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Fotojornalismo como Imagem Híbrida: Potencial Dialético da Montagem – o Caso Sebastião Salgado MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

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Academic year: 2019

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PUC-SP

Laís Santoyo Lopes

Fotojornalismo como Imagem Híbrida: Potencial Dialético da

Montagem – o Caso Sebastião Salgado

MESTRADO EM COMUNICAÇÃO

SÃO PAULO

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Laís Santoyo Lopes

Fotojornalismo como Imagem Híbrida: Potencial Dialético da

Montagem – o Caso Sebastião Salgado

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação, sob a orientação do Prof. Dr. José Amálio de Branco Pinheiro.

SÃO PAULO

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Banca Examinadora

______________________________

______________________________

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O objeto de estudo da presente pesquisa é o fotojornalismo e sua montagem nos textos

de jornalismo impresso, sendo limitado à análise de fotorreportagens de Sebastião Salgado no

jornal Folha de S. Paulo. O objetivo consiste em investigar se a montagem fotojornalística é

capaz de desencadear um processo cognitivo relacional no leitor do jornal que buscaria

construir visibilidades alternativas a partir de uma visualidade dada, questionando a própria

natureza fixa do conhecimento. Assim, o problema está na possível atuação do fotojornalismo

como contra-dispositivo por meio de procedimentos artísticos e da construção da

temporalidade. É uma hipótese dessa dissertação que o discurso jornalístico atua como

dispositivo de poder, naturalizando a lógica do mercado e reduzindo o potencial das imagens

a simples estesia. Outra hipótese, sugere que as imagens-monumento apresentam um ponto de

vista homogêneo das notícias que não corresponde ao imaginário popular, o qual articula-se

com textos diversos da cultura, em um regime cultural e temporal próprio das sociedades

latino-americanas. A pesquisa se articula em torno das Teorias da Imagem, da Mídia e da

Semiótica da Cultura, na compreensão dos processos comunicativos do fotojornalismo. Para

tal, se discutirá a teoria de Rancière (2009a e 200b) que trata das operações da imagem do

ponto de vista estético, Agamben (2008), quanto aos dispositivos de poder, Debord (1997),

em sua elaboração sobre a sociedade do espetáculo e Morin (2008), que proporciona um

entendimento complexo dos procedimentos sócio-culturais. A temporalidade e sua construção

por meio das narrativas da mídia, o processo de monumentalização das imagens, bem como a

tendência pós-moderna do eterno presente, serão analisados de acordo com Lavoie (2003),

Bellevance (2003) e Latour (2009). Também será aprofundada a relação entre essas teorias e

o pensamento de Benjamin (1987, 2007, 2008) sobre a história e as técnicas de

reprodutibilidade, além da leitura de Didi-Huberman (1998) a respeito da dialética da imagem

benjaminiana. Também evidenciam-se as obras de Lotman (1969, 1996, 1999), Santos (2010)

e Zizek (2011).

Palavras-chave: fotojornalismo; visualidade; híbrido; montagem dialética; semiótica da

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The subject of this research is photojournalism and its montage in printed news, being

limited to the analyses of photo-essays by Sebastião Salgado in Folha de S. Paulo. The main

objective is to investigate the possibility of, through photojournalistic montage, triggering a

relational cognitive process in the reader, who would then start to construct alternative

visibilities from a given visualitity, questioning the fixed nature of knowledge. Therefore, the

problem lies in the possible performance of photojournalism as a counter-dispositive through

artistic procedures and the construction of temporalities. It is a hypothesis that the journalistic

discourse acts as a dispositive, naturalizing market logic and reducing the potential of the

images to mere esthesis. Another hypothesis suggests that the image monument presents a

single homogeneous point of view of the news that does not correspond to popular imagery,

which articulates itself with a variety of cultural texts, in a cultural and temporal regime

specific to latin-american societies. This research is built around Image and Media Theories,

and Culture Semiotics, in its attempt to further understand the communicative processes of

photojournalism. To this end, it will discuss Rancière’s theory (2009a e 200b) about image

operations from the aesthetic point of view, Agamben´s theory (2008) regarding the

dispositive, Debord’s (1997) “Society of the Spectacle”, and Morin’s (2008) complex

understanding of the social-cultural processes. Temporality and its construction through mass

media’s narratives, the monumentalizing process of images, as well as the post-modern

tendency of the eternal present time will be analyzed with the help of the works of Lavoie

(2003), Bellevance (2003) and Latour (2009). It will explore the relation between theses

theories and Benjamin’s philosophy (1987, 2007, 2008) regarding history and technical

reproduction, as well as Didi-Huberman’s (1998) reading of Benjamin’s dialectical image.

Also relevant for this research are the works of Lotman (1969, 1996, 1999), Santos (2010) e

Zizek (2011).

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1 – Introdução 7

2 – Fotojornalismo como texto híbrido 16

2.1 Entre-imagens 16 2.2 Discursos de poder 22 2.3 Fotografias de Sebastião Salgado 29 2.4 O caráter dinâmico do texto 45 3 – Temporalidades, história e fotojornalismo 48 3.1 Imagens da modernidade 49

3.2 Outros modelos de conhecimento 56 3.3 A função do fotojornalismo na construção de temporalidades 63

Imagem-monumento 63

Imagem híbrida 68 3.4 Fotografias de Sebastião Salgado 71 MST em Carajás 71 Especial China 50 79 4 – Considerações finais 88 Referências Bibliográficas 96 Anexos A – Refugiados ruandeses no Zaire (FIG. 1 a 5) 99 B – Especial Sem-terra (FIG. 6) 103

C – Um ano do massacre de Eldorado do Carajás (FIG. 6) 104

D – Exposição “Trabalhadores” (FIG. 6) 105

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1 – Introdução

O objeto de estudo desta pesquisa é a relação entre a montagem fotojornalística e o texto da notícia. A visualidade da fotografia é organizada em um texto através da montagem feita pelo fotógrafo e seus ricos processos de seleção. Este texto, por sua vez, passa por um segundo processo de edição, ao ser incluído na composição da notícia. Assim, uma nova camada de visualidade é gerada, que permanece em jogo com a anterior. As potencialidades dessa interação, a luta pelo sentido no texto, são o eixo dessa investigação.

Por sua vez, são imagens fotojornalísticas de grande circulação na mídia brasileira que compõem o objeto empírico de análise. Por imagem fotojornalística, deve-se entender qualquer espécie de notícia visual, sejam fotografias still, vídeos ou gráficos veiculados pela mídia impressa, televisiva ou eletrônica. Sendo assim, pretende-se abordar o fotojornalismo no lato sensu, como “[...] atividade de realização de fotografias informativas, interpretativas, documentais ou ‘ilustrativas’ para a imprensa ou outros projetos editoriais ligados à produção de informação de atualidade.” (SOUSA, 2004, p. 12). Dessa forma, o termo fotojornalismo inclui tanto o produto de spot news, como as feature photos e o fotodocumentarismo publicado na imprensa.

Optou-se, então, por estudar fotorreportagens de Sebastião Salgado publicadas com exclusividade no jornal Folha de São Paulo. Dentre os fotodocumentaristas brasileiros, é um dos mais conhecidos mundialmente. Suas fotografias, nas décadas de 1980 e 1990, de trabalhadores em Serra Pelada e do Movimento Sem Terra, voltaram as atenções do mundo para as questões agrária e ambiental, bem como para a condição do trabalhador no Brasil. Seu trabalho de reportagem social alcançou grande proeminência na imprensa nacional e internacional e entrou para o cânone do fotojornalismo ocidental do século XX. Indo além, suas imagens são também reconhecidas pela dimensão artística, fator que traz ainda outros desdobramentos para o texto jornalístico.

