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RESERVA INDÍGENA RAPOSA-SERRA DO SOL: UM CASO DE DEFESA DA SOBERANIA NACIONAL OU DE SEGURANÇA HUMANA?

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Recebido em: 16/10/2009 Revisado em: 25/10/2009 Aprovado em: 13/11/2009

RESERVA INDÍGENA RAPOSA-SERRA DO SOL: UM CASO DE DEFESA DA SOBERANIA NACIONAL OU DE SEGURANÇA HUMANA?

HAMILTON, Alexandre1 e MATTOS, Ruy2

Resumo: A partir de pesquisa bibliográfica e documental desenvolvemos um estudo de Caso, cuja unidade de análise é a demarcação das terras indígenas Raposa-Serra do Sol, situada na região de fronteira do Brasil com a Venezuela, no estado de Roraima. Enfocamos a demarcação desta Reserva Indígena realçando duas questões: a segurança internacional e os direitos humanos dos indígenas, por se tratarem de fatores interdependentes de cuja interação resulta o estabelecimento de um estado de segurança humana, que transcende a própria questão da soberania nacional dos Estados. Entendemos que o Brasil, ao realizar esta demarcação das terras indígenas o fez orientado pelo novo paradigma da Segurança Humana, que questiona e amplia o velho paradigma da segurança internacional focado eminentemente na defesa do Estado e na garantia da segurança por meio do uso da força militar.

Palavras-chave: segurança; segurança humana; defesa nacional; direitos humanos.

Abstract: We developed a case study from literature and documentary search, whose unit of analysis is the demarcation of indigenous lands located between two regions: the state of Roraima- Brazil and Venezuela. The focus of the demarcation on indigenous reserves highlighting two issues: international security and human rights of indigenous people, as it is interdependent factors whose interaction results in the establishment of a state of human security, which transcends the question of national sovereignty of States. We believe that Brazil, to achieve this demarcation of indigenous lands was driven by the new paradigm of human security, which questions and extends old paradigm of international security focused primarily on the defense of the state and the guarantee of security through the use of military force.

Key-words: Security; Human Security; National Security; Human Rights.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo foi elaborado como trabalho final da disciplina Segurança Internacional e Direitos

1 Doutor em Integração Latino-americana. Docente e pesquisador do Programa de Mestrado em Ciência Política do Centro Universitário Unieuro.

2 Psicólogo. Mestrando em Ciência Política no Centro Universitário Unieuro.

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Humanos ministrada no Programa de Mestrado em Ciência Política do Centro Universitário Unieuro, localizado em Brasília-DF. A questão central que abordamos é até que ponto a demarcação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol constitui uma resposta do governo brasileiro a possíveis ameaças internacionais em suas fronteiras, visando à redução de risco à segurança do Brasil, ou constitui um exemplo típico de opção pela Segurança Humana tanto de comunidades indígenas como de não-indios brasileiros que habitam aquela região.

Para respondermos a esta indagação precisamos alargar o próprio conceito de Segurança Internacional, em consonância com as mais recentes tendências de estudos dedicados a este tema e de políticas internacionais de países tais como o Canadá e o Japão, além dos países que compõem a Comunidade Européia.

A militarização da Segurança Internacional, um viés tipicamente norte-americano, que ainda encontra-se preso aos parâmetros da guerra-fria, vem sendo amplamente questionada. Tal questionamento iniciou-se com os estudos da Escola de Copenhague (1985) que propos uma reviravolta no conceito de segurança, passando a enfatizar a construção de mecanismos estruturantes de um ambiente internacional de paz.

Estas reflexões deram origem ao conceito de Segurança Humana que, nas últimas décadas do século passado e, especialmente no século atual, repercutiram institucionalmente levando a própria ONU a, como assinala Manduca (2006), explicitar em seu relatório de 1994, intitulado

“Novas Dimensões da Segurança Humana” as quatro características essenciais do conceito de segurança humana:

1. Trata-se de um conceito universal, não ideológico e independe de situação econômica ou da localização geográfica, pois vários componentes desse conceito são de interesse para toda e qualquer pessoa: pobreza, degradação ambiental, violação de Direitos Humanos etc;

2. Os problemas relacionados à segurança humana são interdependentes, assim qualquer problema que acometa uma população terá repercussões em todo o globo;

3. Os problemas relacionados à Segurança Humana são mais eficientemente combatidos (e com menor custo) através da prevenção;

4. O conceito de Segurança Humana é centrado na pessoa.

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Outro aspecto que queremos realçar é a relação entre segurança internacional e território nacional. Na visão tradicional, Westfaliana, o território de um país, que é delimitado por suas fronteiras, constitui um espaço sagrado que precisa ser defendido de ameaças e ataques de países estrangeiros, como condição sine qua non para garantir a sua segurança.

Para entendermos melhor esta questão, precisamos nos apoiar nos estudos de Raffestin (1993, p.

143) sobre geografia do poder. Para ele

"o território se forma a partir do espaço. É o resultado de uma ação conduzida por um ator (...). Ao se apropriar de um espaço concreta e abstratamente, o ator territorializa o espaço (...) O território, (...) é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder. O espaço é a

“prisão original”, o território é a prisão que os homens constroem para si.”

No atual século XXI a idéia de território vem mostrando sua fragilidade, enquanto espaço exclusivista, que deixa de fora as ameaças, os riscos e os problemas e introjeta recursos, informações e outros fatores garantidores do bem estar e da segurança de seus habitantes.

Esta realidade é reforçada por Biason (2007) ao declarar que:

"a existência de delimitações territoriais não assegura mais a proteção em nenhum aspecto quer linguístico, populacional, religioso, cultural, econômico ou militar. A velha concepção de fronteira linear revela toda a sua permeabilidade no movimento financeiro, nas migrações populacionais e na transmissão de informações. As fronteiras oficiais coexistem com a fronteiras fluídas, móveis e porosas."

