AS RELAÇÕES DE TRABALHO, A MÁQUINA E O FATO LABOR RELATIONS, THE MACHINE AND THE FACT
Mila Batista Leite Corrêa da Costa*
RESUMO
O artigo busca demonstrar que as relações humanas, em especial, as relações de trabalho, foram alteradas pelas revoluções tecnológicas ocorridas nos últimos séculos. A máquina ou, nos termos de Virilio (1998), os motores da história, promoveu uma profunda transformação social. A compressão espaço-tempo e o surgimento do motor informático levaram a um negligenciamento dos fatos, representando o fim das relações sem intervalo de espaço e tempo e o início de relações travadas a partir da superficialidade, do isolamento de quadros simbólicos de referência. O próprio Direito, uma ciência dos fatos sociais, foi “maquinizado”.
O objeto de análise é, portanto, a influência da máquina nas relações de trabalho e na percepção do próprio Direito. A investigação proposta é jurídico-descritiva, abrangendo a História, Sociologia e o Direito do Trabalho por meio de um diálogo entre ciências diferentes para promover a revisão de fórmulas tradicionais de interpretação em prol da efetividade do próprio fato social.
Palavras-chave: Relações de trabalho. Máquina. Direito e fato.
1 INTRODUÇÃO
Não temos conhecimento de um povo que não tenha nomes, idiomas ou culturas que em alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles, não seja estabelecida [...] O autoconhecimento - invariavelmente uma construção, não importa o quanto possa parecer uma descoberta - nunca está totalmente dissociado da necessidade de ser conhecido, de modos específicos, pelos outros. (CALHOUN apud CASTELLS, 1999, p. 22)
A produção industrial capitalista apresentou, ao longo de sua trajetória, formas distintas de organização e estruturação que demonstram como funcionou a lógica produtiva imposta ao trabalhador, desde o sistema doméstico até o modelo fabril. O uso da manufatura, a produção urbana estruturada em corporações de ofício, a hierarquia entre mestre e artesãos, o domínio dos procedimentos técnicos, das condições de trabalho foram marcas da história produtiva.
* Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MG. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM.
Pós-graduanda em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Gama
Filho - UGF. Bacharel e Mestranda em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de
Minas Gerais - UFMG. Pesquisadora com bolsa de produtividade vigente no CNPq.
O processo de industrialização na sociedade capitalista foi tema de estudo das ciências humanas no século passado. Inúmeras contraposições teórico- metodológicas subsidiam construções teóricas contemporâneas que analisam o impacto tecnológico do uso da máquina, da racionalidade imposta pelo mercado e das repercussões sociais das transformações instituídas no trabalho e no ambiente de fábrica.
As relações humanas, in casu, as relações de trabalho, foram completamente alteradas pelas revoluções tecnológicas ocorridas nos últimos séculos. A máquina representou uma ruptura definitiva do produtor direto com o domínio que ainda exercia sobre o processo de produzir; estabeleceu hierarquização e disciplinamento do trabalho; incorporou no processo produtivo uma disciplina autoritária sobre o trabalhador.
A máquina, ou, nos termos de Virilio (1998), os motores da história, promoveu uma profunda transformação social. A sociedade industrial passou a ser formada por trabalhadores despossuídos, detentores apenas de sua força de trabalho e de suas referências simbólicas mais íntimas. No entanto, a maquinofatura, a eletromecânica e, de maneira ainda mais forte, a informática, submeteram o indivíduo, sujeito pós-moderno, a uma regularidade e impessoalidade diferentes dos ritmos pré-industriais, alterando os próprios sentidos do trabalho e das relações sociais: a ideia de liberdade, dignidade e o sentido de parentesco do artesão foram redefinidos.
A sociedade pós-moderna trouxe consigo a imposição de uma nova forma de organização social, de concepções de espaço e tempo diferenciadas, hábitos de consumo engessadores e padronizadores das condutas sociais: os indivíduos são igualados e coisificados diante da tecnologia. As identidades modernas estão sendo descentradas em termos de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça, nacionalidade
1, até então vistas como unificadas, abalando os “quadros de referência” que sustentavam os indivíduos em relação aos contextos sociais dos quais eram parte e em relação a si mesmos.
E, nesse sentido, o próprio Direito, uma ciência dos fatos sociais, está sendo
“maquinizado”. Os operadores da técnica jurídica incorporaram discursos vazios e lançam seu olhar sobre a lei, negligenciando o fato, o grande mote da vida, da dinâmica processual e da própria existência do Direito.