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Em “O que é um dispositivo”, Agamben (2009) oferece uma nova leitura do conceito trabalhado originalmente por Foucault. O autor entende que este é uma máquina de governo que atua por meio dos processos de subjetivação, os quais, no contexto atual do capitalismo, consistem no afastamento do ser real e sua substituição por uma forma apenas espectral. Este fato, por sua vez, contribui para um aumento da submissão aos dispositivos. “Hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo” (AGAMBEN, 2009, p. 42).

Em seu estudo, aponta como o conceito de Foucault deriva da noção de “religião positiva” (em oposição à natural), na qual a relação da razão humana com o divino é de coerção, ou seja, comportamentos são impostos aos indivíduos por mecanismos exteriores aos quais devem obediência. Também cita Hyppolite (1983 apud AGAMBEN, 2009, p. 31) que demonstra como, para Hegel, a “positividade” é o elemento histórico (regras, ritos, instituições) que cria obstáculos à liberdade e à razão. Esse conjunto de regras externo imposto aos indivíduos acaba sendo interiorizado em seu sistema de crenças e valores, de forma que Foucault acaba por empregar o termo “dispositivo” para designar “o conjunto das instituições, dos processos de subjetivação e das regras em que se concretizam as relações de poder” (AGAMBEN, 2009, p. 32), uma rede de práticas e mecanismos e não uma tecnologia ou instituição abstrata isolada, implicando sempre um cruzamento de relações de saber e poder.

Indo além, Agamben (2009) encontra uma ligação entre o termo dispositivo e o conceito grego oikonomia, uma prática de administração do lar que, no contexto da igreja, foi aplicado para designar uma espécie de “economia divina” e remete à introdução do dogma da Trindade na teologia cristã no século II. A justificativa da mudança baseia-se na ideia de que Deus seria único, mas necessitaria da trindade como mecanismo de “gestão” do mundo dos homens. Desse modo, a oikonomia passou a significar uma prática administrativa cristã do mundo. Ademais, o termo se fundiu com a ideia de providência, “governo salvífico do mundo e da história dos homens” (AGAMBEN, 2009, p. 37-38) e foi traduzido para o latim como dispositio. No entanto, o Deus deveria permanecer uno pois qualquer fratura poderia ser identificada com práticas politeístas e paganistas. Logo, estabeleceu-se uma prática econômica e política sem fundamento no ser, na qual os seres são alheios aos dispositivos que os capturam e doutrinam.

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governo puros que não se fundamentam no ser, e portanto precisam produzir sujeitos outros, ou seja, implicam processos de subjetivação. A partir deste ponto, distinguem-se a classe dos seres viventes e a dos dispositivos, tudo aquilo que possa capturar os seres; o sujeito é o termo resultante da relação entre ambos. A multiplicação dos dispositivos corresponde à multiplicação dos processos de subjetivação, de modo que diversos deles ocorrem simultaneamente em um mesmo ser.

Dessa forma, o autor define os processos de subjetivação como o lócus das relações que modulam o homem. Dispositivo de poder passa a significar “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40). O conceito é então ampliado para além das esferas evidentes do poder (prisões, escolas, leis, disciplinas, etc.), não compreendendo apenas o conjunto das relações discursivas e extradiscursivas, mas a disciplina e a regulamentação são inseridas num conjunto maior, que inclui também “a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura [...] os computadores, os telefones celulares” (AGAMBEN, 2009, p. 41), ou seja, tudo aquilo que produz sujeito, incluindo a própria linguagem.

Logo, a linguagem é dispositivo, uma prática orientada por uma determinada ideologia, se entendermos que

as ideologias são estruturas [...] não são “imagens” e nem “conceitos” (podemos dizer, elas não são conteúdos), mas conjuntos de regras que determinam uma organização e o funcionamento da imagens e conceitos [...] A ideologia é um sistema para codificar a realidade não um conjunto determinado de mensagens codificadas. [...] Desse ponto de vista, então, uma “ideologia” pode ser definida como um sistema de regras semânticas para gerar mensagens. (VERÓN, 1971, p. 68 apud HALL, 1982, p. 301-302.)

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sempre purificadas em esferas distintas. Indo além, o jogo de garantias inversas é acrescido de um terceiro paradoxo que coloca Deus como um árbitro, ora criador, ora impotente.

A crítica moderna parte sempre dos extremos, após uma purificação prévia que separa o natural, proveniente do objeto, e o que cabe ao sujeito, para então recompor a prática a partir de uma cadeia de intermediários que possibilitaria a mistura progressiva em direção ao meio. Assim, funciona como sugere a descrição de Agamben (2009): “os ‘dispositivos’ [...] podem ser de alguma maneira reconduzidos à fratura que divide e, ao mesmo tempo, articula em Deus ser e práxis, a natureza ou essência e a operação por meio do qual ele administra e governa o mundo das criaturas” (AGAMBEN, 2009, p. 38). A consequência dessa configuração do saber é uma cultura que ignora o híbrido, que não para para pensá-lo e ao mesmo tempo permite sua mobilização em larga escala. Nesta lógica, os polos extremos são essências que não precisam de explicação, que não possuem ontologia, e os intermediários são aqueles que deslocam estas forças puras, são as variáveis cujo grau de fidelidade a um dos lados pode ser aferido e gerenciado. Logo, o dispositivo moderno entende o híbrido como originário de uma das duas características básicas, mas permite a aproximação destas, de modo que o trabalho de mediação fica oculto, pois toda manifestação do híbrido é um estado provisório, intermediário, sem competência.

De forma similar, pode-se afirmar que existe uma “constituição” que governa a prática fotojornalística. Esta também funciona como um dispositivo, baseando-se em uma fratura que separa os aspectos naturais e culturais. Um dos mais claros exemplos da ideia de que a objetividade é inerente à mídia fotográfica pode ser encontrado em André Bazin, no texto “A ontologia da imagem fotográfica”. Nele, o autor defende que a fotografia libertou as outras artes da obsessão com a semelhança ao “satisfazer completamente nosso apetite de ilusão pela reprodução mecânica de cujo processo não participa o homem” (BAZIN, 1967, p. 204). Ou seja, afirma que a objetividade é essencial pois não há intervenção criativa, apenas uma imagem que se forma automaticamente. A ausência do homem é o que acredita conferir à fotografia seu poder de impacto, como um “fenômeno da natureza” (BAZIN, 1967, p. 241), resultando em uma credibilidade superior a de qualquer outro meio. Apesar de admitir que algo de pessoal do fotógrafo seja transferido para a imagem, acredita que as lentes sejam capazes de superar os preconceitos do olhar e apresentar as coisas em seu estado de “pureza virginal” (BAZIN, 1967, p. 242), “a imagem natural do mundo que nós não conhecemos nem podemos conhecer” (BAZIN, 1967, p. 242).

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as inclinações políticas compunham a imprensa estadunidense no século XIX, de modo que o jornalismo como grande corporação pautado na objetividade surgiu apenas no século XX. Segundo o autor, o sucesso financeiro está diretamente atrelado ao poder da organização oligárquica e à diminuição de vozes dissidentes. Assim, evitar contradições e posições extremas tornou-se uma estratégia econômica para garantir o monopólio do mercado. Para o autor, tal posição vai na contramão da função social do jornalismo no país, que seria de permitir o livre debate de ideias como forma de evitar o domínio da elite. Assim, a existência de uma mídia noticiosa supostamente objetiva elimina a necessidade de perspectivas concorrentes ao mesmo tempo em que coloca a ideologia por trás de seu interesse econômico como visão neutra.

Evidentemente a convenção da fotografia como resultado de um processo natural foi abandonada muito antes disso, já em meados do século XIX, por exemplo, quando o pictorialismo esforçou-se para demonstrar e operar a dimensão intelectual do que era considerado apenas mecânico. Como afirma Robinson (1980, p. 96), a mesmice do realismo logo ficou cansativa. Em sua opinião, a graça da fotografia estaria em usá-la como meio de expressão plástica capaz de carregar algum tipo de mistério. Enquanto algo idêntico à realidade, não teria o que dizer, não acrescentaria nada ao conhecimento.