No novo contexto territorial criado pelo processo de globalização, não faz mais sentido pensar em territórios fechados, portanto em fronteiras impermeáveis, mas como um complexo tecido internacional, constituido por redes que se interconectam em diversas dimensões: econômicas, culturais, ecológica, políticas, ideológicas, étnicas, entre outras.

Diante desta nova realidade, já não faz sentido continuar reduzindo a questão da Segurança Internacional às dimensões militar e territorial. No caso específico da demarcação das terras indígenas situadas em região de fronteira, o Brasil vem assumindo um papel de vanguarda, ao reconhecer que além da questão de soberania e de segurança do Estado há que se levar em conta os Direitos Humanos, que se expressam numa multiplicidade de fatores tais como: condições

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econômicas, ecológicas, sociais, étnicas e culturais dos povos indígenas e de não-indígenas residentes naquela região do território nacional.

É o que pretendemos abordar neste trabalho ao enfocar o caso da demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol, situada no estado de Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela.

2. BASE TEÓRICO-EMPÍRICA

2.1. O que são terras indígenas?

A Constituição de 1988 consagrou o princípio de que os índios são os primeiros e naturais senhores da terra. Esta é a fonte primária de seu direito, que é anterior a qualquer outro.

Conseqüentemente, o direito dos índios a uma terra determinada independe de reconhecimento formal.

A definição de terras indígenas encontra-se no parágrafo primeiro do artigo 231 da Constituição Federal do Brasil: são aquelas "por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seu usos, costumes e tradições". Também no artigo 20 está estabelecido que essas terras são bens da União, sendo reconhecidos aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Também por força da Constituição, o Poder Público está obrigado a promover tal reconhecimento. Sempre que uma comunidade indígena ocupar determinada área nos moldes do artigo 231, o Estado terá que delimitá-la e realizar a demarcação física dos seus limites. A própria Constituição estabeleceu um prazo para a demarcação de todas as Terras Indígenas (TIs): 5 de outubro de 1993. Entretanto, isso não ocorreu até a data estabelecida, o que faz com que as TIs no Brasil se encontrem em diferentes situações jurídicas.

Hoje, temos no Brasil, segundo Miraglia (2007) um total de 589 terras indígenas, com 108.562.070 ha., o que representa 12,81% do território brasileiro. A população indígena, constituida por 225 tribos, somam 600 mil pessoas.

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Em decorrência da não demarcação das terras indígenas, grande parte delas tem sofrido diversos tipos de violência, tais como invasões de mineradores, pescadores, caçadores, madeireiras e posseiros. Outras são cortadas por estradas, ferrovias, linhas de transmissão ou têm porções inundadas por usinas hidrelétricas. Tais agressões representam ameaça à segurança indígena, com repercussões sociais, culturais e econômicas.

2.2. Os Direitos dos Indígenas no Brasil

A Constituição da República Federativa do Brasil reconhece claramente os direitos indígenas ao afirmar em seu art. 231: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

O reconhecimento dos direitos dos indígenas torna-se mais contundente quando este artigo é detalhado em seus parágrafos, conforme podemos observar a seguir:

§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo- lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

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Como podemos verificar, nossa lei maior estabelece a vitaliciedade deste direito, ao declara-lo imprescritível, somente admitindo a hipótese da remoção em casos extremos de catástrofe ou epidemia que ponha em risco a própria população indígena ou em caso de ameaça à soberania do país. Aqui vemos o encontro da Segurança Humana com a Segurança Estatal. Entretanto, mesmo neste caso, é assegurado aos indígenas o retorno imediato às suas terras, tão logo cesse o risco.

O reconhecimento dos direitos indígenas pelo Brasil foi além de suas fronteiras quando nosso país adotou a Convenção 169 da OIT que prevê que qualquer medida que afete territórios ou interesses indígenas deve previamente ser analisada e passar por consulta pelos povos que potencialmente serão efetados.

Esta decisão reafirma a importância da dimensão humana da segurança, tornando os Direitos Humanos uma referência até mesmo para as decisões de Estados soberanos, quando há o risco de afetar territórios e interesses indígenas.

Este reconhecimento internacional dos direitos de povos indígenas de participarem ativamente na tomada de decisões que irão afetar o uso de suas terras deu um status de segurança internacional à questão indígena, por reconhecer, como vimos na definição da ONU que "os problemas relacionados à segurança humana são interdependentes, assim qualquer problema que acometa uma população terá repercussões em todo o globo".

2.3. Os Índios nas Fronteiras e a Segurança do Brasil

Tomando por base a Amazônia brasileira, sua ocupação se deu inicialmente pela colonização das terras baixas, para em seguida alcançar as chamadas terras altas. Neste processo, diversos grupos indígenas foram sendo gradativamente expulsos de suas terras e se afugentando em rincões cada vez mais próximos às fronteiras, situadas em terras mais altas, localizadas acima das cachoeiras, portanto de difícil acesso aos colonizadores.

Assim, não é de se estranhar que, atualmente, grande quantidade de terras indígenas se localize em terras de fronteiras, gerando natural inter-relação com a questão da segurança internacional.

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O Brasil possui 16.886 quilômetros de fronteira terrestre que estabelece com dez países da América do Sul. Somente a China e a Rússia têm maior extensão que essa. Elas estão definidas e reconhecidas em tratados bilaterais com todos os países vizinhos, encontram-se demarcadas e são internacionalmente reconhecidas. A faixa de 150 quilômetros ao longo da linha de fronteira terrestre é constitucionalmente definida como de especial interesse para a defesa nacional e envolve áreas pertencentes a mais de 500 municípios de 11 estados brasileiros. E nesta faixa de fronteira existem 177 terras indígenas, 34 das quais com parte de seus limites colados na linha de fronteira. Do total, 75% encontram-se demarcadas e registradas em cartório.

Neste ambiente fronteiriço há 43 povos indígenas que vivem dos dois lados da fronteira, tornando-a, na prática, um ambiente internacional, que desconhece os limites formais estabelecidos a partir de ocupações coloniais e de tratados estabelecidos entre Estados soberanos que ignoraram a existência de povos pre-existentes a estes recortes territoriais convencionados.