2 O CAPITALISMO, AS RELAÇÕES DE TRABALHO E A MÁQUINA A empresa nos dias atuais é um imenso cosmos, no qual o indivíduo nasce, e que se apresenta a ele, pelo menos como indivíduo, como uma ordem de coisas inalterável, na qual ele deve viver. Obriga o indivíduo, na medida em que ele é envolvido no sistema de relações de mercado, a se conformar às regras de ação capitalistas. O fabricante que permanentemente se opuser a estas normas será economicamente eliminado, tão inevitavelmente quanto o trabalhador que não puder ou não quiser adaptar-se a elas será lançado à rua sem trabalho. (WEBER, 1974, p. 188)
1
Essas categorias não mais conseguem atuar na pós-modernidade como dispositivo
discursivo capaz de aglutinar e representar os variados interesses mergulhados no cerne
da sociedade, em especial a classe, que perde sua identificação como “identidade mestra”.
O sistema de produção industrial estruturado ao longo da história do capitalismo apresenta estágios de organização da produção e mecanismos de relação entre capital e trabalho que, articulados a uma lógica de desenvolvimento, permite uma compreensão do processo de organização do trabalho iniciado no sistema doméstico e substituído pelo sistema de fábrica mais avançado, que impõe uma extraordinária racionalidade à produção.
O desenvolvimento do comércio e da vida urbana, ocorrido a partir do século XI na Europa, intensificou a atividade fabril, com predominância da manufatura têxtil de lã. Toda a produção urbana foi organizada localmente em associações profissionais, as corporações de ofício, estruturadas em oficinas controladas por um proprietário conhecido como mestre, dono das ferramentas e das matérias- primas, além de detentor do poder de regulamentação interna dos procedimentos técnicos, das condições de trabalho e da mão-de-obra. As corporações obedeciam a uma estrutura piramidal rígida, onde a condição de mestre era hereditária e as possibilidades de ascensão dos responsáveis por cargos menores eram praticamente inexistentes. Pela forma como foram concebidas, essas organizações eram contrárias a toda forma de concorrência, mantendo-se articuladas para manutenção e controle de preços.
Esse tipo de organização foi sendo gradativamente superado pelo Domestic System, que, ao contrário do anterior, era predominantemente rural, pois as famílias camponesas se dedicavam à atividade artesanal em suas casas, recebendo do empresário a matéria-prima e ganhando por peça produzida. A produção era separada da comercialização, segundo Rezende Filho (2007), que, ao ser controlada pelo empresário, tomava a forma de livre concorrência.
A introdução do sistema de fábrica representou a ruptura definitiva do produtor direto com o domínio que ainda exercia sobre o processo de produzir, considerando-se que o saber, o conhecimento técnico, pertencia-lhe até ser controlado pela figura do capitalista. Os estudos de Marglin, segundo Decca (1985), sugerem que a reunião dos trabalhadores na fábrica não se deveu a nenhum avanço das técnicas de produção; pelo contrário, o que estava em jogo era justamente o alargamento do controle e do poder por parte do capitalista sobre o conjunto de trabalhadores que ainda detinham os conhecimentos técnicos e impunham a dinâmica do processo produtivo.
O autor defende que o resultado desse controle não foi uma maior eficácia técnica ou produtiva. O que ocorreu, na verdade, foi uma maior hierarquização e disciplinamento do trabalho. Decca (1985), citando David Dickson, enumera quatro razões para o estabelecimento do regime de fábrica: os comerciantes precisavam controlar e comercializar toda a produção dos artesãos; interessava-lhes a maximização da produção por meio do número de horas e do ritmo do trabalho; a necessidade de exercer o controle sobre as inovações tecnológicas utilizando-as para a acumulação capitalista; e, por fim, tornava-se imprescindível a figura do empresário capitalista financiador dos equipamentos.
O capital era necessário agora para financiar o equipamento complexo requerido
pelo novo tipo de unidade de produção, e fora criado um papel para um tipo novo de
capitalista, não mais apenas como usurário ou comerciante em sua loja ou armazém,
mas como capitão da indústria, organizador e planejador das operações na unidade
de produção, corporificação de uma disciplina autoritária sobre um exército de trabalho que, destituído de sua cidadania econômica, tinha de ser coagido ao cumprimento de seus deveres onerosos ao serviço alheio, pelo azorrague alternado da fome e do supervisor do patrão. (DOBB, 1976, p. 318)
O significado representado pelo avanço tecnológico ocorrido com a primeira revolução industrial deve ser compreendido além do âmbito do processo produtivo, pois acarretou uma profunda transformação social. A sociedade industrial é formada por proletários que possuem apenas sua força de trabalho como fonte de renda, estando agora sujeitos a uma regularidade e impessoalidade diferentes dos ritmos pré-industriais, trabalhando em fábricas incrustadas nos centros urbanos.