Entretanto, independentemente da vertente artística que a mídia fotográfica desenvolveu a partir daí, o fotojornalismo lutou para manter-se no primeiro domínio. O que não significa que sua prática não tenha resultado, desde o princípio, em grandes incoerências. As diferentes funções da imagem nunca foram de fato separadas senão na esfera do discurso.

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Entrevistado pelo autor, o fotógrafo Patrick Zackmann afirma:

sempre existem conflitos sobre “arte” na Magnun. Se você apenas pronunciar a palavra “artista” na Magnum você é morto. Eles acham que vocês não pertencem mais ao mesmo grupo. [...] Eu não tenho problema com arte vs. jornalismo. Ser artista é algo que você define por si mesmo, apesar de que penso não ser possível ser um artista e um fotojornalista. É uma contradição porque como jornalista você tem que ser objetivo, ter um ponto de vista realista, artistas são diferentes. Eu considero o jornalismo interessante somente se ajudar a mudar o mundo. Agora, minhas razões profundas para ser um fotógrafo não são jornalísticas, levemente artísticas talvez, mas principalmente de sobrevivência – eu preciso me expressar e entender as coisas por mim mesmo. (MILLER, 1998, p. 16)

Complementarmente, Sousa (2004), em seu livro a respeito da história do fotojornalismo, ao analisar o trabalho de Zackmann comenta: “a sua visão, sendo pessoal e subjetiva, tem, contudo, mais preocupações documentais do que de intervenção social” (SOUSA, 2004, p. 187). Estes textos mostram a oposição subjetividade/objetividade ou documento/obra de arte, mas também uma prática documental que admita algo de pessoal em oposição ao fotojornalismo, que deve se incomodar exclusivamente com o papel de testemunha ocular e denúncia, carregando, portanto, a obrigação de neutralidade e clareza, pois levaria a mudanças efetivas no curso da história. Nota-se, assim, que estas visões dependem da separação teórica entre dois tipos de práticas fotográficas. Assumem que as posições são inconciliáveis e que é possível, e talvez até recomendável, escolher um lado para atuar. Mesmo assim, na prática acabam aproximando as polaridades, mas sempre partindo dos aspectos puros que se desenvolvem a partir de uma cadeia de intermediários.

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inclinações no trabalho”, mas “pensar proativamente, como um estudante de psicologia, sociologia, política e arte para desenvolver uma visão e apresentação única”.

Em resumo, observa-se a respeito das teorias do fotojornalismo que ou tendem a um extremo, considerando apenas seu aspecto natural ou construído e excluindo o outro, ou, mesmo quando levam em conta a ambiguidade da prática, esforçam-se para solucioná-la, chegar a uma síntese totalizante. Desse modo, a prática fotojornalística funciona como um dispositivo, assim como a lógica moderna descrita por Latour, um comportamento “esquizofrênico” que permite passar de um lado ao outro de acordo com o interesse de quem opera as relações de sentido, mantendo os dois aspectos separados. Logo, utiliza-se a garantia da neutralidade da mídia fotográfica ou a justificativa da visão pessoal para continuar a produzir imagens de modo abundante, sem refletir sobre sua natureza ambígua, limitando-se a classificá-las hierarquicamente de acordo com seu relativo grau de “honestidade”.

A estratégia sugerida por Agamben (2009) no confronto com os dispositivos articula-se em torno do conceito de profanação. Em oposição ao sacro (que, articula-segundo o direito romano, era tudo o que pertencia exclusivamente aos deuses), profanar significava devolver ao uso dos homens. Assim, se a religião subtrai dos homens, separa, por meio do dispositivo da sacralização, o ritual de profanação pode ser entendido como um contradispositivo, unindo o que foi separado.

O conceito de profanação1 torna-se aqui um ponto de partida para investigar em que medida, através da montagem, o fotojornalismo pode oferecer resistência à organização de sua visualidade de acordo com a lógica binária da modernidade, à sua cooptação por um discurso funcionalista e reducionista. Não se trata de eliminar um dos polos em disputa ou sintetizar os opostos. Mas justamente de voltar o olhar para esta fratura base do dispositivo, colocá-la em relevo e investigar a possibilidade de operá-la crítica e criativamente, não de modo utilitário ou providencial, como faz sua constituição, mas provocando crises no olhar.

Por sua vez, a proposta de Latour (2009) ao problema dos modernos pauta-se na inversão de sua lógica: ao invés de pensar o híbrido como uma mistura de estados puros cuja explicação implica separar o social do natural, o sujeito do objeto, sugere partir do centro e, considerando uma “cadeia de mediadores”, ver cada polo como mais uma forma transitória. Assim, a prática mista é o grande interesse em torno do qual giram as essências, é esta

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construção coletiva que as explica, e não o contrário. Os mediadores passam a ser identificados como tradutores que redistribuem, transformam, desdobram o híbrido, compondo uma rede que liga os aspectos naturais, discursivos, sociais e existenciais.

No que diz respeito ao fotojornalismo, isso implica admitir seu caráter híbrido para, a partir dele, pensar a construção de sentido pela montagem de diversos textos dentro de uma mesma imagem. A dialética da imagem de Benjamin (1987, 2007) permite justamente elaborar um pensamento nestes moldes sugeridos por Latour (2009). Partindo do centro, para encontrar o sentido na trajetória, o movimento de crise e crítica é alimentado pela tensão entre seus estados, todos sempre em movimento. Qualquer estrutura identificada no texto será provisória, desafiando a fixidez da informação. Desse modo, se alimenta do atrito entre objetividade e arte, fotografia e fotojornalismo.

Buscando maior compreensão da multidimensionalidade das imagens no fotojornalismo, a problemática está no fato de que o potencial de contradispositivo do fotojornalismo depende da atuação dialética da montagem, que não deve superar contradições, mas construir brechas.

Inicialmente se discutirá os jogos entre regimes de sentidos da imagem que ocorrem nos textos fotojornalísticos, cujo o objetivo é investigar as potencialidades do texto híbrido em desestabilizar o discurso oficial através de procedimentos geradores de indeterminação. Ao mesmo tempo, deve-se analisar também de que modo são operacionalizados como dispositivos de poder, servindo ao consumo do espetáculo e à disseminação de conhecimento-regulação. Para tal, se discutirá a teoria de Rancière (2009a, 2009b) em relação à estética, Agamben (2009), quanto ao funcionamento de dispositivos de poder, Debord (1997), em sua elaboração sobre a sociedade do espetáculo e Morin (2008), que proporciona um entendimento complexo dos procedimentos socioculturais.

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mídia. Também será aprofundada a relação entre essa teoria e o pensamento de Benjamin (1987, 2007) sobre a história e as técnica de reprodutibilidade modernas, bem como a leitura de Didi-Huberman (1998) a respeito da dialética da imagem benjaminiana.

O papel do receptor na construção de sentido será abordado de acordo com Lotman (1996) e Martin-Barbero (2009). Para o primeiro, o texto também é um gerador informacional e a mera transmissão da mensagem não é a única função do mecanismo comunicativo nem do mecanismo cultural. O próprio desenvolvimento da cultura depende de uma parceria, através da qual se realiza um intercâmbio dialógico gerador de sentido. Assim, o receptor não somente decifra o texto, mas sua leitura o altera. Martin-Barbero segue a mesma hipótese afirmando que não basta medir a eficácia da transmissão de mensagens mas analisar os processos de apropriação dos conteúdos (MARTIN-BARBERO, 2009, p. 292). Dessa forma, sua concepção de leitura leva em conta que no ato do consumo também há produção, o que provoca um questionamento sobre a centralidade do texto e seu caráter unificador de heterogeneidades.