Isto, naturalmente constituiria um ambiente de potencial insegurança internacional, se olhássemos a questão sob uma perspectiva meramente estatal e militar. Entretanto, na realidade da vida prática e cultural destes povos indígenas esta é uma questão secundária, pois tais comunidades não reconhecem as limitações territoriais e as convenções geopolíticas estabelecidas pelos não-índios, quer sejam brasileiros ou estrangeiros. Quando foram definidas as linhas de fronteiras não se considerou as nuances da conformação territorial, da morfologia pluriétnica e da própria dinâmica territorial das comunidades indígenas, que são nômades por natureza.

A presença indígena nas fronteiras nacionais representa ameaça à segurança nacional? Diversos estudos têm demonstrado que esta hipótese não se confirma, ocorrendo em muitos casos o contrário disso, conforme a ONG Socioambiental que aponta não haver registro histórico de conflitos fronteiriços entre o Brasil e os seus vizinhos que tenha tido povos ou terras indígenas como referência central. Além disso, não há precedente de grupos indígenas no Brasil que tenham pretendido vincular-se a algum outro país ou reivindicar estado próprio. A expectativa continuada dos povos indígenas é pela demarcação das suas terras e pela implementação de políticas de seu interesse pelo Estado brasileiro. Há, inclusive, o caso dos Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul, que receberam do próprio Exército brasileiro, ainda no século 19, um extenso território contínuo na fronteira como reconhecimento do seu apoio durante a Guerra do Paraguai.

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É notório, portanto, que os indígenas situados em regiões de fronteira, têm representado um fator muito relevante para a segurança nacional. A comprovação disso é o fato de não termos tido nenhum registro de conflito armado nas fronteiras brasileiras que tenha sido promovido por qualquer tribo indígena.

Diante desta realidade, como entender a presença de destacamentos militares em terras indígenas, como parte de uma estratégia de defesa da soberania nacional a partir das regiões de fronteira?

Ainda recentemente, o Decreto Presidencial no. 6.513, publicado em 23 de julho de 2008 dispõe sobre a instalação de mais unidades militares permanentes em terras indígenas situadas na faixa de fronteira.

"Este decreto tem uma motivação muito mais política, de dar resposta concessiva a segmentos anti- indígenas, do que para atender necessidades da defesa nacional. É discriminatório, porque faz supor que as terras indígenas na fronteira têm implicações para a segurança nacional que outras áreas não têm, o que é uma farsa. Além disso, não há nada que indique a necessidade de pelotões em qualquer terra indígena, o que acabará constituindo uma distorção da própria política de defesa, com desperdício de recursos públicos que certamente seriam mais necessários para outras demandas da própria defesa ou de outras políticas, inclusive a indigenista". 3

2.4. Relação entre Povos Indígenas e as Forças Armadas Brasileiras

De acordo com diversos estudiosos da questão indígena, cujos trabalhos estão publicados na Internet, no site da ONG Socioambiental, a presença do Exército no interior das Terras Indígenas situadas na chamada “faixa de fronteira” da Amazônia brasileira se intensificou por meio da instalação de pelotões e de operações de treinamento e vigilância. Isso configurou uma nova situação, resultado do encontro de dois processos que ocorreram no Brasil nas últimas décadas: a priorização geopolítica da fronteira amazônica pelas Forças Armadas e a efetivação dos direitos indígenas inscritos na Constituição Federal de 1988, sobretudo os territoriais, os quais resultaram no reconhecimento pelo Estado – e demarcação – de terras indígenas extensas e contínuas na faixa de fronteira internacional. O relacionamento entre militares, sobretudo do Exército, e indígenas, nessas circunstâncias, acarretou alguns conflitos nos últimos anos e uma inédita tentativa de regulamentação de conduta de militares designados a servir nessas unidades.

3 ISA - Instituto Socioambiental - internet. - www.socioambiental.org.br

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É importante realçar, neste ponto, o significado do conflito enquanto evento criador de cultura, como tão bem assinala Miraglia (2007, 23) ao citar os trabalhos de Anna Tsing (2005):

“Focando na capacidade do conflito como gerador ou impulsionador de ação social, a antropóloga sino-norte-americana Anna Tsing,(2005) argumenta que em contextos sociais nos quais diferentes lógicas se encontram e relacionam-se entre si; é a partir da

“fricção” ou do atrito gerado nestes encontros entre “diferentes”, que são produzidos novos arranjos culturais de ação e de exercício do poder. Isto mantém em movimento tanto a formação, quanto o desmantelamento de formas hegemônicas de poder e de ação.

Assim, a fricção entre diferenças seria o que move as relações socioculturais.

Diante desta situação de conflito surgem algumas questões relevantes, tanto em relação à condição humana dos indígenas, quanto em relação à segurança nacional. Assim, como proceder às consultas prévias com comunidades indígenas que vivem em locais pretendidos pelas Forças Armadas para implantar suas bases (pistas de pouso, pelotões, mini-centrais hidrelétricas, etc)?

Uma vez implantadas, como regulamentar os efeitos socioambientais decorrentes do seu funcionamento?

Durante os anos que precederam a promulgação da Constituição Federal de 1988, as Forças Armadas, especialmente o Exército, dedicaram esforços para evitar que sobreposições desse tipo se efetivassem, se opondo à demarcação de Terras Indígenas extensas e contínuas na faixa de fronteira. Essa atitude persistiu mesmo depois de promulgada a Constituição. Do ponto de vista doutrinário, a questão foi superada com a demarcação da TI Yanomami (declarada em 15/11/1991 e homologada em 25/05/1992), precedida por uma série de pareceres elaborados por juristas importantes e técnicos de vários ministérios, além da Secretaria de Assuntos Estratégicos e do ministro-chefe do gabinete militar da época. Afora os governadores dos estados de Roraima e Amazonas, afetados pela demarcação da TI Yanomami, a opinião geral foi de que não havia incompatibilidade entre a presença militar e a demarcação da Terra Indígena ou riscos à segurança nacional. Essa posição foi confirmada em 1999 quando, em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, o general Schroeder Lessa, então comandante militar da Amazônia, afirmou aos parlamentares presentes que as Terras Indígenas não configuram obstáculo às ações militares em regiões de fronteira.