O uso da energia a vapor como força motriz deu novo impulso à industrialização que, não mais necessitando da força hidráulica, desloca-se para as proximidades dos mercados de onde provinham as matérias-primas, aproximando-se dos centros populacionais fornecedores de mão-de-obra. Houve uma expansão notável do setor de transporte pela construção de ferrovias e navegação a vapor, sendo possível a partir daí ser estabelecida a duração dos ciclos produtivos, pois se torna possível o controle das fontes de energia, consubstanciando um processo industrial sustentado pelo tripé: indústria têxtil, siderurgia e mineração de carvão.
O nascimento da maquinofatura determinou o emprego de grandes contingentes de mão-de-obra, fazendo nascer cidades industriais operárias, impregnadas de problemas sociais decorrentes das condições de exploração do trabalho humano e, consequentemente, das condições subumanas de trabalho e moradia de homens, mulheres e crianças sujeitos às imposições dos patrões devido à inexistência de legislação trabalhista.
Máquinas, multidões, cidades: o persistente trinômio do progresso, do fascínio e do medo. O estranhamento do ser em meio ao mundo em que vive, a sensação de ter a sua vida organizada em obediência a um imperativo exterior e transcendente a ele mesmo, embora por ele mesmo produzido. (HUBERMAN, 1986, p. 186)
A passagem da ferramenta da mão humana para um maquinário transformou radicalmente o processo de produção, que se tornou coletivo, complexificando a divisão do trabalho. Tais transformações em processo não foram incorporadas pacificamente pela unanimidade dos trabalhadores, tornando-se realidade a reação dos quebradores de máquinas. O Movimento opunha-se à nova estrutura imposta por meio de horas regulares de trabalho: “[...] as máquinas não só supunham uma ameaça com respeito aos postos de trabalho, mas contra todo um modo de vida que compreendia a liberdade, a dignidade e o sentido de parentesco do artesão”
(DICKINSON apud DECCA, 1985, p. 61). Os ludistas, como eram conhecidos os manifestantes, agiam rapidamente e em grupo, destruindo as máquinas maiores e inutilizando matérias-primas. Na verdade, estavam lutando por um padrão de vida, o que de certo modo explica o apoio que recebiam da população local.
Apesar de impulsivo e de não atingir o fator causante de sua situação, esse
movimento, que se manifesta na Inglaterra e repercute na França em fins do século
XVIII e início do XIX, representou a primeira forma de organização e de manifestação
da classe operária frente à exploração e dominação capitalista. A dimensão política do Movimento Ludista está na compreensão que os trabalhadores revoltosos tinham do uso da técnica pelos patrões como mecanismo de imposição de uma nova forma de organização social; reagiam pela preservação de sua identidade cultural.
De pé ficaremos todos E com firmeza juramos Quebrar tesouras e válvulas
E pôr fogo às fábricas daninhas.” (HUBERMAN, 1986, p. 186)
Os mecanismos de pressão e de reivindicação da classe trabalhadora evoluíram. Foram elaboradas as petições endereçadas inicialmente aos patrões como a dos tecelões pobres em Oldham, Inglaterra, em 1818, em que os trabalhadores apelaram para a sensibilidade dos proprietários. Outras petições foram endereçadas ao parlamento, resultando em algumas leis nem sempre cumpridas.
A conquista de direitos legais passava necessariamente por uma representação legítima no parlamento, alcançada pelo sufrágio universal.
Demonstrando um amadurecimento político, a classe trabalhadora, segundo Huberman (1986), alinhou-se ao Movimento Cartista. A organização da classe trabalhadora cresceu na esteira da própria evolução do capitalismo.
Um conjunto de inovações tecnológicas ocorridas na segunda metade do século XIX marcam a Segunda Revolução Industrial, atingindo vários países da Europa, Estados Unidos e Japão, ampliando o mercado internacional e acirrando a competição entre esses países.
[...] O ferro deixou de ser um produto industrializado para se transformar em matéria- prima para o aço. O vapor de água foi substituído pela eletricidade e pelo petróleo como fonte de energia. A indústria química permitiu a crescente independência industrial das matérias-primas naturais. A fábrica conheceu seu apogeu com a introdução da linha de produção. O capital concentrou-se em escala jamais imaginada.