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2 – Fotojornalismo como texto híbrido

2.1 Entre-imagens

O centro dos debates sobre fotojornalismo tradicionalmente apresenta a questão da realidade como primária, polarizando a natureza aparentemente documental da imagem fotojornalística com a construção de uma linguagem estética. As discussões se concentram em torno da possibilidade de obtenção de objetividade jornalística, neutralidade na imagem e parâmetros éticos de registro. Assim, se fortalece a crença no aperfeiçoamento de procedimentos positivistas para eliminar a ambivalência proveniente da subjetividade da percepção individual do fotógrafo e da posição político-ideológica do emissor que geralmente se impõem na montagem através da consolidação cultural, e muitas vezes industrial, de uma gramática visual e de certos procedimentos de construção de sentido. Um exemplo dessa consolidação cultural é a famosa foto de Iwo Jima, na qual soldados americanos fincam sua bandeira sobre um monte após vencer a batalha pela ilha. Tal imagem foi imensamente difundida em diversos meios de comunicação, entrando para o cânone do fotojornalismo. Observa-se, então, como esse mesmo gesto foi repetidamente fotografado em outros eventos, carregando o seu significado, o exorcismo dos inimigos e recuperação do território, para outros contextos (LAVOIE, 2003).

Para Rancière (2009b), “a imagem nunca é a realidade elementar” (RANCIÈRE, 2009b, p. 6), mas o que está em jogo são os seus regimes, ou seja, as “relações entre elementos e entre funções” (RANCIÈRE, 2009b, p. 4), operações que montam e desmontam relações entre o visível e o dizível, percepção e ação. Para isso utilizam-se diversas funções da imagem. O regime de representação trabalha com a imagem como duplo do mundo, algo que está no lugar do objeto que originou a reprodução, sendo um complemento expressivo passível, portanto, de interpretação quanto ao seu grau de simulação ou dissimulação. O regime de semelhança nas artes constrói, através de narrativas e descrições, relações em que palavras tornam visível o invisível, fazem ver o que nunca poderia ser visto ou o que deve ser visto, ou seja, imagens funcionam como representação direta ou figuras poéticas que intensificam uma expressão.

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trabalha com a função de presença ou de “hiper-semelhança” (RANCIÈRE, 2009b, p. 8) da imagem, no qual ela é destituída de significação referencial, deixando de operar como réplica do mundo ou como forma codificada de uma ideia, mas passa a ser uma forma em si, autônoma e autorreferente. Sua potência deriva justamente do “discurso silencioso” (RANCIÈRE, 2009b, p. 13), que é a imagem por ela mesma, como discurso de seu processo e não uma mensagem codificada, duplo do mundo ou sua tradução. A imagem passa a existir em trânsito entre duas funções: como testemunha silenciosa, registro de traços hieroglíficos nos corpos disponíveis para a construção de narrativas, ou como presença nua, não significada, uma imagem que não se torna imagem, mas permanece como visualidade, pois é a impressão direta da alteridade ao invés de sua imitação, sendo assim, impenetrável à narrativa.

A partir disso, as imagens da arte passam a operar no entretecer do regime estético com o regime representativo e no deslocamento entre as funções da imagem. Estabelecem novas conexões entre o visual e o conceitual pois jogam com relações de analogia e dessemelhança, podendo resultar na “quebra estética”, o desencontro entre aisthesis, o sentido sensível, e poiesis, o sentido semiótico. Segundo Rancière (2009b), “as formas visuais se submetem a um significado a ser construído ou o subtraem.” (RANCIÈRE, 2009b, p. 7). Logo, é possível pontuar a existência de diversas imagens em uma só, mediadas por uma “zona de indeterminação entre pensamento e não-pensamento, atividade e passividade, mas também entre arte e não-arte” (RANCIÈRE, 2009a, p. 107).

É justamente do jogo entre essas funções da imagem que a fotografia deriva o seu status de arte, oscilando entre a visualidade nua, a impressão direta do outro, e a leitura desses rastros como índices de uma história ou como formas autônomas. A articulação dessa dupla poética é construída historicamente e sempre atualizada na relação entre as próprias “imagens da arte, as formas sociais da imagem e os procedimentos teóricos de crítica da imagem” (RANCIÈRE, 2009b, p. 15).

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A ideia de uma relação entre indeterminação e poder criador já foi apontada por Roman Jakobson e é desenvolvida por Morin, que a ressalta como um dos principais mecanismos de revolução intelectual e renovação da cultura. “Trata-se com efeito, de conjunção de uma relativa e local indeterminação sociocultural e de uma relativa indeterminação psicossubjetiva individual que liberta curiosidades, interrogações, insatisfações, imaginações.” (MORIN, 2008, p. 63). Ao tratar-se da imagem, observa-se a mesma dinâmica, sendo que o potencial de geração de sentidos deriva justamente da ambivalência e da indeterminação, e não da certeza.

Sendo assim, alternativamente às análises baseadas na lógica binária, que buscam identificar os problemas de contaminação e purificar os procedimentos e as imagens, pretende-se trabalhar a partir de sua natureza ambivalente, considerando-as um texto híbrido. Definidos por Latour (2009) como tricksters, os híbridos são quase-objetos “ao mesmo tempo sociais e não-sociais, produtores de naturezas e construtores de sujeitos” (LATOUR, 2009, p. 110). Ao pensar o fotojornalismo como uma prática híbrida é possível ultrapassar o paradigma clássico da ciência que procura resolver as contradições em busca de uma síntese totalizante, considerando que entre o caráter natural e o construído do texto fotojornalístico encontra-se o seu potencial como gerador comunicacional. Dessa maneira, não cabe discutir a possibilidade de veracidade da imagem, pois a estrutura sobre a qual se monta o seu conhecimento é de natureza móvel e potencialmente crítica.

Segundo Pross (1980), a realidade que experimentamos é repleta de “coisas que estão no lugar de outras coisas” (PROSS, 1980, p. 13), signos. Diferentemente da definição pierciana (signo como algo que representa uma outra coisa e é entendido e interpretado por alguém), ressalta que nem sempre a relação entre o meio e sua função designadora é compreendida. O conceito deve então ser buscado na relação triádica entre “o meio, o objeto designado e a consciência interpretante” (PROSS, 1980, p. 14), de modo que o signo não é “um objeto com propriedades, mas somente uma relação” (PROSS, 1980, p. 14). Assim, aquilo que nada significa, um meio através do qual a consciência interpretante não estabelece nenhuma relação com algum objeto, não pode ser considerado signo. Para configurar um signo é necessário reciprocidade entre meio e interpretação. Isso permite que no seu estudo sejam considerados tanto o caráter histórico e cultural das designações e da significação, quanto as predisposições cognitivas do ser humano.

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relação primária com o entorno se complexifica cada vez mais formando uma rede de relações através da qual o homem “percebe e opera [...] buscando sempre ‘algo’ para apoiar-se em frente ao nada” (PROSS, 1980, p. 16).

Para tais afirmações, Pross (1980) se fundamenta na “psicologia profunda” de Dieter Wyss, que constata que a experiência de mundo do recém-nascido se baseia nesta distinção binária fundamental entre “nada” e “algo”. Ele sempre espera “algo”, o que pressupõe uma relação primária de “absoluta confiança, construída sobre nada” (PROSS, 1980, p. 17), confiança de sua própria existência enquanto presença. Quando se manifesta com ruídos, confia que serão interpretados como “algo”, resultando em atenção materna. Assim, é através do signo (relação triádica) que estabelece-se o vínculo primário entre experiência interna, individual, e tudo aquilo que se encontra no exterior. A disposição à se comunicar deriva portanto não só da busca por saciar uma carência, como também da necessidade de segurança.

Quanto às características do mundo formado a partir dos signos, resultado da busca por segurança através do conhecimento, Pross (1980) afirma que desde o século XVII já se compreendia “a relação entre o conhecimento e as possibilidades configuradoras de qualquer arte com a natureza específica dos signos” (PROSS, 1980, p. 28). Isso significa que o conhecimento é determinado pelo potencial cognitivo de uma certa configuração da relação triádica entre objeto, meio e consciência interpretante. No entanto, com o progresso constante dos sistemas de signos, esse fator foi parcialmente desconsiderado. Assim, ressalta a importância da distinção entre signos linguísticos e não linguísticos.