Apesar disso, as Forças Armadas persistiram em reforçar suas prerrogativas e preocupações

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históricas e conseguiram que o presidente Fernando Henrique Cardoso promulgasse o Decreto 4.412 de 7 de outubro de 2002 – o qual dispõe sobre a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal nas Terras Indígenas, garantindo-lhes a liberdade de trânsito, a autonomia para a instalação de infra-estrutura e a implementação de projetos.

Diante desta situação, lideranças indígenas e organizações da sociedade civil reiteraram a necessidade da criação de um código de conduta que regulamentasse a ação das forças armadas em territórios indígenas demarcados. Estas discussões resultaram na promulgação da portaria no.

20 do Exército, em 02 de abril de 2003 e na portaria no. 938 do Ministério da Defesa, de 17 de outubro de 2003.

Vimos assim, o estabelecimento de regras para lidar com os conflitos decorrentes do reconhecimento dos direitos indígenas de continuarem vivendo em regiões de fronteira sem que isso implique em perda da soberania nacional ou do direito de defender-se de ameaças oriundas de países fronteiriços.

Podemos perceber uma mudança no enfoque histórico da questão da segurança de fronteira ao analisarmos o que se fazia no passado.

Em nossa era colonial eram usadas as expedições militares nas regiões de fronteira, que foram substituidas no século 18 pela política inspirada em Marquês de Pombal, que mandou implantar um "colar" de fortificações nas fronteiras amazônicas.

Em meados do século passado foi adotado o trinômio FAB-Missões-Índios, cabendo à Aeronáutica apoiar a obra civilizadora das missões religiosas instaladas para aldear e catequizar os índios, eles próprios como guardiões da fronteira. Para tanto, foram construídas pistas de pouso nessas regiões.

No período pós 1964, o Plano de Integração Nacional priorizou a construção de obras de infraestrutura e a concessão de benefícios fiscais aos investidores privados – que uniu objetivos econômicos às preocupações geopolíticas, para ocupar o que era chamado de “vazio demográfico”. Nesta época a presença indígena foi ignorada e, podemos dizer, vista como

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espécie de estorvo à segurança nacional, questão estratégica prioritária deste período histórico.

Na década de 1980, o Projeto Calha Norte trouxe novamente o viés militar à questão da segurança da Amazônia, apesar do discurso oficial realçar a dimensão colonizadora do projeto.

A estratégia objetivava a instalação de pelotões de fronteira enquanto indutores do surgimento de povoações fronteiriças, criando assim uma espécie de barreira humana que iria garantir a segurança e defender a soberania brasileira.

É inegável que as regiões de fronteira constituem ambientes propícios a entrada de drogas e ao contrabando de mercadorias entre países fronteiriços, porém isto não caracteriza uma questão de natureza indígena, mas uma incapacidade de vigilância das fronteiras, por parte de autoridades brasileiras e de outros países límitrofes. Na maior parte das fronteiras brasileira não há comunidades indígenas residentes. E onde há, as comunidades indígenas representam uma inibição à prática destes crimes internacionais, pois os indígenas atuam como naturais informantes das autoridades da Polícia Federal e do Exército, com as quais mantêm relações históricas de cooperação.

2.5. A Segurança Humana: O Fortalecimento de um Novo Paradigma

Para compreendermos o significado da demarcação das terras indígenas de Raposa-Serra do Sol, enquanto questão de segurança internacional, necessita-se lançar mão dos mais recentes estudos sobre este tema, que têm ampliado o conceito tradicional de segurança internacional antes restrito aos limites da defesa militar e ao uso da força, para alcançar outras dimensões, além da militar, tais como a econômica, a cultural, a ecológica, a étnica, entre outras. Além disso, precisamos também considerar a notável ampliação dos atores que participam da construção da Segurança Internacional, palco antes restrito aos Estados soberanos, para abranger atualmente diversos outros protagonistas tais como organizações não-governamentais, instituições multilaterais, grupos étnicos, culturas, empresas multinacionais e, até mesmo indivíduos proeminentes, política ou economicamente, no cenário internacional.

Estamos vivendo atualmente uma grande mudança no paradigma da Segurança Internacinal com forte impacto na própria segurança planetária. Corroborando esta constatação podemos ver

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posicionamentos assumidos pela Organização das Nações Unidas - ONU que apontam na direção do que se convencionou denominar de Segurança Humana. E o mais revelador desta grande mudança é a OTAN, uma tradicional aliança militar de defesa coletiva de estados europeus, ser chamada frequentemente para ajudar na prevenção e na manutenção da paz e na defesa de direitos humanos ameaçados, em regiões afastadas de seu perímetro original de ação.

Corroborando esta transformação, Sorj (2005) assinala que a ONU, desde seus primórdios, sempre reconheceu duas categorias de valores absolutos: a soberania nacional e os direitos humanos individuais. O que ocorre neste início de século XXI é uma ênfase maior sobre este segundo conjunto de valores, tendo em vista que a prevalência dos primeiros tem demonstrado uma incapacidade de reduzir as ameaças à paz internacional. Ao contrário, exarcebaram as diferenças e os conflitos entre estados e mantiveram a corrida armamentista, sempre em busca do poder e da segurança baseada na possibilidade de confrontação militar, perpetuando o clássico dilema da segurança: quanto mais um estado se arma, mais se percebe como ameaçado por seus contentores.

Os pressupostos do paradigma da Segurança Humana apontam uma nova possibilidade de conquista da paz internacional, não na visão histórica de Tucídides da paz armada, sendo a paz compreendida como um momento de diástole entre duas guerras, mas na convicção de que viver em paz é um direito de todos os seres humanos, independente de sua localização geográfica, língua, cultura ou posição econômica.