A ciência tornou-se matéria auxiliar da técnica. E a administração dos negócios adquiriu um caráter científico [...]. (REZENDE FILHO, 1995, p. 145)
A expropriação do saber técnico como forma de dominação disciplinadora do trabalho introduzida no espaço fabril ganha novo caráter racional com o sistema criado por Taylor no início do século XX nos Estados Unidos. Com o taylorismo, foi introduzida a noção de tempo útil por meio da organização científica do trabalho. O processo de concentração e centralização de capitais que se intensifica com os monopólios, a formação de cartéis e trustes sustentados pela força do capital integrado do sistema financeiro e industrial provocaram o crescimento das unidades fabris, compostas por milhares de operários.
O planejamento do sistema produtivo decorrente dos estudos de Taylor impõe a separação entre tarefas de concepção e direção, distintas das de execução.
Houve uma apropriação do saber operário pelo capital que, ao sistematizá-lo, define
regras, leis e fórmulas que passam a ser implementadas em uma estrutura
hierarquizada, surgindo daí funções de controle exercidas por profissionais
especializados como a gerência científica, os analistas de tempos e movimentos e o apontador. A competição é fomentada no interior da fábrica com a individualização dos salários, situação reforçada por prêmios adicionais por produtividade. A submissão do trabalhador não alcançou unanimidade; a reação ocorreu frente a padronização e disciplinamento excessivos: os apontadores e cronometristas eram alvo imediato das revoltas e os sindicatos se posicionavam contrários à individualização dos salários.
Houve, nesse período, um crescimento do operário semiqualificado, dando origem a um tipo de sindicalismo que cresce em número de filiados, é mais combativo e se organiza por indústria, em contraposição a estrutura corporativa do período anterior. Essas organizações instituíram formas de reação ao disciplinamento e aos ganhos de produção, lançando mão de códigos coletivos de conduta, provocando acidentes voluntários de trabalho, praticando o absenteísmo e outros mecanismos de freio à produção.
No período pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, configura-se um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias e hábitos de consumo, marcando um novo estágio no desenvolvimento das forças produtivas do sistema capitalista, conhecido como Fordismo. A introdução do modelo fordista de produção ocorre, segundo Harvey (1992), de uma experiência isolada aplicada por Henry Ford, em 1914, determinando o dia de oito horas e cinco dólares como recompensa para os trabalhadores da linha de montagem de carros em sua fábrica em Dearbon, Michigan, nos Estados Unidos.
O período pós-guerra viu a ascensão de uma série de indústrias baseadas em tecnologias amadurecidas no período entre-guerras e levadas a novos extremos de racionalização na Segunda Guerra Mundial. Os carros, a construção de navios e de equipamentos de transporte, o aço, os produtos petroquímicos, a borracha, os eletrodomésticos e a construção se tornaram os propulsores do crescimento econômico, concentrando-se numa série de regiões de grande produção da economia mundial [...]. (HARVEY, 1992, p. 125)
A estrutura fordista determina uma adaptação do trabalhador a longas horas de trabalho rotinizado, determinado pela linha de montagem, onde o ritmo é estabelecido pela esteira e as habilidades manuais tradicionais são substituídas por tarefas repetitivas. A linha de produção provoca uma maior especialização do trabalho, aumentando a produtividade e barateando os custos. A inovação do fordismo está na produção de massa, voltada para o consumo de massa. O operário é duplamente importante nesse novo sistema, segundo Harvey (1992): como produtor e consumidor. Isso explica a importância dada à vida do operário fora da fábrica; seus hábitos e comportamento são acompanhados por um novo tipo de profissional: o assistente social.
Comparando os dois sistemas, podem ser apontados diferenças e aspectos
de complementaridade: no fordismo, a correia transportadora rompe com a
individualização determinada por Taylor, substituindo definitivamente os postos de
rendimento individuais e estabelecendo a supremacia da produção em série. Porém,
ambos foram adaptados ao sistema produtivo, muitas vezes sendo utilizados de
forma híbrida. O significado do fordismo deve ser compreendido no contexto de
reestruturação da sociedade capitalista, atingida pela crise de 1929, quando reformas institucionais e políticas definem um novo papel a ser desempenhado pelo Estado, alinhado ao capital corporativo, procurando a cumplicidade de sindicatos dispostos a colaborar com os patrões no aumento da produtividade em troca de ganhos salariais.