Se por um lado a linguagem tem um poder unificador e criador de conceitos, estes são limitados por sua ligação com as palavras. O universo da experiência é infinitamente mais amplo do que sua possível tradução gramatical. Para captá-lo é necessário um esquema simbólico não discursivo. Nesse sentido, Langer (1965 apud PROSS, 1980, p. 29) entende a fotografia

como “símbolo não-discursivo” que pode alcançar uma concordância maior com o seu objeto [...] a foto é intraduzível: “sem palavras”. É entendida pela “significação do todo”, não revelada mediante uma recorrência de unidades de significado. Tais símbolos não lingüísticos são uma “apresentação simultânea, integral” (PROSS, 1980, p. 29).

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qual o sujeito pode se mover e no qual se desenvolve e se renova mediante a experiência de relações de signos” (PROSS, 1980, p. 30), ressalta-se a importância da formação não excluir ou privilegiar uma espécie de conhecimento em detrimento da outra.

Pross (1980) afirma que todo o conhecimento da antropologia aponta para o “caráter insaciável” (PROSS, 1980, p. 18) da necessidade de expressão do homem, cuja capacidade de formar signos, o desenvolvimento de uma “faculdade designadora”, desencadeia um processo de dependência em relação a estes signos que perdura por toda a vida adulta. Ao passar, progressivamente, da confiança de que no lugar de “nada” há “algo” para a constatação do que é esse “algo”, o homem se fixa nos signos que proporcionam esta segurança, que correspondem a esta expectativa. “Esta fixação exclui sempre, ao mesmo tempo, outros signos. Reduz as possibilidades da capacidade designadora, até chegar a uma predicação unívoca de um determinado objeto com um signo que só corresponde a ele.” (PROSS, 1980, p. 22). Isso quer dizer que, dadas infinitas possibilidades de relações, o homem tende a reduzi-las em busca de segurança até o ponto no qual uma única correspondência seja entendida como verdadeira, excluindo todas as outras configurações. Ou seja, reduz tudo à lógica binária.

Por outro lado, o caráter dinâmico da cultura ameaça essa pretensa estabilidade. Tanto os signos quanto os objetos são perecíveis, assim como o sujeito é mortal. Ao mesmo tempo em que os signos proporcionam segurança ao relacionar o novo e desconhecido com algo conhecido e inclui-lo em seu domínio, as relações entre sujeito, objeto e meio estão em constante mutação, de modo que signos e sistemas de signos precisam ser continuamente atualizados (LOTMAN, 1996; PROSS, 1980).

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Nesse sentido, pensar criticamente implica desafiar constantemente as identidades, as relações sígnicas, e observar como estas são construídas, pois é no princípio estruturador que está o sentido. Não no conteúdo expresso por uma forma, mas no modo de organização interna de sua expressão. O distanciamento da experiência imediata de uma formação linguística ou artística, por exemplo, é um requisito para aprender sua visibilidade e intencionalidade (PROSS, 1980).

Consciência crítica é a distância daquele que interpreta em relação ao objeto e ao signo. É preciso apagar por completo o último vislumbre de identidade – direta ou indireta – entre realidade e símbolo, é preciso levar ao paroxismo a tensão entre ambos, a fim que se possa ver, nesta tensão precisamente, o que constitui a contribuição genuína da expressão simbólica e o conteúdo de toda forma simbólica em particular. (PROSS, 1980, p.19)

A criação, por sua vez, enquanto domínio da faculdade designadora, isto é, saber operar signos, montar e desmontar relações entre sujeito, meio e objeto, atualizar ou romper com signos e sistemas de signos, depende igualmente de distanciamento. Por mais que a experiência humana do mundo se dê sempre a partir do meio artificial do signo, por formas linguísticas, obras de arte, símbolos religiosos, etc., o olhar à distância destas relações, a consciência que separa o signo da coisa, é fundamental para articular formas inteligíveis e gerar conhecimento novo (PROSS, 1980).

Desse modo, para compreender a imagem fotojornalística é relevante estudar a montagem dos signos que a compõem. Uma chave é lê-la a partir do conceito de texto apresentado pela semiótica da cultura de Lotman (1996). “Texto” não se limita a um conjunto de signos verbais, mas inclui também signos visuais, sonoros, táteis, gustativos, etc. A estrutura do texto acompanha a do signo. Logo, o texto fotográfico tem como meio a sua visualidade, os traços registrados pelo processo mecânico. Seu significado aparece na organização semiótica das formas para que correspondam a um objeto pela consciência interpretante, a qual opera entre os regimes de sentido e funções da imagem.

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complica o conceito de decifração, que perde o caráter finito, revelador de uma única verdade, mas cujo sentido se complexifica a cada nova interação semiótica.

Especificamente no caso do jornalismo impresso, as fotografias, um texto em si com montagem própria, passam por um segundo processo de editoração ao serem incluídas na reportagem, que por sua vez é um outro texto. A fotografia passa a funcionar como um subtexto, camada interna de um texto maior com o qual interage.

Logo, surge uma nova camada de visualidade, distinta daquela exclusiva da fotografia. As duas visualidades ficam em constante tensão: de um lado o texto da própria imagem fotojornalística, que por sua vez deriva da tensão entre o fato fotografado, a pura forma visual obtida através do processo de registro técnico, e o modo de fazê-lo, as operações da imagem; de outro, o texto que a editora, uma imagem que o jornal constrói em cima da visualidade da fotografia. Este último, o texto final da notícia, é uma nova camada que adiciona ou subtrai sentido da imagem fotográfica. Assim, é uma nova imagem que se sobrepõe à fotografia, com uma nova narrativa, que poderá exprimir uma única voz dominante ou se complexificar a partir da interação de múltiplas vozes. Também a dialetização entre visualidade e imagem poderá gerar um espaço vazio para a imaginação do receptor atuar ou apontar criticamente para o modo de construção da visibilidade.

Diante desse quadro, pretende-se investigar em que medida os dois textos se dialetizam, ou seja, se ao ler o jornal há possibilidade de operacionalizar procedimentos de tradução além daqueles previstos pelo emissor. É possível que a montagem do fotojornalismo altere os parâmetros de compreensão do texto jornalístico e, por meio da natureza ambivalente do seu regime de sentido, participe ativamente na construção de uma visibilidade aberta e em movimento, que desafie a estabilidade da informação dada e possibilite a crítica ao próprio formato jornalístico?

2.2 Discursos de poder

Se por um lado a montagem do texto fotojornalístico em relação ao texto total da notícia guarda potencial emancipatório, também sua visualidade pode se submeter à construção de discursos de poder e ser reduzida à geração de “conhecimento-regulação”2 (SANTOS, 2010, p. 32).

2 A teoria pós-colonial de Santos (2010, p. 32) distingue duas formas de conhecimento na modernidade

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No caso do fotojornalismo, o dispositivo de poder atuaria na organização da visualidade, na mediação da dupla poética da imagem, estabelecendo relações fechadas, por exemplo, ao aplicar à imagem, na sua função não referencial, uma linguagem funcional, descontínua, conferindo significado histórico apoiado em uma relação de poder. Assim, a construção ideológica de um discurso através do fotojornalismo baseia-se no fato de que “a linguagem é uma máquina que coloca (e por eles é colocada) em atividade os paradigmas, categorias, esquemas, modelos de pensar, característicos da cada cultura, integrando, portanto, a máquina cultural” (MORIN, 2008, p. 200).

Por esta razão, é possível identificar também a submissão do fotojornalismo à lógica da sociedade do espetáculo, de modo que a construção ideológica pode servir ao agenciamento da visualidade em seu favor. Para Debord (1997)3, “o espetáculo é [...] uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.” (DEBORD, 1997, p. 14), um sistema no qual a mercadoria aparece como imagem espetacular e na sua imaterialidade é fetichizada. O grande elemento de mediação passa a ser a imagem, que atua no lugar das relações sociais. Segundo o autor, toda a realidade que era vivida diretamente tornou-se espetáculo. Quando tudo passa a ser vivido por imagens, a sociedade torna-se uma imensa acumulação de espetáculos.

Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular à qual adere de forma positiva. [...] a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real. Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente. (DEBORD, 1997, p. 15)

O espetáculo que inverte o real é um produto e a vida, ao aderir à ordem espetacular, também vira uma imagem, “... é a afirmação da aparência e a afirmação de toda vida humana – isto é, social – como simples aparência.” (DEBORD, 1997, p. 16). Nesse sentido, o espetáculo atua como instrumento de homogeneização da sociedade.

Na sociedade do espetáculo, a imagem é a própria relação comunicativa, e se o seu objetivo é chegar sempre a ela mesma, promove a passividade em detrimento da ação, resultando na manutenção do sistema. “O espetáculo é a conservação da inconsciência na

colonialista está em não reconhecer a igualdade do outro. A confluência das lógicas do desenvolvimento da modernidade ocidental e do capitalismo resulta na hegemonia das formas de conhecimento-regulação o que, por sua vez, recodifica o conhecimento-emancipação, de forma que o colonialismo considerado ignorante passa a significar saber e ordem e “[...] o sofrimento humano pôde assim ser justificado em nome da luta da ordem e do colonialismo contra o caos e a solidariedade” (SANTOS, 2010, p. 86). Portanto, pode-se entender “conhecimento-regulação” como uma forma de saber que ordena o mundo a partir da separação e classificação hierárquica, enquanto “conhecimento-emancipação” capacita a todos igualmente, permitindo a coexistência de diferentes saberes com igual valor.

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mudança prática das condições de existência. Ele é seu próprio produto, e foi ele quem determinou as regras: é um pseudo-sagrado.” (DEBORD, 1997, p. 21). Se “o espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (DEBORD, 1997, p. 25), a mesma pode funcionar como elemento associado diretamente ao poder controlador do Estado que atende a interesses privados e à lógica do mercado liberal.

Aqui é importante notar a distinção feita por Debord em relação ao espetáculo concentrado e difuso. O modo concentrado consiste nos mecanismos burocráticos de poder dos estados ditatoriais, nos quais uma figura totalitária, imposta por meio da violência, concentra toda a ideologia. Esse indivíduo é “a acumulação primitiva acelerada pelo terror” (DEBORD, 1997, p. 43) que não permite outra escolha senão a identificação com ele. Por outro lado, o espetáculo difuso gira em torno do desenvolvimento “tranquilo” do capitalismo, no qual cada mercadoria “é justificada em nome da grandeza da produção da totalidade dos objetos, cujo espetáculo é um catálogo apologético” (DEBORD, 1997, p. 43). Sua contradição reside no fato de que o acesso a um fragmento não garante a felicidade mercantil, presente apenas no “consumo do conjunto” (DEBORD, 1997, p. 44).

No entanto, em “Comentários sobre a sociedade do espetáculo” (DEBORD, 1997, p. 166 a 237)4, o próprio autor revê essa distinção em virtude do desenvolvimento do capitalismo. Ele afirma que, da combinação das forças das duas formas anteriores, surge o espetáculo integrado, ainda mais difuso. Por um lado, o espetáculo concentrado persiste, porém a figura central agora está oculta. Quanto ao difuso, o espetáculo penetrou na maioria dos valores e produtos da sociedade. “[...] o sentido final do espetacular integrado é o fato de ele se ter integrado na própria realidade à medida que falava dela e de tê-la reconstruído ao falar sobre ela.” (DEBORD, 1997, p. 173). Logo, uma visualidade espetacular, ao tornar-se uma narrativa da realidade, toma o lugar dela, reconstruindo-a sobre seus parâmetros, pois “o devir-mundo da falsificação era também o devir-falsificação do mundo” (DEBORD, 1997, p. 173). Debord (1997) elenca cinco características desse estágio: “a incessante renovação tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem contestação e o presente perpétuo” (DEBORD, 1997, p. 175).

Agamben (2000, p. 73 - 88) confirma a pertinência da observação de Debord quanto à mudança para a forma integrada do espetáculo. O autor ressalta como os aspectos da transparência e da fantasmagoria presentes na teoria do fetichismo da mercadoria em Marx reaparecem em Debord. A forma mais recente da comodificação é a imagem espetacular,

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momento no qual o valor de troca é tão superior ao valor de uso que “agora alcança o status de absoluta e irresponsável soberania sobre a vida por inteiro, depois de ter falsificado toda a produção social” (AGAMBEN, 2000, p. 75).

É devido à total falsificação das relações sociais, ao alcance ilimitado do espetáculo como comodity fantasmagórica, que Agamben (2009) constata como a ideia da profanação se complica no cenário atual, pois deve ir além do simples “liberar o que foi capturado e separado” (AGAMBEN, 2009, p. 44) e devolver ao uso comum, pois o sujeito capturado é também falso, apenas espectro vazio, é sujeito dessubjetivado.

Isso se deve ao fato de que na raiz do dispositivo está o desejo de felicidade humana proporcionado pela experiência da “liberdade” e da identidade do processo de subjetivação, sem o qual o dispositivo não conseguiria governar e se resumiria apenas à violência. Se as estratégicas do poder são o meio pelo qual se verifica o devir homem, pois o sujeito é o resultado da relação entre o ser vivente e o dispositivo de poder, o crescimento dos dispositivos é proporcional à proliferação dos processos de subjetivação. Assim, a ilimitada disseminação da subjetividade no presente estágio do desenvolvimento capitalista “leva ao extremo o aspecto de mascaramento que sempre acompanhou toda identidade pessoal” (AGAMBEN, 2009, p. 42).

O autor segue afirmando que todo processo de subjetivação é recíproco a um processo de dessubjetivação, pois a constituição do sujeito dócil e governável implica a negação do comportamento oposto, repudiado. No entanto, no momento presente do capitalismo, ambos os processos não se diferenciam, de modo que só resultam em um sujeito espectral, pois “na não-verdade não há mais de modo algum a sua verdade” (AGAMBEN, 2009, p. 47). Ao se deixar capturar, o indivíduo recebe em troca apenas um espectro dessubjetivado pelo qual passa a ser controlado.

Do ponto de vista antropológico, nota-se que as imagens da sociedade do espetáculo aparecem na passagem da figura mítica para a imagem tecnicamente reprodutível. O mito, que marcava a narrativa transmitida oralmente na coletividade, é substituído pela mercadoria, que é própria reprodutibilidade do objeto. O espetáculo faz com que o consumo se transforme em mito do mundo da reprodutibilidade técnica, a narrativa passa a ser a narrativa do consumo e o rito, o rito do consumo.5

5 Notas de aula da disciplina da profa. Lucrécia D’Alessio Ferrara: “Ambientes midiáticos e processos culturais:

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A imagem do espetáculo tem a mesma natureza antropológica da imagem mítica, mesmo com a diferença tecnológica brutal, mas sua visualidade mudou de contemplativa para expositiva. O objeto da reprodutibilidade técnica, que é o mito que caracteriza o rito do consumo, se faz visual pela exponibilidade.6.

Deve-se considerar que, tanto no texto fotojornalístico como no texto total da notícia, há uma constante tensão entre as visualidades contemplativa e expositiva. Na contemplação, o sujeito se põe diante da imagem, e na expositiva, a imagem se coloca diante do sujeito, que a consome. Se o ambiente midiático atual opera principalmente a partir da visualidade expositiva, também se lança ao uso da narrativa da espetacularidade, do gigantismo e culto à celebridade, que transforma o sujeito em personagem do espetáculo através do consumo ou evoca a narrativa para recriar uma “aura” contemplativa, dissimulando o caráter expositivo e mercadológico da imagem. O texto jornalístico apresenta, portanto, diversas camadas de visualidade 7

Do ponto de vista social, é através da imagem circulada pelos meios de comunicação de massa que o espetáculo atinge o eixo dos valores e comportamentos da sociedade. A justificativa para tal lógica é evidente em Morin (2008, p. 19), quando ele afirma que a cultura é tanto organizadora como organizada pela sociedade “via veículo cognitivo da linguagem, a partir do capital cognitivo coletivo dos conhecimentos” (MORIN, 2008, p. 19), de tal forma que cultura e sociedade se retroalimentam.