Sorj afirma que o conceito de segurança humana é inovador em sua ênfase no cumprimento das leis de defesa dos direitos humanos individuais. Esta passa a ser a principal tarefa da ordem internacional, mesmo contra a vontade dos Estados, mencionados como uma das principais fontes de insegurança individual.

Para ele, a ênfase em uma visão que não tem por foco exclusivo a soberania das nações promove novas formas de multilateralismo e confere papel fundamental aos atores não-governamentais - em especial as ONG's.

Para entendermos este moderno conceito, vejamos as cinco características definidas por

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pesquisadores do Canadá 4, país que assumiu deliberadamente a segurança humana como corolário de sua política de relações internacionais: é um conceito holístico que abrange todas as fontes de insegurança individual, incluindo as associadas à pobreza e à violência física;

concentra-se nos direitos humanos dos indivíduos, inclusive enfatizando o papel do governo como fonte de insegurança para seus cidadãos; valoriza a sociedade civil como ator privilegiado, reduzindo assim de forma implícita, o papel do governo; procura ter uma perspectiva global;

justifica a intervenção externa da comunidade internacional em países que estejam atravessando crises humanitárias.

Além do Canadá, os países europeus vêm usando este conceito na definição de sua nova política externa. A América Latina também aderiu a este princípio, mesmo usando o termo "segurança multidimensional"5 e com isso se contrapondo à agenda belicista dos EUA de defesa nacional frente às ameaças internacionais.

Teoricamente, o conceito de Segurança Humana vem sendo delineado há algum tempo, conforme os estudos de Philippe-David.

Segundo ele, este termo foi usado oficialmente pela primeira vez em 1994, num relatório da ONU-PNUD. Neste documento recomendou-se uma transição conceptual profunda da segurança nuclear, logo militar, para a segurança humana. Na época, Kofi Annan, então Secretário da ONU, declarou ao jornal Le Monde que “o ser humano está no centro de tudo e que o próprio conceito de soberania nacional foi concebido para proteger o indivíduo, que é a razão de ser do Estado, e não o inverso”. (ano 2005, 80).

Historicamente, há diversos teóricos que produziram contribuições significativas para a construção deste conceito: o primeiro foi Johann Galtung (1969) que introduziu a idéia da segurança humana ao afirmar que a paz deve ser abordada segundo uma visão positiva,

“resultante da justiça social e da cooperação entre grupos humanos, capazes de eliminar a violência estrutural que emana das estruturas estatais.”

4 www. humansecuritygateway.com

5 De acordo com Bernando Sorj (2005), o conceito de segurança multidimensional considera como fontes de insegurança problemas relacionados com tráfico de armas e de drogas, terrorismo, saúde, pobreza, crises econômicas e ambientais, entre outros.

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O segundo teórico a defender esta tese foi John Burton (1972) que explicou diversos conflitos resultantes da privação das necessidades humanas individuais.

A terceira contribuição teórica foi de Lester Brown (1977) e Richard Ullman (1983) que associam a segurança às ameaças à qualidade de vida dos habitantes de um Estado.

A quarta abordagem que reforça esta visão da segurança humana vem da escola crítica da segurança, tendo Booth (1991) um de seus principais autores, que afirma que a segurança é alcançada pela emancipação dos seres humanos em detrimento e contra os Estados, quando estes dificultam esta emancipação. Nesta linha de raciocínio, Krause e Williams (1997) definem que o objetivo da segurança deve ser o indivíduo e não o Estado, por que os indivíduos exprimem necessidades que transcendem as soberanias.

Finalmente, a escola construtivista estabelece que “a segurança humana corresponde a uma reconstrução das normas e a uma mudança de comportamento, no seio do sistema internacional, que levam diferentes atores a favorecer e a institucionalizar intervenções humanitárias que desafiam as noções de interesse, de poder e de soberania”. (Finnemore, 1996)

Nesta linha de pensamento, Krause e Willians (1997), apud Monteiro Dario (2007), apontam a existência de três possibilidades de se pensar a segurança para além do Estado: a primeira é a de pensar os indivíduos enquanto pessoas portadoras de direitos que não são necessariamente assistidos pelos Estados; a segunda alternativa é a de entender a segurança do indivíduo a partir da sua condição de cidadão; a terceira concepção busca um entendimento cosmopolita da questão da segurança.

Há, nestas três condições, claramente, um novo modo de abordar a segurança internacional, apontando-se o ser humano e não os Estados, como foco e principal beneficiário da segurança internacional. Na verdade, nesta nova perspectiva, os Estados são vistos como fonte de ameaças à segurança humana, por violarem as prerrogativas e os direitos que os indivíduos têm.

A ênfase tradicional na soberania dos Estados tem impedido de se ver a real dimensão

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internacional da segurança, isto é, de reconhecer que ela transcende os limites territoriais dos Estados e sua soberania, para alcançar um sentido global, planetário, de humanidade.

2.6. A Segurança Humana como Política do Estado Brasileiro

Não é incomum ouvir ou ler críticas à política internacional brasileira por considerar que este país não possui uma política de Estado de defesa e de segurança internacional. Como veremos a seguir esta pode ser uma visão parcial e equivocada da realidade.