As grandes corporações procuraram definir os caminhos do crescimento do consumo de massas por meio de treinamentos, marketing, criação de novos produtos, estabelecimento de estratégias de preços e de obsolescência planejada de equipamentos e produtos. Coube ao Estado, no entanto, assumir políticas fiscais e monetárias, possibilitando investimentos públicos nos setores de transporte e equipamentos sociais necessários ao crescimento da produção e à garantia de pleno emprego.
A rigidez do fordismo é superada pelo sistema de acumulação flexível;
configura-se um novo padrão produtivo e tecnológico, determinando novas relações entre capital e trabalho.
Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. (HARVEY, 1992, p. 140)
O mercado mundial impõe um novo padrão de consumo, apresentando níveis de exigência elevados quanto à qualidade e diversidade, aguçando a competitividade entre as empresas que investem em tecnologia para acompanhar a agilidade imposta pelas relações internacionais. A tecnologia serve nesse novo modelo aos fins a que se prestou em momentos anteriores, ou seja, controlar a produção dos trabalhadores, determinando um disciplinamento condizente aos novos paradigmas estabelecidos pela chamada terceira revolução industrial.
A automação eletromecânica do período fordista operava com equipamentos rígidos. O comando embutido na máquina não podia ser alterado, tolhendo a capacidade reflexiva do operador. As atividades eram repetitivas e mecânicas. A microeletrônica, segundo Machado (1992), introduz equipamentos flexíveis; o comando encontra-se externo à máquina, nos softwares, podendo ser programada para diversas finalidades, atendendo às alterações instantâneas do mercado. A microeletrônica desdobra-se em informatização, automação e robotização, verdadeiros complexos automatizados que demandam novas formas de organização e de gestão da empresa, da produção e do trabalho, acompanhadas do avanço científico no campo da microbiologia.
Surge dessa organização fabril um trabalho redimensionado, ocorrendo uma
maior proximidade entre as tarefas de concepção e de execução. Há uma tendência
à redução da hierarquia, predominando o trabalho de equipe, integrando atividades
de controle, direcionamento e manutenção, provocando maior autonomia dos
grupos de trabalho, apontando para um novo perfil do profissional polivalente que
exerce tarefas variadas e multiqualificadas. São os chamados modelos de
especialização flexível, com maior capacidade de associação de dados e
informações, além de capacidade de decisão frente a situações complexas.
A revolução tecnológica associada à reestruturação produtiva em processo tende a exigir a elevação da qualificação, absorvendo um grupo reduzido de operários e descartando uma parcela considerável de não aptos e/ou não úteis.
Reduzem-se os postos de trabalho com os sistemas de reengenharia das fábricas ou mesmo pela substituição dos trabalhadores de funções repetitivas por máquinas mais eficientes e de baixo custo operacional. O quadro que se configura é de crescimento do desemprego, do trabalho e de formas contratuais contingenciais, temporárias e fragmentadas. As funções de controle importantes no período taylorista também perdem sua razão de existir, pois os instrumentos mecanizados já possuem um sistema de controle da força de trabalho.
3 MÁQUINA, DIREITO E TRABALHO
A burguesia não pode sobreviver sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e com eles as relações de produção, e com eles todas as relações sociais. [...] Revolução ininterrupta da produção, contínua perturbação de todas as relações sociais, interminável incerteza e agitação, distinguem a era burguesa de todas as anteriores. (BERMAN, 1997, p. 20)
Para Virilio (1998), a história está organizada por cinco motores: o primeiro motor seria o motor a vapor, marcante na revolução industrial. O trem foi construído a partir dele, que permitiu, portanto, “[...] a visão em desfile, que já é a visão do cinema. Cada motor modifica o quadro de produção de nossa história e também modifica a percepção e a informação” (VIRILIO, 1998, p. 01).
O segundo motor foi o motor de explosão que possibilitou o surgimento do automóvel e do avião.
Voando, o homem obteve uma informação e uma visão inéditas do mundo: a visão aérea. O motor de explosão possibilitou uma infinidade de máquinas, as máquinas- veículo e também toda uma série de máquinas de produção industrial. (VIRILIO, 1998, p. 01)
O terceiro motor, o elétrico, permitiu o surgimento da turbina, favorecendo a eletrificação e o cinema. “O cinema é uma arte do motor” (VIRILIO, 1998, p. 01) que alterou a relação do homem com o mundo. O quarto motor é o motor-foguete que possibilitou ver o planeta de uma outra perspectiva. O último motor é o motor informático, relacionado à inferência lógica, à digitalização da imagem e do som e, essencialmente, à realidade virtual. Tem uma relevância, inclusive, fulcral nas relações pós-modernas, modificando totalmente a interação com o real, duplicando a realidade por meio de uma outra realidade, “[...] que é uma realidade imediata, funcionando em tempo real, live” (VIRILIO, 1998, p. 01).