E, dispondo de seu capital cognitivo, a cultura institui as regras/normas que organizam a sociedade e governam os comportamentos individuais. As regras/normas culturais geram processos sociais que regeneram globalmente a complexidade social adquirida por essa mesma cultura. (MORIN, 2008, p. 19)

Assim, pode-se compreender o alcance do espetáculo enquanto relação social mediada por imagens e sua função de dispositivo de poder, ao atuar na cultura como um processo de subjetivação. A mesma lógica permite que a imagem espetacular seja um instrumento que naturaliza as relações mercadológicas na sociedade e ignora suas contradições.

Agamben (2000) faz colocações interessantes quanto ao papel da linguagem na sociedade do espetáculo, afirmando que a mesma também sofreu um processo de alienação, somando-se à alienação da atividade produtiva já descrita por Marx. O capitalismo acabou por cooptar a linguagem em si, a natureza comunicativa dos seres humanos, seu logos, pois o espetáculo é a linguagem. O autor vê na desapropriação da linguagem, tanto o objetivo do

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espetáculo, como um grande potencial para a sua subversão. Como o espetáculo atua na inversão dessa natureza comum a todos os homens, o autor sugere que há possibilidade de agir positivamente em sua recuperação. A política na era do espetáculo integrado, ao expropriar a linguagem, também pode acabar por libertá-la. A cooptação da linguagem pelo espetáculo, ao mesmo tempo em que a separa dos homens, torna evidente o seu caráter vazio, podendo explicitar sua função de dispositivo. Assim, através da experiência da linguagem em si, é possível desarticular valores, tradições, crenças e ideologias. O espetáculo faz isso em certa medida, porém com o objetivo de retornar a ele mesmo. O segundo passo seria se apropriar de sua estratégia para subvertê-lo, se aproveitando deste distanciamento para observar sua construção criticamente, como sugere Pross (1980). “Somente aqueles que levarem isso ao fim – sem permitir que aquilo revelado seja escondido sob o nada que revela, mas devolvendo a linguagem em si para a linguagem – serão os primeiros cidadãos de uma comunidade sem pressuposições ou um estado.” (AGAMBEN, 2000, p. 84).

Da mesma forma como Agamben (2000) vê possibilidades de resistência ao espetáculo, é pertinente avaliar com cautela seu grau de influência nos processos culturais, pois este não ocupa todo o âmbito da cultura. Não é possível ignorar que a mesma está sempre, em alguma medida, “aberta ao mundo exterior, de onde tira conhecimentos objetivos e que conhecimentos e idéias migram entre culturas” (MORIN, 2008, p. 26). Isso soma-se ainda à relação complexa na qual o indivíduo produz cultura a partir dos modos de conhecimento que são por elas produzidos, ou seja, o fato de que “a cultura regenera os conhecimentos que regeneram a cultura” (MORIN, 2008, p. 26). Tal perspectiva permite afirmar que os indivíduos “não são todos, e nem sempre, mesmo nas condições culturais mais fechadas, máquinas triviais obedecendo impecavelmente à ordem social e às injunções culturais” (MORIN, 2008, p. 26) e que, portanto, o espetáculo não permeia totalmente a vida social e cultural.

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Entretanto, os processos comunicacionais não podem ser reduzidos completamente à lógica de causa e efeito, mesmo quando o indivíduo está imerso no espetáculo. Se é da natureza do texto a possibilidade de abertura, não é possível supor do receptor somente passividade contemplativa e ritual de consumo. A prática emancipatória, que desafia a oposição entre ver e agir e capacita o receptor como intérprete e construtor, traz no centro o exercício da tradução (RANCIÈRE, 2009a, p. 23). Morin (2008) embasa esta ideia afirmando que a linguagem é essencial para a constituição da vida e do universo da cultura, mas complexifica sua atuação, ultrapassando o paradigma estruturalista que via na linguagem a chave para toda a lógica social. Morin concebe a linguagem “ao mesmo tempo como autônoma e dependente” (MORIN, 2008, p. 199), em uma “relação produtiva rotativa” (MORIN, 2008, p. 198) entre o sujeito, a língua e a esfera sociocultural.

O reconhecimento da realidade objetiva e autônoma da linguagem não exclui nem o espírito/cérebro humano, que é o seu produtor, nem o sujeito, que é o emissor, nem as interações culturais e sociais onde adquire existência e essência. Precisamos pensar circularmente que a sociedade faz a linguagem que a faz, que o homem faz a linguagem e fala a linguagem que o exprime. (MORIN, 2008, p. 198)

Sendo assim, é necessário considerar de que forma as operações da imagem fotojornalística promovem uma autoconsciência crítica do texto e através da ambivalência do registro podem funcionar como contradispositivos. Se a montagem atuar dialeticamente, não para superar contradições mas para gerar dissenso, desordem, poderá construir brechas na hegemonia das relações sociais mediadas por imagens. Em outras palavras, propõe-se investigar se a montagem fotojornalística é capaz de desencadear um processo cognitivo relacional no receptor, que buscaria construir visibilidades alternativas a partir de uma visualidade dada, questionando a fixidez da construção do conhecimento.

É uma hipótese desta pesquisa que o jornal, como um lugar “oficial” que legitima conhecimento e cultura, opere como um dispositivo de poder que naturaliza o domínio da lógica do mercado, pois, ao realizar uma separação na distribuição das capacidades sensíveis do receptor, incentiva apenas a atividade passiva de contemplação e consumo de espetáculo e reduz o potencial das imagens a uma relação de simples estesia. Desse modo, pode dificultar ou impossibilitar a prática emancipatória, que seria a operacionalização por parte do receptor de visibilidades polifônicas e críticas, ao fornecer uma narrativa fechada e eliminar a ambivalência das imagens através da construção de uma visibilidade limitada e funcional.

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uma visibilidade excludente e purificada. Se a chave de leitura da notícia é consequência dessa visibilidade produzida na montagem do texto total da notícia, em que medida ela poderia ser prevista estrategicamente pelo emissor?

É de se notar que os dispositivos de poder, normativos, e os contradispositivos estão sempre em constante atrito. Segundo Newcomb (1991), para Bakhtin:

[...] as linguagens sempre nascem da prática social. Elas existem em estruturas sociais antes de se enraizarem na consciência. [...] Em conseqüência, a linguagem está sempre se transformando. Precisamente porque ela está fundamentada na prática, essa produção de sentido é o lugar de luta ideológica. (NEWCOMB, 1991, p. 365 - 366)

O sistema procura incorporar a diferença e torná-la regra, desarmando-a justamente do que lhe confere seu potencial emancipatório. Os contradispositivos podem ser incorporados ao programa, de forma que não mais gerem ambivalência, mas passem a funcionar eles mesmos como dispositivos. O que há uma década poderia causar estranhamento para o receptor ao explicitar a dinâmica paradoxal da imagem midiática, pode ser incorporado pelo programa e hoje tornar-se um procedimento purificado e industrializado, de modo a compor somente mais uma pseudo-opção de consumo.8 Por outro lado, os processos culturais são de natureza móvel e geradora de variação e persistem operando independentemente da orientação político-ideológica dos sujeitos, o que em certa medida possibilita que novas estratégias não antecipadas pelo sistema continuem surgindo (PINHEIRO, 2010).