Para entendermos melhor o posicionamento brasileiro em relação à questão de segurança internacional precisamos situá-lo no contexto e na história latino-americana. Neste sentido, segundo Sorj (2007):

"a América Latina é a região do mundo com a mais baixa incidência de conflitos armados entre países, e a que registra os menores gastos militares em relação ao PNB. Na região, apesar de certas áreas de tensão, as fronteiras estão consolidadas e praticamente inexistem conflitos religiosos e ódios raciais intensos. Trata-se da única região do mundo em que todos os países aderiram a um tratado contra armas nucleares. "

Esta condição geopolítica, da qual o Brasil é um dos principais protagonista, tem criado uma resistência à política belicista dos Estados Unidos da América do Norte, cuja agenda privilegia o enfrentamento de ameaças à segurança com o uso da força militar. Antagonizando este posicionamento, os países latino-americanos enfatizam o enfoque muldimensional da segurança do hemisfério sul priorizando os problemas sociais tais como a pobreza, a insalubridade, a defesa do meio-ambiente e, principalmente, o desenvovimento econômico, sem deixar de lado o tráfico de armas e de drogas e o terrorismo. A exceção a esta regra é a recente posição da Venezuela, que vem, em detrimento do desenvolvimento de melhores condições sociais, investindo recursos em armamentos e articulando-se com países tais como Irã e Cuba, numa política antiamericana explícita.

É notório que, neste início do século XXI, os países latino-americanos vêm privilegiando o fortalecimento da democracia, da economia e dos direitos humanos. E têm conseguido manter esta diretriz mesmo diante das pressões dos EUA após o ataque de 11 de setembro, que catapultou a ameaça terrorista para o centro das discussões sobre segurança internacional.

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O Brasil, particularmente em sua PDN (Política de Defesa Nacional) define segurança como "a condição que permite ao País a preservação da soberania e da integridade territorial, a realização dos seus interesses nacionais, livre de pressões e ameaças de qualquer natureza, e a garantia aos cidadãos do exercício dos direitos e deveres constitucionais". Podemos observar, nesta definição, a expressão dos dois valores primários: a soberania nacional e os direitos humanos. Há, nesta declaração, uma clara sintonia com o conceito definido pelo Instituto de Pesquisas sobre o Desarmamento da ONU que estabelece que "a segurança dos indivíduos e das comunidades que compõem os Estados é assegurada pela garantia do exercício da liberdade e dos direitos políticos, sociais e econômicos individuais, bem como pela preservação ou restauração de um meio ambiente saudável para as gerações presentes e futuras" (Loiola Machado, 2007). Podemos ver, com clareza, o valor da Segurança Humana sendo privilegiado pela ONU ao realçar a garantia dos direitos políticos, sociais e econômicos individuais e das comunidades que compõem os Estados. Assim, a soberania dos Estados passou a ser subsidiária dos Direitos Humanos, invertendo a tradicional equação milenar da segurança internacional centrada na defesa do Estado.

A orientação brasileira em direção ao paradigma da Segurança Humana pode ser percebida na decisão de demarcação das terras indígenas situadas em região de fronteira.

Certamente este posicionamento está em consonância com o movimento internacional de desmitificação das fronteiras, pois a existência de delimitações territoriais não tem garantido, neste século XXI, a proteção que era garantida pelas muralhas, valas e cercas tão usadas no passado. Para Biason (2007) a velha concepção de fronteira linear está aberta ao fluxo financeiro, às migrações populacionais, à transmissão de informações e (acrescentamos) à dinâmica do narcotráfico e às incursões do terrorismo. Hoje, as fronteiras oficiais coexistem com as fronteiras fluídas, móveis e permeáveis, criadas pelos diversos atores sociais e políticos, configurando um complexo sistema de tessituras, criando um novo sistema territorial que não tem um traçado explícito, mas uma delimitação no espaço (Raffestin, 1993).

Este é um aspecto particular e específico da orientação política e cultural brasileira às questões relativas à segurança internacional. Tal orientação, que vem sendo assumida desde o governo

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Collor que, contrariando os interesses e planos militares, mandou fechar o campo de provas de Serra do Cachimbo, pode ser percebida em outras iniciativas governamentais e foi consolidada em nossa Constituição de 1988 onde está explicitado que "toda a atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional" (Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 21, XXIII-a).

O Brasil, sintonizado ao paradigma da Segurança Humana, vem dando menor peso ao enfoque militar, levando o nosso país à aspirar legitimamente ao modelo de potência pacífica. Saímos do papel de vilão dos Direitos Humanos e do Meio-Ambiente para assumir um papel de destaque na busca de soluções pacíficas.

"Ora, quando se analisa o comportamento da política exterior (brasileira) é possível perceber a presença desses princípios de forma sistemática e crescente desde Fernando Henrique. Isso tem colaborado para dar ao país uma posição de proeminência no cenário internacional em temas variados, como porta-voz dos países não centrais (Manduca, 2006: p.27)

Percebe-se, com efeito, que o recurso a temas oriundos da tradição da Segurança Humana estão cada vez mais presentes na política exterior brasileira. Isso é decorrente da própria escolha que o país fez na última década. É assim que, do Timor Leste ao Haiti, da quebra de patentes de remédios anti-AIDS ao Fome Zero global, a diplomacia brasileira vem conquistando algum destaque positivo no cenário internacional" (idem p. 30).

A demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol representa um caso particularmente ilustrativo deste novo conceito que tenderá a se fortalecer neste século XXI. É o que veremos a seguir.

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3. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DA SITUAÇÃO EM ESTUDO: O CASO RAPOSA-SERRA DO SOL

3.1. Apresentação e significado da Reserva Raposa-Serra so Sol

A reserva Raposa-Serra do Sol está situada na fronteira do Brasil com a Venezuela, e é constituida por uma faixa contínua de 1,7 milhão de hectares, dividida entre imensas planícies, semelhantes às da região de cerrado e grandes cadeias de montanhas. Foi homologada pelo governo federal em abril de 2005, onde vivem 18 mil índios das etnias Macuxi (a maioria), Wapichana, Patamona, Ingaricó e Taurepang.