Não só toda arte moderna, o cinema, mas todas as relações humanas, e, inclusive, as trabalhistas, estão relacionadas à invenção de motores: motor a vapor, motor de explosão, motor elétrico, motor-foguete e motor eletrônico. “Assim, cada motor modificou a informação sobre o mundo e nossa relação com ele”
(VIRILIO, 1998, p. 01). As relações de trabalho são sempre modificadas pela
arte do motor.
3.1 O trabalho na sociedade tecnificada: repensando as relações Houve três concepções de identidade construídas ao longo da história: o
“sujeito do Iluminismo”, baseado no indivíduo centrado, unificado e racional, com um núcleo interior quase inalterável, adquirido no nascimento; o “sujeito sociológico”, já reflexo da modernidade, que adotava um núcleo interior não mais autônomo e autossuficiente, mas em formação a partir da interação entre os indivíduos e a sociedade, constituindo valores, sentidos e símbolos; e o “sujeito pós-moderno”, cuja identidade não mais é fixa, mas sim fragmentada e composta de variadas referências, fruto da modernidade tardia.
As sociedades pós-modernas são caracterizadas por uma multiplicidade de identidades, sistemas de significação, representação cultural e antagonismos sociais, movidas pela mudança permanente
2, por um processo de compressão espaço-tempo, causando o que Hall (2000) chama de “desalojamento do sistema social” - relações sociais não mais são analisadas a partir de seus contextos locais de interação.
O surgimento da sociedade em rede traz à tona, citando Castells (1999), os processos de construção de identidade durante a modernidade tardia, induzindo assim novas formas de transformação social, o que ocorre em razão da fundamentação da sociedade em rede na “disjunção sistêmica entre o local e o global” para a maioria dos indivíduos e grupos sociais.
Segundo Virilio (1998), as sociedades antigas viviam em tempos locais e, dessa forma, toda a história da humanidade foi construída de tempos locais.
“Aqueles que viviam em Paris viviam no tempo local de Paris e aqueles que viviam no Brasil viviam no seu tempo local - e eu falo do tempo histórico” (VIRILIO, 1998, p. 01). O fenômeno da compressão espaço-tempo e o surgimento do motor informático levaram ao que Virilio (1998) denominou de fim do hic et nunc (fim do aqui e agora).
Nós não dizemos o “ser filosófico”, mas “ser aqui e agora” [...] Podemos estar aqui e lá, podemos agir em outro lugar, de uma maneira total, instantânea, e não simplesmente por uma mensagem. A realidade virtual permite isto, ou seja, a teleoperação, o teleoperador. (VIRILIO, 1998, p. 01)
A sociedade tecnificada é a sociedade da derrota dos fatos, derrota do hic et nunc, da possibilidade de se relacionar com as pessoas sem intervalo de espaço e de tempo porque, quando há a “deslocalização” e a “destemporalização” do tempo e do espaço locais, passa-se a viver no mundo virtual. “Existe aí uma revolução filosófica, um paradoxo filosófico, que se reduz numa frase que utilizamos frequentemente no teletrabalho, na teleconferência: ‘se reunir à distância’” (VIRILIO, 1998, p. 01).
2
A “mudança” aqui descrita será trabalhada no sentido marxiano de envelhecimento
instantâneo das relações recém-formadas, reciclagem contínua das condições sociais,
dissolução de relações estabelecidas a priori.
O TGV (Trem de Alta Velocidade), que vai, em duas horas, de Paris a Lyon, polui e aliena a distância entre estas duas cidades. Toda a paisagem que está entre elas é esmagada por esta rapidez. Neste caso, alguma coisa da grandeza natural da França se perde. Quando tomamos o avião supersônico e chegamos ao Japão em 14 horas, por exemplo, alguma coisa da natureza-grandeza do mundo se reduz; numa teleconferência que faço com Tóquio instantaneamente, eu desconsidero o fuso horário, eu reduzo o mundo a nada. (VIRILIO, 1998, p. 02)
Os motores impõem um ritmo diferente. Os trabalhadores possuem apenas sua força de trabalho e suas referências simbólicas e a sociedade industrial lhes impõe uma regularidade e impessoalidade diferentes dos ritmos pré-industriais. A máquina, ao acelerar e imputar transformações à produção e às relações de trabalho, rouba a história desses atores por romper com seus quadros de signos e significantes e elidir o cenário necessário à interação. A interação simbólica imersa nas relações sociais somente é possível se existir um espaço e um tempo aprofundadores das relações. Os fatos demandam um tempo e um espaço que lhes são peculiares.