Logo, a segunda hipótese concebe as imagens fotojornalísticas e o texto da notícia como um campo dinâmico de luta ideológica. Assim, procura-se investigar em que medida os procedimentos artísticos geradores de indeterminação comumente empregados pelo fotojornalismo se realizam enquanto contradispositivos emancipatórios, mesmo através da mídia de massa, ou se, pelo contrário, acabam sendo agenciados a serviço de uma outra causa, sendo operacionalizados como dispositivos de poder na construção do texto da notícia e servindo ao consumo do espetáculo e à disseminação de conhecimento-regulação.

2.3 Fotografias de Sebastião Salgado em reportagem do jornal Folha de São Paulo

Para investigar as hipóteses descritas, escolheu-se analisar uma reportagem do jornal Folha de São Paulo que utiliza fotografias de Sebastião Salgado. Optou-se por estudar a primeira reportagem do fotógrafo com exclusividade para o jornal, com texto e editoração da

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publicação brasileira, de domingo, 14 de agosto de 19949, que aborda a situação dos campos de refugiados ruandeses no Zaire.

A edição intitulada “edição histórica” foi anunciada previamente desde a terça-feira anterior juntamente com seus principais destaques: um Atlas geográfico gratuito na compra do jornal, uma matéria inédita com cartas entre Sartre e Marleau-Ponty no caderno “Mais!” e, no sábado, uma chamada para uma reportagem exclusiva com fotos de Sebastião Salgado. Dessa forma, a “edição histórica” traz cobertura extra e especial englobando grandes campos do conhecimento: as ciências exatas, o pensamento filosófico e a arte.

Nesse caso, é insinuado de antemão que a cobertura fotográfica é especial justamente porque é mais “artística” que o trabalho normalmente apresentado, ou seja, vai além dos valores de objetividade e neutralidade prezados pelo jornalismo para um ponto de vista particular de um fotógrafo. Apesar da reportagem tratar de uma notícia de atualidade, não de um documentário temático, a montagem da capa deixa claro que este não é o trabalho de um fotojornalista comum, mas de um fotógrafo renomado (segundo informações apresentadas pelo jornal) que publica ali em caráter especial.

O “ponto de vista do fotógrafo” é uma construção explorada pela editoração do jornal, considerando que os principais textos escritos contidos na reportagem são: apresentação da matéria comentando sobre a relevância das imagens de Salgado na capa, citações diretas da fala do fotógrafo e uma breve biografia na 2a página, mais um trecho de apresentação biográfica e uma longa entrevista na 4a página. A única sessão que foge desta lógica é a 3a página, com uma pequena matéria informativa. Mesmo o título da série, “inferno em preto-e-branco”, liga diretamente o tema à visão particular do fotógrafo, cuja opção pelo preto e branco é reforçada pelo jornal. O que se observa é a construção da imagem do fotógrafo pelo jornal, que por sua vez se deixa construir por ele. No entanto, o primeiro aspecto é naturalizado, certas informações “biográficas”, como sua colocação entre os melhores fotógrafos do mundo, são dadas como fatos, não construções. Assim, ao formatar a matéria a partir da perspectiva do fotógrafo, o jornal consegue assumir uma posição distante e de neutralidade quanto aos conteúdos publicados, se abstendo do papel de mediação.

Tal lógica é própria do funcionamento do dispositivo na cultura, que captura os seres e produz, em troca, sujeitos espectrais sem base no real, com objetivo de controle. Morin (2008), sem mencionar o dispositivo, descreve esse processo, afirmando que a todo tempo, os

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homens criam seres, ou criam uma dupla existência para um ser real, na esfera da cultura. Deuses, celebridades e paradigmas científicos são um exemplo disso. Mas apagam a gênese desses seres, esquecem o fato de que são sua própria criação que existe apenas no mundo das ideias, e ao lhes concederem caráter real, se deixam por elas governar, deixam que elas os produzam. O autor (2008) comenta sobre a relação recursiva entre os homens e os seres da “noosfera”:

O mundo constituído pelas coisas do espírito, produtos culturais, linguagens, noções, teorias, inclusive os conhecimentos objetivos. Trata-se, de fato de uma noosfera, [...] produto do espírito humano, adquire uma existência própria [...] embora produzidas e dependentes, as coisas do espírito adquirem uma realidade e uma autonomia objetiva. [...] De minha parte, convencido desde muito tempo da realidade do mundo imaginário/mitológico/ideológico, convencido de que esse mundo certamente é um produto, mas um produto recursivamente necessário à produção de seu próprio produtor antropossocial [...]. (MORIN, 2008, p. 134, 136 - 137)

No caso estudado, tal construção e abstração de origem tem o propósito específico de gerar a ilusão da neutralidade jornalística. A imagem de fotógrafo que o jornal constrói e as implicações para a leitura da notícia podem ser observadas mais detalhadamente nas análises a seguir.

A fotografia escolhida para a primeira página do jornal (FIG. 1, anexo A) ocupa as quatro colunas centrais no 1º terço da página, sob a manchete secundária em itálico que diz: “Edição histórica com tiragem recorde de 1.117.802 exemplares”. É secundária porque a manchete principal vem logo abaixo e ocupa o restante da página, com letras maiores e em formato regular. As fotos que acompanham a principal notícia, sobre a campanha eleitoral de FHC e Lula, são de enquadramento fechado, mais limpas, pois os rostos se destacam contra um fundo escuro, conferindo maior legibilidade para a notícia. Já a imagem de Sebastião Salgado, apesar de ocupar quatro colunas, pede maior atenção aos detalhes que ficam miúdos e se espalham em uma grande gama tonal.

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estando o primeiro plano abaixo das lentes, o segundo na mesma altura e o terceiro plano ao fundo mais elevado que a lente.

Considerando o movimento descendente, pode-se entender que o caminho percorrido pelos sujeitos retratados levaria a uma situação inferior, pois dirige o olhar aos meninos deitados, que não demonstram nenhuma intenção ou força para se moverem. A moça que caminha parece querer se distanciar do campo, mas o movimento da imagem sugere que ela acabará caindo e se juntando aos meninos, em uma situação pior, pois se ao fundo enxergam-se tendas, no primeiro plano há somente esteiras, enxergam-sem qualquer proteção. Essa leitura vai de encontro ao título da chamada de capa, que ocupa a coluna à direita da fotografia: “Salgado retrata o inferno dos ruandeses”. O uso do termo inferno remete à descida a uma situação inferior que seria um terrível destino final, a pior situação de existência à qual estariam condenados os ruandeses. Assim, parece favorecer a leitura de que o movimento ocorre em direção ao pior e é inevitável.

A escolha dessa imagem específica para a primeira página do jornal deve-se provavelmente ao seu enquadramento de plano geral, que está de acordo com o título da chamada, prometendo uma visão total da situação, e também com a leitura inicial e generalizante dos acontecimentos no Zaire. No entanto, a constatação das precárias condições de habitação do campo são apenas uma possível leitura dessa fotografia.

Muito além de uma ideia compacta da miséria, pode-se fazer uma segunda leitura do mesmo movimento da imagem. Nota-se que o eixo de ação é justamente o movimento de saída do campo ao encontro do olhar do menino deitado no chão, ponto de concentração de toda a tensão da imagem. Esse gesto do olhar, semicerrado e exausto do menino, que parece sucumbir ao “inferno”, é um gesto dirigido à presença do fotografo e à câmera. É nesse olhar que está a zona de indeterminação da imagem, pois ele aponta para a presença de um fotógrafo, demonstrando que o registro foi feito por uma pessoa real, que também participa da cena e, mesmo estando atrás da câmera, agora torna-se visível na imagem. Amplia-se o campo da imagem, que engloba também a intencionalidade do registro e a interação do fotógrafo com os refugiados. Assim, não é mais somente uma janela para o evento, uma visão neutra e automática, mas obriga os espectadores a considerarem a dimensão humana real envolvida no processo de registro.

Imagem

Tabela  1:  Comparação  entre  as  características  da  imagem-monumento  e  da  imagem  dialética  conforme  identificadas pela pesquisa

Referências

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