Em termos históricos, a demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol teve seu início em 1917, quando o governo do Amazonas editou a lei estadual no. 941, destinando as terras compreendidas entre os rios Surumu e Cotingo para a ocupação e usufruto dos índios Macuxi e Jaricuna. Depois de muitas idas e vindas, criação de Grupos de Estudo e de diversas demarcações, finalmente em 1998, a Portaria 820/98 do Ministério da Justiça, declarou a TI Raposa-Serra do Sol posse permanente dos povos indígenas, em área contínua. Esta decisão foi contestada pelo governo de Roraima, gerando um longo processo de liminares de ambos os lados, quando novamente, ratificando os direitos indígenas, em 2005, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou Decreto s/nº. em 15 de abril, homologando a demarcação da TI e determinando que "o Parque Nacional do Monte Roraima é bem público da União submetido a regime jurídico de dupla afetação, destinado à preservação do meio ambiente e à realização dos direitos constitucionais dos índios". Este decreto assegurou também a ação das Forças Armadas, para a defesa do território e da soberania nacionais, e da Polícia Federal, para garantir a segurança e a ordem pública e proteger os direitos constitucionais indígenas, na Terra Indígena.

Também esta decisão foi seguidamente contestada pelo governo de Roraima e por empresários que ocupavam a área afetada pela demarcação, gerando diversos conflitos, inclusive resultando em violência e mortes, o que provocou a entrada em ação da Polícia Federal com a Operação Upatakon que deu garantia aos técnicos da Incra e da Funai que estavam incumbidos de fazer as demarcações e o levantamento de propriedades de não-índios habitantes daquela área.

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Historicamente, segundo afirmação do Ministro Ayres Brito em seu voto favorável à questão da Reserva Raposa-Serra do Sol, os Estados e Municípios, tanto pela sua classe dirigente quanto pelos seus estratos econômicos, tendem a discriminar bem mais do que proteger as populações indígenas. Populações cada vez mais empurradas para zonas ermas ou regiões inóspitas do País, num processo de espremedura topográfica somente rediscutido com a devida seriedade jurídica a partir, justamente, da Assembléia Constituinte de1987/1988. (item 61 do voto do Relator - STF)

Finalmente, no dia 19 de março de 2009, o Supremo Tribunal Federal - STF reconheceu os direitos indígenas e votou favoravelmente pela demarcação contínua da Reserva Raposa-Serra do Sol, encerrando juridicamente um conflito que se arrastou durante 32 anos.

3.2. Reserva Raposa-Serra do Sol - um caso típico de Segurança Humana

A demarcação desta reserva caracterizou-se por uma longa série de conflitos entre, de um lado, interesses econômicos de garimpeiros, pecuaristas e mais recentemente de empresários brasileiros que investiram em extensas plantações de arroz, somados aos interesses político- econômico do próprio governo do Estado de Roraima, e de outro, as comunidades indígenas que reivindicavam seu direito ao uso dessas terras. Como vimos, este embate transcorreu durante décadas e ganhou repercussão internacional, tendo seu desfecho em abril deste ano de 2009 com a decisão, em última instância, proferida pelo Supremo Tribunal Federal que reconheceu os direitos indígenas e determinou a retirada de todos os habitantes não-índios da reserva.

Podemos ver como a demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol representou um exemplo típico de decisão orientada pelo paradigma da Segurança Humana, ao considerar, em primeiro lugar, os direitos dos indígenas de permanecerem em terras que habitavam muito antes da presença de não-índios brasileiros, mesmo que isto pudesse representar um risco para a soberania nacional, por tratar-se de uma extensa faixa de terra localizada na fronteira com a Venezuela.

Este direito foi reconhecido pela sociedade brasileira e está claramente definido na Constituição de 1988 em seu art. 231: “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

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Pelo histórico percorrido, podemos ver, sempre presente, a ênfase no embate entre economia (defendida pelos não-índios e pelo governo estadual de Roraima) e cultura (defendida pelos representantes indígenas e pelo Estado brasileiro - Poder Executivo Federal e Poder Judiciário) ao invés da ênfase em defesa territorial ou no uso da força militar.

O binômio soberania-segurança nacional foi perdendo a sua importância ao longo da história do conflito, esmaecendo-se mais fortemente após o período revolucionário 1964-1985, cuja ênfase era a segurança nacional, em detrimento dos direitos humanos. Apesar disso, algumas vozes qualificadas dos meios militares continuaram resistindo ainda sob a antiga visão militarista. Este é o caso do General Augusto Heleno, na época Comandante Militar da Amazônia que criticou a política indigenista brasileira, por considerar equivocada a separação de índios de não-índios. Ele e outros militares consideram que a política indigenista do governo brasileiro é complacente com a atuação de Organizações Não-Governamentais (ONGs) estrangeiras que atuam na fronteira amazônica e que isso representa uma ameaça à soberania nacional.

Em 1996, durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, que editou o Decreto nº 1.775, foi introduzido o princípio do contraditório no processo de reconhecimento de Tis, permitindo a contestação por parte dos atingidos. Assim, o conflito passou a ser discutido abertamente pela sociedade brasileira até resultar na promulgação, no dia 11 de dezembro de 1998, da Portaria do Ministério da Justiça 820/98, que declarou a TI Raposa-Serra do Sol posse permanente dos povos indígenas, em área contínua.

A partir de então a discussão passou a ser em torno da modalidade de demarcação das terras indígenas: se contínua ou fracionada, em "ilhas".

Os antagonistas da demarcação em faixa contínua alegavam que isto representaria uma ameaça à segurança nacional, argumento de fachada para sensibilizar os militares e outros grupos contrários à demarcação. Porém o interesse real era de natureza econômica e não de segurança nacional, pois a demarcação fracionada permitiria que os arrozeiros e pecuaristas continuassem a execução de seus projetos de cunho econômico nas planícies (lavrados) das terras indígenas.

Isto demostrou, claramente, a natureza intrínseca da questão Raposa-Serra do Sol, isto é, seu

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cunho econômico e cultural, onde cada lado da disputa tentou preservar seus direitos ao uso da terra enquanto garantia de sua qualidade de vida coletiva e individual. A questão não foi, portanto, travada entre Estados, buscando, cada um deles, a conquista de maior segurança em suas relações com o outro, no caso específico, Brasil e Venezuela. O conflito foi travado entre forças internas brasileiras, representantes de visões de mundo e de valores diferentes e contraditórios. Os direitos dos indígenas foi reconhecido, em detrimento dos direitos que os não- índios julgavam possuir sobre aquelas terras.