Muitos fatos decisivos estão além do tempo e do lugar da interação, ou assimilados nela. Por exemplo, as atividades “verdadeiras” ou “reais”, as crenças e emoções do indivíduo só podem ser verificadas indiretamente, através de confissões ou do que parece ser um comportamento expressivo involuntário. (grifo nosso) (GOFFMAN, 1985, p. 12)
O motor a vapor, por exemplo, alterou a própria lógica de distribuição espacial das cidades ao tornar obsoleta a força hidráulica e aproximar a produção dos centros populacionais, fazendo crescer o setor de transporte com a construção de ferrovias e navegação. As relações foram transformadas, não apenas do ponto de vista da interação interpessoal, mas, também, essencialmente, no que se refere às leituras do mundo. O transporte, antes feito durante longas jornadas a partir do contato direto do viajante com a paisagem e todos os seus personagens, tornou-se rápido e distanciado dos elementos da vida cotidiana. O trem retirou o indivíduo do cenário para transformá-lo em um mero expectador de uma paisagem bucólica vista da janela.
De modo similar, as maquinofaturas fizeram surgir as cidades industriais
operárias, alterando as relações de trabalho em virtude dos problemas sociais
decorrentes da exploração do trabalho, das condições subumanas e das relações
interpessoais precarizadas. É nesse momento que o trabalhador torna-se sujeito
do trabalho e é destituído da condição de sujeito de desejo. As transformações na
concepção de identidade e individualidade ao longo da história são pano de fundo
desse processo. E a reação dos trabalhadores à tendência de coisificação trazida
pelas novas dinâmicas trabalhistas e novas tecnologias fica evidente, por exemplo,
no movimento ludista. A máquina, fruto dos motores da história, passou a representar
uma ameaça ao modo de vida e às relações simbólicas do trabalhador, além de
significar a imposição de uma nova forma de organização social, o rompimento
com a construção de sua identidade cultural e uma releitura de sua interação com
o mundo.
No taylorismo, a coisificação do trabalhador na relação com ele mesmo é evidenciada pela criação da figura do “analista de tempo e de movimento”. O indivíduo perdeu a autonomia de gestão temporal, os gestos tornaram-se comedidos e cerceados e tornou-se clara a disciplina autoritária das máquinas sobre um exército de trabalhadores.
Desse modo, as multimídias e as estradas eletrônicas são, na realidade, endocolonizações do mundo inteiro, através de grupos de pressão industrial, sejam eles americanos, japoneses, amanhã franceses, amanhã brasileiros, este não é o problema. Foram domesticados os animais, os escravos, os soldados, os operários e os empregados domésticos através de gestos e de rituais. Agora se domestica todo mundo. O tempo mundial é a domesticação mundial (VIRILIO, 1998, p. 05).
Para Virilio (1998), um soldado é domesticado a partir das ordens dadas, na intenção de tornar suas atividades atos reflexos. De modo similar, transforma- se o trabalhador: ganha-se em velocidade e produtividade e perde-se com a
[...] colonização dos hábitos, dos costumes, dos ritmos, quer dizer, daquilo que nos é próprio. [...] perde-se a reflexão em proveito do reflexo. Tudo vai se dar em termos de reflexão ou de reflexo. A reflexão é a memória e o raciocínio, enquanto que o reflexo é desprovido de reflexão. (VIRILIO, 1998, p. 05)
Estrategicamente, segundo Rago e Moreira (1984), o taylorismo, no âmbito político-social, introduziu um comportamento fabril que, ampliado para esfera das relações sociais, cria indivíduos docilizados, submissos às instâncias de poder superior, realidade constatável na figura do “operário padrão”. Segundo Virilio (1998), a alienação do trabalho em relação às fábricas do passado era evidente na repetição de gestos. A alienação existe hoje, mas de forma mais camuflada em todas as relações.
Os motores da história remodelaram o pensamento ocidental: reinventaram as condições e relações de trabalho, comprimiram o espaço e o tempo, influenciaram no descentramento das identidades e nas concepções de sujeito construídas ao longo da história, recriaram a arte e a interação com o próprio mundo.
