves, António Medina de Seiça, Armando Leandro, Augusto Silva Dias, Boaventura Sousa Santos,

Contudo, ao contrário do que se poderia supor, a descoloração não parece estar relacionada com a remoção do cobalto – que não é observada –, mas sim com a lixiviação

Os métodos de taxonomia numérica ou métodos hierárquicos de classificação (hierarchical clustering methods, na biblio- grafia de expressão inglesa) ou métodos de identificação

Uma herança dos tempos em que a medicina popular tinha prestígio e era tolerada Em geral, essas práticas terapêuticas populares desenvolvidas por mulheres (para cuidar de

Dulce Maria Cardoso publicou os romances Eliete (2018, livro do ano, entre outros, no Público, Expresso e no JL, Prémio Oceanos e finalista do Prémio Femina), O Retorno

Adicione os alperces secos e o mel, e coza em lume brando durante mais 30 minutos, sem tampa, até o molho ficar mais espesso e reduzido. Aqueça a colher de azeite restante