3.3. Condições Estabelecidas para a viabilização da Reserva Raposa-Serra do Sol

Para evitar ou reduzir a ocorrência de conflitos durante este processo de ocupação efetiva das Terras Indigenas, o STF estabeleceu 19 condições que deverão nortear as decisões a serem tomadas durante a implantação efetiva da Reserva. São elas:

1 – O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser relativizado sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o relevante interesse público da União na forma de Lei Complementar;

2 - O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional;

3 - O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando aos índios participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

4 – O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a

faiscação, devendo se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;

5 - O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades

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indígenas envolvidas e à Funai;

6 – A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;

7 – O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação;

8 – O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade imediata do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;

9 - O Instituto Chico Mendes de Conservação da

Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, que deverão ser ouvidas, levando em conta os usos, as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;

10 - O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes;

11 – Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai;

12 – O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;

13 – A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não;

14 - As terras indígenas não poderão ser objeto de

arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício do

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usufruto e da posse direta pela comunidade indígena;

15 – É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa;

16 - As terras sob ocupação e posse dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no artigo 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena imunidade tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições sobre uns e outros;

17 – É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;

18 – Os direitos dos índios relacionados as suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis.

19 – É assegurada a efetiva participação dos entes federativos em todas as etapas do processo de demarcação.

Ao analisarmos as condições estabelecidas pelo STF podemos perceber o acerto de nossa tese de que esta questão foi resolvida sob a ótica do novo paradigma da Segurança Humana e não do tradicional paradigma realista que vê a Segurança Internacional apenas sob a ótica belicista.

Apesar deste avanço, esta orientação humanista não invalidou a política de defesa nacional, o que pode ser visto no enunciado da condição 5, que estabelece que "o usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional". O mesmo critério foi adotado pelo Poder Judiciário na condição 6 que garante "a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições".

3.4. O Futuro da Reserva Raposa-Serra do Sol

Uma vez demarcada a reserva e definidas as condições de ocupação e uso das terras indígenas da Reserva Raposa-Serra do Sol surge a questão referente ao seu futuro. Naturalmente, como vivemos num regime democrático, que se caracteriza pelo direito ao contraditório, há os opositores e pessimistas, de um lado e há os otimistas, de outro.

No primeiro caso encontramos, os rizicultores e pecuaristas que sentiram-se perdedores com a

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decisão jurídica e terão que cumpri-la mesmo que a contra-gosto. Em consonância com estes grupos junta-se o governo e a maioria dos políticos do estado de Roraima. Para eles, os índios não têm condições de se manter sem a tutela dos não-índios, o que acarretará uma deterioração de sua qualidade de vida. Neste mesmo diapasão temos alguns grupos militares que continuam contestando a demarcação da Reserva em faixa contínua de fronteira, por considerar que isto representa um sério risco à segurança nacional. Paradoxalmente, encontramos neste mesmo grupo, reforçando as argumentações contra a demarcação da Reserva, um deputado comunista, Aldo Rebelo, do PC do B de São Paulo, que se apóia em tese defendida na década de 1920, pelo embaixador brasileiro junto à Liga das Nações, Afrânio de Melo Franco, contrária ao reconhecimento de minoriais étnicas pelos países europeus, recém saídos da 1a. Guerra Mundial.

Este deputado considera a doutrina geopolítica de Melo Franco, idealizada há 90 anos atrás, ainda atual e válida por considerar "que a causa indígena pode vir a ser massa de manobra de interesses estrangeiros na cobiça de nosso território"(2009) e que há o risco potencial destes indígenas requererem a sua autonomia territorial mais tarde, criando enclaves étnicos em nosso país.

O grupo de defesa da demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol expressa a vontade majoritária da sociedade brasileira, representada pelo Poder Legislativo, por diversas ONGs, pelo Governo Federal, representado pelo Ministério de Justiça, FUNAI, Fundação Chico Mendes e INCRA, além do Poder Judiciário representado pelo Supremo Tribunal Federal que decidiu definitivamente pela demarcação da Reserva Indígena. Eles acreditam que os indígenas ganharam as condições adequadas de segurança humana e, com isto, a oportunidade de se desenvolver economicamente, de fortalecer suas linguas e de revitalizar suas culturas tribais.

IV. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BIASON, Rita de Cássia. Corrupção, Estado e Segurança Internacional, 2007.

BRASIL, Política de Defesa Nacional. Disponível em: www.defesa.gov.br.

DAVID, Charles-Philippe. La guerre et la paix. Approches contemporaines de la sécurité et de la stratégie, Paris : Presses de Sciences Po, coll. "Références inédites", 2000, 526p.

LOIOLA MACHADO, Roberto. O século XXI e as Novas Percepções de Segurança. Revista da Escola de Guerra Naval.

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MANDUCA, Paulo César. Política Externa e Segurança Internacional: Brasil: de Potência ao Fome Zero Global, publicado em e-premissas. Revista de Estudos Estratégicos, no. 1, junho /dezembro, 2006.

MIRÁGLIA, Ana Beatriz. Desenvolvimento, Meio Ambiente e Cultura: notas críticas sobre o debate socioambientel indigenista amazônico. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Antropologia Social do Departamento de Antropologia Social da USP, para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. São Paulo, 2007.

MONTEIRO DARIO, Diogo. Estudos Críticos de Segurança. Revista Perspectiva Internacional, no. 2 - junho de 2007.

PEREIRA, Merval. Reportagem do Jornal O Globo em 26/03/2009.

RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993

REBELO, Aldo. Artigo publicado no Jornal O Estado de São Paulo em 17 de fevereiro de 2009.

SORJ, Bernando (2005). Revista Internacional de Direitos Humanos, número 3 - ano 2 - pag. 40 a 59.

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