Porque por trás de tudo isto [...] existe uma lei. Uma lei que se impõe a nós e que se chama a lei do menor esforço. Toda a história das ciências e das técnicas da espécie humana é ligada à lei do menor esforço. [...] A lei do menor esforço impõe que se deva produzir somente máquinas para acelerar. Seria preciso inventar uma máquina de desacelerar, mas isto não existe. [...] Nenhum poder pode inventar a máquina de desacelerar. Entretanto, existem os psicotrópicos. Na química, ao contrário da física, existem máquinas para desacelerar o ritmo. Talvez esteja aí uma das razões da droga. A droga química - e não a eletrônica [...] - pode não ser somente um excitante mas também um desacelerador. Talvez esteja aí a explicação para o exponencial da droga química. (VIRILIO, 1998, p. 03)
A fragilidade dos fatos tem implicações nas relações de trabalho. O trabalho
e o próprio trabalhador são fatos, sujeitos e conteúdos dos processos sócio-
históricos. O Direito, de forma similar, é uma construção social necessária às
relações; traduz necessidades, esboça na lei as construções da vida social. As
definições no campo jurídico expressam o cotidiano manifesto em expectativas, frustrações, amarras desse sujeito de desejo. O tecnicismo, ao interferir também no Direito, trata a relação trabalhista como um objeto, sem perceber o trabalhador como sujeito de percepções, portador de concepções de mundo e com voz.
O capitalismo vive um momento de grande flexibilização que modifica os sentidos e significados do trabalho, alterando a própria percepção dos trabalhadores do que seja seu caráter pessoal: “[...] o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros [...] (SENNETT, 1999, p.10)”.
Os laços de afinidade com as pessoas, a profundidade das experiências e as relações de trabalho tornam-se de curto prazo, contra toda a lógica humana e do próprio Direito do Trabalho que sustenta a continuidade.
Há, portanto, a derrota dos fatos para a compressão espaço-tempo, para o motor da informática, para as relações virtuais e distanciadas. Mas, há ainda a derrota dos fatos para o próprio Direito, para a técnica jurídica. O discurso jurídico esvazia os fatos. É necessário repensar a Ciência do Direito na perspectiva da aproximação com a vida social, numa atitude nova de interlocução do jurista com os diversos atores sociais: uma mudança de paradigma
3que deve envolver todas as áreas jurídicas e, fundamentalmente, o campo das relações de trabalho.
O Direito, portanto, é a ciência dos fatos. “If you scrutinize a legal rule, you will see that it is a conditional statement referring to facts” (FRANK, 1973, p.14). O processo judicial é a própria tradução dos fatos narrados em consonância com o direito material pleiteado. É a escrituração no papel de narrações e dinâmicas muitas vezes marcadas pela oralidade e por nuances intraduzíveis pela palavra escrita, embora seja a escrita a memória do próprio Direito.
Quando eu me refiro à escrita, estou falando do traço, da memória. Não podemos nos esquecer de que a escrita tem a potência de conservar o ser, e não é por acaso que falamos em Santas Escrituras, a Bíblia ou o Alcorão. A escrita é a memória do ser.
Não existe ser sem memória. Assim, eliminar a escrita é eliminar a memória do ser, é matá-lo. Temos aqui novamente uma situação muito grave (VIRILIO, 1998, p. 04).
Para Frank (1973), a fórmula R x F = D é traduzida como sendo “R” a norma,
“F”, os fatos e “D”, a decisão judicial. O autor considera que os fatos têm sido negligenciados quando se analisa o grau de incerteza de uma decisão judicial:
“what is the “F”? [...] At best, it is only what the trial court - the trial judge or jury - thinks happened” (FRANK, 1973, p. 15).
Nesse sentido, é necessário que o operador do Direito, em especial o juiz, seja realmente permeável aos fatos, que busque escancarar as nuances que lhe são inerentes para detectar a vida escondida na narrativa. E, nesse sentido, o advogado tem uma função quase literária de narrá-los com todas as miudezas cotidianas: os fatos estão sempre fincados na realidade nua das partes em um processo judicial.
O juiz deve ter capacidade de perceber as pessoas e seus fatos a olho nu.
É o magistrado o mediador entre o fato e a norma, o intérprete da narrativa processual, das palavras, olhares e percepções das testemunhas e dos silêncios das provas. E, para tanto, deve estar despido da toga, de qualquer vaidade, preconceito ou interpretação deformadora da realidade e da própria técnica jurídica.
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